Juízo Central do Comércio

                Sumário:

          Tendo o despacho de admissão de exoneração do passivo restante partido dos factos de que o insolvente estava preso preventivamente e não tinha rendimentos, não se pode dizer que o insolvente tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas no art. 239 do CIRE, se não se provou qualquer mudança na situação do insolvente e se o fiduciário apenas o notificou para a residência, para onde já tinha antes enviado uma carta que lhe tinha sido devolvida; e por isso não podia ter sido determinada a cessação antecipada do procedimento de exoneração (art. 243/1-a do CIRE).

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

1. Ao apresentar-se à insolvência e ao requerer o benefício da exoneração do passivo restante, I disse: a sua situação de preso preventivo não lhe tem permitido a resolução do problema; o processo em que se encontra em situação de preso preventivo ainda está em fase de inquérito, pelo que desconhece-se, por quanto tempo, ainda estará privado da sua liberdade; o requerente é soldado, auferindo cerca de 510€ mensais, o que apenas se deverá prevalecer até a Abril de 2015, data em que termina o seu contrato com o exército; não dispõe de qualquer outra fonte de rendimento.

2. No relatório do Administrador da Insolvência de 19/05/2015, dizia-se: o contrato com o exército terminou em Abril/2015; como agravamento da situação o insolvente está na situação de preso preventivo ainda em fase de inquérito; o endereço é Rua de X; a nossa carta de 24/04/2015, enviada ao endereço do insolvente foi devolvida pelos CTT, em 11/05/2015 com a designação “não atendeu”; não foi possível obter informação do insolvente devido a esse facto; não possui elementos que permitam concluir que o pedido de exoneração do passivo restante deva ser indeferido, propõe que seja proferido despacho favorável.

3. Um dos credores dizia: o veículo sobre o qual se incide uma reserva de propriedade registada a seu favor, subjacente ao crédito reclamado, encontra-se apreendido à ordem do proc. 545/14.5PCSNT, que corre termos na 1ª secção criminal – J1 do Juízo Central de Sintra, já com julgamento agendado para o dia 16/09/2015.

4. Por despacho de 24/06/2015 admitiu-se o incidente da exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente e desse despacho constava, como facto provado, que o insolvente se encontra preso preventivamente. Foi determinado que o rendimento disponível que o insolvente viesse a auferir, no prazo de 5 anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência, se considera cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal de €350, actualizada anualmente.

5. A 30/03/2017, o fiduciário, ex-AI, veio dizer informar que o insolvente ainda não procedeu a qualquer entrega a favor da massa insolvente, apesar de ter sido notificado para o efeito através de carta registada com aviso de recepção, de 25/09/2015 (devolvida pelos CTT, em 08/10/2015, com a designação “não atendeu”).

6. A 20/04/2017, foi proferido o seguinte despacho: Perante as informações trazidas aos autos pelo Sr. fiduciário, ouçam-se o devedor e os credores, no prazo de 10 dias e nos termos e para os efeitos do artigo 243, n.ºs 1 e 3, do CIRE.

7. Esta carta foi notificada ao mandatário do insolvente por carta elaborada a 26/04/2017.

8. Dois dos credores vieram dizer – utilizando os termos mais desenvolvidos de um deles – que da informação prestada pelo Sr fiduciário, ressalta um efectivo não cumprimento, por parte do insolvente, dos deveres a que estava adstrito, nos termos do disposto no art, 239/4 do CIRE. Assim e, por violação do disposto nas alíneas a), c) e d) do art. 239/4 do CIRE, entendem que deve ser determinada a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, nos termos e para os efeitos do disposto nas al. a) e b) do art. 243/1 do CIRE.

9. Em 23/10/2017 foi proferido o seguinte despacho: em 5 dias, pronuncie-se o devedor quanto ao expresso nos requerimentos dos credores.

10. Este despacho foi notificado ao mandatário do insolvente, por carta elaborada a 24/10/2017.

11. A 04/01/2018, na conclusão aberta a 29/11/2017, foi proferido o seguinte despacho:

[…]

Do relatado pelo Sr. fiduciário a 30/3/2017, resulta que o insolvente não procedeu a quaisquer transferências, a título de rendimento disponível, nem justificou tais omissões, e que a tentativa de contacto através de carta resultou infrutífera.

Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 243, n.ºs 1 e 3, do CIRE, o devedor não se manifestou […]

Perante o acima sintetizado, dos autos não consta factualidade que possa ser subsumida às diversas alíneas do n.º 4 do artigo 239 do CIRE [sic], ou seja o devedor não cumpriu com os deveres impostos.

A omissão do devedor não só prejudica a satisfação dos créditos sobre a insolvência como também não se encontra justificada.

Em face do exposto, determino a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante (artigo 243, n.ºs 1-a e 3-2ª parte, do CIRE).

Não há lugar a custas (art. 303 do CIRE).

Notifique, publique e registe (art. 247 do CIRE).

Atendendo ao labor do Sr. Fiduciário, fixo a quantia remuneratória, para cada um dos anos de 2016 e 2017, em que decorreu o período de cessão de rendimentos, de € 100, a suportar pelo Cofre Geral dos Tribunais.

DN

Oportunamente, arquive os autos.

Notifique.

12. O insolvente vem recorrer deste despacho, alegando o seguinte, com alguma síntese feita por este tribunal de recurso:

O insolvente foi condenado a 9 anos de prisão efectiva, no âmbito do proc. 545/14.5PCSNT, que correu no Juízo Central de Sintra, 1.ª secção criminal – J1, no dia 21/12/2015.

Desde o dia 01/10/2014, encontrava-se detido preventiva-mente, sendo esta a razão da sua apresentação à insolvência, uma vez que deixou de auferir rendimentos para suportar todas as despesas que detinha àquela data.            

A detenção preventiva foi conhecida pelo tribunal a quo desde a data de entrada do requerimento de apresentação à insolvência, tendo o facto sido invocado pelo tribunal no despacho liminar de admissão da exoneração do passivo restante e como tal, público, nos termos do art. 38 do CIRE.

Pelo que, era de todo impossível ao insolvente receber a comunicação enviada a 25/09/2015 pelo Sr. fiduciário, porque nesta data encontrava-se detido no Estabelecimento Prisional de Caxias.

Mais, também era de todo impossível ao insolvente efectuar quaisquer transferências no âmbito deste processo, porquanto o valor que recebeu até à data, pelos pequenos trabalhos que chegou a efectuar dentro do estabelecimento prisional, nunca ascenderam os 350€.

Nos termos do art. 243/1-a do CIRE, é necessário verificarem-se dois pressupostos cumulativos, para que seja recusada a exoneração por violação das obrigações impostas pelo art. 239 do CIRE: a) que o devedor tenha actuado com dolo ou negligência grave; b) que a sua actuação cause um prejuízo para os credores.

Ora, pelos motivos expostos não poderá concluir-se que actuou com dolo ou negligência grave.

Nem se pode concluir que a sua actuação causou um prejuízo relevante, que possa colocar em causa a satisfação dos créditos sobre a insolvência, atendendo ao facto de os credores terem conhecimento que o recorrente encontrava-se detido, e mesmo que conseguisse arrecadar algum rendimento dos pequenos trabalhos que efectuou dentro do estabelecimento prisional, sempre seria diminuto em comparação com o valor total do seu passivo.

Neste sentido, em situação idêntica à dos presentes autos, veja-se o ac. do TRC de 03/06/2014, proc. 747/11.6TBTNV-J.C1 [a data e a identificação correcta do acórdão foram colocadas agora por este TRL].                   

Pelo que, o tribunal a quo, violou as disposições conjugadas dos artigos 243/1-a do CIRE e 18/2 da Constituição da República Portuguesa, por falta de preenchimentos dos requisitos legais, devendo, em consequência, ser revogada a decisão recorrida.

              Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                                 *

             Questões a decidir: se não devia ter sido determinada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.

                                                                 *

          Os factos que interessam à decisão desta questão constam dos dez primeiros pontos do relatório que antecede.

                                                                 *

           Quanto aos factos, importa ainda esclarecer que a maior parte dos factos invocados pelo insolvente no recurso não está provada, isto é, que: (i) ele tenha sido condenado a 9 anos de prisão efectiva, (ii) se encontre em prisão preventiva desde o dia 01/10/2014, (iii) tenha sido essa a razão da sua apresentação à insolvência, uma vez que deixou de auferir rendimentos para suportar todas as despesas que detinha àquela data, e (iv) os credores tenham conhecimento que o insolvente se encontre detido/preso.

              E o insolvente nem sequer se pode queixar de não ter tido oportunidade de os provar, pois que, por duas vezes, o mandatário do insolvente teve oportunidade para o efeito.

               Sendo certo ainda que os factos em causa não são notórios (art. 412 do CPC) e não dispensavam a produção da prova. Não é por as decisões serem de outros tribunais, que os tribunais têm necessariamente conhecimento delas.

           Posto isto, não deixa também de ser verdade que esses factos, não estando provados, estão indiciados pelo que consta dos quatro primeiros pontos do relatório deste acórdão. O relevo disto, será, eventualmente, visto à frente.

                                                                 *

         O art. 243/1-a do CIRE diz, na parte que para já importa, que, antes ainda de terminado o período de cessão, o juiz deve recusar a exoneração se o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art. 239 do CIRE.        

              O despacho recorrido não diz, com referência às diversas alíneas do n.º 4 do art. 239 do CIRE, qual a obrigação violada. Mas censura ao insolvente o ele não ter procedido a quaisquer transferências de rendimento disponível e não ter justificado esse facto. Censura-lhe, também, o facto de a tentativa de contacto através de carta ter resultado infrutífera. Os credores, por sua vez, invocam as obrigações impostas pelas alíneas a, c e d do art. 239/4 do CIRE.

              Sendo notório que as obrigações das outras alíneas não estão em causa no caso, importa então analisar apenas as que constam das alíneas a, c e d do art. 239/4 do CIRE.

             Para se estar perante a violação da al. c – a falta de entrega de rendimentos – tinha que estar provado que o insolvente tinha algum rendimento, o que não está provado. Pelo que não têm razão nem o despacho recorrido nem os credores quando invocam tal violação. Note-se que no despacho de admissão do incidente de exoneração do passivo restante, não se disse que o insolvente tinha algum rendimento, nem se partiu desse princípio, sendo certo, pelo contrário, que se sabia que ele não tinha qualquer rendimento por, pelo menos à data, se encontrar preso e o contrato de trabalho ter cessado.

              Para se estar perante a violação da al. d, primeira parte, tinha, desde logo, que ter havido alguma mudança de domicílio ou de condições de emprego, o que também manifestamente não está provado. Não tem pois razão o tribunal ao sugerir a culpa do executado na frustração da tentativa de contacto.

        Não está também provada qualquer ocultação ou dissimulação de qualquer rendimento, ou seja, a violação da obrigação da 1.ª parte da al. a.

              Assim, o que pode estar em causa era a violação da obrigação do insolvente de dar informações ao fiduciário sobre o que consta das 2.ªs partes das alíneas a e d do art. 239/4 do CIRE.

              Repare-se: violação da obrigação de dar informação ao fiduciário relativamente ao que este lhe tivesse requisitado ou solicitado, como consta dessas 2ª partes das alíneas referidas.

           Ora, para isso, era necessário que o insolvente tivesse sido notificado dessa requisição ou solicitação. Mas isso não aconteceu, pois que a carta enviada para o insolvente veio devolvida. E não se pode dizer que ela tenha sido enviada para a morada onde o insolvente se deu como residente, pelo que se deveria ter por notificado (art. 249/1 do CPC), porque a residência de facto que ele indicou foi a da prisão onde estava preso preventivamente e não houve nunca notícia de ele ter saído da prisão e o fiduciário não o tentou contactar aí, mas sim para a morada para onde já tinha remetido outra carta que lhe tinha sido devolvida.

              Dito de outra forma: é inconcebível que sabendo o AI que o insolvente estava preso preventivamente – logicamente numa prisão e não em casa -, indiferente a isso lhe tenha enviado uma carta para casa em vez de para a prisão. Tal como é inconcebível – para mais tendo-lhe esta carta sido devolvida – mais tarde, agora como fiduciário, lhe tenha enviado novamente uma carta para casa em vez de para a prisão, sem que houvesse qualquer notícia de que o insolvente tivesse deixado de estar preso.

              Pelo que também não se verifica a violação das obrigações em causa.

              Assim sendo, não é possível dizer que o insolvente tenha violado qualquer uma das obrigações previstas no art. 239/4 do CIRE. 

            E, por isso, não pode estar preenchido o fundamento invocado pelo despacho recorrido, do art. 243/1-a do CIRE (sendo que o previsto no art. 243/3 dependia daquele) que, para além disso, ainda pressuponha que alguma daquelas violações tivesse sido praticado dolosamente ou com grave negligência, o que, claramente, os factos provados nunca permitiriam concluir.

              E ainda faltaria a questão do prejuízo…

                                                                 *

              Assim, o despacho que determinou a cessação antecipada do procedimento da exoneração, deve ser revogado, no seu todo, isto é, também nas consequências que tirou para a remuneração, para o arquivamento do processo e para a publicitação que lhe deu.

                                                                 *

              Pelo exposto, revoga-se o despacho de 04/01/2018 (ponto 11 do relatório supra), no seu todo, repristinando-se o procedimento da exoneração do passivo restante, fazendo-se para o efeito as diligências e notificações necessárias, a determinar pelo tribunal recorrido.

               As custas de parte ficam a cargo da massa insolvente. Não há outras custas (encargos ou despesas no recurso).

              Lisboa, 17/05/2018

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto