Arresto – Maia – Inst. Local – Secção Cível

          Sumário:

I. Há erro na forma de processo, quando o fim efectivamente visado pelo requerente (apreensão dos seus próprios bens) não coincide com o fim visado pela lei no procedimento cautelar por ele empregue (arresto de bens do devedor/requerida: art. 391/1 do CPC). O erro é corrigido pelo juiz nos termos do art. 193 do CPC.

II. Dado que o processado seguido (arresto) não incluiu a prévia audição da requerida (art. 393/1 do CPC), o juiz só o podia ter aproveitado se os factos alegados ou os indiciariamente provados permitissem concluir que a audição da requerida poria em risco sério o fim ou a eficácia da providência (art. 366/1 do CPC).

III. Se se cumulam duas providências, devendo quanto a uma, principal, ouvir-se previamente a requerida e quanto a outra, subsidiária, não, o procedimento deve ficar reduzido à principal (arts. 376/3 e 37, n.ºs 2 e 3, ambos do CPC).

IV. Quando o requerido não é ouvido antes de ser decretada a providência cautelar e na oposição impugna as afirmações de facto feitas na petição da providência e dadas como provadas, o tribunal não pode dar como provadas as afirmações de facto feitas na oposição e deixar também como provadas as afirmações de facto feitas na petição, sem dizer nada quanto a estas, pois, caso contrário, o processo fica com duas decisões da matéria de facto parcialmente contraditórias.

V. O fundado receio da requerente da providência, “há-de ser objectivo, apoiando-se em factos de que decorra a seriedade da ameaça.”

VI. A decisão de mérito, de absolvição do pedido, deve prevalecer sobre uma decisão de anulação de processado que tivesse em vista salvaguardar as garantias de defesa da requerida (art. 278/3 do CPC).

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

          A A, SA, requereu, em 29/10/2015, no tribunal de Barcelos, contra a RA, SA, que, sem a audição prévia desta, fosse decretado o arresto de 34.021,39 kg de material em aço S355 constituído por perfis, chapas e tubulares não mecanizados, ou, caso já não existam nas instalações da requerida, os bens moveis aí existentes para garantia do valor de 28.455,50€.

            Alegava para o efeito que aqueles kg de material eram seus e tinham sido entregues por ela nas instalações da requerida para que esta os utilizasse na execução de uma empreitada contratada entre ambas; e que a requerida se recusava a deixar a requerente ir levantá-los tal como tinham acordado; teme que a requerida utilize aquele material e que depois não tenha património suficiente para garantir o crédito que a requerente tem contra ela, isto é, o valor daquele material (28.455,50€), já que a requerida tem dívidas que já estão em fase de cobrança judicial (a requerente invoca uma acção para o efeito, sem qualquer prova documental) e é associada de uma empresa que já foi alvo de um processo de revitalização e que se situa nas instalações fabris da requerida.

            Depois de ouvidos, no dia 09/11/2015, o legal representante da requerente, em declarações de parte, e três testemunhas, foi decretado o arresto daqueles kg de material, sem audição prévia da requerida, e sem prova daqueles últimos factos alegados pela requerente para fundamentar o receio (os relativos à acção e à associada).

            Após a realização em 03/12/2015 do arresto de 21.120kg daquele material e da notificação da requerida, veio esta a 17/12/2015 deduzir oposição, excepcionando a incompetência territorial do tribunal (o competente seria o da Maia) e a ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir e cumulação de pedidos incompatíveis, com a consequência da absolvição da instância; e impugnando os factos alegados pela requerente (entre o muito mais, refere que o valor do material da requerente não ultrapassa os 8500€); termina no sentido da improcedência do pedido e da condenação da requerente como litigante de má-fé em multa e indemnização de 2000€, respeitantes aos honorários a cobrar à requerida pelo seu mandatário judicial, mais 3000€ por danos sofridos pela requerida.

            A requerente respondeu às excepções deduzidas e à alegada litigância de má-fé e (depois) pronunciou-se também quanto aos documentos juntos pela requerida.

            Depois de ser adiada, por uma vez, a audição da prova testemunhal apresentada pela requerida, de 05/01/2016 para 22/01/2016, acabou por ser produzida tal prova e, após, foi proferida decisão a 29/01/2016 que julgou improcedente a excepção da ineptidão da petição inicial e depois procedente a da incompetência relativa do tribunal de Barcelos, ordenando a remessa do processo para o tribunal da Maia.

            Chegado o arresto à Maia e apensado à acção que entretanto a requerente tinha intentado, foi ordenada a 04/04/2016 nova produção da prova testemunhal arrolada pela requerida, “para se decidir de mérito”, designando-se para tal o dia 21/04/2016 e depois, por impedimento da advogada da requerente, para 06/05/2016.

            Produzida a prova, foi proferida decisão, julgando improcedente a oposição ao arresto.

            A requerida recorreu desta decisão, terminando as alegações do seu recurso com conclusões (que irão sendo transcritas a seguir, no essencial) que têm a ver com as seguintes questões: da nulidade da decisão da excepção da ineptidão; da existência de ineptidão da petição (falta de causa de pedir e incompatibilidade dos pedidos); do erro na forma do processo; erro na decisão dos pontos 23 e 24 da matéria de facto proferida no deferimento do arresto; da falta de prova do justo receio e da existência do crédito da requerente; e do direito de retenção da requerida.

            A requerente contra-alegou no sentido da improcedência do recurso, designadamente porque, quanto à nulidade, a decisão não teria sido objecto de recurso quando o devia ter sido (trânsito em julgado); quanto à ineptidão e ao erro na forma do processo, por não se verificarem; quanto ao erro na decisão da matéria de facto, por não existir; quanto ao direito de retenção, porque o que disse o tribunal recorrido sobre a questão está correcto.

            As questões a decidir são as acabadas de referir nos dois §§ que antecedem.

*

I

Da nulidade da decisão sobre a excepção de ineptidão

            Diz a requerida:

  1. A decisão de 29/01/2016 que incidiu sobre a excepção de ineptidão da PI de arresto é nula, uma vez que o tribunal pronunciou-se sobre uma questão de que não podia tomar conhecimento, nos termos do art. 615/1-d do CPC;
  2. Impunha-se que o tribunal a quo, de forma prioritária, conhecesse da excepção de incompetência territorial suscitada, nos termos do art. 278/2 e 105, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC;
  3. Assim, quando no mesmo processo concorra uma situação de nulidade processual (278/1-b CPC) com a incompetência em razão do território – excepção sanável com a remessa do processo para o tribunal competente – o juiz deverá apreciar em primeiro lugar a incompetência em razão do território, procedimento que deve adoptar, quer este conhecimento se apresente como oficioso, quer decorra da arguição do réu.

            A requerente responde que a decisão da excepção de ineptidão “nunca foi objecto de qualquer recurso aquando da sua decisão”.

            Decidindo:

A)

Da inexistência de trânsito em julgado

            A resposta da requerente sugere que a decisão que julgou improcedente a excepção dilatória está transitada em julgado.

            Mas a requerente não tem razão, já que a decisão que julga improcedente a excepção dilatória da ineptidão da petição inicial não é susceptível de recurso autónomo (art. 644/2 do CPC), com a contrapartida de poder ser impugnada no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no art. 644/1 (art. 644/3 do CPC).

            Logo, era agora (no recurso da decisão que pôs termo ao processo) que a requerida podia impugnar a decisão em causa.

            De qualquer modo, não era isto que, para já, se estava a discutir nas primeiras conclusões do recurso da requerida, mas sim a questão da nulidade de tal decisão.

                                                                                       *

B)

Do conhecimento da ineptidão antes do momento próprio

            A partir do momento em que é suscitada a questão da incompetência territorial do tribunal, deixa de fazer sentido que o tribunal que se alega ser incompetente possa decidir outras questões antes de decidir a sua própria competência. E, a partir do momento em que decide que é incompetente para conhecer das questões que lhe são colocadas, não pode decidir mais nenhuma. Daí a norma do art. 278/2 do CPC que diz que cessa o disposto no n.º anterior quando o processo haja de ser remetido para outro tribunal. E daí também a norma do art. 104/3 do CPC: “O juiz deve suscitar e decidir a questão da incompetência até ao despacho saneador, podendo a decisão ser incluída neste sempre que o tribunal se julgue competente.” Logo, se se julgar incompetente já não pode proferir despacho saneador, isto é, entre o mais, decidir as excepções dilatórias deduzidas (art. 595/1-a do CPC).

            O tribunal de Barcelos, por isso, não podia ter decidido a questão da excepção dilatória da ineptidão da petição inicial no momento em que o fez – porque o fez antes de decidir a questão da sua competência e depois veio a julgar-se incompetente -, sendo assim tal decisão nula, por ter sido proferida “em momento processual inadequado” (a expressão entre aspas é de Lebre de Freitas, A acção declarativa, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, pág. 328).

            Assim, a decisão da excepção da ineptidão era nula, embora o fundamento não seja o indicado pela requerida (: art. 615/1-d do CPC: por ter conhecido de questão de que não podia ter conhecido; aliás este fundamento da nulidade das sentenças/despachos tem a ver com princípio do pedido e limites respectivos, isto é, com as normas dos arts. 608 e 609 do CPC). Ou seja, a nulidade não era da própria decisão, era antes uma nulidade decorrente da prolação da decisão em momento inadequado (art. 195/1 do CPC).

            Mas a nulidade teria de ser arguida, no tribunal recorrido, no prazo de 10 dias depois daquela decisão ter sido proferida (arts. 195/1 e 149/1, ambos do CPC) e esse prazo está ultrapassado há muito.

            Pelo que a questão da sua nulidade também está ultrapassada.

            O que não tem a ver com questão de saber se a questão da excepção da ineptidão está ou não bem decidida, ou seja, com o conteúdo da decisão, ou erro do julgamento.

                                                                                        *

II

Da ineptidão da petição inicial

            O tribunal recorrido (no caso o de Barcelos) considerou, depois da transcrição de várias normas legais e de considerações abstractas sobre o pedido, causa de pedir e cumulação de pedidos, que não se verificava esta excepção porque entendeu: 

         “depois de compulsada novamente a petição inicial, que a mesma não padece de falta de causa de pedir – a causa de pedir invocada pela requerente corresponde aos factos indiciariamente dados por provados e que sustentaram a decisão proferida. Também não padece de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, uma vez que os pedidos formulados pela requerente têm natureza subsidiária.”

                                                      *

            Contra isto diz a requerida (nas subsequentes conclusões com conteúdo útil):

  1. A requerente veio pedir o arresto de bens próprios, quando este procedimento cautelar especificado visa apenas “o arresto dos bens do devedor”.
  2. A requerente não alegou factos donde derive a existência de um crédito sobre a requerida.
  3. Nem alegou factos concretos donde pudesse derivar o justo receio de perda de garantia patrimonial, limitando-se a alegar factos conclusivos e contraditórios.
  4. E ainda cumula pedidos substancialmente incompatíveis.
  5. Nestes termos, deverá ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que absolva a requerida da instância em virtude de falta de causa de pedir e cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, situações que consubstanciam causas de ineptidão da petição inicial nos termos do art. 186/2, alíneas a) e c), do CPC, a sua verificação implica a nulidade de todo o processo (cfr. art. 186/1 do CPC) e em consequência, a absolvição da instância.

            A requerente diz, em síntese, que existe causa de pedir e não se verifica cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, uma vez que os pedidos formulados têm natureza subsidiária.

                                                                                       *

A)

Da falta de causa de pedir e da incompatibilidade dos pedidos

            A requerente formulou duas pretensões: (i) a do arresto de uns seus bens, ou (ii) de bens da requerida, caso os primeiros não fossem encontrados.

            Tendo isto em presente e que o arresto tem a ver com bens do devedor (art. 391/1 do CPC), compreende-se que, por um lado, a requerida tenha vindo invocar a falta a causa de pedir do arresto (já que a requerente não dizia que os bens eram do devedor) e, por outro, que as pretensões da requerente são contraditórias (no arresto, que tem de dizer respeito a bens do devedor, não se podem cumular pedidos relativos a bens do devedor e a bens do credor).

            Mas isto é porque a requerida vê as coisas a partir da qualificação jurídica das providências pedidas (como arresto) e não das providências efectivamente requeridas.

            Os pedidos (arts. 552/1-e e 581/3, ambos do CPC) são as pretensões da requerente, o que ela quer realmente que o tribunal faça para tutela dos seus interesses, independentemente da qualificação jurídica que ela, requerente, tenha feito dessa pretensão (nos termos do ac. do STJ de 07/04/2016, 842/10.9TBPNF.P2.S1: “ O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico”). Ora, no caso, ela quer que o tribunal ordene a apreensão do seu material que entregou à requerida ou, caso ele não seja encontrado, que sejam apreendidos bens da requerida de igual valor.

            E isto porque, segundo alega, entregou à requerida material seu para execução de uma empreitada e entretanto, passado o prazo para a realização da prestação pela requerida, acordou com esta o levantamento do material restante, o que a requerida, no entanto, a impediu de fazer (arts. 24 a 26 do requerimento de arresto). Ora, se aquele seu material não fosse encontrado aquando da diligência de “arresto”, ela queria que fossem apreendidos bens da requerida de igual valor (28.455,50€) para garantia do crédito resultante da falta de restituição do seu material.

            Estes factos correspondem à causa de pedir daqueles pedidos, pelo que não se se pode dizer que a causa de pedir não tenha sido alegada.

            E os pedidos não são substancialmente incompatíveis: não há qualquer incompatibilidade, mesmo sem se considerar a subsidiariedade, em pedir primeiro a entrega de bens da requerente e, para o caso destes não serem encontrados, pedir a entrega de bens da requerida.

            O que se passa é antes o seguinte: o primeiro pedido é um pedido de restituição de posse (em que não é alegada violência e por isso o procedimento cautelar adequado era o comum: arts. 377, 379 e 362, todos do CPC) e o segundo um pedido de arresto (art. 391 do CPC). Se eles podiam ou não ser cumulados num processo é outra questão (arts. 376/3 e 37, n.ºs 2 e 3, ambos do CPC).

                                                                                        *

III

Do erro na forma do processo

            O tribunal recorrido reconhece que houve erro na forma de processo para a primeira pretensão deferida, de arresto, pois que não se pode pedir o arresto de bens próprios. Apesar disso, o tribunal recorrido entendeu que a questão era irrelevante.

            A argumentação do tribunal recorrido foi a seguinte:

        “[…] a bem dizer, não se tratou verdadeiramente de um arresto, mas de uma providência cautelar não especificada de “entrega judicial de bens”, já que os bens “arrestados”, como se disse não pertenciam à requerida, mas eram propriedade da requerente, que aquela detinha para a realização dos trabalhos que as partes haviam acordado realizar, pelo que com a retirada dos mesmos por parte da requerente, não ficou a requerida prejudicada no seu património, pois, nenhum dos bens apreendidos no âmbito da providência cautelar em causa era sua pertença, pelo que não ficou impedida de continuar a dispor livremente do seu património, não se podendo olvidar que o arresto consiste na apreensão judicial de bens, em princípio de bens do devedor, quando haja justo receio de que este os inutilize ou os venha a ocultar, sendo certo que os bens apreendidos nos autos, como se disse, eram propriedade da requerente e, portanto, como resulta do art. 1311 do CC, o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa a restituição do que lhe pertence.”

            Quanto a isto diz a requerida:

  1. [O] procedimento cautelar de arresto não é o meio processual correcto à pretensão da requerente.
  2. O erro na forma de processo, é de conhecimento oficioso e uma vez declarado importa a anulação de todos os actos que não possam ser aproveitados, nos termos do art. 193/1 do CPC;
  3. A PI não pode ser aproveitada para a forma de processo adequada, devendo absolver-se a requerida da instância, pois,
  4. No caso de entendermos que o processo correcto será o procedimento cautelar comum, não consta alegado o justo receio da lesão nem sequer que a audiência da requerida poria em risco o fim ou eficácia da providência;
  5. E se se entender que o arrolamento será o procedimento adequado, não consta alegado o receio de extravio ou dissipação dos bens, sendo certo que, tal procedimento não se coaduna com a remoção que foi levada a cabo, uma vez que “o depositário é o próprio possuidor ou detentor dos bens” nos termos do art. 408/1 do CPC.
  6. Nestes termos, deverá ser declarado o vício processual de erro na forma de processo, o qual é de conhecimento oficioso, e determinar-se a anulação de todo o processo, (como excepção dilatória) e a absolvição da requerida da instância.
  7. No entanto, e mesmo que assim não se considerasse, sempre ter-se-ia de aplicar o n.º 2 do art. 193 do CPC, uma vez que o aproveitamento dos actos já praticados resulta uma diminuição das garantias da requerida, pois o arresto com remoção foi decretado sem audiência prévia da requerida.

         […]

  1. […] foi decretado o arresto sobre bens da própria requerente, quando o arresto se requer sobre bens do devedor.
  2. Verifica-se, pois, que a sentença viola o art. 391 do CPC, devendo ser revogada, com todas as consequências legais.

         […]

  1. Não entende a requerida como pôde o tribunal a quo dar por assente que os bens arrestados são da propriedade da requerente (o que aliás já constava da sentença que decretou a arresto), dando como definida uma situação de erro na forma do processo, para depois vir declarar que é inócua a oposição da requerida porque afinal “não ficou impedida de continuar de dispor livremente do seu património”.
  2. Esta fundamentação, com o devido respeito, é uma redução ao “absurdo”!
  3. Se o tribunal a quo atestou que estávamos perante uma situação de erro na forma do processo, cabia-lhe conhecer tal vício e anular todo o processo, não lhe sendo permitido alterar “as regras a meio do jogo”, e desatender os fundamentos da oposição porque afinal não foram “arrestados bens da requerida”.

         […]

  1. Além disso, qualquer outro procedimento cautelar para ser decretado imporia que a requerida fosse ouvida antes do seu decretamento, a não ser que se alegasse e demonstrasse que tal audição pusesse em risco o fim ou eficácia da providência.

            A requerente nada diz directamente contra isto, como se as anteriores contra-alegações pudessem ser aproveitadas também para esta questão.

            Decidindo:

            Já resulta do que antecede, e nem sequer tal é realmente discutido nos autos, que a requerente não podia ter pedido o arresto do seu material que tinha entregado à requerida para a execução da empreitada. Note-se que, segundo o disposto no art. 1212/1 do CC, os materiais fornecidos pelo dono da obra para a construção de empreitada de coisa móvel continuam a ser propriedade dele. Ora, o arresto consiste na apreensão de bens do devedor (arts. 619 do CC e 391 do CPC) e não de bens credor.

            Além disso, também já se viu, que esta pretensão da requerente, se fosse bem qualificada, seria antes um pedido de restituição de bens em que não se invocava a violência, pelo que o procedimento adequado era antes o comum (arts. 377 e 362 do CPC).

            Ou seja, a requerente incorreu num manifesto erro na forma de processo e o tribunal seguiu-a nesse erro, aplicando o procedimento de arresto a um pedido que devia seguir o procedimento cautelar comum.

            Como diz Alberto dos Reis, há que atender ao pedido formulado pelo autor e pô-lo em equação com o fim a que, segundo a lei, o processo especial se destina. Se os fins coincidem (o fim concretamente visado pelo autor e o fim abstractamente figurado pela lei), a aplicação é correcta; se divergem, há erro de aplicação (CPC anotado, vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1981, págs. 287 a 293).

            Ou seja o erro na forma do processo é aferido pelo pedido efectivamente deduzido (Lebre de Freiras, A acção declarativa…, pág. 52) e não pela qualificação dada pelo requerente a tal providência. Ou seja, se a pretensão corresponde a procedimento cautelar comum e o requerente requer um arresto, há um erro na forma de procedimento utilizado.

            Ora, no caso do arresto, o fim visado pela lei é a apreensão de bens do devedor (art. 391/1 do CPC, com posterior conversão do arresto em penhora: art. 762 do CPC – com insistência neste ponto, veja-se Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, Almedina, 2015, págs. 222 a 224) e o fim visado pela requerente foi a apreensão de coisas dela própria (que, por isso, nunca poderá ser convertida em penhora…). Os fins não coincidem. A aplicação é incorrecta.

            Neste mesmo sentido, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto dão o seguinte exemplo (CPC anotado, vol. 2.º, 2ª ed., Coimbra Editora, 2008, págs. 70 e 71): […] o requerente ped[e] a apreensão de um prédio que alega pertencer-lhe, denominando de arresto tal apreensão, quando se trata de uma providência inominada (erro de qualificação); […] o juiz altera a qualificação dada pelo requerente […]. […O] mero erro na forma do procedimento cautelar [= o mero erro de qualificação que atinge o tipo de providência] [está] sujeito ao regime geral do art. 199/1 [agora, depois da reforma de 2013 do CPC, art. 193/1].”

            Esse erro foi tempestivamente invocado (na oposição ao arresto – art. 198/1 do CPC), decidido na decisão final (art. 200/2 do CPC) e agora esta foi objecto de recurso.

            Pelo que há agora que tirar dele as devidas consequências.

            Diz o art. 193 do CPC que: “1 – O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei. 2 – Não devem, porém, aproveitar-se os actos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu.”

            Ou seja, condição de aproveitamento dos actos praticados era o de esse aproveitamento não resultar uma diminuição de garantias do réu. Assim, este critério diz respeito às garantias que foram asseguradas à requerida na defesa dos seus direitos e não a qualquer especulação – como a feita pelo tribunal recorrido – sobre os direitos substantivos que a requerida tenha ou não demonstrado ter no procedimento que não era o adequado ao caso.

            Ora, o arresto é um procedimento cautelar especificado, com a particularidade de ser decretado sem audiência da parte contrária (art. 393/1 do CPC). No procedimento cautelar comum tal só poderia acontecer se a requerente tivesse alegado – ou isso tivesse ficado indiciado – os factos necessários para se concluir que a audiência punha em risco sério o fim ou a eficácia da providência (art. 366/1 do CPC), o que não foi o caso. Ou seja, admite-se que o juiz, finda a produção da prova do arresto, ou da prova produzida depois da contestação, pudesse entender (mesmo que isso não tivesse sido requerido) que, face aos factos indiciariamente provados, se justificava a não audição da requerida e que estavam verificados os requisitos da providência cautelar comum e, que nesse caso, decretasse a restituição (segue-se a posição de Lebre de Freitas, defendida para um caso paralelo: CPC anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 87, e também o que é dito na pág. 27 sobre a audiência prévia). Mas na decisão recorrida não se diz nada que justifique a não audição e os factos alegados e os indiciariamente provados não levam a entender que se justificasse a concessão da providência sem audição da requerida.  

            Ou seja, no caso, a requerida tinha o direito de ser ouvida antes de a providência ter sido decretada e não lhe foi assegurado tal direito. Pelo que se aproveitassem os actos já praticados, tal seria feito à custa das garantias processuais essenciais da requerida.

            Assim sendo, impunha-se a anulação de todo o processado à excepção da petição inicial, que não haveria razões para não se poder aproveitar (o caso de não se poder aproveitar a petição inicial é um caso extremo e excepcional – Lebre de Freitas, A acção declarativa…, pág. 53; e daí que Castro Mendes, sem consideração por casos excepcionais, diga que: o erro na forma de processo, passado o momento do liminar, não tem por efeito a absolvição do réu, mesmo da instância – Direito processual civil, III, 1982, AAFD de Lisboa, pág. 20; mas pode haver casos excepcionais, em que “do aproveitamento da petição resulta […] uma diminuição das garantias do réu”, caso em que “deve o juiz, com base nesse facto e no erro sobre a forma de processo cometido, anular todo o processo, absolvendo o réu da instância: cfr. Lopes Cardoso, CPC anotado, 1972, pág. 114”: Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de processo civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 390, nota 1).

            Ou seja, nesta última parte a requerida não tem razão, quando pretende ser absolvida da instância.

            O erro na forma de processo, que atinge a providência principal, tem reflexos na segunda, subsidiária, isto apesar de esta, se não estivesse em cumulação com a primeira, poder e dever seguir os termos do procedimento de arresto.

            Só que, estando em cumulação, o que é em abstracto admissível, os termos que ela, como subsidiária, tinha que seguir, tinham que se subordinar aos da providência principal (arts. 376/3 e 37, n.ºs 2 e 3, ambos do CPC, e Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. 2, pág. 71), o que no caso não era possível devido à necessidade de audição prévia da requerida (Lebre de Freitas e outros, CPC anotado…, vol. 2, pág. 72), o que é incompatível com o arresto. Pelo que o procedimento ficaria reduzido à providência principal, não se autorizando a cumulação e tendo a requerente de apresentar nova petição de modo a que dela não ficasse a constar o pedido de arresto de coisas da requerida, pois que de outro modo o tribunal estaria a defraudar o objectivo visado pela requerente, mandando prosseguir as duas providências com audição prévia da requerida, quando a requerente queria – em abstracto legitimamente no que se refere ao arresto de coisas da requerida – que esta fosse apanhada de surpresa.

            Note-se que, tendo a requerente pedido, a título principal, uma providência de entrega de coisa sua em poder da requerida, que, embora lhe tivesse chamado arresto devia seguir a forma de procedimento cautelar comum, e a título subsidiário a entrega de coisa da requerida que devia seguir a forma de procedimento de arresto, esta providência fica subordinada àquela e, não podendo seguir as duas juntas, a subsidiária é que fica prejudicada (por isso, quando os pedidos são incompatíveis, o tribunal deve, por força do art. 6/2 do CPC, “convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial, mediante a escolha daquele que pretende que seja apreciado na acção ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade” – Lebre de Freitas, A acção declarativa…, págs. 49/50).

                                                                                     *

Não se tratava de um arrolamento

            Entretanto, diga-se que a providência pedida não consubstanciava um arrolamento, hipótese colocada pela requerida.

            É que ao caso não interessava descrever ou especificar os bens. Quer a requerente quer a requerida não têm dúvidas sobre o preciso material que estava em causa (e sobre a sua titularidade).

            Como diz  Lebre de Freitas e outros (CPC anotado, 2º vol…, pág. 163 [e também nota 5 ao art. 406 = art. 424 depois da reforma de 2013]): “[…N]em sempre o arrolamento é a providência cautelar adequada à finalidade de conservação dos bens que estão em causa na acção. Se estes estiverem identificados e apenas se discutir a titularidade do direito […] sobre eles, ou se são ou não devidos (como objecto de obrigação de dare ou facere), a providência adequada é a inominada, cabendo ao caso o procedimento cautelar comum. Não importa já descrever ou especificar os bens, mas apenas apreendê-los e depositá-los ou entregá-los, a título provisório, ao autor. […]”

                                                                                          *

    IV

Da possibilidade de decidir, de mérito, desde já (art. 278/3 do CPC), porque os factos indiciariamente dados como provados não justificam o receio de lesão

      *

      A)

            Da impugnação da decisão da matéria de facto – pontos 23 e 24 dos factos provados.

            Na decisão da matéria de facto constam os seguintes pontos dados como provados:

         23 – A requerida não detém quaisquer bens móveis ou imóveis em seu nome.

         24 – A requerida tem poucas obras a seu cargo, tem dívidas para com fornecedores e apresenta-se em difícil situação financeira.

            E, face ao que a requerente vai dizer mais abaixo, anote-se que na decisão recorrida se disse que, das alegações da requerente, não resultaram indiciariamente provados os seguintes factos [ou melhor: as seguintes afirmações de facto]:

a) A requerente teve conhecimento de que a requerida é ré numa acção especial para cumprimento das obrigações pecuniárias, que corre termos na Secção Cível da Instância Local da Maia, Comarca do Porto, sob os autos do processo n.º 164076/14.6YIPRT.

b) A requerida tem como sua associada a empresa RB, S.A, que se situa nas instalações fabris da requerida.

c) Esta sociedade, RB, S.A., foi alvo de um processo especial de revitalização, que correu termos no 1º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, sob os autos do processo n.º TYVNG.

d) Em 31/01/2014, para fazer face à cobertura de prejuízos, os sócios daquela sociedade deliberaram uma redução do capital social, no valor de 462.000€.

            O tribunal recorrido fundamentou assim a sua convicção quanto a estas matérias:

         “[…]

     Foi, ainda, tendo por base o declarado pelo legal representante da requerente e pelas testemunhas supra mencionadas [todas as ouvidas] que o tribunal apurou que a requerida passa por dificuldades financeiras, não cumpre com as suas obrigações e não tem qualquer património em seu nome.

     Quanto à factualidade dada por não provada, o Tribunal assim a considerou por ausência de prova nesse sentido.”

            Contra isto, diz a requerida:

  1. […N]ão aceita os factos que foram dados como assentes pelo tribunal a quo para fundamentar a decisão de arresto de bens, concretamente, os factos dos pontos 23 e 24 da decisão que deferiu o arresto;
  2. A audição das testemunhas onde o tribunal ancorou a sua convicção, impõe decisão diversa: a este respeito oiçam-se os depoimentos das testemunhas CN, a minutos 5:00 a 7:28 da gravação; CA a minutos 4:30 a 5:30 da gravação; FC a minutos 6:40 a 8:20 da gravação e do representante legal, a minutos 9:15 a 12:10 da gravação.
  3. Ressalta à evidência dos depoimentos que não tinham qualquer conhecimento objectivo e directo sobre a situação da requerida, limitando-se a levantar suposições e a exprimir opiniões.
  4. Nenhum documento foi junto pela requerente a atestar que a requerida não tinha bens ou que tivesse dívidas para com terceiros.
  5. Ou seja, nenhuma prova foi produzida sobre os factos que o tribunal deu como provados sob os n.ºs 23 e 24, devendo os mesmos ser retirados da matéria assente com todas as consequências legais.

            A requerente respondeu que:

         [A]nalisados todos os excertos invocados pela requerida, com os quais visa demonstrar que não se verificam provados os factos 23 e 24, somos em crer que os mesmos de facto devem manter-se como provados.

         Uma vez que, conforme se alegou, desde logo, no procedimento cautelar, não se conhecem em concreto os bens móveis ou imóveis de que é proprietária a requerida. Não existindo património suficiente para garantia o crédito da requerente. Desconhecendo-se o volume de facturação da requerida. Dividindo a requerida as suas instalações fabris com uma empresa que se encontra em processo especial de revitalização (RB, SA). Existindo entre ambas relações familiares. Verificando-se deste modo, factos aos quais o tribunal não pode ficar indiferente, o que de facto se verificou, decidindo o tribunal a quo em conformidade com o mais amplo respeito pelos princípios da justiça e equidade.

         Mais se acrescenta que, os bens arrestados não pertencem à requerida mas sim à requerente; como bem explicaram as testemunhas.

         Neste sentido repare-se no depoimento da testemunha OP (também referido na sentença) que refere ter estado presente na altura em que foi levado a cabo o arresto, ou seja, a requerente foi lá “levantar” os materiais que havia fornecido à requerida para a esta executar uns trabalhos que se destinavam à C.

         Ora conclui-se que a requerente fornecia os materiais e os desenhos para os trabalhos a realizar pela requerida, e esta fornecia a mão-de-obra e os consumíveis.

         Esclarecendo todas as testemunhas ao longo dos seus depoimentos, como se pode verificar através do áudio, que os materiais levantados com o arresto são propriedade da requerida.

         Aliás a recorrida limitou-se a levantar os seus materiais, os quais não pode levantar na globalidade porquanto não foi admitido o arresto dos bens mecanizados.

         […]

         Vindo a testemunha GM, declarar, conforme áudio, que todos os materiais levantados pela requerente pertenciam-lhe (…) e não foram levantados os mecanizados apesar de também lhes pertencer.

         Conclui-se desde modo que, os recorridos [sic] apenas levantaram material que lhes pertencia.

         Não levantando qualquer material da requerida.

         Bem como não levantando o material mecanizado, não obstante também ser propriedade sua.

         Pois e conforme sublinha a referida testemunha, e cita a presente sentença, “do material fornecido pela requerente, para a obra, faltava transformar cerca de vinte toneladas e que na altura do arresto, o material que foi retirado das instalações da requerida, pertencia à requerente A e não foi retirado qualquer material que não pertencia à requerente.”

         Deste modo, dúvidas não restam de que os bens pertencem de facto ao [sic] requerente e que o tribunal a quo não poderia ter decidido de modo diferente do que decidiu.

*

            Decidindo:

         Diga-se desde já que a argumentação da requerente, nas contra-alegações, aponta claramente para a confirmação da posição da requerida, já que a requerente se limita, por um lado, a invocar para sustento da sua posição parte daquilo que tinha alegado na petição inicial, sem ter em conta que essa parte das alegações foi dada como não provada; e, por outro lado, invoca o depoimento das suas testemunhas para algo que não está minimamente em causa nos pontos 23 e 24, isto é, para provar que o material apreendido era seu e não da requerida (o que é, de resto, pressuposto do que foi sendo dito acima e que ninguém discute).

            De qualquer modo, passa a transcrever-se tudo aquilo que sobre estes pontos de facto (23 e 24) se pode aproveitar das declarações e depoimentos produzidos (o que não foi feito nem pela requerida nem pela requerente, sendo feito agora por este tribunal da relação):

            O representante legal da requerente (arrolado logo na petição inicial, como agora é hábito, como se se tratasse de uma vulgar testemunha) diz de 6:17 a 6:33, com perguntas que sugerem as respostas: tenho, tenho [medo], como é uma empresa que está no plano PER [processo de revitalização], também, quer dizer, se [?] o grupo [?] estava; ele estava a dizer que estava pagar dívidas aos fornecedores, tenho medo que ele me venda ou que use o meu ferro noutras obras; a partir de 8:36, a perguntas da Srª juíza, diz, em uníssono com a sua advogada, que a empresa que está em PER é outra, uma empresa do grupo, dele [requerida] também [depois é mesmo só a advogada a “responder” até 8:54]; diz que havia um plano de pagar 50.000€ por mês [percebe-se a seguir que se está a referir à outra empresa, que, segundo a requerente, também é dele/requerida]; diz que a requerida precisava de dois soldadores, ele pediu a um fornecedor para o ajudar, para lhe ceder dois soldadores e o fornecedor disse que para esse homem nem pensar; mandei para lá dois soldadores mas fui eu a pagar; Pergunta: portanto, mau pagador não é? E muita má organização naquela empresa; os empregados da requerida, com quem ele falou, diziam que não recebiam, tinham muitos salários em atraso; não sabe se a empresa tem bens, nem se as [?] são dele. Pergunta: mas fizeram uma pesquisa para saber se há bens em nome dela? E o legal representante da requerente responde: Não deve ter nada, porque a empresa que fecharam em W tinha umas motas [?] que ele me propôs para as comprar mas como aquilo estava em leasing, aquilo veio de uma insolvência, não me meti no negócio; depois, novamente a perguntas da sua advogada, responde que ele não me deixava levantar ferro nenhum, primeiro tinha que pagar. Pergunta: tinha que pagar o que não fez e depois é que levantava o ferro? O depoente vai concordando. “Pergunta”: vocês na metalomecânica conhecem-se uns aos outros. Portanto, a fama está má, desta empresa. “Resposta”: Muito má. Em qualquer lado. Ad: De que não cumpre, que não paga? Isso já constava no mercado, há mais de dois anos, que ele era muito mau pagador. Sim, é vulgar, os vendedores passam pelas empresas e contam tudo […]].

            Quanto a estas declarações repare-se, desde logo, que são feitas pelo legal representante da requerente, parte interessada na procedência das providências requeridas. Por outro lado, a sustentação do receio que o declarante invoca tem (i) a ver com o que se passa com uma outra empresa que não se provou que fosse associada da requerida, (ii) com o que lhe é dito por outro fornecedor que não identifica nem se sabe se terá razões para dizer o que disse; e (iii) com o que lhe terá sido dito por trabalhadores da requerida que não identifica e que não há prova nenhuma que de facto lhe tenham dito algo; diz expressamente que não sabe se a empresa tem bens e vê-se, pela resposta que dá a pergunta expressa, que não fez nenhuma pesquisa para saber se há bens em nome dela. Quanto à referência às motas (máquinas?) até se poderia dizer que serviria para provar que a requerida tem bens… Quanto ao impedimento do levantamento das máquinas vê-se que se trata de um impedimento sustentado no convencimento da requerida de que a requerente lhe está a dever dinheiro e não em qualquer vontade de ficar com os bens. Quanto à fama da requerida, ela não está baseada em nada de palpável, com nova invocação de vendedores anónimos e sem pormenores que convençam que tenha havido de facto vendedores que tenham dito o que é alegado.

            A testemunha CN é filho do legal representante da requerente, ou seja, do anterior depoente; diz a partir de 5:05: Ad: A R é uma empresa que está bem ou mal? O que é que se consta por aí? T. O que eu ouvia, e que na altura em que adjudicámos a obra, eu sabia que ela muito bem de saúde não estava; […] na altura, umas semanas antes, ele/[requerida] tinha falado – eu estava lá com o meu pai – que se tivesse trabalho dava jeito; no fundo estava a pedir trabalho. Ad: O seu pai lá cedeu. Mas ele próprio disse que a empresa estava mal, é isso? T: Estava em revitalização, muito bem de saúde não está[?]. Ad: Ele disse isso? T: Eu só tenho é conhecimento daquilo que é público. Ad: Mas que os fornecedores dizem, ou os trabalhadores, donde é que se ouve essas…? T: Os trabalhadores, eu ouvia, que não podiam fazer horas, não podiam trabalhar, se não iam receber. Pois, não recebiam, não é? Eu falava com o departamento de produção, … que me fornecia a informação, que era: o patrão não deixa sair o material, ele não está aqui, deu ordens para não deixar sair, hoje não estou a trabalhar na tua obra porque o patrão não deixa. Ad: Portanto, além de demonstrar má organização, esta empresa notava-se que os funcionários também estavam desmotivados porque não recebiam, não é assim? T: É, exactamente. Ad: Olhe, sabe se a R é assim dona de muita coisa? Se é uma empresa que tem património? Ou…? T: Desconheço. Advogada: Desconhece que tenha património. Até porque o próprio Sr. G [requerida] lhes foi dizendo que as coisas estavam más, não é? T: Estavam más, até me chegou a dizer que tinha lá umas máquinas que lhe interessava despachar, que não tinha trabalho suficiente para… Ad: Já quer vender maquinaria, não é? Sim. Advogada: Pronto, as coisas estarão realmente muito más.

            Quanto a este depoimento diga-se que, para além de ser feito pelo filho do legal representante da requerente, parte interessada, se baseia no que “consta”, sem identificar em concreto a fonte do conhecimento; para concluir pela má saúde da requerida invoca o processo de revitalização que já se sabe dizer respeito a outra empresa; invoca também aquilo que lhe foi dito por trabalhadores da requerida, sem os identificar e sem contar nada que indicie que de facto aqueles lhe disseram alguma coisa; quanto ao que diz relativamente ao impedimento da saída do material, revela que estava baseado na convicção da requerida em que a requerente lhe estava a dever dinheiro; responde expressamente que desconhece se a requerida tem património; e fala em máquinas que a requerida quererá vender, o que até aponta – se fosse verdade – para que esta afinal tivesse bens; a falta de trabalho de que fala, anula-se com as declarações do pai que diz que a requerida até precisava de soldadores.

            A testemunha CA, motorista, conta um episódio de um impedimento de retirada de material e depois a advogada da requerente pergunta-lhe (4:30): não sabe mais sobre isto, não é? T: Não sei mais nada. Ad: Da R não conhece, se é uma empresa que está bem, isso não sabe? T: Por aquilo que me consta ela já esteve falida e acho que estava prestes a falir outra vez. Ad: Ah sim? E então? Ouviu isso…? T: Ouvi isto por outros motoristas, colegas meus. […] Ad: Então que a empresa estava mal? Mas que pagava bem às pessoas, que não pagava, isso não sabe? T: Isso já não posso dizer. Ad: Mas isso constava-se lá entre os motoristas é, que a empresa….? T: Exactamente. A gente junta-se, fala-se de uma empresa, fala-se de outra, ah, fulano está falido, não sei quê. Ad: Pronto, é o que se consta, não é, é o que se consta? T: Ora, comentar mais não sei… Ad: Porquê não sabe, mas é o que se consta na praça, não é? Que estava falida, que está para fechar? Exactamente.

            Quanto a este depoimento diga-se que é notório que se baseia apenas no “diz-se diz-se” e no que consta não se sabe a quem e porquê.

            A testemunha FC, empregada de escritório, vive em união de facto (em vez de solteira, que consta da acta; não lhe é perguntado se vive em união de facto com alguém da requerente, o que teria interesse dada a forma como a testemunha se pronuncia. 2:03 a 2:16: T: Mandei entregar de imediato lá o material […] ouvi assim umas boquinhas até de alguns fornecedores que estavam admirados como é que eu mandei lá entregar o material; […] 2:41 a 3:00: T: Depois de entregar o material eles não nos atendiam os telefones, não nos davam […] produção (?) de obra; […]; 4:30 a 4:49: T: mandei lá um carro, eles não autorizaram cargas… Ad: eles não deixaram… T: Eles não deixaram, exigiram o pagamento antecipado…. Advogada: … do ferro que não transformaram. Portanto, eles querem cobrar algo que ainda não… T: não fizeram. E previsto contratualmente não foi o acordado. […] 4:56: T: … até porque eu sei que são uma empresa que tem os seus problemas financeiros…; 5:05: Ad: Quando diz que é uma empresa com problemas financeiros, que conhecimento é que tem, o que é que sabe da R? T: Uuuu…, eu comecei assim a ouvir assim umas bocas dos fornecedores. Porque mesmo os próprios fornecedores… que eu entregava, eles… Ad: Admiravam-se. T: Admiravam-se por completo como é que eu estava a entregar lá material, como é que uma empresa daquelas ainda trabalhava. Houve um mesmo que me mandou assim uma boca, espero que não fiques sem o material. Ouvi mesmo assim uma expressão dele. 5:29: Ad: Entre os próprios fornecedores. T: Os próprios fornecedores. Advogada: Portanto, é público a dificuldade. T: É, é. E foi quando eu comecei a tentar inteirar-me um bocadinho, a investigar um bocadinho a empresa e percebi que era uma empresa sem nada. Ad: Fizeram pesquisas de bens desta empresa, eu penso que com o auxílio até dos nossos escritórios, não foi? E chegaram à conclusão que não têm bens nenhuns. T: Nenhuns. Ad: Nem veículos sequer têm, não é assim? Prédios muito menos. T: Nada, nada. Ad: Nada, não têm nada. Vocês neste momento têm receio? T: Muito, muito, que eles usem o nosso ferro quer para outros clientes, transformem para outros clientes, quer para venda para fazer dinheiro. Ad: para realizar dinheiro, não é? Portanto, é este o vosso medo neste momento. T: É. 6:12: Advogada: Olhe, F, o vosso ferro, eu não, mas presumo que vocês que estão habituados conseguem identificar qual é o vosso ferro? T: Sim. […]. 6:32: Do dia que lá foram em diante penso que nunca mais conseguiu falar com estas pessoas? T: não, não, nunca mais se dignaram atender telefones. […]

            Por fim, quanto a este depoimento e tendo em conta a análise que já foi feita dos três anteriores, diga-se que levanta muitas dúvidas o facto de a testemunha falar em termos tão pessoais de tudo: ela mandou, ela vai ficar sem o material; não nos atendiam…; as “bocas” que terá ouvido não identificou de quem as ouviu; quanto às pesquisas que a testemunha diz ter feito, ou melhor, que a advogada da requerente diz terem feito, elas de certeza que teriam produzido algum resultado material (documentos) que poderiam ter sido juntos ao processo; não o tendo sido e não tendo a testemunha dito que pesquisa foi feita e qual o resultado concreto que produziu, não convence minimamente.

            Em suma, as declarações e depoimentos ouvidos não convencem minimamente de que seja como consta dos pontos 23 e 24 dos factos dados como indiciariamente provados, pelo que os mesmos são agora dados como não provados.

                                                                                         *

Os factos

            Para a decisão da questão que antecede, importa, como resulta do que antecede, ter presentes os factos dados indiciariamente como provados na decisão que deferiu o “arresto” (já sem os pontos 23 e 24 acabados de afastar dos factos indiciariamente provados):

1 – A requerente é uma sociedade anónima que se dedica ao fabrico de estruturas de construção metálicas, compra e venda de bens imobiliários, promoção e venda imobiliária e à construção de prédios para venda.

2 – A requerida é uma sociedade anónima que se dedica à metalomecânica, projectos e instalações industriais.

3 – Em 11/05/2015, a requerente e a requerida assinaram um contrato de adjudicação de empreitada, cuja cópia se encontra junta a fls. 10 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4 – Em 15/06/2015, o referido contrato sofreu uma alteração, no que concerne ao preço que havia sido previamente fixado.

5 – Tal empreitada destinava-se à execução de uma obra localizada em W, Vila Nova de Gaia, obra essa que implicava o fabrico de estrutura metálica para coberturas, que é especialidade da requerida.

6 – Para tal execução a requerente forneceria à requerida a matéria-prima, o transporte e os desenhos de preparação, tal como resulta do teor do contrato de adjudicação.

7 – A empreitada em causa teve início em 11/05/2015.

8 – O prazo para a sua execução e conclusão era de um mês e oito dias a contar daquela data, isto é, até dia 19/06/2015.

9 – Na decorrência da alteração referenciada em 4, foi também alterado o prazo de entrega da obra, ficando fixado que a requerida entregaria a totalidade da obra até ao dia 02/07/2015.

10 – A requerida aceitou ser adjudicatária da obra e comprometeu-se a executá-la e a entregá-la na data prevista.

 11 – Os prazos de execução da obra acordados nunca foram respeitados.

12 – Não obstante, a requerente, face à urgência da obra em causa, comprometeu-se a aumentar o valor da obra e a auxiliar a requerida no corte e pré-montagem de peças

13 – Tendo até a requerente efectuado pagamentos adiantadamente, conforme iam sendo emitidas as facturas, apesar de não ter sido a forma de pagamento acordada pelas partes no contrato de adjudicação, uma vez que o mesmo previa o pagamento aquando da entrega da totalidade das peças transformadas.

14 – Ainda assim, a requerida não cumpriu os prazos de execução e entrega contratualmente fixados.

15 – A requerente entregou à requerida um total de 127.357,93kg de aço para transformar, dos quais a requerida apenas transformou, e com abundantes defeitos, 88486,54.

16 – A requerida detém em seu poder 34.021,39Kg de aço que são pertença da requerente.

17 – Para conclusão da obra, estão em falta trabalhos de fabrico de estrutura metálica, que a requerida se obrigou pelo contrato a executar, sendo que o material entregue, correspondente à cobertura 3, foi entregue com defeito, deficiência essa que foi reparada e suportada pela requerente.

18 – Tendo em conta que a requerida não concluiu os trabalhos, a requerente, com o acordo daquela, dirigiu-se, na primeira semana de Agosto de 2015, às suas instalações para levantar o restante material.

19 – No momento em que a requerente se preparava para proceder ao levantamento dos materiais, a requerida impediu o seu carregamento.

20 – Assim, encontram-se nas instalações da requerida diverso material em aço, pertencente à requerente, constituído, nomeadamente, por chapas, perfis e tubulares não mecanizados que perfazem um total de 34.021,39 Kg, cujo valor ascende a 28.455,50€.

21 – Não obstante as interpelações da requerente, efectuadas pela via escrita, a requerida recusa-se a entregar o material pertencente àquela, evitando sistematicamente o contacto com a requerente.

22 – A requerente teme que a requerida se desfaça, utilizado para si e para obras de terceiros, o aço de que a requerente é proprietária.

            Depois da audição da requerida, o tribunal recorrido pegou na oposição da mesma, teve em consideração (nos pontos 1 a 6 que por isso não serão transcritos) as afirmações de facto da petição inicial que a oposição tinha aceitado como verdadeiras (ou seja, os arts. 1, 2, 5/6, 7 e 18 da petição inicial, correspondentes aos pontos 1, 2, 5, 7 e primeira parte de 15 acabados de transcrever) e depois teve ainda como indiciariamente provados mais as seguintes afirmações de facto da oposição (nada dizendo quanto às afirmações de facto feitas na petição e dadas como provadas na decisão que deferiu o arresto):

[…]

7 – A requerente enviou à requerida, em 08/06/2015, a “adjudicação” nº. 036/15, datada de 11/05/2015, que foi rejeitada pela requerida refutando, entre outros aspectos, as condições de pagamento e os prazos de entrega de material transformado;

8 – Em 08/06/2015, a requerida não tinha ainda em seu poder parte das preparações, desenhos de execução, cuja apresentação cabia à requerente e as que estavam eram sistematicamente alteradas por esta;

9 – O CJ, aquando da negociação do contrato, informou que a obra era toda como o desenho que trazia consigo, tendo-lhe sido dado um preço para a fabricação igual ao do desenho de 0,25€/kg;

10 – Porém, quando a requerida começou a fabricar, as exigências da empreitada eram diferentes das inicialmente comunicadas e orçamentadas;

11 – Recebido tal desenho, foi realizada uma reunião com o representante da requerente, CJ, para se ajustar os preços em função da dificuldade da obra a produzir, bem como para ajustar prazos;

12 – Em 11/05/2015, a requerida não tinha na sua posse os materiais necessários, nem os desenhos e preparações correspondentes, nem se tinha comprometido a concluir a execução da empreitada em 19/06/2015 ou em 02/07/2015;

13 – Grande parte dos desenhos e preparações que a requerente enviava à requerida chegavam com erros, tendo a requerida que pôr os seus serviços técnicos a rever o trabalho de engenharia da requerente;

14 – Em 02/07/2015, a requerente não tinha ainda entregado à requerida a totalidade dos materiais, como os desenhos e preparações, e das preparações entregues, mais de 50% estavam erradas;

15 – O que foi depois acordado entre a requerente e a requerida é que o preço seria de 0,47€/kg para toda a obra;

16 – Entretanto, a requerente começou a levar algumas estruturas que estava previsto serem fabricadas pela requerida;

17 – A requerida exigiu o pronto pagamento contra a entrega dos materiais produzidos;

18 – O material transformado não tinha defeitos, nem os mesmos foram comunicados à requerida;

19 – A requerida apercebendo-se de que o material comprado pela requerente não era o indicado para o fabrico de determinado tipo de obra, enviou fotos e email em 29/07/2015 à requerente, alertando para o facto;

20 – Em 04/08/2015, o CJ, administrador da requerente, ligou ao Eng.º GP, colaborador da R, solicitando que preparasse o material que estava cortado e furado dos contraventamentos (ou travamentos), que ia mandar carrega-los, o que foi acatado pela requerida;

21 – A requerente, enviou o email de 05/08/2015, informando que o carro da requerente está nas instalações da requerida para carregar o material pertencente à A de imediato, alegando o incumprimento da requerida;

22 – A requerida não se opôs ao levantamento do material, mas mediante o pagamento pela requerente do serviço efectuado;

23 – A requerente, em 05/08/2015, enviou email à requerida onde refere “Apresente as contas para se pagar de imediato”;

24 – A requerida por email de 05/08/2015, solicitou à requerente para confirmar que se podia levantar o cheque, ao que esta no mesmo dia, respondeu que “o cheque está pronto”;

25 – A requerida permitiu que o motorista da autora carregasse as paletes das chapas cortadas, furadas e rebarbadas;

26 – O motorista da requerente, aproveitando a ausência do Eng.º GP, que se deslocou ao escritório para efectuar a guia de transporte do material carregado, arrancou sem a mesma;

27 – O representante da requerida deslocou-se às instalações da requerente para levantar o referido cheque, acabou por regressar sem o mesmo;

28 – Ainda ficou na posse da requerida algum material que está mecanizado, e algum não produzido;

29 – A requerida é PME líder, pelo seu desempenho reconhecido pelo IAPMEI em 21.09.2015 e sob proposta voluntária de duas Instituições de Crédito;

30 – A requerida tem as suas contribuições e impostos em dia.

                                                      *

                            A contradição do resultado da prova produzida

            O resultado alcançado devido à actuação do tribunal recorrido é ilógico.

            Assim, por exemplo, na 2ª parte do ponto 15 dos factos provados da decisão que deferiu o “arresto” dá-se como provado o afirmado na petição, ou seja, a existência de defeitos no material transformado e no ponto 18 dos factos provados da decisão que julgou improcedente a oposição, dá-se como provado o afirmado nesta, ou seja, que o material transformado não tinha defeitos.

            Ou seja, temos dois julgamentos de facto distintos sobre articulados distintos: primeiro, o tribunal de Barcelos pegou na petição de arresto e com base na prova da requerente deu como provadas quase todas as afirmações de facto aí feitas. Depois, o tribunal da Maia pegou na oposição de arresto, aceitou a admissão por acordo de alguns dos factos da petição inicial e, no resto, que era no essencial matéria de impugnação da petição inicial, actuou como se a oposição fosse uma petição e deu como provados, com base na prova da requerida, quase todas as afirmações de facto feitas na oposição.

            Não era isto que tinha de ser feito.

            A oposição, na parte que funciona como impugnação das afirmações de facto feitas na petição e tem uma versão directamente oposta à desta, não pode dar origem a um novo conjunto de afirmações de facto como provadas sem se dizer nada quanto à anterior versão. Ou seja, pelo menos em relação a afirmações de facto contraditórias, o tribunal tinha que dizer qual é que estava provada e qual é que não estava, não podendo deixar as duas como provadas.

            No caso, no entanto, isto não tem influência, como se irá vendo, na decisão de direito e por isso vai-se continuar a decidir as questões levantadas pelas outras conclusões.

            O que antecede serve, no entanto, para esclarecer que, apesar de na nova decisão da matéria de facto, subsequente à oposição, não constar a matéria dos pontos 23 e 24 da anterior, tal não queria dizer que o tribunal da Maia tivesse considerado que aquela matéria não se provava, mas apenas que não se pronunciou sobre ela e daí que se tornasse necessário o conhecimento, por este tribunal de recurso, da impugnação da decisão daquela matéria (o que levou, como se viu, ao afastamento, dos pontos 23 e 24 dos factos provados).

*

B) 

Do recurso sobre matéria de direito

Da falta de prova do fundado receio

            A decisão que deferiu o “arresto”, depois de invocar os pontos de facto 18 a 24 que tinha dado como indiciariamente provados, diz em relação a este receio:

         “Em face disto, imperioso se torna concluir que existe um fundado receio de perda da garantia patrimonial por parte da requerente, pois tal factualidade revela que a requerida atravessa, a nível financeiro, um momento difícil o que, necessariamente, acarreta a tomada de atitudes enquadráveis na oneração ou dissipação do seu património, sendo mais premente tal perigo relativamente à matéria-prima pertencente à requerente, já que a mesma pode ser utilizada pela requerida em outras obras.”

            A decisão recorrida (que julgou improcedente a oposição), depois de uma longa descrição dos pressupostos e requisitos do arresto e do fundado receio, com ampla invocação de doutrina e jurisprudência, bem como sobre o direito de retenção invocado pela requerida, sobre o caso concreto diz apenas o seguinte:

         “Assim sendo, perante a factualidade dos autos e tudo quanto exposto fica, não poderemos deixar de concluir que se mantêm inalterados os pressupostos que levaram o decretamento da presente providência, que embora tivesse sido decretada como “arresto”, poderia, todavia, muito bem ter sido convolada para providência cautelar não especificada “de entrega judicial de bens”, mas, fosse como fosse, não deixava de improceder a oposição deduzida pela requerida.”

            Contra isto, diz a requerida:

  1. […N]ão foram provados factos concretos donde pudesse derivar o justo receio de perda de garantia patrimonial da requerente.

         […]

  1. Mais demonstrou que não se encontra numa situação financeira difícil, sendo PME líder, tendo as suas contribuições e impostos em dia.

         […]

  1. Independentemente do procedimento cautelar que fosse requerido, existem pressupostos que são transversais a todos os procedimentos cautelares, nomeadamente, o periculum in mora.
  2. O que o tribunal a quo não curou de verificar se estava preenchido.

            A requerente nada diz de concreto sobre o assunto.

            Decidindo:

            Afastados os pontos 23 e 24 dos factos provados, deixa de haver qualquer base factual susceptível de ser aproveitada para se poder concluir que a requerente tinha fundado receio de que a requerida lhe causasse lesão grave e dificilmente reparável do seu direito (art. 362/1 do CPC, equivalente ao justificado receio exigido pelo procedimento de arresto: art. 391 do CPC).

            Ou seja, não estavam preenchidos os requisitos do procedimento cautelar comum (de restituição do material) e a restituição não devia ter sido ordenada. Isto é, os factos provados não justificavam o receio da requerente (art. 365/1 do CPC).

            Isto considerando que, como dizem Lebre de Freitas e outros (CPC anotado, vol. 2, págs. 6 e 37), o periculum in mora, “deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer acção: trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito.” “[…T]em de ser objecto de prova que leve à formação de um juízo de suficiente certeza sobre a sua realidade […] e […] há-de assentar no mesmo juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança que, tida em conta a relatividade do conhecimento humano, é exigível em qualquer demonstração probatória feita em juízo”. Por fim, o receio da requerente, “há-de ser objectivo, apoiando-se em factos de que decorra a seriedade da ameaça […]” (ainda Lebre de Freitas e outros, CPC…, pág. 7 – neste sentido, vão os inúmeros exemplos que o autor dá de causa idónea a provocar esse receio nas págs. 125/126 da mesma obra; no mesmo sentido, ainda, veja-se Marco Carvalho Gonçalves, Providências cautelares, págs. 210 a 215 e mais à frente, a propósito do arresto, págs. 229 a 239).

            Ora, a requerente apenas logrou provar que teme que a requerida se desfaça, utilizando para si e para obras de terceiros, do aço de que a requerente é proprietária, mas não ficou provado um único facto que justifique esse receio (ponto 22 “da decisão de arresto”).

            A recusa da entrega do material (pontos 18, 19 e 21 “da decisão de arresto”) não quer dizer que a requerida pretenda desfazer-se do mesmo ou utilizá-lo ou apropriar-se dele (tanto mais que se dão como indiciariamente provados os factos dos pontos 22 a 27 “da decisão da oposição”, o que quer dizer que: [i] a requerida estava antes a tentar receber o pagamento do preço que estava em dívida por parte da requerente, dívida que a requerente não punha em causa como resulta desses pontos, e [ii] o acordo para a retirada do material estava dependente do pagamento).

            Acrescente-se que, mesmo que se tivessem aceitados como provados os pontos de facto sob 23 e 24, tal não justificava o receio da requerente: o facto de alguém não ter bens, ter poucas obras, ter dívidas para com fornecedores (assim, sem mais nada, tal facto não tem nada de estranho: qualquer comerciante tem dívidas para com fornecedores; seria diferente se, por exemplo, se provasse que o pagamento das dívidas estava em mora) e estar em difícil situação financeira (seja isto o que for, não é, só por si, uma situação de insolvência nem de pré-insolvência) não justifica que se tema que ela se aproprie, de forma directa ou indirecta, de coisas de outrem ou do seu valor. De um ponto ao outro vai um grande salto que tem de ser demonstrado através de factos concretos (neste sentido confronte-se a situação dos autos com os exemplos dados por Lebre de Freitas com recurso a inúmeros casos jurisprudenciais, já referidos acima; ou mesmo com os inúmeros exemplos dados na decisão que julgou improcedente a oposição ao arresto, com recurso a inúmera doutrina e jurisprudência).

            Como diz Marco Carvalho Gonçalves, Providências cautelares, págs. 211/212, com invocação de vária jurisprudência no mesmo sentido, “uma providência cautelar será injustificada se o periculum in mora nela invocado se fundar num juízo hipotético, genérico, abstracto, futuro ou incerto, ou num receio subjectivo, sustentado em meras conjecturas. É o que sucede, por exemplo, com uma providência cautelar de arresto fundada exclusivamente no receio de que o requerido possa vir a praticar eventuais actos de alineação ou oneração do seu património, não sendo alegado [ou provado, acrescenta-se agora neste acórdão] qualquer facto concreto ou objectivo susceptível de demonstrar tal receio.”

            Ora, como diz Teixeira de Sousa: “Se faltar o periculum in mora, ou seja, se o requerente da providência não se encontrar, pelo menos, na iminência de sofrer qualquer lesão ou dano, falta a necessidade de composição provisória e a providência não pode ser decretada. Quer dizer, esse periculum é um elemento constitutivo da providência requerida, pelo que a sua inexistência obsta ao decretamento daquela” (Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 1997, 2ª edição, pág. 232).

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                                            Consequências

            A decisão de mérito – de absolvição do pedido – deve prevalecer sobre uma decisão de anulação de processado que tivesse em vista salvaguardar as garantias de defesa da requerida (art. 278/3 do CPC – neste sentido: Miguel Teixeira de Sousa, Sobre o sentido e a função dos pressupostos processuais – algumas reflexões sobre o dogma da apreciação prévia dos pressupostos processuais na acção declarativa – ROA, 1989/I; Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, 3ª edição, Coimbra Editora, págs. 48 e 49; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC vol. 1.º, 3ª ed., Coimbra Editora, 550; Paula Costa e Silva, Saneamento e condensação no novo processo civil, em Aspectos do novo processo civil, Lex 1997, págs. 218 a 223; Paulo Pimenta, A fase do saneamento do processo antes e após a vigência do novo [refere-se à reforma de 95/96] CPC, Almedina, 2003, págs. 264 a 278).

            Note-se que este fundamento da improcedência da providência é válido em relação às duas providências que foram pedidas: em relação às duas tinha que ter ficado provado o perigo de lesão.

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            O que antecede torna inútil a apreciação das demais questões levantadas pelo recurso da requerida ou de outros argumentos sintetizados nas conclusões e daí que não se transcrevam as outras conclusões do recurso da requerida.

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            Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por esta que julga procedente a oposição e em consequência revoga-se o arresto decretado, ordenando-se o levantamento da apreensão do material, que deve ser devolvido à requerida pela depositária do mesmo.

            Custas do procedimento do arresto e do recurso pela requerente.

            Porto, 10/08/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto