Processo  do Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 14

                Sumário:

                I – A penhora de créditos fica feita com a notificação dela ao terceiro devedor.

         II – Uma obrigação pecuniária vence juros desde a constituição em mora e a penhora não é impedimento ao vencimento de juros ou causa de suspensão do seu vencimento.

              III – A penhora deve ser levantada por uma decisão (normalmente do AE).

             IV – Os créditos de capital e de juros são relativamente autónomos, embora os dos juros sejam geneticamente acessórios dos de capital.

            V – Dos factos provados não decorre que os créditos de juros tenham sido, no caso, penhorados e é só a estes que o recurso respeita, pelo que a ré nunca esteve, nem está, impedida de fazer o pagamento deles à autora.

           VI – A prescrição é uma excepção peremptória que não é de conhecimento oficioso.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              NM-Lda, apresentou um requerimento de injunção que veio a ser aperfeiçoado e seguiu termos como acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos contra E-SA, actualmente El-SA, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe 10.636,67€, acrescida de juros vencidos (desde a data de vencimento das facturas) e vincendos até integral pagamento.

              Para o efeito alega, em síntese, que no exercício da sua actividade celebrou vários contratos com a ré e procedeu, a solicitação desta, ao aluguer de máquinas e à prestação de serviços que não lhe foram pagos.

        A ré deduziu oposição excepcionando: as facturas cujo pagamento se mostra reclamado emergem de contratos de subempreitada celebrados entre as partes; as facturas em causa foram por si recebidas e consideradas para pagamento; porém, foi notificada no âmbito de processos judiciais da penhora dos créditos, tendo-os ela reconhecido, pelo que as quantias correspondentes ficaram cativadas à ordem desses processos; conclui que o montante reclamado existe mas não é devido à autora e, consequentemente, que inexiste mora e direito a juros.

              Realizou-se a audiência final e depois foi proferida sentença julgando procedente a acção e condenando a ré no pedido

              A ré recorre de tal sentença, para que seja alterada de modo a que apenas sejam devidos juros desde que ela teve conhecimento da extinção das execuções em apreço, o que ocorreu em 28/03/2019.

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              Questão que importa conhecer: se a ré não devia ter sido condenada em juros anteriores a 28/03/2019.

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              Visto que a decisão da matéria de facto não foi impugnada e não haverá lugar à sua alteração, remete-se, ao abrigo do art. 663/6 do CPC, para os termos da decisão da 1.ª instância a descrição dos factos provados que aqui apenas se transcrevem, e em síntese, na parte que importa:

        Entre meados de 2011 e meados de 2012, a autora alugou bens à ré (ambas sociedades comerciais, tal como a antecessora da ré), fez-lhe trabalhos e prestou-lhe serviços que constam das facturas com as datas, números, valores e datas de vencimento seguintes, de que apenas foi pago o valor a seguir referido:

Data Número Valor Dia do vencimento
30/09/2011 011/246 2555€, pagamento de 2284,23€, em dívida 270,77€ 29/11/2011
31/10/2011 011/305 2520€ 30/12/2011
30/11/2011 011/323 156,60€ 30/11/2011
30/01/2012 011/370 7428,30€ 30/03/2012
30/01/2012 011/374 104,40€ 30/03/2012
20/06/2012 011/504 156,60€ 20/07/2012
Total em dívida 10.636,67€  
  1. Em 29/04/2013, a ré foi notificada pelo agente de execução no âmbito do processo de execução 53/13.1TBSRQ, para a penhora de 32.209,93€.
  2. A referida notificação de penhora foi respondida, por carta de 13/05/2013, tendo a ré reconhecido a existência de um valor não líquido de 10.636,67€.
  3. Em Maio de 2014, a ré notificada pelo agente de execução no âmbito do processo de execução 1181/13.9TBAGH, para penhora de 43.401,26€.
  4. A referida notificação de penhora foi respondida, por carta de 06/06/2014, tendo a ré reconhecido a existência de um valor não líquido de 10.636,67€ e que já existia uma penhora à ordem do solicitador e do processo executivo referidos em 36.
  5. A ré não pagou qualquer quantia a terceiros por conta da autora, designadamente aos sobreditos AE e nos processos executivos acima identificados em que a autora foi executada.
  6. Esses processos de execução mostram-se extintos.

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       Contra a sua condenação em juros, a ré diz o seguinte (transcrevem-se as conclusões na íntegra):

        1. A dívida de juros na obrigação pecuniária (o caso) é devida a partir do momento da constituição em mora;
        2. O devedor considera-se constituído em mora a partir do dia em que a obrigação se considera devida;
        3. No caso sub judice, a ré, apesar de reconhecer a existência de facturas a pagar à autora, ficou impedida de o fazer porquanto foi notificada da penhora de créditos da autora à guarda de dois processos de execução;
        4. Nos termos do disposto no artigo 773 do CPC o crédito reconhecido em sede de penhora fica à ordem do agente de execução do referido processo;
        5. O crédito da autora ficou cativo à ordem dos agentes de execução que notificaram a ré para o efeito;
        6. A ré apenas soube da extinção das execuções no âmbito das quais haviam sido penhorados os créditos da autora no âmbito do presente processo;
        7. Apenas se podem considerar vencidos a favor da autora os créditos sub judice após o conhecimento da extinção das execuções em apreço, o que ocorreu em 28/03/2019;
        8. Apenas a partir desta data se podem considerar juros de mora.

              A autora responde que: os factos provados 36 e 38 não impediam a ré de cumprir as suas obrigações pecuniárias para com a autora. Os montantes correspondentes aos débitos da ré para com a autora não ficaram cativos, ficaram desde sempre na posse da ré e na sua livre disposição. Bem andou o tribunal a quo em condenar, como fez, a ré, a pagar à autora, integralmente, os juros de mora devidos sobre as quantias de capital que lhe devia, desde que as mesmas entraram em mora.

            Decidindo:

           Nas conclusões do recurso, a ré não põe em causa a sua condenação no pagamento das facturas em dívida, mas apenas a condenação em juros. Pelo que, com essas conclusões, restringiu o objecto do recurso à decisão do pedido de juros (art. 635/4 do CPC) e a decisão da sentença quanto ao pagamento das facturas não pode ser posta em causa (art. 635/5 do CPC) e por isso não interessa estar aqui a dar conhecimento da mesma, antes a pressupondo, sem mais.

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           Existe dívida de juros ou não?

          A ré entende que não, porque diz que os créditos que a autora tem contra si tinham sido penhorados e por força dessa penhora ela, ré, ficou impedida de os pagar. Ou seja, por força do art. 804/2 do CC, ela não se teria constituído em mora, porque ela não pôde, por causa que não lhe era imputável, efectuar a prestação no tempo devido.

      Mas, desde logo em termos de facto, isto não corresponde, manifestamente, à verdade, já que as facturas se venceram entre fins de Novembro de 2011 e Julho de 2012 e as penhoras foram efectuadas em Abril de 2013 e Maio de 2014, pelo que as dívidas de capital já se tinham vencido e os juros já estavam a correr quando as penhoras foram efectuadas. A ré não tem razão, por isso, ao dizer, sem fundamentar minimamente e sem qualquer suporte nos factos, que os créditos “ainda não estava[m] a pagamento.”

         De outra perspectiva: os juros de mora têm a ver com o não cumprimento culposo de uma obrigação no tempo em que ela devia ter sido cumprida (arts. 804 e 806 do CC). No caso a obrigação devia ter sido cumprida muito antes da notificação das penhoras (art. 805/2-a do CC) e a ré não ilidiu a presunção de culpa no não cumprimento atempado das obrigações (art. 799 do CC). Pelo que, os juros se começaram a vencer muito antes da efectivação das penhoras.

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     A ré poderia adaptar a argumentação, dizendo, então, que a penhora tinha suspendido o vencimento dos juros. Se, devido à penhora, não podia pagar, então os juros não deviam vencer-se a partir daí.

           Mas também sem qualquer razão: por força do art. 777/1-a do CPC [= art. 860/1-a do CPC antes da reforma de 2013, pelo que não tem qualquer interesse, no caso, que a 1.ª penhora tenha ocorrido antes daquela reforma e a 2.ª depois dela], logo que a dívida se vença, o devedor que não a haja contestado é obrigado a depositar a respectiva importância em instituição de crédito à ordem do agente de execução ou, nos casos em que as diligências de execução sejam realizadas por oficial de justiça, da secretaria. Ou seja, a norma, pensada para os casos normais, em que a divida ainda não está vencida – porque se o estivesse já devia ter sido paga e já não existia -, implica apenas, de acordo com os artigos 819 e 820 do CC, que o devedor não deve fazer o pagamento ao executado. Mas tal não lhe dá o direito de ficar com o valor correspondente à divida em seu poder, devendo, antes, ir de imediato depositá-lo à ordem do AE. Pelo que, naturalmente, não o fazendo, incorre – ou, nos casos de dívida já vencida, continua a incorrer – em mora.

          Como diz Remédio Marques, A penhora de créditos na reforma processual de 2013, Themis, 9, 2004, pág. 152: a notificação da penhora desencadeia três efeitos, sendo um deles o de que “o cumprimento da obrigação deve ser realizado por esse devedor através de depósito da respectiva importância […]”. No mesmo sentido, Manuel Januário da Costa Gomes, Penhora de direitos de crédito, breves notas, Themis, 7, 2003, pág. 119, diz que o devedor deve cumprir, nos termos do art. 860/1 [agora 777] do CPC”. E Lebre de Freitas, A acção executiva, 7.ª edição, Gestlegal, 2017, pág. 295, diz que “se o devedor cumprir a obrigação […] fará depósito à ordem do AE, ou na sua falta, na secretaria […]” Portanto, o cumprimento da obrigação continua a dever ser feito, embora não ao executado. Não tendo a ré, por isso, razão, em dizer – no corpo das alegações – “não dev[ia] pagar ao AE nesta fase.”

              Pelo que a importância correspondente começa ou continua a vencer juros.

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            O que antecede dá resposta suficiente aos argumentos da ré e, por isso, sem mais, o recurso devia ser julgado improcedente.

              Mas tem de ser considerado oficiosamente um problema: é que as penhoras não são levantadas automaticamente, pelo simples facto de a execução se extinguir.

              As penhoras, para deixarem existir têm de ser levantadas (normalmente por um despacho do AE, porque foi também ele que as efectuou; vejam-se, aliás, entre vários outros, os artigos 712/3, 751/7 e 763, todos do CPC; antes da reforma do CPC de 2003, era o juiz que dava o despacho a determinar a penhora e por isso devia ser ele a dar um despacho a levantar a penhora e esse despacho era sempre dado pelo juiz – neste sentido, por exemplo, Miguel Teixeira de Sousa, Acção executiva singular, Lex, 1998, pág. 203; no mesmo sentido, Lebre de Freitas, A acção executiva, citada, págs. 298-299, diz que a penhora é levantada ou que é “determinado o levantamento”).

              Ora, no caso dos autos, entre os factos provados não consta que as penhoras tenham sido levantadas (e elas já existiam).

              Provavelmente, não terá havido tal despacho porque os agentes das execuções não terão tido em conta que os créditos já estavam penhorados, ou seja, que segundo o art. 773/1 do CPC a penhora de créditos consiste na notificação ao devedor, feita com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta, de que o crédito fica à ordem do agente de execução, e que daqui decorre, como é reconhecido em geral, que a penhora de créditos fica feita com a notificação. O que se passa depois dela não impede que ela tenha sido feita (veja-se: Lebre de Freitas, O silencio do terceiro devedor, estudos sobre direito civil e processo civil, vol. II, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2009, págs. 323-324, e na Acção executiva, citada, págs. 284-285; Januário Gomes, obra citada, pág. 109, Remédio Marques, obra citada, pág. 151),

              Ou aqueles AE terão ficado confundidos com a resposta ilógica da ré de que o crédito, do preciso valor de 10.636,67€, era um crédito ilíquido (crédito ilíquido é aquele “que tem por objecto uma prestação cujo quantitativo não esteja ainda apurado” – Lebre de Freitas, A acção executiva, citada, pág. 102 – não aquele, como a ré sugere no corpo das alegações, que pode vir a ser alterado no futuro…. O tipo de resposta dado pela ré aos AE pode ser considerado um caso de informação com violação do dever de verdade: como diz Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, págs. 268-269: “Falta conscientemente à verdade […] não só o devedor que na sua declaração fornece informações falsas, como aquele que omite qualquer declaração quando conhecia que ela era indispensável para eliminar dúvidas ou evitar equívocos […]”. Ora isto deve aplicar-se à afirmação que, ela própria, cria dúvidas sem qualquer razão de ser; o que a ré devia ter informado [de acordo com o art. 773/2 do CPC] é que havia facturas em dívida, de que valor e desde que data, possibilitando, assim, aos AE saber que, para além dos créditos de capital, existiam créditos de juros de mora).

              Poderia, pois, dizer-se que a ré continuaria impossibilitada legalmente de fazer o pagamento à autora (por as penhoras, eventualmente, subsistirem) e não podia ser o tribunal a impor à ré a violação desse impedimento legal, pois que essa violação se poderia traduzir no prejuízo de terceiros naquelas execuções.

      Só que os créditos que se podem considerar penhorados, no caso, são os correspondentes ao capital das facturas (arts. 773/1 e 4, 777/1-a e 777/3, do CPC), não os créditos de juros, que são autónomos daquele e aos quais nunca foram feitas referências (incluindo pela ré, que “limitou” os créditos ao preciso valor das facturas em dívida e, com a sua referência contraditória à iliquidez do crédito, não permitiu, na prática, que os AE pudessem saber que havia créditos a juros de mora: 805/3 do CC; no sentido da autonomia e acessoriedade daqueles créditos, vão os artigos 561 e 310/-d do CC; assim também, Antunes Varela e Pires de Lima, CC anotado, Coimbra Editora, 3.ª edição, 1982, págs. 544-545 e 278; e, com desenvolvimento, Victor Hugo Ventura, em Comentário ao CC, Dtº das obrigações, UCE/FD, 2018, págs. 548-549, e Margarida Lima Rego, em CC anotado, vol. I, 2.ª edição, Almedina, 2019, págs. 757-758).

        Não constando dos factos provados que os créditos de juros tenham sido penhorados, a questão da falta de levantamento da penhora não se coloca. Nem, por isso, a ré demonstra que os créditos de juros – os únicos que aqui estão em causa – alguma vez tenham estado penhorados.

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              A prescrição dos juros:

            No final da audiência final, segundo a sentença conta, a ré veio excepcionar esta prescrição, pela primeira vez, não o tendo feito até então.

           A ré, ao dizer, nas conclusões, que os juros apenas são devidos a partir de 2019, está-se a referir, embora apenas implícita e imperfeitamente, à questão da prescrição que desenvolveu no corpo das alegações.

              O artigo 573 do CPC, dispõe que toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado. Depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.

              O art. 579 do CPC esclarece que o tribunal conhece oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado.

          Por fim, o art. 303 do CPC dispõe que o tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público.

              Assim, como diz a sentença (que invoca, no mesmo sentido, os acórdãos do STJ de 29/01/2014, do TRC de 04/05/2004, do TRL de 20/04/2005 e do TRC de 29/04/2008), a prescrição não é de conhecimento oficioso. Pelo que ela tinha que ter sido deduzida na contestação, não o podendo ser depois dela, como, no caso, no termo da audiência final (assim, Júlio Gomes, em Comentário ao CC, Parte Geral, UCP/FD, 2014, pág. 747, e Menezes Cordeiro, em CC comentado, I, 2020, Almedina, págs. 882-883). E não importam as razões subjectivas da ré (a sua convicção…, invocada no corpo das alegações) para não ter deduzido a excepção da prescrição.

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               Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

            Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pela executada (que foi vencida no recurso).

               Lisboa, 09/07/2020

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto