Processo do Juízo Local Cível de Ponta Delgada – J4

              Sumário:

I. Sem se afastar a possibilidade de anulação de vendas feitas por Administradores de Insolvência com preterição de formalidades legais, no entanto, em princípio, ela não conduz à nulidade das vendas (art. 195/1 do CPC), mas à responsabilidade pessoal do AI e à justa causa para destituição do mesmo das respectivas funções (arts. 164/2, 161/1 e 4, 164/3, 163, 59 e 56 do CIRE).

II. De qualquer modo, no caso, a omissão cometida não provocaria uma nulidade, nem ela teria sido arguida tempestivamente (arts. 199/1 e 149/1 do CPC).

 

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

 

           1. Nestes autos de insolvência, o B-SA, é credor hipotecário.

           2. No dia 07/04/2016, o Administrador da Insolvência escreveu ao B o seguinte: para efeito de liquidação do activo, vem notificá-lo para, no prazo de 10 dias, enviar ao AI relatório de avaliação do imóvel apreendido para a massa insolvente [sobre o qual o B beneficia de hipoteca] ou indicar os valores base e mínimo de venda.

         3. No dia 18/04/2016 o B respondeu ao AI indicando como valor base para a venda da totalidade do prédio o de 36.520€ e como modalidade da venda do bem a venda a abertura de propostas em carta fechada.

          4. Depois disso e até 20/06/2016 o B não foi notificado de mais nada pelo AI.

         5. A venda do imóvel foi entretanto publicitada em 28/05/2016 (sendo o valor base de 36.520€ e a modalidade a da venda através de propostas em carta fechada), o anúncio foi junto aos autos a 06/06/2016 e a abertura das propostas ocorreu no dia anunciado, 13/06/2016.

          6. Por carta datada de 14/06/2016, recebida pelo B em 20/06/2016, o AI notificou-o da realização da diligência, bem como da aceitação da única proposta apresentada por terceiro no valor de 38.000€, junto com cheque a favor da massa insolvente, no valor correspondente a 20% da proposta.

        7. Após tal notificação, o B requereu que lhe fosse remetido o anúncio da publicitação da venda, o que veio a suceder, tendo verificado que a venda do imóvel foi publicitada em 28/05/2016 e ocorreu em 13/06/2016.

      8. A 29/09/2016, o B veio requerer que fosse declarada a nulidade de todo o processado posterior à indicação da modalidade de venda e do valor base feita por si e, consequentemente, que fosse declarada nula a venda realizada em 13/06/2016 e ordenada a notificação do AI para que procedesse a novo agendamento da venda, sendo o B notificado da publicitação da mesma com a devida antecedência para decidir se pretende intervir na venda.

           9. Está junto a fls. 36v/37 o título de transmissão, com data de 01/07/2016.

           10. O B tomou conhecimento, através de um despacho judicial de 03/06/2016 de que fora escolhida pelo AI a modalidade de venda através de abertura de propostas em carta fechada e designado o dia 13/06/2016 para a abertura das propostas. Tal despacho foi notificado ao credor através de carta elaborada nesse dia (cfr. fl. 288 dos autos principais, ref. 42852216, e notificação com a ref. 42857183 [estes documentos não constam deste apenso de recurso em separado, mas foram referidos no despacho recorrido e o credor recorrente não os pôs em causa; parenteses feito por este acórdão]).

          11. Tal requerimento foi indeferido por despacho de 09/02/2017.

         12. O B1-SA, recorre deste despacho, para que seja revogado e substituído por outro que dê provimento à sua pretensão transcrita em 8.

          13. Não foram apresentadas contra-alegações.

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         A questão a decidir é a de saber se o processado desde o momento referido no ponto 3 do relatório que antecede deve ser anulado.

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            Os factos que interessam à decisão são os que constam dos primeiros dez pontos do relatório que antecede.

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            O despacho recorrido tem a seguinte fundamentação (em síntese e com numeração deste acórdão):

  1. Das anotações de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda ao art. 164 do CIRE [notas 5 a 7 da 3ª edição da Quid Juris, Lisboa, 2015, págs. 617/618] e dos acs. do Tribunal da Relação do Porto de 16/09/2014, proc. 1040/12.2TBLSD­G.P1, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 28/07/2008, proc. 1566/08-2, resulta que o eventual incumprimento de tais formalidades [as previstas no 164/2 do CIRE] não configura a prática de uma nulidade, nem determina a invalidade da venda.
  2. De todo o modo, o AI fixou a modalidade da venda e o valor base dela, na modalidade e no valor que haviam sido indicados pelo credor garantido.
  3. Por outro lado, o credor tomou conhecimento antes da data designada para a abertura das propostas, pelo menos, de que fora escolhida pelo AI a modalidade de venda através de abertura de propostas em carta fechada e de que fora designado o dia 13/06/2016 para a abertura de propostas. Ou seja, tomou conhecimento disso, em tempo útil, pelo que, querendo, poderia ter indagado o AI sobre o preço base fixado (sendo certo que sabia qual fora o preço base que indicara) e exercido em tempo a faculdade prevista no artigo 164/3 do CIRE.
  4. Ademais, o próprio credor reconhece que, por carta recebida em 20/06/2016, tomou conhecimento do acto de abertura de propostas e da aceitação da proposta de aquisição do imóvel por 38 000€.
  5. Ora, a aceitação da proposta não é a concretização da venda (a qual só se concretiza depois de pago o restante preço e emitido o titulo de transmissão – cfr., entre muitos outros, o ac. do TRP de 20/11/2014, proc. 810/09.3TBBGC-B.P1, no qual se lê que, ao contrário do que sucede na venda negocial, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, ou seja, não fica dependente da entrega da coisa e do pagamento do preço, diferentemente sucede na venda executiva, porquanto nela os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o titulo de transmissão, ou seja, a transferência de propriedade apenas ocorre com a emissão do titulo de transmissão), pelo que se deve entender que, para todos os efeitos, o credor teve conhecimento, em 20/06/2016, da alineação projectada (embora não seja, exactamente, a tal alienação que a norma directamente se reporta, não podemos deixar de entender que, no momento em que o credor recebeu, em 20/06/2016, a comunicação em causa, tomou conhecimento de uma potencial alienação, uma vez que a mesma não estava, ainda, concretizada), pelo que, a partir de tal data, poderia ter exercido a faculdade prevista no artigo 164/3 do CIRE, o que não fez, apresentando-se, antes, a arguir a nulidade da venda, a qual, como já dissemos, não se verifica.
  6. Deste modo, entendemos, por um lado, que a falta de informação, ao credor hipotecário do valor base fixado não determina a nulidade dos actos posteriores, máxime, da venda, e, por outro lado, que tal falta de informação se deve considerar sanada com o conhecimento pelo credor, em 20/06/2016, do acto de abertura de propostas e da aceitação da proposta de aquisição do imóvel por 38.000€.

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            O credor recorrente entende que isto está errado pelo seguinte (com alguma síntese e numeração deste acórdão):

  1. O recorrente não foi informado do valor base fixado nem da data projectada para a venda do imóvel no prazo de uma semana nem em tempo útil para querendo propor a aquisição do bem por preço superior ao da alienação projectada ou valor base fixado tal como previsto no artigo 164/3 do CIRE.
  2. A falta de informação em tempo útil das condições de venda e da data da diligência de abertura de propostas em carta fechada é prejudicial dos interesses dos credores, dos insolventes e da massa insolvente, na medida em que, é essencial para o credor apresentar proposta na diligência de venda ou analisar e tomar posição quanto às propostas que forem então apresentadas.
  3. O recorrente entende que o AI violou o preceituado no artigo 164/3 do CIRE, e, por isso, foi cometida uma nulidade, nos termos conjugados do disposto nos artigos 164 do CIRE e 195 do CPC (aplicável ex vi o disposto no art. 17 do CIRE), que influiu na decisão da causa, porquanto, face à ausência de notificação, o recorrente viu-se impossibilitado de – sequer – usar da faculdade prevista no art. 164/3 do CIRE.

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              Decidindo:

            A posição tomada pela decisão recorrida, no sentido de que a violação do dever de o AI informar o credor com garantia real do valor base fixado para a venda, ou, mais amplamente, a violação, pelo AI, dos deveres que para ele decorrem do art. 164/2 do CIRE, não produz a nulidade ou ineficácia da venda efectuada na insolvência, corresponde, realmente, à posição que, quase unanimemente tem sido tomada sobre a questão, como aliás o indiciam as referências que a decisão recorrida faz à doutrina e jurisprudência.

            Não há dúvida de que aqueles deveres lhe são impostos pelo art. 164/2 do CIRE e que o não cumprimento deles representa um acto ilícito, que o pode fazer incorrer em responsabilidade civil (pessoal), perante, entre outros, o devedor e credores, e levar à sua destituição do cargo (arts. 164/3, 56 e 59, todos do CIRE). Além disso, o não cumprimento deles representa, em hipóteses como a dos autos, a omissão de um acto que a lei prescreve e que tal pode influenciar a situação material dos sujeitos processuais, podendo, por isso, ser também, em abstracto, uma nulidade processual (art. 195/1 do CPC).

            Mas a solução que o CIRE acolhe para a situação não é, segundo aquele entendimento quase unânime, a da nulidade, mas a já referida responsabilidade do AI, com entendimentos diversos quanto ao respectivo âmbito (que, no caso não interessa desenvolver, embora sejam referidos de seguida dois deles).

            E que a solução acolhida não é da nulidade, extrai-se, principalmente, da solução expressamente prevista pela lei para a omissão, pelo AI, do cumprimento de outros deveres, que, para além disso, em dadas circunstâncias, podem completar estes.

            Com efeito, segundo o art. 161/1 do CIRE, depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência. Ora, segundo o art. 163 do CIRE, a violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte.

            Ou seja, só perante uma hipótese específica – que não está minimamente indiciada nos autos – é que a prática de um acto de alienação, que pudesse ser considerado de especial relevo para o processo de insolvência, realizado sem um consentimento legalmente exigido, poderia ter como consequência a sua ineficácia. Nos outros casos não. Por isso, por maioria de razão, também se entende que a omissão do cumprimento dos deveres previstos no art. 164/2 do CIRE não provocam a nulidade ou ineficácia da venda.

            Assim, Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada na decisão recorrida, mas na pág. 619, acrescentam:

        “Consideremos, por fim, a possibilidade de o AI proceder à venda sem prévia notificação do valor fixado ou projectado ao credor garante.

         Com essa omissão ilícita, o AI inviabiliza a oferta ao credor.

         Cremos que em tal situação, tendo em conta o objectivo da lei, clarificado nas linhas precedentes, o AI responderá perante o credor pelo diferencial entre o valor obtido e o total do crédito garantido, sem prejuízo da faculdade de provar que o credor preterido, se devidamente notificado, apresentaria proposta que não permitiria o ressarcimento integral do seu crédito, caso em que, então, responderá somente até à concorrência presuntiva.”

            E os acórdãos invocados na decisão recorrida diziam:

              O ac. do TRP de 16/09/2014, proc. 1040/12.2TBLSD­G.P1: I – A violação dos deveres de informação e a preterição da proposta do credor garantido não consubstanciam nulidade processual nem afectam a validade e eficácia da venda. II – O art. 163 do CIRE privilegia a tutela daqueles que negoceiam com o AI mesmo à custa dos interesses dos credores.

              Ac. do TRG de 28/07/2008, proc. 1566/08-2: […] 3º- A violação, por parte do AI, do dever de audição dos credores que tenham garantia real sobre os bens a alienar acerca do meio pelo qual devem ser vendidos bem como do dever de os informar previamente sobre o valor base fixado não consubstancia nulidade processual nem afecta a validade e a eficácia da alienação.

            Neste sentido, para além da doutrina e jurisprudência citada na decisão recorrida, veja-se também:

            – Menezes Leitão, CIRE anotado, 2017, 9ª edição, Almedina, pág. 224: “entendemos que a responsabilidade estabelecida no n.º 3 deve ser analogicamente aplicada à hipótese de o AI omitir a notificação aos credores com garantia real, desde que estes demonstrem que essa omissão frustrou a possibilidade de apresentar proposta com essas consequências. […]”

              – ac. do TRP de 30/10/2017, proc. 530/16.2T8AVR-F.P1: I – A preterição de formalidades legais na venda efectuada pelo AI não constitui fundamento da declaração de ineficácia do acto de alienação dos bens nem de nulidade da venda. II – A declaração da ineficácia do acto relativamente à massa insolvente, só pode ser declarada nos termos do artigo 163 do CIRE se, em acção declarativa, a instaurar, nomeadamente pelos credores, for reconhecido que a violação do disposto nos artigos 161 e 162 do CIRE conduziu a um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo AI e as do adquirente do bem. III – Não obstante, isso não afasta a eventual responsabilidade do AI, que poderá responder pelos danos causados à devedora e aos credores (artigo 59 do CIRE).

              – ac. do TRE de 08/09/2017, proc. 3223/13.9TBSTB-D.E1: 1. A preterição de formalidades legais na venda efectuada pelo AI não constitui fundamento da declaração de ineficácia do acto de alienação do bem sobre o qual a recorrente tem uma garantia real, nem de nulidade da venda. 2. Só podendo vir a ser declarada a ineficácia do acto relativamente à massa falida, nos termos do art. 163/1 do CIRE, se, em acção declarativa, a instaurar, nomeadamente pela recorrente, for reconhecido que a violação do disposto nos artigos 161 e 162 do CIRE conduziu a um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo administrador da insolvência e as do adquirente do bem.

              – ac. do TRL de 25/05/2017, proc. 175/14.1TBPTS-D L1-6: – Não incumbe ao terceiro preterido na alienação de dois bens imóveis pelo administrador no âmbito do processo de insolvência, invocar a falta de consentimento da comissão de credores para a alienação dos referidos bens. – Mesmo que o acto em causa seja considerado “acto de especial relevo para o processo de insolvência”, a consequência não a será a nulidade da venda efectuada.

              – ac. do TRP de 23/01/2017, proc. 571/12.9T2AVR-H.P1: I – O facto do AI não ter ouvido um interessado antes de ter procedido à venda por negociação particular de um imóvel que integrava a massa insolvente, por preço inferior àquele que esse interessado já havia oferecido e não havia sido aceite, não constitui uma nulidade processual que possa afectar a venda realizada. II – Se o AI, nas operações para a venda dos bens que integram a massa insolvente, deve procurar obter o melhor preço, de modo a proteger os interesses do insolvente e dos credores, estando sujeito a deveres de actuação diligente, o incumprimento de tais deveres, designadamente quando despreza injustificadamente a existência de uma melhor proposta para a venda de um bem da massa insolvente, tem como consequência, não a anulação da venda realizada com o incumprimento desses deveres, mas sim uma eventual destituição do cargo, ao abrigo do artigo 56/1 do CIRE, e a sua responsabilização, nos termos do artigo 59/1 do mesmo diploma.

              – ac. do TRP de 25/10/2016, proc. 3813/15.5T8STS-E.P1:
I – O AI não está sujeito à censura do juiz, sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa. […] III – Apenas tem de comunicar ao credor com garantia real a modalidade da alienação e informá-lo do valor base fixado ou do preço da alienação projectada para que este possa apresentar proposta de aquisição por valor superior para garantir o seu crédito. IV – A violação deste dever de informação, assim como da audição prévia sobre a escolha do auxiliar na venda, não implica a nulidade do acto de alienação, apenas o responsabilizará perante o credor garantido pelos danos causados. […]

              – ac. do TRL de 27/11/2014, proc. 2503/12.5: I – Sempre que a modalidade de venda escolhida pelo AI implique a intervenção de um terceiro que haja, em função dessa prestação de serviço, de ser remunerado pela massa insolvente, o AI deve pedir autorização à comissão de credores para essa concreta prestação de serviços ou, quando esta inexista, ao juiz, nos termos genéricos do art. 55/3 do CIRE. II – Não obstante, o legislador do CIRE não terá pretendido que os resultados da actuação do administrador que aja sem ter obtido aquela autorização – ou noutras situações em que tenha prescindido de autorizações ou pronúncias prévias – sejam postos em causa através de sanções como a nulidade, ou mesmo, a respectiva ineficácia, pois que, ao contrário do que sucedia no âmbito do CPEREF – cfr respectivo art 136 – não existe agora no regime do CIRE a faculdade de impugnação dos actos do administrador. III – A possibilidade de reacção contra os actos do administrador está hoje dependente da qualificação desse acto como assumindo «especial relevo para o processo de insolvência» nos termos do art 161, mas a declaração dessa ineficácia implicará a instauração de uma acção declarativa dirigida contra quem pretenda aproveitar – ou fazer prevalecer – o acto atacado, e contra o administrador infractor.

              – ac. do TRP de 09/06/2015, proc. 941/13.5TYVNG-H.P1: I – À venda em estabelecimento de leilão, em processo de insolvência, não é aplicável a norma do art. 817 CPC, quanto ao conteúdo dos anúncios, porque prevista apenas para a “venda mediante propostas em carta fechada”, mas é de aplicar a essa venda o disposto no art. 164/2 CIRE, que acrescenta que o credor com garantia real deve ser sempre informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada. […] III – Se o administrador proceder à venda sem notificação do valor fixado ou projectado ao credor garante inviabiliza a oferta desse credor e responderá pelo diferencial entre o valor obtido e o total do crédito garantido, sem prejuízo da faculdade de provar que o credor preterido, se devidamente notificado, apresentaria proposta que não permitiria o ressarcimento integral do seu crédito. IV – Não existe no CIRE a possibilidade de impugnação junto do juiz dos actos do AI, restando apenas à entidade judicial os poderes de fiscalização (art. 58 CIRE) e o poder de destituir o AI – art. 56 CIRE, tudo sem prejuízo da efectivação da responsabilidade do AI, em acção própria (art. 59 CIRE).

            Entretanto, a tese defendida acima não se pode traduzir na impossibilidade de, sejam quais forem as situações, anular vendas efectuadas pelo AI sem a observância das formalidades legais, ou de nem sequer se permitir ao juiz a apreciação da questão.

              É isto que agora vem dizer o ac. do STJ de 04/04/2017, proc. 1182/14.0T2AVR-H.P1 (com um voto de vencido que não tem a ver com isto): A interpretação que o acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163 do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação do AI, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar tal questão perante o juiz do processo, e que a decisão judicial proferida na 1.ª instância, que decretou a pedida nulidade daquela venda, é ilegal por o acto ser eficaz, restando ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o administrador da insolvência, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados, viola o art. 20, n.ºs 1 e 5, da CRP, por não assegurar, imediatamente no processo, tutela efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de pronta intervenção do julgador.

            Por isso, o ac. do TRE de 21/04/2016, proc. 1911/12.6TBLGS-F.E1, é compreensível quando diz que: 1. Quando o AI, ao abrigo do disposto no art.164/1 do CIRE, anuncia que a venda de imóveis pertencentes à insolvente será realizada mediante propostas em carta fechada terá, necessariamente, de observar as normas legais (arts. 816 e segs.) que regulamentam tal venda no CPC, por força do estipulado no art.17 do CIRE. 2. Por isso, face ao disposto no art. 821/3 do CPC, o administrador de insolvência não poderá adjudicar a um credor tais imóveis, por um preço inferior ao valor base dos mesmos, sem que, para esse efeito, tenha a anuência e a aceitação por parte da comissão de credores e da insolvente.

              Também neste sentido, veja-se o ac. do TRP de 18/02/2010, proc. 632/06.3TJVNF-L.P1: I – No processo de insolvência, é o administrador que escolhe a modalidade da venda, seja alguma das previstas em processo executivo, seja outra que considere mais conveniente. II – Nesse processo, antes da venda, o credor com garantia real deve ser ouvido sobre a modalidade da venda e informado do valor base dos bens para venda. III – Tendo-se procedido à venda judicial por propostas em carta fechada, não tendo havido tal prévia audição e notificação do valor base para venda dos bens, omite-se formalidade legal com relevância para a decisão, pelo que se comete nulidade a determinar a anulação do acto de venda.

              Este acórdão dá nota de uma circunstância peculiar no caso: “Como se verifica da tramitação processual seguida (para a venda), referida nos pontos 1 a 6, foi decidida a venda dos identificados imóveis por propostas em carta fechada […t]endo-se adoptado o que, para esse efeito, se prevê no processo executivo (que o CIRE não impõe) para a venda por propostas em carta fechada (com a presidência do acto pelo juiz) e a direcção do processo para a venda sido assumida pelo juiz (apesar de outra ser a previsão do CIRE) […].”

              E mais à frente: “ Tendo a venda sido processada pelas regras previstas para a venda judicial por propostas em carta fechada, e tendo sido omitida a referida formalidade [a do art. 164/2 do CIRE, cuja principal finalidade está em garantir o crédito do credor com garantia, por isso que, sendo a venda realizada pelo administrador (como provavelmente deveria ser ou, ao menos, mais conforme com as regras do CIRE e a desjudicialização do processo de insolvência a que por esse diploma [sic]), a omissão da diligência poderia apenas conduzir à responsabilização do administrador, conforme nº 3 do artigo 164 – cfr. Carvalho Fernandes – João Labareda, em CIRE Anotado, I, 559] não tendo sido observada essa disposição legal, foi preterida formalidade imposta por lei.”

              Ou seja, este acórdão assume expressamente a posição de Carvalho Fernandes e João Labareda e só as circunstâncias particulares do caso [não foi uma venda feita pelo AI mas pelo tribunal] justificaram a anulação [o que não aconteceria não fossem elas]. Assim, não têm razão Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE anotado, Almedina, 2013, pág. 465, quando invocam este acórdão em sentido contrário ao do ac. do TRG de 28/07/2008 (citado acima, proc. 1566/08-2) e a ele (ao do Porto) aderem.

            Já é menos compreensível, depois de tudo o que antecede, o ac. do TRP de 07/07/2016, proc. 7153/13.6TBMAI-D.P1 quando diz que “é nula a decisão promovida pelo AI feita por correio electrónico à margem do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais”, sem afastar toda a argumentação dos primeiros acórdãos.

                                                      *

            Tendo em conta, de qualquer modo, estas quatro outras decisões e a posição dos últimos autores, acrescente-se ainda o seguinte:

              1 – A decisão recorrida não recusou a possibilidade de apreciação da nulidade invocada pelo credor garantido. Pelo contrário, apreciou-a e fê-lo substancialmente.

            2 – Como sugere a decisão recorrida, no ponto 2, supra, no caso dos autos, a omissão dos deveres previstos no art. 164/2 do CIRE, é atenuada pelo facto de o AI ter fixado a modalidade da venda e o valor base dela, na modalidade e no valor que haviam sido indicados pelo credor garantido. O que, de qualquer modo, tem pouco relevo.

            3 – Mas já tem muito relevo o que se diz no ponto 3 da decisão recorrida, ou seja, que o credor garantido tomou conhecimento – a 06/06/2016, acrescenta-se agora, por presunção judicial (art. 249/1, parte final, do CPC) – 7 dias “antes, por isso, da data designada para a abertura das propostas, de que fora escolhida pelo AI a modalidade de venda através de abertura de propostas em carta fechada e de que fora designado o dia 13/06/2016 para a abertura de propostas. Ou seja, tomou conhecimento disso, em tempo útil, pelo que, querendo, poderia ter indagado o AI sobre o preço base fixado (sendo certo que sabia qual fora o preço base que indicara) e exercido em tempo a faculdade prevista no artigo 164/3 do CIRE.”

            Quando o credor garantido vem, neste recurso, dizer (no ponto 1) que não foi informado do valor base fixado nem da data projectada para a venda do imóvel no prazo de uma semana nem em tempo útil, está a ser objectivamente impreciso, sem negar que realmente teve conhecimento da modalidade da venda e da data da mesma através de despacho notificado por carta de 03/06/2016, sugerindo que tal não ocorreu no prazo de uma semana. A verdade é que, tendo a notificação ocorrido a 06/06/2016, decorreu necessariamente uma semana (menos umas horas) até à abertura a 13/06/2016.

            Tudo isto levaria à conclusão de que, mesmo que se aceitasse a solução da nulidade processual, no caso não se poderia dizer que a omissão do acto tenha podido influenciar o resultado do processo e por isso não se verificava uma nulidade processual (art. 195/1 do CPC).

            E mesmo que se tivesse verificado, o credor garantido já não estava em tempo de a arguir: tinha conhecimento da omissão pelo menos desde 06/06/2016, pelo que o prazo para o fazer terminaria a 16/06/2016 (art. 149/1 do CPC: 10 dias). Ora, ela só foi arguida a 29/09/2016 (ver ponto 8).

            4 – Já o último argumento utilizado na decisão recorrida – no ponto 4 – não convence porque, como aliás aí se reconhece, quando a lei fala na alienação projectada está a pensar no projecto de venda em si e não na transmissão da propriedade. Ou seja, quando em 20/06/2016 o credor teve conhecimento da abertura (note-se que a 06/06/2016 só sabia que ela ia ser aberta), a projectada “venda” (como acordo de vontades) já tinha ocorrido, mesmo que ainda não tivesse ocorrido a transferência. Pelo que, se se pudesse dizer que tinha ocorrido uma nulidade, esta não se podia dizer sanada. Esta única discordância não tem, no entanto, relevo face a tudo o resto.

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

            Custas pelo recorrente.

            Lisboa, 16/11/2017

            Pedro Martins

            1.º Adjunto

            2.º Adjunto