Penafiel – Secção Cível

            Sumário:

I. Se a autora pede que o contrato de constituição da sociedade seja declarado nulo por simulação dos que a constituíram, não está a dizer que a sociedade fez parte do acordo simulatório, pelo que a sociedade não tinha de ser demandada como ré, em litisconsórcio necessário com os sócios (nem mesmo para o pedido, também feito, de cancelamento do registo de quotas).

II. A nulidade, por simulação, do contrato de constituição de uma sociedade comercial só pode ser invocada antes do registo da sociedade (art. 41 do CSC).

III. A nulidade de deliberações sociais tem que ser deduzida contra a sociedade (art. 60/1 do CSC).

IV. A ilegitimidade singular não é sanável.

V. Não pode arguir uma nulidade de um contrato de cessão de quotas – nem recorrer da decisão que não a declarar – quem não alegar ter uma sua relação cuja consistência jurídica, prática ou económica esteja dependente da declaração de tal nulidade (art. 286 do CC). O que acarreta também a improcedência do pedido de cancelamento do registo da quota cedida.

VI. A impugnação pauliana impõe o litisconsórcio necessário passivo do devedor e do adquirente do bem (art. 33/2 do CPC).

VII. A necessidade deste litisconsórcio passivo, não se destina a tutelar especificamente o interesse dos réus, pelo que a preterição dele não permite o proferimento de uma sentença de improcedência da acção ao abrigo da parte final do n.º 3 do art. 278 do CPC. Ou seja, esta norma não é, em princípio, aplicável à preterição de litisconsórcio necessário.

VIII. Se o art. 278/3, parte final, do CPC, fosse aplicável, o tribunal não teria, primeiro, que tentar sanar a excepção dilatória. Em regra, se, findos os articulados, o juiz pode concluir que, apesar da verificação de uma excepção dilatória sanável, lhe é possível proferir uma decisão de mérito favorável à parte que seria protegida pelo pressuposto, não faz qualquer sentido que o tribunal providencie pela sanação. Há que proferir imediatamente uma decisão de mérito.    

IX. Se a ilegitimidade, por preterição do litisconsórcio necessário, só for detectada depois do julgamento, não é possível proceder ao convite para sanação da ilegitimidade, devendo ser decretada a absolvição da instância.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            A intentou em 10/01/2015 uma acção contra, na parte que ainda interessa, R1, R2 e R3 pedindo que:

i) se declare que o contrato que constituiu a Sociedade Lda, por simulado, é nulo e de nenhum efeito, já que os réus nunca foram sócios da sociedade, pois que o 1º réu era o único e exclusivo proprietário do consultório/clínica;

ii) nos mesmos termos, se declarem nulas a cessão de quotas e a alteração de pacto;

iii) se ordene o cancelamento de todos os registos relativos à sociedade, concretamente, o cancelamento do registo das quotas em favor dos últimos réus, já que todas as quotas daquela sociedade pertencem ao 1º réu;

e, subsidiariamente,

iv) deduz pedido de impugnação pauliana, nos termos dos arts. 601, 612, 616, todos do Código Civil, pedindo que se declarem todos os actos ineficazes em relação à autora, reconhecendo-se a esta o direito de executar os bens para satisfação do seu crédito.

         Alega, para tanto e em síntese, que: os actos impugnados foram realizados de forma ardilosa para integrar todos os bens pertença do 1º réu naquela sociedade, para que os bens não respondessem pela dívida daquele réu à autora; não tinham os 1º e 2º réus qualquer vontade em constituir aquela sociedade, nem queriam o 2º e a 3ª ré ser sócios da mesma, antes queria o 1º réu continuar a ser único dono e possuidor daqueles bens, como sempre fora.

            Os réus contestaram, impugnando, no essencial, os factos alegados pela autora.

      Realizado o julgamento, foi depois proferida sentença julgando a acção improcedente (por falta de prova de todos os factos) e absolvendo os réus dos pedidos, constando dela ainda o seguinte (com algumas simplificações), sob a epígrafe de ‘questão prévia’:

         “Constata-se apenas agora que a autora não demandou a sociedade, sendo certo que os actos que se encontra a impugnar dizem respeito não só aos réus, mas também àquela sociedade.

         Nestes termos, não se poderá deixar de reconhecer que a autora preteriu um litisconsórcio necessário passivo ao não demandar aquela sociedade juntamente com os restantes réus, pois que é certo que aquela sociedade é, juntamente com aqueles réus, sujeito passivo da relação material controvertida, tal como a mesma foi configurada pela autora, tendo, portanto, interesse directo em contradizer a acção.

         E, sendo assim, a não intervenção daquela sociedade podia impedir que a decisão de mérito a proferir produzisse o seu efeito útil normal (cfr. arts. 30 e 33 do CPC).

       Neste momento, já com o julgamento realizado, a excepção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário que subsiste já não é susceptível de ser suprida.

         Resta, então, saber se a mesma obsta a que se conheça do mérito da causa.

     Nos termos do art. 278/3 do CPC, as excepções dilatórias que ainda subsistam não dão lugar à absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da excepção, a que se conheça daquele mérito e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.

         Ora, mais nenhuma outra excepção dilatória subsiste que possa obstar ao conhecimento daquele mérito e, pelas razões que infra serão expostas, a decisão de mérito a proferir será integralmente favorável aos réus e, consequentemente, àquela sociedade, no interesse da qual se impunha a sua intervenção como parte nos autos.

         Deste modo, decide-se prosseguir os autos para a prolação da decisão de mérito.”

           A autora recorre da sentença, por um lado, para que a autora seja convidada a fazer intervir na acção a sociedade ao lado dos réus e, por outro, para impugnar a decisão da matéria de facto – só quanto a afirmações de facto dadas como não provadas – e pôr em causa a decisão de direito.

     Os réus contra-alegaram, no sentido da improcedência do recurso, não se pronunciando quanto à questão da preterição do litisconsórcio necessário passivo.

                                                      *

         Prevendo este tribunal de recurso que fosse de decidir como se segue, foram as partes, ao abrigo dos arts. 655/1, 665/1 e 3/3, todos do CPC, notificadas para se pronunciarem quanto às soluções de direito que se seguem. Nenhuma delas o fez.

                                                      *

            Questões que importa decidir: se se verifica a ilegitimidade dos réus por preterição do litisconsórcio necessário passivo e se tal vale em relação a todos os pedidos; a verificar-se essa preterição (no todo ou em parte), importa saber se a consequência não devia ter sido a de proferimento de uma sentença de improcedência como o tribunal recorrido fez, por entender que a decisão devia ser nesse sentido (art. 278/3, 2ª parte, do CPC), mas sim a de convidar a autora a chamar aquela que também devia ser ré (art. 6/2 do CPC); se o litisconsórcio não disser respeito a todos os pedidos, importa ainda saber se a decisão de mérito está errada em relação àqueles em que ele não se impunha, se necessário conhecendo da impugnação da decisão matéria de facto.  

                                                      *

            Para a decisão das questões a decidir interessam os seguintes factos dados como provados (sem impugnação da autora no recurso):  

  1. No procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória que correu os seus termos no extinto 1º juízo do Tribunal Judicial de Penafiel, no qual era requerente a autora e requerido o 1º réu, as partes, no dia 12/12/2012, na acta de audiência final, lavraram transacção, na qual declararam, entre outras coisas, o seguinte: a) acordam no pagamento, a título de reparação provisória, do montante peticionado, correspondente a 369,58€ mensais, durante 24 meses e até perfazer o montante global de 4435€; b) Tal pagamento será efectuado até ao dia 8 de casa mês, mediante transferência bancária para o NIB a indicar pela requerente ao requerido, no prazo de 5 dias; sendo que tal transacção foi, por sentença, homologada nesse mesmo dia, tendo essa sentença transitado em julgado.
  2. O 2º réu nasceu a 5/9/1994 e é filho do 1º réu e de B.
  3. […]
  4. A constituição da Sociedade Lda, encontra-se registada, desde 9/01/2013, na competente Conservatória.
  5. Por documento escrito, datado de 09/01/2013, lavrado na 2ª Conservatória do Registo Predial/Comercial de M, intitulado empresa na hora e contrato de sociedade por quotas, foi constituída aquela sociedade comercial, tendo sido determinado que o seu objecto é o comércio de actividades de medicina dentária e odontologia.
  6. Aí se estabeleceu, entre outras coisas, que: o capital realizado em dinheiro foi o de 5000€, sendo dividido em duas quotas do seguinte modo: uma quota no valor nominal de 4500€, pertencente ao 2º réu; e uma quota com o valor nominal de 500€, pertencente ao 1º réu; a gerência, a administração e representação da sociedade são exercidas por gerentes eleitos em assembleia geral, que também decidirá se a gerência é remunerada ou não; ficando, desde logo, nomeado gerente o sócio 1º réu, bastando a sua intervenção para representar e obrigar a sociedade em todos os seus actos e contratos (no mais, dá-se aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais o documento de fls. 72 a 75 dos autos [no art. 6/1 diz-se que a cessão de quotas a estranhos depende do consentimento da sociedade – este artigo do contrato de constituição da sociedade foi agora transcrito por este acórdão do TRP]).
  7. No dia 13/01/2013, a autora intentou acção com processo ordinário contra o 1º réu, destinada à reparação definitiva de danos e prejuízos que lhe foram provocados pelo mesmo, que corre os seus termos em Penafiel – Instância Central – Secção Cível – J1, com o n.º 124/13.4TBPNF.
  8. O 1º réu, sem qualquer motivo ou justificação, deixou de pagar à autora a quantia mensal a que se obrigou na transacção supra referida.
  9. […]
  10. No dia 23/08/2014, pelas 9h, os sócios daquela sociedade, os 1º e 2º réus, reuniram-se em Assembleia geral, na sua sede social, na Av. X, para deliberar sobre os assuntos seguintes: 1. Renúncia e aprovação para designação de um novo gerente; 2. Proposta e aprovação da transmissão da quota.
  11. Tendo o sócio-gerente 1º réu assumido a presidência da mesa e informado que pretende renunciar ao cargo de gerente.
  12. Nesta interveio o sócio 2º réu, informando a sua intenção e vontade em assumir o cargo de gerente.
  13. Ficando, por acordo, deliberada a autorização para a renúncia da gerência do sócio 1º réu, e nomeação do gerente o sócio 2º réu.
  14. Pelo 1º réu foi ainda dito que declara vender a sua quota no valor nominal de 500€ na sociedade à 3ª ré.
  15. Foi deliberado por unanimidade a cessão de quotas do sócio 1º réu, as quais foram adquiridas pela 3º ré.
  16. Deliberaram, ainda, dar nova redacção ao artigo 4.º do pacto social da sociedade, passando o mesmo a ter a seguinte redacção: O capital social, integralmente realizado em numerário […] é de 5000€, representado pelas seguintes quotas: a) Uma quota no valor nominal de 4500€, pertencente ao 2º réu; b) Uma quota no valor nominal de 500€, pertencente à 2ª ré.
  17. No dia 28/08/2014, foi lavrado o registo relativo às alterações ao pacto social agora aprovadas em assembleia geral da sociedade: a) cessação de funções de gerência do 1º réu; b) designação de novo gerente, cabendo actualmente a gerência ao 2º réu; c) transmissão da quota do 1º réu para a 3ª ré.
  18. Foi o 1º réu que, muito tempo antes da constituição daquela sociedade, criou e montou um consultório de serviços dentários e odontológicos, a expensas suas, na Avenida X, passando a ser este local, após a constituição daquela mesma sociedade, a sede social da mesma, que tem por objecto serviços dentários e odontologia.
  19. O 1º réu vendeu à sociedade todos os bens e recheio que possuía no supra referido consultório.
  20. Aquela sociedade encontra-se a laborar com todos estes bens, sendo que, após a sua constituição, passou a ser a mesma a explorar o referido consultório, através dos seus respectivos representantes legais, sendo o produto dessa exploração canalizado para aquela sociedade.

                                                      *

            Da preterição do litisconsórcio necessário passivo?

            A autora diz o seguinte sobre esta questão (transcreve-se na parte útil, com algumas simplificações e outra numeração):

  1. Comungamos da opinião do tribunal recorrido na parte em que entendeu ter ocorrido preterição de litisconsórcio necessário passivo.
  2. Não concordamos, no entanto, na parte em [que] entendeu que a excepção da ilegitimidade não pode ser suprida.
  3. Antes, entendemos estarmos perante excepção dilatória da ilegitimidade de conhecimento oficioso, conforme o disposto nas disposições conjugadas dos arts 33, 278/1-d, 576/2, 577 e 578 do CPC, que é sanável, como decorre do art. 261 CPC, e que obsta ao conhecimento de mérito da causa.
  4. Entendemos, também que a ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário não está abrangida pela previsão da 2ª parte do artigo 278/3, CPC.
  5. Assim sendo, o juiz não está dispensado de diligenciar pela sanação do pressuposto em falta e, nesse sentido, em respeito dos princípios do contraditório e da oficiosidade, de acordo com o poder/dever estabelecido no art. 6/2 [do CPC], deveria ter convidado a autora a suprir essa falta, lançando [ela] mão do incidente de intervenção provocada destinado a chamar a juízo aquela sociedade.
  6. Estando, no presente caso, aquela nulidade a coberto da decisão recorrida, entendemos que esta pode ser arguida em sede de recurso, podendo levar à anulação em causa, ordenando-se, em consequência, ao tribunal recorrido, que providencie pelo suprimento da excepção detectada, convidando a recorrente a praticar o acto adequado para tanto.

                                                      *

            Decidindo:

            Os pedidos formulados pela autora são vários e a questão tem de ser analisada perante cada um deles e não, como faz a autora e fez a sentença, como se fossem um só.

            O primeiro pedido da autora refere-se ao contrato celebrado entre os réus para constituição da sociedade.

            A autora diz que o contrato é nulo por simulação dos réus. A sociedade não é parte de tal contrato, mas sim produto do mesmo. A sociedade não participou, pois, da simulação.

            Logo, ao contrário do que diz a sentença, a sociedade não faz parte da relação material controvertida tal como configurada pela autora, pelo que não seria parte legítima na causa (art. 30/3, 2ª parte do CPC). 

            E, não fazendo parte do contrato, não se pode dizer que, para a declaração de nulidade do mesmo, fosse necessária a participação da sociedade na acção para acautelar o efeito útil da mesma (art. 33/2 do CPC).

            Pelo que em relação ao primeiro pedido não há preterição do litisconsórcio passivo necessário.

            O que há vai muito para além disso; ou seja, é manifesto que a autora não pode pedir a declaração de nulidade do contrato de constituição da sociedade, com base na simulação, porque a autora dizia expressamente que a sociedade estava registada e tal acontece desde 09/01/2013, tendo a acção sido intentada em 10/01/2015.

            Ora, segundo o disposto no art. 41/1 do Código das Sociedades Comerciais, apenas enquanto o contrato de sociedade não estiver definitivamente registado é que a invalidade do contrato ou de uma das declarações negociais se rege pelas disposições aplicáveis aos negócios jurídicos nulos ou anuláveis e mesmo assim sem prejuízo do disposto no art. 52 do CSC; a partir do registo o contrato só pode ser declarado nulo por algum dos vícios previstos no art. 42/1 do CSC e entre eles não se conta a simulação; e os restantes vícios apenas dão direito de exoneração aos sócios: art. 45 do CSC (por exemplo, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, 2011, 4ª edição, Almedina, 2011, págs. 146 a 156; CSC em comentário, no caso de Carolinha Cunha, aos arts. 41, 42, 45 e 52, vol. I, IDET, Almedina, 2010, entre as págs. 595 a 635; e Maria Elisabete Ramos, Constituição das Sociedades Comerciais, em Estudos de direito das Sociedades, 4ª edição, Almedina, 2001, págs. 58 a 68, especialmente, pág. 62 e nota 62).  

            Ou seja, o primeiro pedido (que se refere ao contrato de constituição da sociedade, isto é, ao conjunto das declarações negociais em que o mesmo se consubstancia), é manifestamente improcedente. E se nestes casos a acção deve ser liminarmente indeferida se houver ocasião para isso (art. 590/1 do CPC), muito mais a sentença deve declarar a sua improcedência, sem mais, não havendo qualquer excepção dilatória a suprir.

                                                       *  

            O segundo pedido refere-se à cessão de quotas e à alteração do pacto da sociedade, ambas objecto de deliberação dos sócios da sociedade e a primeira objecto de acordo entre o 1º réu e a 3ª ré corporizado na acta daquela deliberação.

            Quanto ao pedido respeitante à deliberação social, de nulidade, por simulação, a acção teria de ser dirigida contra a sociedade (arts. 56 e 60 do CSC), pelo que os réus eram partes ilegítimas (art. 30/3, 1ª parte, do CPC, a contrario), mas não por preterição de litisconsórcio necessário (quanto à inexistência de litisconsórcio necessário passivo, veja-se Pinto Furtado, Deliberações dos sócios, Almedina, 1993, págs. 514 a 517).

            E nem sequer vale a pena pôr a questão do suprimento da ilegitimidade (singular), desde logo porque a ilegitimidade singular – isto é, quando, por força da lei, o pedido deve ser dirigido contra A e não contra B (o réu) – não é sanável. É-o apenas a ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário (neste sentido, por exemplo, veja-se Lebre de Freitas, A acção declarativa, 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, págs. 110 e 158, nota 7) e depois porque é manifesto que a autora, com os fundamentos invocados, não pode pedir a nulidade da deliberação, pois que os fundamentos admissíveis são só os previstos no art. 56 do CSC e entre eles não consta o da simulação (CSC em comentário, já citado, comentário que no caso é de Coutinho de Abreu, págs. 653 a 664, e Pinto Furtado, Deliberações dos sócios, Almedina, 1993, págs. 282 a 346).

                                                      *

            Quanto ao pedido de nulidade da cessão de quotas, enquanto contrato celebrado entre o 1º réu e 3ª ré, a sociedade em causa não é parte no mesmo. É certo que a sociedade dá o, necessário, consentimento à celebração deste contrato e a autora imputa a intenção de simulação a todos os actos, mas o que decorreria daqui seria, por isso, a nulidade da deliberação nessa parte e, quanto a esta, já a questão foi analisada no parágrafo anterior. Ou seja, não há preterição de nenhum litisconsórcio necessário passivo.

            O que se verifica é a evidente ilegitimidade da arguição da nulidade, atento o disposto no art. 286 do CC e o facto de a autora não ter invocado nenhuma relação sua cuja consistência jurídica, prática ou económica depende da declaração da nulidade, como se fundamentará mais à frente.

                                                      *

            Quanto ao terceiro pedido, de cancelamento de todos os registos relativos à sociedade, concretamente, o cancelamento do registo das quotas em favor dos últimos réus, já que todas as quotas daquela sociedade pertencem ao 1º réu, ele é praticamente ininteligível, por contraditório nos seus próprios termos: por um lado todos os registos, por outro um só registo.

            De qualquer modo, como os pedidos, relativos ao contrato de constituição da sociedade e à deliberação (relativa à cessão de quotas e alteração do pacto) não vão conduzir a lado nenhum, por manifesta improcedência, como decorre do que antecede, a questão coloca-se só quanto ao cancelamento do registo da cessão de quotas.

            Este pedido é feito, relativamente ao registo da quota do 2º réu, sem invocação de qualquer outro fundamento para o efeito e, relativamente à 3ª ré, é feito presumivelmente baseado na nulidade do contrato entre o 1º réu e a 3ª ré, pelo que a sociedade não tem de intervir relativamente a ele, pelo que também não há preterição de litisconsórcio necessário.

                                                      *

                  Impugnação pauliana e litisconsórcio necessário

            Quanto ao quarto pedido, de que se declarem todos os actos ineficazes em relação à autora, reconhecendo-se a esta o direito de executar os bens para satisfação do seu crédito, que se traduz numa impugnação pauliana, o mesmo reporta-se aos actos anteriores apenas enquanto pressupostos desta impugnação, isto é, enquanto actos que diminuem a garantia patrimonial do crédito da autora.

            Isto é, a autora pretende executar todos os bens que constituíam o património do 1º réu, antes da constituição da sociedade, no património dele. Se os actos por ela descritos não forem nulos (pedido principal), então ela quer que eles sejam ineficazes perante si, ou seja, como se a sociedade não tivesse adquirido os bens.

            A impugnação pauliana, dados os requisitos da mesma, pressupõe necessariamente, a participação na acção do adquirente dos bens. Ou seja, é uma acção que tem de ser dirigida pelo credor contra o devedor e o terceiro em litisconsórcio necessário passivo (neste sentido, por exemplo, os acs. do STJ de 26/02/1991, 080278, só sumário, de 25/05/1999, 99A382, e de 13/09/2007, 07B1942, e do TRE de 25/01/2007, 2152/06-3, bem como Antunes Varela, na RLJ, ano 126, pág. 370, e no Manual de Processo Civil, com Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Coimbra Editora, 1985, 2 edª, págs. 137 e 157/158)

            No entanto, a autora, que pretendia, a título principal, a declaração de nulidade da constituição da sociedade, agiu como se esta não existisse e por isso não a demandou.

           Aqui sim, verifica-se a preterição de litisconsórcio necessário passivo, o que constitui uma excepção dilatória que deve dar lugar à absolvição da instância por ilegitimidade dos réus (arts. 33/1 e 2, 278/1-d e 577-e, todos do CPC).

         No entanto, os pressupostos processuais que se destinem a tutelar o interesse de uma das partes, não devem impedir a apreciação do mérito da causa quando nenhum outro motivo obsta a isso e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte (art. 278/3, 2ª parte, do CPC), e como a sentença entendeu que a ilegitimidade dos réus se destinava a proteger os réus, e por isso também a sociedade que deveria ser ré junto com eles, decidiu logo a improcedência da acção.

        No mesmo sentido da sentença, veja-se o ac. do TRC de 27/05/2014, 401/12.1TBAGN.C1, sem discutir a questão. 

                                                      *

            Da não aplicação da 2ª parte do n.º 3 do art. 278 do CPC no caso de preterição de litisconsórcio necessário passivo

            No entanto, a exigência da intervenção de várias pessoas numa causa para acautelar o efeito útil normal da acção, e é disso que se trata no litisconsórcio necessário passivo (art. 33/2 e 3 do CPC), não se destina a proteger especificamente os réus, nem um terceiro que devesse ser réu, mas sim o interesse geral na não realização de actos inúteis pelos tribunais (com um outro reflexo no art. 130 do CPC) que têm os inerentes gastos de recursos públicos, com o que se protege também os réus e os terceiros que pudessem ser réus, e os autores, evitando-lhes o gasto de tempo e dinheiro sem qualquer utilidade.

            Pelo que o pressuposto em causa não pode ser entendido como destinando-se a tutelar os interesses dos réus. De resto, ele nem sequer respeita às partes, mas sim às relações delas com o objecto do processo (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 548). Sintomaticamente, Lebre de Freitas (Introdução, I, 3, Coimbra Editora, 3ª edição, 2013, págs. 48/49 e notas 56 e 57-A), liga a frase ‘destinando-se a excepção dilatória a tutelar o interesse duma das partes’ aos pressupostos que respeitam às partes.

            Como lembram aqueles autores, pág. 78 da obra citada:

         “A norma do n.º 3 [melhor: 2, do art. 33 do CPC] não trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças – ou outras providências – inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais.

         A pedra de toque do litisconsórcio necessário é, pois, a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o, ou ainda, nas acções de simples apreciação de facto, apreciando a existência deste, sem a presença de todos os interessados, por o interesse em causa não comportar uma definição ou realização parcelar […]”

            Assim, a sentença, no caso dos autos, apreciando o mérito da causa, acaba por não produzir o caso julgado material que se visa com ela, porque sujeita a invalidação posterior por outra sentença em que, dessa vez, sejam partes todos os interessados na relação material controvertida. Pelo que, os réus, no caso dos autos, não saem absolvidos definitivamente do pedido de impugnação pauliana.

            Isto é, a sentença não produz o seu efeito útil normal, que é precisamente o que se visa evitar com a imposição do litisconsórcio.

            Talvez por tudo isto, Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, obra citada, dizem (pág. 550) que “é discutível se [a norma do art. 278/3 do CPC] se pode aplicar também, por via de interpretação extensiva, aos casos de litisconsórcio necessário, em que a parte não tenha lançado mão do meio do art. 261 do CPC.”

            E Lebre de Freitas depois (na Introdução, citada, pág. 49, 2ª parte da nota 58) continua: “Estando então em causa o interesse de terceiro que, a intervir no processo, integraria uma só parte processual juntamente com o autor ou réu dele desacompanhado (art. 35), a consideração da paridade desse interesse com o deste pode, ao menos em certos casos, levar a defender a admissibilidade do proferimento da decisão de mérito favorável.”

            Ou seja, esta interpretação extensiva exigiria, por um lado, o pressuposto negativo de a parte não ter lançado mão do meio do art. 261 do CPC e, por outro lado, do pressuposto da paridade de interesses entre o terceiro e aquele a que se junta, e mesmo assim só “em certos casos” é que ela seria possível. Pressupostos que, no caso, não se verificam. Por outro lado, pensa-se que os casos em que o Prof. Lebre de Freitas julga admissível a aplicação do art. 278/3, parte final, à preterição do litisconsórcio necessário serão casos cuja configuração permitirá atribuir à sentença um valor de caso julgado material efectivo (que, ao que se julga, poderá eventualmente ocorrer na situação de preterição de litisconsórcio activo), o que, no caso dos autos, também se considera que não seria possível.

            No sentido da não aplicabilidade do art. 278/3, 2ª parte, à preterição do litisconsórcio necessário, vai também o ac. do TRP de 24/02/2014, 7/11.2TBBAO.P1. Neste caso, depois da sentença, os réus suscitaram a questão da ilegitimidade da autora (que era apenas um dos herdeiros) por preterição do litisconsórcio necessário activo e o TRP chegou à conclusão, entre o mais, da nulidade da sentença que tinha julgado a acção procedente  (reconhecendo o prédio como da herança) e disse: “No entanto, esta última conclusão [a da nulidade] e, por força dela a eventual substituição ao tribunal recorrido para a prolação de uma decisão de mérito, porventura absolutória dos réus, não é de atender: não há lugar à aplicação do disposto no artigo 278, n.º 3, atenta a natureza da ilegitimidade que aqui se declara, pois esta visa a protecção, justamente, de quem não está no processo, ou seja, o pressuposto processual em falta não se destina, no caso, a ‘acautelar os interesses de uma das partes’ (Fernando Pereira Rodrigues, O Novo Processo Civil. Os Princípios Estruturantes, Almedina, 2013, pág. 217).”

            Também Paulo Pimenta entende que parece de excluir do campo de aplicação do então art. 288/3 do CPC (≈ art. 278/3 do CPC depois da reforma de 2013) os casos de violação de litisconsórcio necessário (A fase do saneamento do processo antes e após a vigência do novo [refere-se à reforma de 95/96] CPC, Almedina, 1993, pág. 272).

            É também essa a posição de Paula Costa e Silva (Saneamento e condensação no novo processo civil, em Aspectos do novo processo civil, Lex 1997, págs. 220/222).

            Em suma: considera-se que a 2ª parte do n.º 3 do art. 278 do CPC não é aplicável, ao menos por princípio, à ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário.

            E, por isso, a decisão não podia ser a de absolvição do pedido, mas sim a de absolvição da instância. Importa, agora, ver se, em vez de se absolver a instância, se deve convidar a autora a fazer o necessário para suprir a preterição do litisconsórcio necessário em relação à impugnação pauliana.

                                                      *

Do momento da aplicação da norma do art. 278/3, 2ª parte, do CPC

            Antes ainda de prosseguir para apreciação dessa questão, diga-se o seguinte:

            A não aplicação da norma (art. 278/3, 2ª parte, do CPC) ao litisconsórcio necessário não tem a ver com a necessidade, defendida pela autora, de só se aplicar a mesma depois da tentativa de suprimento das excepções.

      A norma consagra a desnecessidade natural e lógica de apreciar pressupostos processuais que nenhum interesse têm para a parte cujos interesses o pressuposto se destina a tutelar, no caso de a decisão a proferir ser favorável a esta. Ou seja, não tem sentido apreciar e depois suprir uma excepção que se destina a tutelar uma parte, se se sabe que a decisão deve ser de improcedência do pedido dirigido contra ela.

          Daí que o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, cuja doutrina é a fonte de tal norma, a terminar o seu estudo (Sobre o sentido e a função dos pressupostos processuais – algumas reflexões sobre o dogma da apreciação prévia dos pressupostos processuais na acção declarativa – ROA, 1989/I) diga que (aproveita-se só o que diz respeito ao caso):

         Se o tribunal determinou primeiramente a improcedência da acção, então só deve certificar a existência dos pressupostos necessários para a correspondente sentença de mérito (que são aqueles que protegem os interesses do autor) [pág. 121].

              Ou, antes, na pág. 117:

         “A supremacia concedida pela lei ao valor de improcedência perante a eventual inadmissibilidade da acção impõe que o tribunal, em qualquer momento da averiguação da admissibilidade (normalmente no despacho saneador – art. 510, n.ºs 1 e 2 [do CPC antes das reformas de 1995/96 e 2013], analise o mérito da acção imediatamente após proceder ao controlo dos pressupostos processuais que acautelam os interesses estaduais (que, no direito positivo, parece ser apenas o caso da competência absoluta), mas previamente à apreciação dos restantes aspectos da admissibilidade. Se aqueles pressupostos estiverem preenchidos, uma eventual decisão absolutória só não é admissível se faltar um pressuposto destinado a proteger os interesses da parte activa.”

            Não tem razão de ser, com efeito, que se esteja a tentar suprir um pressuposto destinado a proteger os interesses do réu, quando se pode proferir logo uma sentença absolutória do pedido. Esta sentença absolutória não exige a verificação dos pressupostos processuais destinados a proteger o réu.

       Pelo que, se o art. 278/3, 2ª parte, do CPC, fosse se aplicar à preterição do litisconsórcio necessário, o tribunal não teria realmente que, primeiro, tentar suprir a excepção, podendo decidir logo, como o fez a sentença recorrida, a improcedência da acção, absolvendo os réus.

            No mesmo sentido, Paula Costa e Silva, obra citada, págs. 220/221 diz que “em regra, se, findos os articulados, o juiz pudesse concluir que, apesar da verificação de uma excepção dilatória sanável, lhe seria possível proferir uma decisão de mérito favorável à parte que seria protegida pelo pressuposto, não faria qualquer sentido que o tribunal providenciasse pela sanação. Havia que proferir imediatamente uma decisão de mérito.”  

            Em sentido contrário, no entanto, veja-se Paulo Pimenta, Processo civil declarativo, Almedina, 2015, pág. 128, nota 284, referindo no mesmo sentido Lebre de Freitas, A acção declarativa, pág. 181, nota 6, mas sem razão porque não é isso que decorre desta nota daquela obra de Lebre de Freitas: “Introdução, n.º I.3.5, e CPC, I, n.ºs 4 e 5 da anotação ao art. 288. Quando, como em regra acontece, a decisão de mérito não é ainda possível, por haver prova a produzir, o preceito (impeditivo do efeito normal da excepção) do art. 278-3 não se aplica e o juiz absolve o réu da instância. Outra consequência de o preceito só ter aplicação no momento da apre­ciação da excepção é que a sua existência não pode, com base num juízo de prognose, servir ao juiz para, no momento do despacho pré-saneador, não providenciar pelo suprimento da excepção dilatória.” Ora, o que se está a discutir é para a hipótese de ser já possível a decisão de mérito. 

                                                      *

                    Do convite para suprimento da ilegitimidade

            Voltando agora à questão de se se deve convidar, nesta fase, a autora a suprir a preterição do litisconsórcio necessário…

            Na sentença diz-se, que, “neste momento, já com o julgamento realizado, a excepção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário que subsiste já não é susceptível de ser suprida.”

            A autora, como se viu, entende que é susceptível de sanação e censura a sentença por não ter fundamentado a afirmação contrária.

          O ac. do TRL de 06/03/2014, 281/12.7TBPTS.L1-6, faz uma afirmação semelhante à da sentença: “4. Não sendo agora, face ao estado da acção, mormente a existência de sentença, a referida excepção susceptível de sanação, a solução só pode passar pela absolvição dos réus da instância.”

          Este acórdão do TRL baseou-se no ac. do STJ de 02/02/2005, proc. 04S610: “Como prevê o art. 28/1 do CPC, a falta de um dos interessados na relação controvertida, em caso de litisconsórcio necessário, é motivo de ilegitimidade. O juiz poderia ter providenciado pelo suprimento da falta do pressuposto processual, convidando a parte a corrigir a deficiência (art. 265/2, do CPC), mas não o tendo feito, não é agora possível, ao contrário do que propugna o MP, anular o processado para que tal diligência seja ainda efectuada, tanto mais que não se trata de nulidade processual de conhecimento oficioso (art. 202). Resta, pois, declarar a absolvição da instância por ilegitimidade passiva».

          O mesmo diz o ac. do TRP de 17/03/2009, proc. 27/05.6TBBAO: “por ocorrer in casu uma situação de litisconsórcio necessário natural (passivo), ocorre a excepção dilatória de ilegitimidade dos réus, de conhecimento oficioso – pelo que, apesar de não ter sido suscitada anteriormente (seja pelas partes, seja pelo tribunal recorrido), deve este tribunal de recurso dela conhecer, não sendo já, nesta sede, possível o suprimento dessa falta de pressuposto processual (ao abrigo dos art. 265/2 e 508/1-a do CPC), por ter passado o momento processual próprio e por a omissão dessa diligência de suprimento não configurar nulidade de conhecimento oficioso. Consequentemente, resta a este tribunal determinar a revogação da sentença e a absolvição dos réus da instância, ficando prejudicado o conhecimento de mérito da acção e da matéria suscitada na apelação».

          Note-se que em todos estes acórdãos tinha havido decisão de mérito na sentença depois do julgamento e a questão da ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, foi suscitada oficiosamente no tribunal de recurso, tendo acarretado a absolvição da instância.

          Também o ac. do TRP de 24/02/2014, 7/11.2TBBAO.P1, citado acima, revoga a absolvição do pedido e passa a absolver da instância, sem antes tentar a sanação da ilegitimidade.

            De todos estes acórdãos, e das normas neles citadas, decorre que a possibilidade do juiz suscitar a sanação da ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário já não existe no momento da sentença depois do julgamento. Ela existe até ao despacho saneador e não sendo exercida nessa ocasião, verifica-se uma omissão que poderá ser uma nulidade processual que tem de ser oportunamente arguida (depois do proferimento do despacho saneador, e não depois da sentença tendo esta sido procedida de julgamento), não sendo de conhecimento oficioso. O único acórdão invocado pela autora, do TRL de 16/01/2007, proc. 8121/2006, que se decidiu pela necessidade do convite para sanação, a ser formulado ao abrigo do art. 508/1-a do CPC antes da reforma de 2013, foi proferido sobre um caso em que a excepção foi verificada no saneador sentença (daí a referência ao art. 508/1-a do CPC).

            Entende-se que é esta a solução do caso (inexistência da possibilidade de convite depois do julgamento), pelo que, por um lado, não existe, nulidade, coberta pela sentença, de não proferimento de convite ao suprimento da ilegitimidade, pelo que a mesma não pode ser objecto de recurso com esse fundamento, e, por outro, verificando-se, com o que a autora concorda, excepção de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo, relativamente ao pedido de impugnação pauliana, a decisão proferida (que não podia ser de mérito, como já se tentou demonstrar) deve ser substituída por outra de absolvição da instância (e não de convite ao suprimento, por o tribunal já não ter esse poder/dever).

            Reconhece-se entretanto que a solução não é completamente linear, pois que não se compagina bem com a possibilidade da autora usar do meio do art. 261 do CPC para vir ainda a assegurar a legitimidade. Se a parte ainda o pode fazer por iniciativa própria, mesmo depois da sentença final (veja-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, CPC anotado, vol. I, pág. 505/506) e mesmo depois do trânsito em julgado desta (no caso do n.º 2 do art. 261 do CPC), porque é que o tribunal em vez de absolver da instância não há-de poder convidar a parte a fazer o necessário para suprir a ilegitimidade? Tanto mais que o art. 6/2 do CPC não prevê um prazo final para o juiz exercer os poderes/deveres que aí lhe são atribuídos…

                                                      *

                                  Quanto aos outros pedidos

            A solução da absolvição da instância refere-se só ao pedido de impugnação pauliana que era apenas um pedido subsidiário.

            Falta agora apreciar o recurso quanto à sentença que absolveu os réus dos demais pedidos (deduzidos a título principal), sem se esquecer aquilo que já foi dito acima quanto a estes, por ter sido necessário apreciá-los para a anterior questão.

            Ora, do que acima foi dito, decorre, a manifesta improcedência e/ou a ilegitimidade dos réus ou da autora para os pedidos formulados a título principal, o que torna inútil a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto – quase toda a matéria das restantes conclusões do recurso da autora, sendo as outras dedicadas a retirar consequências a nível do direito da eventual procedência daquela impugnação. E a não apreciação da impugnação de facto terá ainda a vantagem de evitar que este tribunal de recurso se esteja a pronunciar sobre a prova produzida, inquinando a eventual nova produção de prova sobre a matéria.

            Entretanto, a manifesta improcedência e ilegitimidade relativa-mente aos pedidos principais melhor ainda se entenderá se se tiver em conta que neste tipo de situações o que é comum fazer é pedir a nulidade, por simulação, da venda dos bens que o devedor fez a terceiro e, para o caso desta pretensão ser improcedente, impugnar paulianamente a venda. Ora, no caso dos autos, o que a autora fez foi invocar a nulidade da própria criação do terceiro (a sociedade) e nem sequer pediu a declaração da nulidade da venda dos bens.

            Posto isto veja-se:

            O primeiro pedido da autora refere-se ao contrato celebrado entre os réus para constituição da sociedade, isto é, às declarações negociais que o consubstanciam, que estariam feridas de nulidade por simulação.

            Ora, já se viu acima que, estando a sociedade registada desde 09/01/2013, muito antes de a acção ter sido intentada em 10/01/2015, tal direito não existe, por força do art. 41 do CSC.

            Ou seja, este pedido é manifestamente improcedente. Pelo que se justifica perfeitamente a improcedência do mesmo, logo por aqui, embora por fundamento diferente do invocado pela decisão recorrida.

                                                      *

            Quanto ao pedido de declaração de nulidade da deliberação social (tendo por objecto a cessão de quotas e à alteração do pacto da sociedade), por simulação, os réus são parte ilegítima, pois que tal pedido tinha que ser dirigido contra a sociedade. E como já foi visto, a ilegitimidade singular não é sanável.

            Mas, aqui deve aplicar-se, como fez a sentença recorrida, o art. 278/3, 2ª parte, do CPC, por a decisão de improcedência ser já possível, embora por fundamento diverso do invocado na sentença recorrido, ou seja, por ser manifesto, como já se fundamentou, a inexistência do direito objecto desta pretensão, pois que as deliberações não podem ser declaradas nulas com o fundamento invocado.

            Contra, no entanto, veja-se Paulo Pimenta, A fase do saneamento…, pág. 271, argumentando que a decisão de improcedência será irrelevante, já que ela não poderá aproveitar ao verdadeiro sujeito da relação material controvertida (invoca no mesmo sentido, a posição de Paula Costa Silva, págs. 219 e 220). Pensa-se que, aqui sem razão, já que, ao contrário do que se verifica no caso da ilegitimidade por preterição do litisconsórcio necessário, neste caso a decisão de absolvição do pedido produz o efeito útil normal e os réus não mais poderão ser parte numa acção que tenha por objecto tal pretensão.

                                                      *  

            Quanto ao pedido de nulidade da cessão de quotas, a autora não tinha legitimidade para arguir a nulidade (art. 286 do CC).

            Com efeito, decorre do art. 286 do CC que “as nulidades só podem ser invocadas por quem tem uma relação jurídica cuja consistência prática, económica ou jurídica dependa da declaração da nulidade”

            O interesse que, segundo o art. 286 do CC, atribui legitimidade a terceiro para invocar a nulidade do negócio jurídico é um interesse de direito substantivo e pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, seja enquanto terceiro juridicamente interessado (o negócio prejudica a consistência jurídica de um seu direito), seja como terceiro juridicamente indiferente, mas o negócio prejudica a consistência prática ou económica de um seu direito e a invocação da nulidade do negócio visa impedir esse prejuízo [Lebre de Freitas, O conceito de interessado no art. 286 do CC, Estudos em memória de Dias Marques, conclusões na pág. 384)].

            E se é certo que o tribunal deve conhecer oficiosamente a nulidade, quando do processo constem os factos necessários para o efeito, tal não implica que admita um recurso interposto sobre a decisão de nulidade, por quem não tem, por falta de interesse, legitimidade para a invocar, o que seria contraditório com a referência ‘ao interessado’ no art. 286 do CC.

            Ora, a autora não invoca nenhum interesse seu cuja consistência jurídica, prática ou económica possa ser prejudicada pela cessão de quotas do 1º réu para a 3ª ré.

            Veja-se:

            A autora faz a seguinte construção: o 1º réu constituiu com o 2º uma sociedade, passando a ser sócio dela com o 2º réu; depois, o 1º réu cedeu a sua quota para a 3ª ré, com isso deixando de fazer parte da sociedade. E acrescenta, sem que diga sequer em que momento é que isso ocorreu (antes ou depois da venda da quota), que o 1º réu vendeu à sociedade todos os seus bens. Vê-se, da petição, que o seu objectivo é que os bens que são formalmente da sociedade, por causa daquela venda, sejam considerados como do 1º réu, por virtude da nulidade destes factos, embora não explique como é que pretende atingir esse objectivo, nem faça nenhum pedido relacionado com tal: o acto da venda não está abrangido pelos pedidos.

            Ora, a cessão de quotas do 1º réu para a 3ª ré diz respeito a um bem que, por natureza, nem sequer existia antes da constituição da sociedade, pelo que não é um daqueles bens que a autora dizia serem do 1º réu.

            Por outro lado, os sócios não se confundem com as sociedades comerciais que têm personalidade jurídica própria a partir do registo (art. 5 do CSC), pelo que o facto de o 1º réu, com a cedência da quota, ter deixado de ser sócio da sociedade, não tem qualquer relevo para qualquer direito da autora: a situação desta não era melhor pelo facto de o 1º réu ser sócio da sociedade.

            A argumentação da autora só se percebe, lendo a contrario, o que ela diz no art. 54 da petição: “nem a sociedade, nem o referido consultório, pertencem ao 2º réu e à 3ª ré, mas sim ao 1º réu.” Isto é, segundo a autora, antes da venda os bens pertenciam ao 1º réu, com a venda passaram a pertencer, simuladamente, ao 2º reu e à 3ª ré. Mas é evidente que não é assim: se a venda fosse declarada nula (se esse pedido tivesse sido feito e fosse procedente), os bens sempre teriam sido do 1º réu. Se a venda não for declarada nula (e não o pode ser porque não houve pedido nesse sentido), os bens são da sociedade e não do 2º réu e da 3ª ré. O facto de o 1º réu ser sócio, não o faz proprietário dos bens da sociedade. E a cessão de quota do 1º réu para a 3ª ré não faz desta proprietária dos bens da sociedade. Tudo corolário da referida personalidade jurídica da sociedade depois do registo.

            Pelo que, repetindo, a autora não tem uma relação cuja consistência prática, económica ou jurídica dependa da declaração da nulidade e assim sendo não a podia ter arguido.

            E, não tendo o tribunal recorrido considerado existente a nulidade arguida, a autora não pode recorrer de tal decisão, por não ter nisso interesse, razão pela qual não se conhecerá do recurso da decisão que julgou improcedente este pedido.

                                                      *

            Quanto ao pedido de cancelamento do registo da quota do 2º réu estava dependente da nulidade do contrato da constituição da sociedade. Sendo o pedido da declaração da nulidade manifestamente improcedente, o do cancelamento deixa de ter qualquer fundamento, pelo que deve manter-se a improcedência do mesmo.

                                                      *

          Quanto ao pedido de cancelamento do registo da quota da 3ª ré, o não conhecimento do recurso quanto à improcedência do pedido de declaração de nulidade da cessão dessa quota, prejudica o conhecimento do recurso quanto ao deste cancelamento.

                                                      *

          Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente revogando a sentença recorrida quanto à absolvição do pedido subsidiário de impugnação pauliana, em relação ao qual, em substituição da decisão recorrida, se absolvem agora os réus da instância, por ilegitimidade devido à preterição de litisconsórcio necessário passivo.

         Quanto aos pedidos de declaração de nulidade do contrato de constituição da sociedade e das deliberações sociais tomadas na assembleia de 23/08/2014 (relativas à cessão de quotas e alteração do pacto), confirma-se a absolvição do pedido, mas por fundamento diverso (agora por manifesta improcedência dos mesmos) e por isso fica sem fundamento o pedido de cancelamento do registo da quota do 2º réu, cuja improcedência se deve por isso manter.

            Quanto ao pedido de nulidade da cessão de quotas, não se conhece do recurso da autora, por ela não ter legitimidade para arguir a nulidade de tal contrato, isto é, por ela não ter interesse nessa declaração e, por isso, fica prejudicado o conhecimento do recurso quanto à improcedência do pedido de cancelamento do registo da quota a favor da 3ª ré.

                                                      *

            Custas do recurso em 87,5% pela autora e 12,5% pelos réus.

            Porto, 13/07/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto