Processo do Juízo Local Cível de Lisboa – J23

                 Sumário:

        I – Como já não existe a intervenção do tribunal colectivo no julgamento no âmbito do CPC, depois da reforma de 2013 (artigos 546, 548 e 599), esvaziou-se de sentido a previsão do art. 72/1-g do CPP.

              II – A eventual persistência dos danos de índole não patrimonial não integra a excepção ao princípio da adesão prevista no art. 72/1-d do CPP.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A intentou uma acção comum contra T pedindo que este seja condenado a pagar-lhe, a título de indemnização por danos não patrimoniais, 45.000€, com juros, vencidos vincendos.

              Para tanto, alega, em síntese, que durante o relacionamento amoroso estabelecido entre eles, o réu a agrediu fisicamente por diversas vezes, facto que levou a que a autora apresentasse queixas contra ele, tendo o mesmo sido julgado pela prática de tais agressões no âmbito de um processo crime e condenado por sentença proferida em 17/03/2016, como autor material de um crime de violência doméstica agravada, pelo que lhe causou danos cuja indemnização peticiona.

              O réu contestou, dizendo que a autora estava obrigada a deduzir o pedido de indemnização civil, decorrente da prática dos ilícitos criminais que lhe imputa, no próprio processo penal, o que não veio a suceder, pelo que se verifica uma excepção dilatória inominada – cf. artigos 278/1-e, 576/1-2 e 578 do CPC -, a qual obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição do réu da instância.

              A autora replicou dizendo que: o art. 72/-g admite que o pedido de indemnização civil seja deduzido em separado perante o tribunal civil, caso neste tribunal o mesmo requeresse a intervenção do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante o tribunal singular; é certo que com a reforma do processo civil, deixou de existir tribunal colectivo; sucede porém que o art. 72/1-g do CPP não foi alterado tendo em conta essa terminologia; assim sendo, temos que nos regular pelo que está escrito; assim, de acordo com o disposto no art. 68 do CPC na sua redacção anterior, as leis de organização judiciária, determinavam quais as causas que, pelo valor ou pela forma do processo aplicável, se inserem na competência dos tribunais singulares e colectivos; tendo a presente acção o valor de 45.000€, teria que ser julgada pelo tribunal colectivo, enquanto que a acção crime decorreu no tribunal singular; pelo que não se verifica a excepção invocada pelo réu.

            No despacho saneador, julgou-se procedente a excepção dilatória inominada e, consequentemente, absolveu-se o réu da instância.

          A autora recorre de tal saneador-sentença – para que seja alterado, no sentido de julgar improcedente a excepção dilatória prosseguindo o processo os seus termos legais -, dizendo que, com um mínimo de síntese feito por este TRL:

         A situação em apreço enquadra-se no disposto no art. 72/1-d do CPP, o qual dispõe que pode ser interposto, em separado, o pedido de indemnização civil caso “ainda não existam danos, esses ainda não forem conhecidos ou não for conhecida toda a sua extensão.”

         Na PI, nos seus artigos 57 a 59, a autora alega que sentia ainda muito nervosismo e desgosto ao relembrar as cenas de violência que viveu; grande dor, revolta, humilhação, sofrimento e dificuldade em confiar nas outras pessoas; medo de encontrar o réu nas ruas, já que apesar do mesmo estar proibido de se aproximar, já o mesmo quebrou essa restrição e nada garante que não o venha a fazer de novo.

         Assim, os danos não foram conhecidos, em toda a sua extensão, até ao encerramento do processo-crime, pois existiram danos, invocados nos presentes autos, que ocorreram posteriormente.

         Motivo pelo qual a autora não pôde deduzir o pedido de indemnização civil no âmbito do processo-crime.

         Podendo fazê-lo agora, dado que se verifica uma das excepções do art. 72 do CPP, pois só quando a autora instaurou os presentes autos se encontrava em condições de deduzir pedido de indeminização contra o réu, pois até aquela data, apesar de já ter decorrido algum tempo sobre a ocorrência de parte dos danos, alguns dos danos invocados vieram ocorrendo, posteriormente.

              O réu não contra-alegou.

                                                                 *

           Questão que importa decidir: se não se verifica a excepção dilatória deduzida pelo réu.

                                                                 *

              Os factos que importam a esta decisão constam do relatório supra, sendo que no saneador recorrido ainda se consideraram provados os seguintes factos:

         Durante o relacionamento amoroso estabelecido entre autor e réu, este “agrediu fisicamente a autora, por diversas vezes, facto que levou a que a autora apresentasse queixas contra o réu, tendo o mesmo sido julgado pela prática de tais agressões contra a autora, no âmbito do processo 890/14.0PCOER que correu termos na Comarca de Lisboa Oeste, […] e condenado por sentença proferida em 17/03/2016 […]”

         As agressões foram estas:

         No dia 16/02/2014, da parte da tarde, no interior da então residência do casal (…) o réu, puxou e arrastou a autora, pelos cabelos, desferindo-lhe murros na cabeça e pontapés nas pernas e apertado as suas mãos com tal violência que lhe causou traumatismo na mão direita.    

         No dia 09/072014, depois do jantar, de novo no interior da já referida residência do casal, o réu puxou a autora, pelos cabelos e desferiu-lhe pontapés no corpo e socos na cabeça e tronco, projectando-a para o chão, onde a continuou a atingir com pontapés, que a atingiram no tórax e nas costas.

         No dia 26/10/2014, cerca das 9h, no interior da viatura automóvel do réu, que circulava na Avenida Marginal, agarrou a autora, pelos cabelos e projectou a cabeça desta de encontro ao tablier, desferiu-lhe vários socos na cabeça, rosto e braços e apertou-lhe o pescoço.

                                                                 *

              Decidindo

              No artigo 71 do Código de Processo Penal, sob a epígrafe ‘princípio da adesão, dispõe-se, na parte que interessa:

         O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

            O art. 72 acrescenta-se quais são esses casos, na parte que poderia interessar aos autos:

1 – O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando:

[…]

d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão;

[…]

g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular;

[…]

              Acrescenta a sentença, como fundamentação do decidido:

         É a consagração do processo de adesão, no sistema de dependência que se contrapõe ao sistema de alternatividade, segundo o qual o pedido de indemnização civil pode ser proposto ou directamente no processo penal ou em acção civil autónoma.

         […]

         No caso dos presentes autos, não se verifica qualquer das excepções ao princípio da adesão consagradas no artigo 72 do CPP.

         A autora não usou da faculdade [de deduzir o pedido no processo penal], tendo, antes pelo contrário, aguardado vários anos após a sentença de condenação proferida no âmbito do processo-crime para deduzir um pedido de indemnização civil.

         […]

         Pelo que se verifica a excepção dilatória inominada – cf. artigos 278/1-e, 576/1-2 e 578 do CPC, a qual obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição do réu da instância.

              Posto isto,

              As excepções ao princípio da adesão são isso mesmo, excepções.

            Assim, para que se possa deduzir um pedido em separado, a autora tinha que alegar o preenchimento – nem que seja interpretado de forma extensiva ou, segundo outros, mesmo que por aplicação analógica – da previsão de uma dessas excepções (art. 342/1 do CPC – neste sentido, por exemplo, o ac. do TRL de 15/03/2007, proc. 1412/07-2; ac. do TRC de 24/04/2007, proc. 6135/05.6TBLRA.C1; ac. do TRL de 21/02/2013, proc. 193/11.1TBPST.L1-6; e ac. do TRC de 03/02/2010, proc. 143/2008; Ac. do TRG de 07/06/2018, proc. 1388/17.0T8BCL.G1).

              Ora, a autora faz o pedido sem sequer alegar uma delas.

              Na réplica invoca a excepção da alínea (g).

              Agora, no recurso, invoca a excepção da alínea (d).

            A ausência e a flutuação de invocação de excepções seria só por si indício suficiente da falta de razão da autora.

         Mas, ultrapassando esta falta de fundamentação, vê-se que é manifesto que não se verifica o preenchimento de nenhuma das previsões.

              Quanto à alínea (g), porque se pressuponha, então, que a autora tinha a possibilidade de pedir o julgamento por tribunal colectivo, no processo civil, e no processo penal se tivesse de contentar com o julgamento por um tribunal singular.

              Ora, tendo os tribunais colectivos desaparecido, com a reforma de 2013 do CPC, e tendo os factos em causa ocorrido em 2014, a autora nunca chegou a ter a possibilidade de requerer a intervenção do tribunal colectivo. Ou seja, o raciocínio a fazer é o inverso do feito pela autora. Desaparecida aquela possibilidade com a reforma de 2013 do CPC, a alínea (g) do art. 72/1 do CPP deixou de fazer sentido.

          Assim, por exemplo, o ac. do TRG de 17/12/2018, proc. 1286/18.0T8VCT-A.G1:

         IV – Quanto a est[a] últim[a] [excepção do art. 72/1-g do CPP], inexistindo agora a intervenção do tribunal colectivo no julgamento no âmbito do CPC [ante o disposto nos artigos 546, 548 e 599 do CPC] esvaziou-se o conteúdo da citada alínea (g).

             Quanto à previsão da alínea (d), pressupõe-se que os danos não eram conhecidos em toda a sua extensão e que, por isso, antes de cessar a possibilidade de fazer o pedido cível no processo penal, a autora ainda não tinha conhecimento dos danos em causa. Ou, dito de outro modo, que só depois disso é que a autora se apercebeu de que tinha os danos em causa. Ora, o que a autora diz é que os danos sempre existiram, nunca deixaram de existir, pelo que já existiam antes de cessar a possibilidade de os deduzir no processo penal. A autora tinha o sofrimento e não sabia quando é que o ia deixar de ter. É uma questão de não saber até quando é que o dano ia existir, não de desconhecimento ou inexistência do dano. Portanto, a autora já o podia/devia ter feito o pedido, genérico (art. 556/1-b do CPC), quando foi deduzida a acusação, apresentando-o como um sofrimento que ainda não tinha acabado. Não é um dano ou uma parte de um dano que tenha surgido depois.

              Neste sentido, por exemplo, o já referido ac. do TRL de 21/02/2013, proc. 193/11.1TBPST.L1-6: […]

O facto de a vítima de um crime ainda sentir sentimentos de angústia passados dois anos sobre os factos não constitui um dano novo que lhe permita deduzir pedido de indemnização cível em separado do processo penal ao abrigo do artigo 72/1-d do CPP.

              Acórdão que desenvolve assim a questão:

            “[…É] manifesto que o sofrimento causado pelos factos praticados pelos réus e o medo sentido nos meses que se seguiram já teria de ser conhecido aquando do momento da acusação e do momento de formular o pedido cível no processo criminal.

            O facto alegado pelo autor, de que ainda hoje sente sofrimento e angústia como resultado do ocorrido, não é uma questão de extensão dos danos que fosse desconhecida à data da acusação, uma vez que não estamos perante mais danos que tivessem resultado dos factos, mas sim a persistência dos mesmos danos no tempo e que já poderia ter sido prevista no momento próprio, aquando da avaliação do grau de sofrimento sentido na apreciação oportuna do pedido cível no processo crime.

            Se assim não fosse, estaria encontrada a forma de ser sempre aplicável a situação prevista nesta alínea d), com o consequente afastamento do princípio da adesão, alegando sempre o lesado que, embora já houvesse sofrimento resultante dos factos ilícitos, não saberia nunca se esse sofrimento persistiria dentro de um, dois, três, quatros, ou mais anos.”

              Ou o ac. do STJ de 21/11/2018, proc. 199/17.7T8TCS.C1.S1:

II. O direito adjectivo civil permite a dedução de pedidos genéricos quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, sendo o pedido, nestes casos, concretizado através de liquidação em execução de sentença.

IV. Reconhecendo-se que o lesado, ao tempo da acusação, conhecia os danos sofridos, em toda a sua dimensão, conquanto não soubesse o seu valor exacto, tal situação não é subsumível à excepção do princípio de adesão, importando, isso, sim, o respectivo exercício, de modo obrigatório, submetendo o direito ao ressarcimento por factos qualificados como ilícito criminal, ao regime processual penal.

V. Não se pode confundir a eventual persistência dos danos ao longo do tempo e o seu agravamento com o desconhecimento dos danos ou da sua extensão, estas sim, razões que sustentam a excepção à regra da adesão obrigatória.”

        Acórdão este que, no seu texto, sufraga o entendimento, da 1.ª instância, de que:

         “[…É] importante destrinçar o desconhecimento e extensão dos danos da persistência e/ou atenuação ou agravamento dos mesmos, sob pena de transformar o aludido princípio da adesão obrigatória do pedido cível à acção penal em mera opção de foro, em face do desconhecimento da quantificação dos danos, o que iria conduzir, necessariamente, ao esvaziamento do preceituado no artigo 82 do CPP. Assim, perante os factos alegados, mesmo que viessem a ser considerados todos como provados (…), constatamos que os pedidos vertidos na petição inicial não dizem respeito à extensão dos danos desconhecida no momento da prolação do despacho de encerramento do inquérito, na medida em que não consubstanciam mais danos provenientes de factos constantes da acusação pública e sim prolongamento e/ou persistência dos mesmos danos, cuja previsibilidade era possível quando foi deduzida a acusação pública, não sendo possível a sua quantificação, tal como não o é no presente”.

              E também no ac. do TRG de 29/06/2017, proc. 2299/16.1T8BRG.G1 que diz acompanhar a sentença recorrida onde se lê:

         “… resulta patente que o sofrimento causado pelos factos praticados pelo réu, a depressão reactiva, crises de pânico, hipervigilância e ansiedade já eram conhecidas aquando do momento da acusação e do momento de formular o pedido cível no processo criminal. A circunstância de tal situação se arrastar para lá de tal momento, «não é uma questão de extensão dos danos que fosse desconhecida à data da acusação, uma vez que não estamos perante mais danos que tivessem resultado dos factos, mas sim a persistência dos mesmos danos no tempo e que já poderia ter sido prevista no momento próprio, aquando da avaliação do grau de sofrimento sentido na apreciação oportuna do pedido cível no processo-crime […].”

              E no ac. do TRE de 11/07/2019, proc. 1009/18.3T8BJA.E1:

IV. A eventual persistência dos danos de índole não patrimonial e, bem assim, a contínua realização de deslocações pelo país não se confundem com o desconhecimento dos danos ou da sua extensão.

V. Por isso, a mera circunstância de estarmos em presença, no momento da dedução da acusação, de danos qualificáveis como futuros não integra a referida excepção ao princípio da adesão, pois tal equivaleria a esvaziar de sentido a previsão do art. 72 do CPP.

                                          *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Sem custas (a autora, que perde o recurso, está dispensada do seu pagamento, por apoio judiciário).

              Lisboa, 19/11/2020

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto