Processo 13421/19.6T8LSB do Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 9

              Sumário: A impugnação da decisão da matéria de facto, num recurso, não pode ser feita pela simples justaposição de (i) 2 páginas com a transcrição da decisão final, da identificação do objecto do litígio e da enunciação dos temas de prova; (ii) 10 páginas com a transcrição da decisão da matéria de facto; (iii) 44 páginas de transcrição de depoimentos de parte e de testemunhas; (iv) 4 páginas com um rol daquilo que resultaria da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, sem se dizer como nem porquê, nem mesmo que tal rol seja o resultado da prova produzida pela parte dos depoimentos que foram transcritos, e também sem relacionar esse rol com os factos dados como provados ou não provados.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A intentou uma acção declarativa de condenação contra R, pedindo a condenação deste, ao abrigo do instituto da responsabilidade civil, por lhe ter exigido quantias indevidas, no montante de 36.000€, e por danos não patrimoniais, no montante de 14.000€, associados a um estado depressivo e de incapacidade para o trabalho prolongada, acrescidos de juros moratórios contabilizados desde 01/01/2017 até ao efectivo e integral pagamento.

              O réu contestou, defendendo-se por impugnação e por excepção, pugnando pela improcedência do pedido, uma vez que a gerente da I-Lda, M, celebrou um contrato com a F-Lda, entidade empregadora do réu, na esteira do qual se alicerçou o contrato apresentado pela autora, do qual nem o réu, nem a autora, foram partes, não a tendo, igualmente, coagido à entrega de quaisquer montantes.

              A autora replicou e preconizou pela improcedência das excepções alegadas.

              Em sede de audiência prévia foi proferido despacho saneador, julgando-se improcedente a excepção de ilegitimidade do réu e da autora.

              Depois da audiência final, foi proferida sentença a julgar a acção totalmente improcedente.

              (neste relatório utilizou-se, no essencial, o relatório da sentença recorrida)

              A autora recorre desta sentença:

              Na página 1 do recurso consta o requerimento de interposição do recurso; a página 2 contém afirmações conclusivas de que a sentença decidiu mal; na página 3 diz que não concorda com a sentença, que o TRL pode alterar a decisão de facto e que o processo contém os elementos necessários para o efeito; nas páginas 4 e 5 transcreve a decisão final, a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova, que constam do despacho judicial, temas de prova que são 10 e foram formulados, no essencial, em termos genéricos; nas páginas 6 a 15 transcreve a decisão da matéria de facto; nas páginas 16 a 20 transcreve parte do depoimento da autora; nas páginas 20 a 34 transcreve parte do depoimento de uma testemunha; e o mesmo faz nas páginas 34 a 39, nas páginas 39 a 42, nas páginas 43 a 46 e nas páginas 46 a 49; nas páginas 49 a 53 faz um rol daquilo que resultaria, cristalinamente, da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, não diz como nem porquê, nem diz mesmo que tal rol seja o resultado da prova produzida pela parte dos depoimentos que transcreveu e também sem relacionar esse rol com os factos dados como provados ou não provados; na página 53 inclui uma acusação de falsidade a um daqueles depoimentos que transcreveu; nas páginas 53 a 60 pronuncia-se sobre o direito aplicável, em termos tão genéricos e abstractos, e aplicáveis a qualquer acção de responsabilidade civil que, no ponto 16, chega a dizer que o facto ilícito consiste, no caso em concreto o dano da viatura e as despesas a que deu causa [sic], quando o caso dos autos não tem nada a ver com qualquer dano em qualquer viatura, e na conclusão M diz que “não há dúvidas que a conduta do banco Recorrido foi dolosa (dolo directo), isto porque quis directamente realizar o facto ilícito, avançando judicialmente com a execução de um título que há muito tinha sido informado ser falso”, quando esta acção não tem nada a ver com um banco nem com a execução de um título. Termina o recurso dizendo que deve ser revogada a sentença recorrida e substituída por acórdão, que após alteração da decisão sobre a matéria de facto, julgue procedente por provada a acção.

              O réu não contra-alegou.

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              Questões a decidir: se a decisão da matéria de facto deve ser alterada e se, em consequência, deve ser alterada a decisão final.

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                            O art. 640 do CPC, sob a epígrafe ‘ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto’ dispõe no seu n.º 1 que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: (a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; (b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; (c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

                            Ora, nas alegações do recurso da autora não estão minimamente especificados os concretos pontos de facto que a autora considera incorrectamente julgados, quer por terem sido dados como provados quando não o deviam ter sido, quer por não terem sido dados como provados quando o deviam ter sido; não constam, especificados, os concretos meios de prova que permitiriam a conclusão de provados de alguns factos que estivessem dados como não provados ou nem sequer tivessem sido objecto da decisão, ou que impusessem a conclusão de não provados de outros factos que tivessem sido dados como provados; nem está especificada a decisão que, quanto a uns e a outros, devia ter sido proferida.

                             Um recurso com impugnação da decisão da matéria de facto é a argumentação destinada a demonstrar que, com base em determinados elementos de prova, se devia ter decidido, num certo sentido e não noutro, um certo facto ou conjunto de factos com unidade de sentido; um recurso não é o arrolamento de meios de prova, sem sequer se fazer a conexão entre eles e os factos dados como provados ou não provados.

                             As normas acabadas de citar têm correspondência com a exigência de fundamentação imposta ao juiz para declarar “quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção” (artigo 607/4 do CPC), o que no caso foi rigorosamente cumprido pela sentença recorrida, fazendo essa fundamentação facto a facto ou com referência a um conjunto de factos com unidade de sentido. Era assim fácil, à autora, se tivesse reais razões de discordância, dar delas conta na impugnação da decisão da matéria de facto, tentando demonstrar, facto a facto (ou conjunto de factos com unidade de sentido), porque é que, tal ou tal elemento de prova imporia uma decisão diversa daquela que foi proferida.

                             Não é a parte contrária que, para poder contra-alegar, tem que imaginar, ou extrair das alegações, em confronto com a discriminação dos factos dados como provados e não provados, quais os factos que a recorrente está a impugnar, e depois descobrir quais os meios de prova que, em concreto, e como, lhe permitem tal conclusão em relação a cada facto impugnado, e qual a decisão concreta que sobre ele devia ter sido proferida. Nem é ao tribunal que o cabe fazer.

                             Assim, por inobservância de todos os ónus que o art. 640 do CPC põe a cargo dos recorrentes que impugnem a decisão da matéria de facto, rejeita-se esta impugnação.  

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                             Não havendo, pelo acabado de dizer, lugar a qualquer alteração da matéria de facto, este acórdão limita-se a remeter a discriminação dos factos dados como provados para os termos da decisão da 1.ª instância (art. 663/6 do CPC).

                             Não tendo sido alterada a decisão da matéria de facto e estando o recurso sobre matéria de direito dependente da alteração da decisão da matéria de facto, não tem sentido estar a apreciar as alegações de direito que, aliás, foram feitas em termos tão genéricos e abstractos que a recorrente até incluiu matéria que nada tem a ver com o caso dos autos.

                             De qualquer modo, não deixe de se dizer que a sentença fez a análise necessária à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, concluindo, fundamentadamente, e bem tendo em conta os factos dados como provados, pela não verificação daqueles, com o que a recorrente implicitamente concorda pois que, só com base na alteração da matéria de facto, poderia eventualmente chegar a conclusão contrária.

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                      Pelo exposto, rejeita-se a impugnação da decisão da matéria de facto e julga-se o recurso improcedente.

                      Sem custas por a autora – que perde o recurso – ter sido dispensado delas no âmbito do apoio judiciário.

                     Lisboa, 09/09/2021

                     Pedro Martins

                    1.º Adjunto

                    2.º Adjunto