Processo do Juízo Central Cível de Lisboa

                Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

        P propôs uma acção com processo ordinário contra a sua ex-mulher M, pedindo: (a) a condenação da ré a reconhecer que o autor detém uma quota ideal correspondente a 81,57% do direito de propriedade referente a um prédio urbano que identifica; (b) do que deverá decorrer, consequentemente, a correcção da escritura pública constante dos autos, da qual deverá passar a constar que o autor e a ré detêm nesse prédio as quotas ideais de 81,57% e 18,43%, respectivamente, no direito de propriedade a ele referente, assim se ordenando em conformidade; (c) em consequência, que se determine o cancelamento do averbamento n.º 8 à inscrição registral em vigor, de acordo com a qual autor e ré são proprietários do prédio em comum e sem determinação de parte; (d) e a sua substituição por um outro, do qual conste que o autor e a ré detêm no prédio as quotas ideais de 81,57% e 18,43%, respectivamente, no direito de propriedade a ele referente; (e) idêntica rectificação deverá ser feita à inscrição matricial.

        Para tal alegou, em síntese, que quando era ainda solteiro, celebrou, em 31/01/1991, o contrato-promessa de compra e venda do imóvel que veio a adquirir juntamente com a ré, com quem foi casado. O preço ajustado para a compra e venda deveria ser pago pelo promitente-comprador, ora autor, em três prestações, sendo que a primeira delas, no valor de 6 mil contos, foi inteiramente liquidada por ele no momento da assinatura do contrato promessa, como sinal e princípio de pagamento, o que fez com dinheiro que, para esse fim, os seus pais lhe doaram e com o produto das suas poupanças. A segunda prestação do preço convencionado foi paga também pelo autor, ainda no estado de solteiro, tendo para isso mobilizado parte do sinal que, enquanto promitente vendedor, recebeu do promitente-comprador de um imóvel de que era proprietário. Já a parte remanescente do preço foi paga no acto da escritura pública de compra e venda, na qual já intervieram autor e ré, mas ainda no estado de solteiros. Apesar de na escritura constar como preço o valor simulado de 12 mil contos, o valor real do negócio ascendeu a 19 mil contos, tento o autor e a ré obtido um empréstimo bancário de 10 mil contos, do qual usaram 7000 contos usaram para pagar o remanescente do preço e 3000 contos para custear as obras de reabilitação do imóvel. Apesar de ter sido o autor a suportar 12 mil dos 19 mil contos, o certo é que ficou a constar da escritura pública de compra do imóvel que o mesmo foi adquirido por autor e ré em partes iguais, o que, portanto, não correspondeu à verdade, tratando-se de um manifesto equívoco.  

              A ré contestou, impugnando parte da factualidade constante da petição inicial, alegando, em síntese, que o contexto e as circunstâncias das declarações negociais proferidas por autor e ré e exaradas na escritura pública, bem como as vinculações negociais que estes assumiram, designadamente, perante o banco mutuante, reflectiram integralmente actos jurídicos anteriores e contemporâneos das declarações negociais das partes, quer no âmbito da referida escritura, quer no âmbito do contrato-promessa que a precedeu [que é outro, em que ambos participaram como promitentes compradores, que não o indicado pelo autor], já que sempre foi vontade de ambos comprar [pelo valor de 12 mil contos] o imóvel em partes iguais, destinando-o a casa de morada de família [diz que os 10 mil contos emprestados por um banco serviram todos para o pagamento do preço; não diz nada quanto aos 2 mil contos que faltam para os 12 mil contos]. Alegou, ainda, que não conhecia, nem tinha a obrigação de conhecer a eventual essencialidade, para o autor, do elemento sobre o qual recaiu o lapso por este invocado, sendo certo que, tendo-se a ré vinculado a liquidar de forma solidária com o autor o empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, nunca aceitaria que tal aquisição ficasse registada em quotas desiguais. Finalmente, alegou que a declaração negocial constante da escritura pública é autónoma relativamente ao conteúdo do contrato-promessa [inicial]. Termina pedindo a sua absolvição do pedido.

              (nesta parte do relatório, utilizou-se, no essencial, o relatório feito pelo tribunal recorrido, à excepção dos parenteses rectos)

           Depois de realizada a audiência final, por duas vezes, uma primeira em Dez2015 e uma outra em Out/Nov2018 com outro juiz, foi proferida sentença julgando a acção totalmente procedente, e, em consequência, condenando a ré no pedido.

           A ré recorre desta sentença, impugnando parte da decisão da matéria de facto e a decisão de conceder procedência aos pedidos do autor.

           O autor contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

                                                                 *

           Questões que importa decidir: se a decisão da matéria de facto deve ser alterada e se os pedidos deviam ter sido julgados improcedentes.

                                                                 *

              São os seguintes os factos dados como provados que interessam à decisão daquelas questões [foram aditadas, em parenteses rectos, algumas partes, com o conteúdo dos contratos, para melhor compreensão dos factos; o ponto 15 foi acrescentado em consequência da impugnação da decisão da matéria de facto; os factos 5 a 14 vêm dos quesitos 1 a 9 e 11 da base instrutória]:

  1. Por escritura pública de 22/05/1991, cuja certidão se encontra a fls. 32 e seguintes dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, celebrada no Cartório Notarial de Lisboa, O e marido, A, e L, como 1ºs outorgantes, os agora autor e ré, ambos solteiros, como 2.ºs outorgantes, e J, como terceiro outorgante e na qualidade de procurador e em representação de Banco-SA, declararam, os 1.ºs, que, pelo preço, já recebido, de 12mil contos, vendem aos 2ºs outorgantes, em comum e em partes iguais, o prédio urbano sito na Rua C, em Lisboa, descrito sob o n.º 000 da referida freguesia, na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, com registo de transmissão, a favor deles. Pelos 2.ºs outorgantes foi declarado aceitarem o contrato e que para a aquisição atrás efectuada solicitaram ao Banco-SA um empréstimo no montante de 10 mil contos, o que lhe é concedido nos termos e condições constantes do documento complementar da escritura.
  2. O direito de propriedade do prédio referido em 1 mostra-se inscrito na CRP de Lisboa a favor de autor e ré, por compra, desde 09/05/1991.
  3. Por convenção antenupcial realizada no dia 15/07/1991 no Cartório Notarial de Lisboa, o ora autor, solteiro, como 1º outorgante, e a ora ré, solteira, como 2.ª outorgante, declararam que, tendo em vista o casamento, que vão contrair, adoptam o regime da separação.
  4. O autor e a ré casaram um com o outro em 14/09/1991, com convenção antenupcial.
  5. O ora autor celebrou com O, esta por si e na qualidade de procuradora de L, em 31/01/1991, o acordo escrito constante de fls. 101 e 102 dos autos com o conteúdo dele constante [entre o mais consta que as 2ªs prometem vender ao 1º o imóvel em causa pelo preço de 19 mil contos, preço que seria pago: (a) na data do contrato, como sinal e princípio de pagamento, 6 mil contos, de que foi dada quitação; (b) no termo de 90 dias imediatos, um reforço de 6 mil contos; e os restantes 7 mil contos na data da escritura – síntese feita por este TRL].
  6. A primeira prestação do acordo referido em 5, no montante de 6 mil contos, foi paga pelo ora autor no momento da celebração do referido acordo.
  7. A segunda prestação do preço convencionado foi paga pelo autor durante o mês de Maio de 1991.
  8. Os restantes 7 mil contos foram pagos aos vendedores no acto da outorga da escritura pública referida em 1.
  9. O preço declarado na escritura pública referida em 1, de 12 mil contos, não corresponde ao preço da compra e venda que foi de 19 mil contos.
  10. Os 7 mil contos referidos em 8, foram pagos pelo autor e pela ré, em partes iguais, com recurso ao empréstimo a que alude a escritura pública de compra e venda.
  11. Só por lapso ficou consignado na escritura pública referida em 1 que o prédio foi comprado por autor e ré em partes iguais.
  12. Tal lapso ocorreu por o autor e a ré pretenderem declarar que assumiam a responsabilidade do pagamento do empréstimo bancário contraído, em comum e em partes iguais).
  13. A declaração referida em 11 não corresponde à vontade do autor e da ré, que era a de declarar que o autor detém uma quota sobre o prédio de 81,57% e a ré de 18,43%.
  14. O registo provisório de aquisição a favor do autor e da ré do imóvel referido em 1 foi efectuado com base no acordo escrito celebrado em 05/04/1991, por autor e ré como 2.ºs outorgantes e na qualidade de promitentes-compradores, cuja cópia se encontra a fls. 80-82 dos autos, com o conteúdo dele constante [entre o mais consta que as 1ªs outorgantes prometeram vender e o 2º comprar o imóvel em causa pelo preço de 12 mil contos, preço que seria pago pelo promitente comprador da seguinte forma: na data do contrato, como sinal e princípio de pagamento, 500 contos dos quais foi dada quitação; um reforço de 4500 contos até ao dia 01/05/1991; os restantes 7 mil contos na data da escritura – síntese feita por este TRL].
  15. Foram registadas duas hipotecas voluntárias sobre o imóvel, a favor do Banco2-SA, por apresentações de 17/03/1995 e 25/11/1998, para garantia de empréstimos (a primeira para dois empréstimos de 9770 contos e 10 mil contos; a 2ª para assegurar o montante máximo de 10.420 contos), em que o autor e a ré surgem como sujeitos passivos.

                                                                 *

Da impugnação da decisão da matéria de facto

                                                                (C)

              Numa longa conclusão (C) de mais de 3 páginas, dividida por inúmeros §§, que se passará a transcrever de seguida com alguma simplificação, a ré entende que não foram apreciados “factos com relevância para o enquadramento factual e jurídico da causa de pedir da acção”.

              É certo – como o autor implicitamente diz – que a ré não elabora o recurso tendo em conta que a acção onde a sentença recorrida foi proferida é uma acção ordinária, intentada no âmbito da redacção do CPC anterior à reforma de 2013; acção ordinária, por isso, que contém factos assentes e uma base instrutória com quesitos formulados.

            Apesar disso, a forma como a ré coloca as questões tem pouco relevo, interessando antes a substância das coisas, sendo que as questões colocadas podem ser encaradas de outra forma (por exemplo, como uma crítica de que apesar dos factos em causa não terem sido dados como assentes, o deviam ter sido, porque estavam provados por prova documental suficiente para o efeito; ou como colocando em causa questões de direito desenvolvidas adiante), pelo que se irá apreciar as várias questões colocadas pela “conclusão” em causa (o que o autor também acabou por fazer, embora sem seguir a sequência imprimida pela ré).

              Veja-se então; diz a ré:

         (i) Das declarações formais anteriores do autor como comproprietário em partes comuns e iguais do imóvel.

         Apesar de constar de documentos juntos aos autos, não impugnados, o tribunal desconsiderou em absoluto declarações formais feitas pelo autor, em momento anterior à outorga da escritura pública de compra e venda, em que manifestou inequivocamente a vontade de adquirir o imóvel, sito na Rua C, em partes comuns e iguais, com a ré.

         Com efeito, resulta de prova documental junta aos autos – contrato promessa datado de 05/04/1991, junto à contestação como doc.1, onde constam também pedido de registo da aquisição da propriedade, em comum e em partes iguais, subscrita pelo autor.

         Desconsiderou, também, a circunstância de o autor não ter junto aos autos este contrato.

         Devia a sentença recorrida ter atendido a este facto relevante que, necessariamente, teria influenciado a decisão e que comportaria a improcedência do pedido formulado pelo autor.

         (ii) Das declarações formais posteriores do autor como comproprietário em partes comuns e iguais do imóvel

         Das hipotecas voluntárias sobre o imóvel

         Com efeito resulta da certidão predial junta aos autos na petição inicial como doc.2 duas hipotecas voluntárias, constituídas sobre o imóvel, em 17/03/1995 e 25/11/1998, pelo autor e pela ré.

         A sentença recorrida desconsiderou em absoluto a existência de terceiros de boa-fé – as instituições bancárias que, em momento contemporâneo à aquisição do imóvel e posterior, com a concepção de crédito para obras, confiaram que a aquisição do imóvel sito na rua do imóvel foi em partes comuns e iguais, entre autor e ré.

         Da notificação judicial avulsa para exercício do direito de preferência

         Por relevante, e por ser processualmente admissível, junta-se como doc.1 cópia da notificação judicial avulsa, para o exercício do direito de preferência, recebida pela ré já depois de proferida a decisão que ora se recorre.

       Aqui mais uma vez surge o autor na qualidade de comproprietário em partes comuns e iguais do prédio.

         Esta é uma vez mais o que sempre foi declarado pelo autor.

         (iii) Da existência de um projecto de família.

     Outro facto de enorme relevância que foi desconsiderado em absoluto: a circunstância deste imóvel ter sido comprado no âmbito de um projecto para uma família que autor e ré à data pretendiam constituir e constituíram.

       Todo o projecto não se esgotou no momento da aquisição. Foi um projecto que se prolongou vários anos.

       Todas as testemunhas de forma clara e consistente declararam que sempre foi entendido pelo casal que o imóvel em crise nos autos era um projecto de família, a casa morada de família.

         (iv) Da irrelevância material do pagamento do preço. Investimentos nas obras.

          Foi desconsiderado o estado em que o imóvel se encontrava aquando da aquisição.

         Com efeito, foi unanime o depoimento das testemunhas – com especial enfoque para S e G sobre o estado de degradação do imóvel e das obras profundas e materialmente relevantes no imóvel, que de seguida se transcreve.

              Decidindo:

        1- Quanto às declarações que constam do contrato-promessa de 05/04/1991. O tribunal recorrido deu como provado o conteúdo constante do contrato-promessa em causa, no ponto 14, e este TRL já sintetizou, no ponto, a parte relevante. Note-se, no entanto, que, ao contrário do que é dito pela ré, o autor não declara aí “a vontade de adquirir o imóvel, sito na Rua C, em partes comuns e iguais, com a ré.”

              2- O que foi declarado no pedido do registo. Mas a ré não identifica o pedido de registo e nos autos não existe qualquer pedido de registo do imóvel em partes iguais para o autor e para a ré. Se a ré se está a referir simplesmente ao registo do imóvel, a sua referência já consta dos factos provados.

              3- O facto de o autor não ter junto aos autos o contrato-promessa de 05/04/1991; realmente o autor não o juntou, mas a ré não explica porque é que o autor tinha que juntar tal contrato, nem porque é que, não o tendo feito, tal poderá implicar a improcedência da acção. É irrelevante.

              4- A constituição pelo autor e pela ré de duas hipotecas voluntárias, constituídas sobre o imóvel, em 17/03/1995 e 25/11/1998, a favor de terceiros, resulta da certidão predial (documento autentico que faz prova suficiente do facto: arts. 369 e 371, ambos do CC) junta aos autos na petição inicial como doc.2; assim sendo, não se vê inconveniente em consignar tal facto (num ponto 15, ao abrigo dos arts. 663/2 e 607/4, ambos do CC), para que a ré possa fazer com ele a construção de direito que pretenda; mas, note-se, não consta nele que o autor tenha declarado seja o que for; aliás, nem sequer consta o pedido de registo das hipotecas, ao contrário do que é sugerido pela ré.

          5- O facto de estes terceiros – ou melhor, apenas um, que é o Banco2, terem confiado que a aquisição do imóvel sito na rua do imóvel foi em partes comuns e iguais, entre autor e ré. A ré não indica nenhuma prova desta confiança que invoca, pelo que a questão só se pode colocar a nível de direito se se considerar que tal confiança resulta necessariamente dos factos provados.

        No corpo das alegações a ré diz: Nem se diga, que esta circunstância seria irrelevante para a instituição bancária, pois resulta de prova testemunhal, já citada, que a ré: (i) era empregada à data de uma empresa do grupo da instituição bancária e (ii) que por força desse vínculo laboral tinha acesso privilegiado em facilidade e condições ao crédito bancário.

              A testemunha S, no depoimento refere expressamente (minuto 14: “Como a ré era empregada bancária, que recorreram a um crédito bonificado”). (ficheiro 20181108102714_1130694_28).

         Como é evidente, esta passagem do depoimento não é prova de que terceiros tinham a confiança de que a aquisição do imóvel tinha sido feita em comuns e partes iguais.

              6- A notificação judicial avulsa para exercício do direito de preferência, recebida pela ré já depois de proferida a decisão de que ora se recorre, em que o autor surgiria na qualidade de comproprietário em partes comuns e iguais do prédio. Mas é evidente que não constando este facto do processo, a sentença não o podia ter considerado. Por outro lado, a ré não diz que o facto ocorreu antes da sentença (e o autor, nas contra-alegações diz que ele ocorreu depois da sentença).

              A ré aproveita para juntar um documento para prova do facto. Mas como não há razões para ter o facto como relevante, a ré também não podia ter junto o documento em causa (art. 443 do CPC). Assim, o documento junto com o recurso será mandado desentranhar e a ré condenada em multa.

              7- A circunstância deste imóvel ter sido comprado no âmbito de um projecto para uma família que autor e ré à data pretendiam constituir e constituíram.

              No corpo das alegações a ré diz: A prova testemunhal nesta matéria foi unânime. E que a título de mero exemplo se transcreve.

              Depoimento de S (ficheiro 20181108102714_1130694_28).

           Mandatária da recorrente (14:46): Alguma vez na constância do casamento, não depois do divórcio, enquanto autor e ré eram casados felizes com três filhos que acompanhou de perto, lhe foi dado a indicação de que aquela casa da rua C seria mais do autor do que da ré, ou sempre… ou como é que era entendida aquela casa?

              SC (15:08) Era entendida para mim como a casa da ré e do autor.

              Posto isto,

           O art. 640/2b-3a do CPC exige a identificação dos elementos de prova, pelo que a indicação de prova, “por exemplo” apenas pode ser aproveitada no exemplo concreto dado. Ora, sendo o único elemento de prova indicado aquela testemunha e aquela passagem, dele não decorre nada que permita que se dê como provada a afirmação pretendida pela ré: o que foi perguntado e respondido pela testemunha era de quem era a casa, não se a casa tinha sido comprada no âmbito de um projecto de constituição de uma família.

              Note-se no entanto que o autor não põe em causa a existência deste projecto e que o mesmo é, evidentemente, inerente ao casamento dado como provado.

              8- O imóvel estava degradado e teria sofrido obras profundas e materialmente relevantes, sobre o que teria sido unânime o depoimento das testemunhas, com especial enfoque para S e G.

              No corpo das alegações a ré transcreve passagens de dois depoimentos.

              O autor diz que esta matéria (a qual, de resto, ele não põe em causa e a prova que transcreveu aponta claramente no sentido da confirmação; basta reparar que as testemunhas referiram que o autor e a ré viveram vários anos num anexo da casa dos pais da ré à espera que as obras acabassem; e repare-se também no valor dos empréstimos garantidos pelas hipotecas de que se falou acima) não faz parte dos quesitos e por isso não foi objecto de prova.

              O autor tem razão. Pelo que, a nível dos factos, o máximo que poderia suceder era o seguinte: se esta matéria tivesse sido oportunamente alegada (mas não foi) pela ré e tivesse interesse para a decisão da causa, o processo teria de ser “devolvido” ao tribunal recorrido para que fosse produzida prova sobre ele (art. 662/2c, parte final, do CPC).

              Em suma, da matéria desta conclusão considera-se procedente apenas um ponto, que foi acrescentado acima como o ponto 15 dos factos provados, por estar provado por documento autêntico.

                                                                 *

                                                           Ponto 6

              O tribunal fundamentou assim a sua convicção quanto a este ponto:

              “Quanto à matéria referente ao pagamento do valor previsto nesse contrato, em três prestações – artigos 6 a 8 dos factos assentes – a respectiva prova foi feita com base no documento de fl. 109 (o canhoto do livro de cheques da mãe do autor), juntamente com o depoimento da própria mãe do autor, testemunha M, devidamente complementado pelas declarações de parte do próprio, que prestou todos os esclarecimentos necessários com rigor e objectividade […]

              […]

         A restante prova testemunhal serviu, fundamentalmente, para reforçar a convicção, já alicerçada nos elementos supra consignados, de que a maior parte do preço devido pela aquisição do imóvel foi liquidada pelo próprio autor e que só a terceira e última prestação, paga com a escritura pública, foi suportada pelo casal. Assim, foram claros os depoimentos de MC, prima do autor, M, já referida, J e M, ambos amigos do casal (o primeiro, até, com particulares ligações à família da ré), que descreveram, com sinceridade, as circunstâncias em que várias vezes ouviram da própria ré a indicação de que a casa de morada de família foi adquirida graças à disponibilidade financeira que o autor tinha na ocasião, tendo sido um contributo relevantíssimo para a concretização desse projecto. Valeu, com especial interesse, o depoimento da testemunha S, amiga da ré, que sobre esta mesma matéria revelou ter conhecimento mais directo, dado ter sido colega de curso daquela e, à data, serem próximas uma da outra. Quanto ao pai da ré, J, o seu depoimento foi particularmente relevante: com naturalidade e, por isso, com valia, declarou que, à data do casamento, a filha não tinha ainda património, tendo confirmado que o autor tinha o “apoio” da casa que vendera para conseguir adquirir o imóvel. Já a ré, apenas dispunha de algum dinheiro proveniente de uma conta poupança-habitação constituída pelo pai, na ordem dos seis mil contos, que terá usado para custear as obras de reabilitação do imóvel, que foram profundas e, provavelmente, de valor superior ao da aquisição.

              Na conclusão E/i (a D é uma introdução retórica) a ré diz que não há prova documental para provar o que consta do ponto 6 e que não há prova testemunhal que possa ser sindicada por este Tribunal da Relação de Lisboa por imperceptível a gravação, pelo que, por respeito do ónus da prova, deve este facto ser dado como não provado.

              No corpo das alegações diz que:

              “A circunstância de se ter alegado que a Srª D. M cheque a favor do autor com a referência de “casa do autor”, não é para efeito de ónus da prova, que efectivamente esse pagamento foi feito com o referido montante [sic].

              Mais grave se dirá [sic], relativamente aos 1000 contos que alegadamente teriam vindo de poupanças do autor.

              Sobre essa matéria, existe apenas o testemunho da mãe, com as condicionantes que um testemunho desta terá, atendendo a que esta é mãe do autor circunstância que parece ter sido ignorada pelo tribunal a quo.

              Por relevante e que para todos os efeitos se alega, a gravação do depoimento da Srª D. M está inaudível (ficheiro 201810311110329_11306494_28), não sendo por isso possível a sua desgravação, nem a confrontação, pelo que deve o ser depoimento ser repetido para que possa ser sindicável, pela segunda instância.

              Decidindo:

              Ao contrário do que a ré diz, a convicção do tribunal não se baseou apenas no testemunho da mãe. O tribunal fundamentou a decisão deste ponto também em muito outra prova testemunhal, inclusive no que foi dito pelo pai da ré. E ainda se baseou em prova documental e em prova por declarações de parte.

              Ora, limitando a ré artificialmente os elementos de prova que teriam servido de base à convicção do tribunal e depois dizendo que esse elemento de prova não pode servir porque este TRL não pode sindicar o depoimento por não ser possível a ‘desgravação’ do mesmo, é uma forma de a ré fazer uma censura genérica à decisão do tribunal, sem indicação de qualquer elemento de prova em concreto, não cumprindo, assim, os ónus de prova que lhe são impostos pelo art. 640/2b-3a do CPC.

              Assim, a única relevância desta impugnação seria a nível processual, se a ré tivesse razão naquilo que diz quanto à gravação do depoimento.

              Mas, como é evidente, a ré não poderia levantar agora tal questão, isto é, apenas nas alegações de recurso perante o TRL. Tinha que ter levantado a questão perante o tribunal recorrido.

              E, para além disso, não estava em prazo para o fazer.

              É que, por força do art. 155/4 do CPC, a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.

              A disponibilização desta gravação foi feita a 06/11/2018, como resulta do termo de entrega de fl. 637. Pelo que o prazo de 10 dias terminava a 16/11/2018.

              Ora, o recurso foi interposto a 19/02/2019 (fl. 679).

              Assim, se o depoimento da testemunha Adelina não está disponível para a ré, a ré só dela se pode queixar.

              Pelo que a consequência de ela não poder referir as passagens do depoimento da testemunha – o que teria de fazer para poder invocar o depoimento da testemunha contra o decidido (art. 640/2b-3a do CPC) ou para demonstrar que o tribunal não poderia ter formado a convicção com base neste depoimento – teria de lhe ser desfavorável a ela.

              Em suma, tendo o tribunal baseado a sua decisão em três elementos de prova, contra os quais a ré nada diz (quanto à documental limita-se a dizer que não a há, apesar de o tribunal a ter invocado; quanto à vária prova testemunhal diz, apenas em relação a uma testemunha, que não pode ser confrontada por não haver gravação, mas ela não podia levantar este problema agora; quanto às declarações de parte nem sequer diz nada), não há impugnação válida deste ponto.

              De qualquer modo, não deixa de ser surpreendente a argumentação da ré. O facto de não haver gravação em condições, não impedia, evidentemente, o tribunal recorrido de ter em conta o depoimento da mãe do autor, porque o ouviu ao vivo (assim como a ré, representada por advogada na audiência final). Pelo que a censura ao tribunal recorrido não podia passar por aí. E este TRL só teria de ouvir esse depoimento se a ré indicasse passagens do mesmo que pusessem em causa o que o tribunal recorrido disse. Mas para isso a ré teria de indicar essas passagens e se não o pode fazer, só dela se pode queixar. Não o tendo feito, este TRL não precisa da gravação do depoimento, ao contrário do que a ré diz.

              De qualquer modo, note-se que o autor até procedeu à transcrição parcial desse depoimento em três páginas A4 de texto, embora com indicação de várias passagens imperceptíveis, que este TRL pôde ir seguindo (havendo ainda outras passagens perceptíveis, embora poucas e com dificuldade), entre o mais constatando que a advogada da ré nem uma pergunta fez à testemunha em causa, para pôr em causa o depoimento da mesma ou a sua credibilidade; depoimento que, nas passagens transcritas, aponta no sentido invocado pelo tribunal.

              Seja como for, acrescente-se ainda que a prova invocada pelo tribunal recorrido não deixa dúvida de que houve este pagamento de 6000 contos e que ele foi feito pelo autor. E o autor nas contra-alegações demonstra exuberantemente isso mesmo. Basta dizer que a ré dizia que esse pagamento não tinha ocorrido, pois que o imóvel teria sido comprado pelo preço de 12 mil contos e não pelos 19 mil contos que o autor refere. Ora, o próprio pai da ré, testemunha dela, diz (a própria ré transcreve mais à frente esse depoimento) que o preço foi de 18 mil contos mais ou menos, o que significa a aceitação da hipótese de ter custado 19 mil contos, desmentindo assim a ré. Ora, se foram pagos 19 mil contos e a ré diz que só foram pagos 12 mil contos, tudo aponta para que os 7 mil contos de diferença fossem do autor. Pelo que é natural que a prova documental, testemunhal e por declarações de parte confirmasse que o pagamento do sinal inicial de 6 mil contos tenha sido feito pelo autor.

                                                                 *  

                                                           Ponto 7

              O tribunal fundamentou a sua convicção quanto a este ponto do modo já referido para 6.

              Na conclusão E/ii a ré diz que atendendo à inexistência de prova documental e testemunhal e no respeito do ónus da prova deve este facto ser dado como não provado e deve ser dado como provado que a segunda prestação do preço convencionado foi paga pela ré no dia 01/05/1991, com recurso a fundos próprios com a desmobilização de conta poupança-habitação.

              No corpo das alegações acrescenta:

              […] relativamente ao pagamento da segunda prestação do sinal veio o autor alegar genericamente, que teria sido pago pelo autor durante o mês de Maio de 1991, em dia que não precisou (cfr. art. 9 da PI).

              Alegou, também, no art. 10 da PI, que teria mobilizado “parte do sinal que, enquanto promitente vendedor recebeu do promitente-comprador da fracção autónoma designada pelas letras “AD” […] de que o autor era proprietário”.

              Da prova produzida perante o tribunal a quo se atentarmos as declarações de parte, o segundo pagamento não foi em 1 de Maio reforço do sinal de 6 mil contos, quando o produto do sinal da venda da casa da Quinta foi recebido a 17/05/1991, data da assinatura do contrato de promessa junto aos autos pelo autor.

              O tribunal recorrido ignorou, por completo um facto de enorme relevância, o sinal da venda da casa da Quinta foi depositado na conta que a ré era titular juntamente com sua mãe, conforme documento junto aos autos por requerimento datado de 05/01/2016.

              Isto significa necessariamente que ao contrário do alegado pelo autor o pagamento do sinal não foi feito com o produto do sinal da venda da casa da Quinta. Este foi, como resulta documentalmente provado, depositado na conta que a ré era titular.

              Acresce que, tendo existido tal pagamento – que não ficou provada sequer a sua existência – este nunca poderia ter sido feito com o produto do sinal da venda da casa da Quinta, porque a ter sido feito, teria sido a 1 de Maio, conforme consta do contrato promessa de compra e venda (qualquer dos dois juntos refere esta data) e o sinal da venda da Quinta apenas foi recebido a 17/05/1991.

              Confrontado com estas incongruências, o autor balbuciou uma tentativa de explicação.

              Por impressivo aqui se deixam transcritas as declarações do autor:

              Data das declarações: 31.10.2018

              Mandatário do autor: (25:11) Porquê? Porque era a parte em divida do preço convencionado (PC: exactamente), é isso (PC: sim) … então, vamos ver porquê que este dinheiro, estes 5.750 correspondentes, parte do primeiro pagamento do preço da casa da Quinta vai para a conta da sua ex. mulher e da sua sogra… é que há aqui um pormenor… em 19 de Janeiro, quando se fez este contrato promessa da Rua C, a segunda tranche do pagamento, devia ocorrer até 1 de Maio, 1 de Maio… e de acordo com este contrato promessa de compra e venda da casa da Quinta, este contrato foi celebrado 17 dias depois, como é que o senhor pagou? Nessa altura ainda não era… o sinal que recebeu da Quinta foi só em 17 de Maio, mas na verdade até 1 de Maio pagou os outros 6 mil da casa da Rua C… como é que pagou…

              (26:26) PC: Pedimos para os pais da ré emprestarem esse dinheiro.

              (26:33) Mandatário do autor: Ah, então o seu sogro, para o senhor cumprir aquilo que estava estipulado no contrato promessa celebrado em 21 de Janeiro, que dizia que a segunda tranche o preço de 6 mil contos devia ser pago até ao dia 1 de Maio… então foi ele que lhe adiantou esse dinheiro, que avançou com esse dinheiro… E o senhor pagou quando? Quando é que devolveu o dinheiro que ele lhe avançou? (27:00) PC: Então, devolvi logo a seguir, quer dizer… Depois foi depositado, não é? Foi transferido…

              (27:06) Mandatário do autor: Foi depositado no senhor A na conta da Sogra…

              (27:08) PC: Exactamente, por isso é que nós temos (imperceptível) e vai já para a conta da… pronto para fazer o pagamento do empréstimo desse valor emprestado, não é, e de unos o restante… de 8750 para os tais 1750. A casa demorou muitos anos a ser construída porque era zona protegida e os processos, enfim, são complicados

              (27:37) Mandatário do autor: Sim, sim, não me interessa nada de obras…

              (27:38) PC: Não, não é isso, mas havia muito dinheiro que, como não precisávamos do dinheiro para entrar na obra nós emprestávamos ao pai da ré que precisava e, em vez de ir ao banco, nós… pronto havia ali umas entradas e saídas de dinheiro que era normal na altura. E às vezes até nos pedia mais dinheiro porque a filha tem uma… tinha condições melhores, não é? Pronto, na maioria das vezes também era para ele quer dizer…

              Com a verificação que não lhe era possível demonstrar que o pagamento do sinal de 1 de Maio tinha sido feito com o produto do sinal da venda da casa da Quinta, tenta o autor ficciona o autor um empréstimo do pai da ré.

              Confrontado com a existência deste empréstimo vem o Senhor engenheiro J, pai da ré, declarar de forma clara, sem qualquer hesitação a inexistência de qualquer empréstimo, dando como hipótese a mobilização de uma conta poupança-habitação que a ré era titular, no mesmo montante.

   Deixamos aqui transcritos parte do depoimento (ficheiro 20181108105326_11306494_28)

              Data do depoimento: 30.10.2018

             “AM (9:40): O Sr. engenheiro emprestou dinheiro ao seu futuro genro para a compra da casa da Rua C?

              JB (9:48): Não eu eh eh, eu como disse há bocado, desde por aí dos quinze, dezasseis anos desde que foi possível, eu abri uma conta poupança-habitação à ré e aos outros meus filhos e fui contribuindo anualmente e, era esse…

         AM (10:07): Não é isto que lhe estou a perguntar, Senhor engenheiro avançou dinheiro para a compra da casa da Rua C que lhe foi reembolsado pelo seu genro?

              JB (10:17): Não. Nunca foi preciso, não me lembro duma situação dessas.”

            Resulta, assim, da conjugação dos dois depoimentos que não se encontra provado, como era ónus do autor, que tivesse sido com bens próprios, o pagamento do sinal.

              Bem pelo contrário, não só o autor não provou o modo, o momento e sequer se o fez, como era sua obrigação.

           Atendendo à obscuridade, falta de congruência, entre o alegado, ausência de prova documental, declarações de parte e testemunha deve o facto (7) deve ser dado como não provado.

              Estranha-se a conclusão, absolutamente simplista, sem qualquer sustentação na prova documental e testemunhal produzida, bem pelo contrário, que o reforço de sinal foi feito pelo autor.

              Aqui chegados e por relevante cumpre deixar aqui o esclarecimento, porque foi feita expressa menção pela Sr.ª juiz do tribunal a quo que teria a aqui já referida testemunha Senhor Eng. J, pai da ré que a conta poupança-habitação, constituída pelo pai “Já a ré, apenas dispunha de algum dinheiro proveniente de uma conta poupança-habitação constituída pelo pai, na ordem dos seis mil contos, que terá usado para custear as obras de reabilitação do imóvel, que foram profundas e, provavelmente, de valor superior ao da aquisição.”

              Ora e não se pode deixar de lamentar a ligeireza que tal afirmação é proferida, nunca foi dito pela testemunha Eng.

              O que foi dito a instâncias da Sr.ª juíza e que aqui se transcreve relativamente a titularidade da conta poupança-habitação foi:

              “JB (12:42) Tenho uma leve ideia, uma leve ideia que a casa custou a volta dos 18 mil contos mais ou menos, e que o … teria aqueles seis mil da minha filha teriam sido o sinal, e que depois os outros 12 mil não sei como é que foram e… como é que foram pagos, e… mas tenho a ideia que, aí, é possível já havia também dinheiro que o autor tinha adiantado, e o… mas aí confesso que não sei muito bem como é que…

              Sr.ª juíza (13:27): Esses tais 6 mil a que se refere como sinal, será o que veio da tal conta poupança?

              JB (13:34): Penso que sim, porque essa conta só seria, só era possível movimentá-la…”

              Decidindo:

        A versão que a ré pretende estar provada não corresponde, notoriamente, à verdade. Lembre-se que ela, na contestação, dizia que o preço da compra do imóvel foi de 12 mil contos de que pagaram 10 mil contos com recurso ao empréstimo referido na escritura, nada dizendo quanto aos 2 mil contos que faltam para os 12 mil contos. Agora, através de uma construção absolutamente artificial vem dizer que 6 mil contos foram pagos por si e que ela e o autor pagaram 10 mil contos com o empréstimo. Pelo que, primeiro, a ré descobre agora que afinal pagou 6 mil contos de que nunca tinha falado e, segundo, descobre agora que afinal o preço foi de 16 mil contos (6 + 10) e não 12 mil contos.

              A artificialidade desta construção e a contradição entre o que ela diz agora e o que disse na contestação, retira toda a credibilidade às versões apresentadas pela ré.

              De qualquer modo veja-se:

              A argumentação da ré é a de que, como o cheque de 5750 contos com que o autor dizia ter pago os 6 mil contos da 2ª prestação foram depositados na sua conta (dela, ré, mas também da mãe), esse cheque não serviu para pagamento do preço do imóvel (num articulado apresentado no decurso do processo acrescentava que esse dinheiro, depositado na sua conta, até tinha servido para fazer uma aplicação financeira, pelo que não tinha servido, de certeza, para o pagamento do reforço do sinal). É um argumento inaceitável. Em condições normais que sentido teria que esse cheque, de um comprador de um imóvel do autor e irmãs com o qual a ré nada tinha a ver, fosse parar à conta da ré, sem ter nada a ver com o pagamento feito por esse comprador, apesar de ser da mesma data do contrato-promessa dessa compra e de que lhe é dada quitação no contrato-promessa? Dito de outro modo: se o comprador de um bem do autor e irmãs [não só do autor, apesar deste sugerir o contrário ao longo do processo] passa um cheque que vai parar à conta da ré, a ré não se pode limitar a dizer que com isso se prova que esse cheque não pode ter servido para com ele o autor pagar parte do preço do imóvel que compraram. Teria, logicamente, de acrescentar alguma explicação para o facto do aparecimento desse cheque na sua conta. Não o fazendo, é notória a artificialidade da sua argumentação. É, por isso, muito mais lógico e credível o essencial da versão que se retira da conjugação dos elementos de prova invocados na sentença recorrida: foram emprestados 5750 contos ao autor para ele pagar o reforço do sinal da promessa de compra do imóvel, porque ele só receberia o dinheiro da promessa de venda da fracção AD alguns dias depois; mal ele recebeu, uns dias depois, o sinal da promessa da venda da fracção AD, ele devolveu – ou fez devolver – o empréstimo, o que se comprova com o cheque de 5750 contos emitidos no dia 17/05/1991, data da promessa de compra e venda da fracção AD. É certo que o autor, nas declarações de parte, não acerta em pormenores, quanto a mutuante, datas e valores, mas isto até é favorável à credibilidade das suas declarações porque assim se vê que não foram ensaiadas. E as falhas nos pormenores ou imprecisões quanto a datas, como, por exemplo, na referência a que o empréstimo foi feito pelo pai da ré, quando afinal o empréstimo veio da conta da ré e da mãe constituída com dinheiro do pai que serviu para esse empréstimo por alguns dias, são perfeitamente inócuas e explicadas pelo esquecimento devido ao decurso do tempo desde 1991 (mais de 20 anos, tendo em conta a data da petição inicial).

                                                                 *

                                                      Pontos 8 e 10

              O tribunal fundamentou a sua convicção quanto ao ponto 8 do modo já referido para 6.

             Quanto ao ponto 10 o tribunal acrescenta: “Liquidadas as duas primeiras prestações a título de sinal e princípio de pagamento, a tranche final foi paga com recurso ao empréstimo bancário que autor e ré contraíram em conjunto como se demonstrou, quer pelo documento complementar anexo à escritura (fls. 38 e seguintes).       

               Na conclusão E/iii a ré diz que no confronto com a prova documental produzida e as declarações de parte, com base nas mais elementares regras de valoração da prova, não se pode dar como provado que não foi utilizado todo o montante disponibilizado em sede de crédito à habitação. Assim devem os factos 8 e 10 serem dados como não provados e agregados num só facto com a seguinte redacção: o preço foi pago com recurso a crédito bancário no montante de 10 mil contos e foi pago em partes iguais pelo autor e pela ré.

              No corpo das alegações a ré ainda invoca o conteúdo da escritura notarial, dizendo que a mesma não foi contrariada pela prova produzida.

              Decidindo:

              Sendo o preço do imóvel de 19 mil contos – o que é praticamente confirmado pelo próprio pai da ré como já se viu e pelo contrato-promessa escrito dado como provado no ponto 5 e aliás está provado no ponto 9 dos factos provados que não foi impugnado pela ré – e tendo já sido pagos 12 mil contos dele (6 + 6), é evidente que só faltavam pagar 7 mil contos, pelo que a argumentação da ré é, como já referido, baseada num puro artificialismo e profundamente contraditória com os factos provados.

              Note-se que dizendo a ré que o preço do imóvel foi de 12 mil contos e que 6 mil contos já tinham sido pagos por ela, a sua versão de que os 10 mil contos referidos na escritura como emprestados pelo Banco serviram para o pagamento do preço, é intrinsecamente contraditória, pois que assim o preço seria de 16 mil contos e não de 12 mil contos.

              Em suma: é evidente que dos 10 mil contos do empréstimo, apenas 7 mil contos foram para o pagamento do preço, pois que o preço foi de 19 mil contos e já tinham sido pagos 6 mil + 6 mil contos (e por isso só faltavam pagar 7 mil).

                                                               *                                                                 

Pontos 11, 12 e 13

              O tribunal fundamentou a sua convicção quanto a estes pontos assim:

           “[O]s mesmos constituem mera decorrência logico-conclusiva dos factos anteriores, que o autor, nas suas declarações de parte, também procurou salientar. A declaração de aquisição do imóvel em partes iguais não corresponde ao que efectivamente aconteceu e terá resultado de uma extrapolação desatenta do regime do mútuo que acompanhou a compra e venda para a própria aquisição do imóvel, e sem prejuízo de o mesmo sempre se ter destinado ao uso comum pelo casal como casa de morada de família.”

              Na conclusão i [sic] a ré diz:

              A perplexidade quanto à decisão nesta matéria, tanto mais que se atendermos não só à absoluta inexistência de prova documental (como não poderia deixar de ser) e apenas a referência ao lapso pelo autor, em sede de declarações de parte, relativamente ao alegado lapso, contrariado pelas actuações anteriores e posteriores à outorga da escritura pública [sic].

              É, absolutamente incoerente, não só se atendermos ao enquadramento fático ignorado, como também incoerente se atendermos ao reconhecimento vertido na sentença de impossibilidade de afasta a força probatória de um documento autêntico, por prova testemunhal [sic].

              Assim, e face a tudo quanto ficou atrás exposto devem os factos 11 a 13 ser dados como não provados e serem agregados num só com a seguinte redacção: Ficou provada que a consignação na escritura pública referida em 1 que o prédio foi comprado por autor e ré em partes iguais, correspondeu a vontade das partes não só na aquisição do prédio como na responsabilidade pelo pagamento do empréstimo bancário contraído, em comum e em partes iguais.

              O autor, nesta parte, respondeu à ré com adesão à fundamentação da decisão recorrida, não tendo dado qualquer fundamentação autónoma para que se pudessem considerar estes factos como provados.

              Decidindo:

              Aqui a ré tem parcial razão (na parte em que quer que se elimine o que consta dos pontos 11 a 13, mas não tem razão na parte em que quer que se dê como provada a versão contrária).

              O tribunal não invoca, na prática, prova produzida quanto às alegações de facto dadas como provados de 11 a 13. O que diz é que esses factos são mera decorrência logico-conclusiva dos factos anteriores. Sendo que as declarações de parte invocadas não serviram para provar o facto, mas para procurar salientar essa decorrência lógica, no dizer da própria fundamentação do tribunal recorrido.

              Ora, a verdade é que a lógica não é suficiente para provar essas alegações de facto.

              Veja-se (esquecendo-se por ora as regras de direito, já que, por agora, o que se está a discutir é só os factos):

              Aceita-se como muito natural (e por isso como possível) que o autor, como qualquer outra pessoa, tendo pagado, sozinho, 15,5/19 avos do imóvel, se considerasse, se e quando pensasse no assunto, como tendo direito a uma maior parte no imóvel do que a sua futura mulher.

              É certo que também seria possível dizer, como sugere a ré, que alguém que esteja apaixonado por aquele com que se vai casar daí a uns meses e com quem pensa ir fazer uma vida em comum duradoura, queira considerar essa casa como uma coisa dos dois, em partes iguais, não pensando que o facto de ter pagado mais dinheiro por ela, por ter mais dinheiro, faz da casa um bem mais dele do que do outro cônjuge, mas pelo contrário, ou seja: “eu paguei mais, mas o que é meu é teu, em partes iguais”, isto como demonstração de que não é egoísta, de que não dá importância superior aos interesses económicos sobre os outros e que quer de facto fazer uma vida em comum sem olhar a questões materiais.

              Poderia ser-se tentado a dizer que esta última hipótese é, no caso, no entanto, muito menos provável do que a primeira, já que o autor e a ré fizeram uma convenção antenupcial, em que fixaram ao seu casamento o regime de separação de bens e, por isso, eles quiseram expressamente afastar a ideia de que “o que é meu é também teu”.

              Mas, repare-se que a escritura de compra e venda foi celebrada a 22/05/1991 e a convenção antenupcial só veio a ser celebrada cerca de dois meses depois [que o autor vê como cerca de 1 mês e meio depois], pelo que não se pode dizer que, naquela data, o autor já tivesse a ideia que o casamento ia ficar sob o regime de separação de bens (embora o autor nas declarações de parte sugira que sim, mas numa fala muito curta, sem qualquer desenvolvimento, insuficiente para provar o facto, embora o autor, no artigo 8 das contra-alegações dê isso como absolutamente certo).

              Assim, pode-se dizer que as duas hipóteses se equivalem.

              De qualquer modo, repete-se, é possível que o autor, se tivesse pensado no assunto, ou quando pensa no assunto, considerasse/considere que o imóvel é mais dele do que dela, ou seja, que é dele, ou seria dele, na proporção da parte que pagou no preço.

              Mas disto não decorre, muito menos de forma necessária, que, 1.º, tenha havido um lapso na redacção da escritura, tanto mais que o que o autor sugere, nas suas declarações de parte e no recurso, é que a ré terá agido de má-fé, aproveitando-se de ter sido ela a tratar de tudo e de ter mais conhecimentos e experiência na matéria (curso de gestão e empregada bancária já desde alguns meses atrás) de contratos de compra e venda com recurso a crédito bancário (o que põe em causa o ponto 11 dos factos provados); 2.º, não havendo prova do lapso, não tem sentido estar a explicá-lo (e isto põe em causa o ponto 12 dos factos provados); 3.º, estando o autor até convencido que a ré terá estado de má-fé, não se pode dizer que a ré tenha pretendido declarar que só ia adquirir 18,43% do imóvel (o que põe em causa metade do ponto 13 dos factos provados); 4.º o próprio autor não disse, nas suas declarações de parte, ter pensado declarar que detinha uma quota de 81,57% no imóvel; aliás, se o autor, no momento, tivesse pensado no assunto, isto é, se a questão se se lhe tivesse colocado, certamente que teria ido ver o que é que lá estava escrito. Dito de outro modo, não há qualquer prova de que a declaração feita na escritura pública, de que autor e ré compravam o imóvel em partes iguais, não corresponda à vontade do autor e da ré, porque estes o que quereriam era declarar que o autor detinha 81,57% e a ré apenas 18,43% (é isto que consta do ponto 13). Pela lógica das coisas, é possível que o declarado não corresponda à vontade do autor e que, se o autor tivesse pensado no assunto, quisesse declarar que a aquisição era na proporção do que cada um deles pagou, mas não há prova disso, porque ninguém o disse (nem o próprio autor, que apenas procurou – recorde-se o dito pela fundamentação da decisão recorrida e leia-se a parte das declarações de parte do autor transcritas por ele -, salientar que isso decorreria das regras da lógica), nem consta de qualquer documento.

              Aliás, se se reparar nos pedidos formulados pelo autor (transcritos acima), ver-se-á que os pedidos que têm a ver com o lapso e as alterações na escritura, registo e matriz, são também postos como uma decorrência lógica da procedência do pedido (a). Ou seja, a questão não é consequentemente posta em termos de facto, mas em termos de direito e de lógica. Na petição inicial tem-se a noção de que quem paga mais é mais proprietário do que quem paga menos, pelo que, se estiver declarado uma coisa diferente, tal só poderia decorrer de um lapso.

              Se isto é assim ou não em termos de direito, é questão que se passa a ver. Em termos de facto não há prova do que consta dos pontos 11 a 13, pelo que eles são eliminados.

                                                                 *   

                                 Do recurso sobre matéria de direito

              A fundamentação da decisão recorrida é a seguinte (transcreve-se com algumas simplificações):

         Cumpre decidir, face à prova produzida, se é de reconhecer ao autor o direito a uma quota ideal sobre o imóvel superior à metade que consta declarada na escritura pública de compra e venda que outorgou juntamente com a ré.

         Demonstrou-se, com segurança, que o imóvel foi adquirido por autor e ré, para constituição da sua casa de morada de família, com recurso a fundos provenientes das poupanças do próprio autor e de uma doação da mãe deste e ainda do produto da venda de um imóvel pertencente ao mesmo autor; só a terceira e última prestação do preço, entregue com a celebração da escritura, foi já suportada por ambos, desta feita, até, com recurso a um empréstimo bancário.

         Recorde-se, antes do mais, que a escritura pública é um documento autêntico: nos termos do artigo 363/2 e 371/1 do Código Civil, são exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou por notário, fazendo prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, só podendo a sua força probatória ser ilidida com base na sua falsidade. Por essa razão, dispõe o artigo 394/1 do CC que é inadmissível a prova testemunhal de qualquer convenção contrária ou adicional ao conteúdo de documento autêntico.

         Tendo autor e ré sido casados entre si no regime da separação de bens, todo o património que adviesse ao casal deverá ser considerado como bem próprio de um ou de outro, ou, caso adquirido em conjunto, como bem adquirido no regime da compropriedade.

         Para o regime da comunhão de adquiridos, dispõe o artigo 1723/-c do CC que se consideram bens sub-rogados no lugar de bens próprios aqueles adquiridos com dinheiro próprio de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.

         Nos autos, devendo o bem considerar-se como adquirido em compropriedade, a questão coloca-se em saber qual a quota ideal pertencente a cada um, considerando a declaração negocial consignada na escritura pública e o regime constante do artigo 1403/2 do CC: os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes, presumindo-se, todavia, as quotas como quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo.

         Mesmo no âmbito do regime supletivo da comunhão de adquiridos, o legislador civil optou pela figura da sub-rogação real, com a norma contida no já referido artigo 1723/-c do CC, na sua modalidade mais ampla, de sub-rogação indirecta (casos como o dos autos, em que a perda e a aquisição de determinados bens resultam de actos jurídicos distintos), mas com uma forte limitação, destinada a proteger as legítimas expectativas de terceiros: como já acima referido, os bens adquiridos com dinheiro de um dos cônjuges só se consideram como bens próprios, quando a proveniência do dinheiro ou valores seja referida no próprio documento da aquisição ou equivalente.

         Para os casos em que o bem é adquirido com dinheiro de um dos cônjuges, mas sem a observância daqueles requisitos, no âmbito do regime da comunhão de adquiridos, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2015 (DR 1ª série de 13/10/2015) que dispôs da seguinte forma: «Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão do no título aquisitivo das menções constantes do artigo 1723/-c do CC, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal.»

         Compreende-se o sentido da jurisprudência assim fixada, que não vemos razão para não transpor para a situação sub judice: apesar dos condicionalismos daquela norma, a evolução jurisprudencial e doutrinal posterior tem entendido diferenciar, dentro da orientação perfilhada, os casos em que há interesses de terceiros a acautelar daqueles onde apenas estão em causa os das partes (cf. também, tirado antes do AUJ, o acórdão do STJ de 03/07/2014). Com efeito, tem-se vindo a entender – e, em nossa perspectiva, bem – que será desnecessária a menção escrita da pertença dos bens em comum ou só a um dos cônjuges, quando a situação a resolver não ultrapassa o domínio das relações entre ambos. Neste caso, como é o dos autos, o cônjuge, à custa de quem se fez a aquisição, pode, por qualquer meio, fazer a prova de que o reemprego na aquisição de bens na vigência do casamento – ou, como no caso, em regime de compropriedade, atento o regime da separação – se fez com bens apenas seus, ou maioritariamente seus.

         O raciocínio desenvolvido no AUJ é facilmente transponível para a situação dos autos, em que não existe qualquer património comum do casal para além do que tenha sido adquirido em compropriedade, atento o regime da separação de bens; com a diferença de que o próprio regime da separação já afasta a expectativa de existir qualquer forma [de] autonomia patrimonial, o que pode, até, trazer o argumento a maiori, ad minus – se, no âmbito do regime da comunhão de adquiridos, já se fixou o entendimento jurisprudencial de que o cônjuge pode provar a origem da sub-rogação em bem próprio, quando não estejam envolvidos direitos de terceiros, então no âmbito da separação de bens essa possibilidade deve ser afirmada sem hesitação.

         Refira-se, ainda, por um lado, que, admitida que esteja a prova, por qualquer meio, de que o bem foi adquirido maioritariamente com dinheiro proveniente da venda de bens próprios do autor – assim contrariando a declaração negocial vertida na escritura pública –, facilmente cai por terra o argumento relativo à presunção constante do registo. Na verdade, sabendo-se que o registo não é constitutivo de direitos e não estando em causa direitos de terceiros – cuja protecção é, afinal, a sua função primordial – dúvidas não restam de que a presunção de titularidade do direito nos termos em que o mesmo se encontra inscrito é ilidível, o que o autor fez. Por outro lado, a invocação quanto à existência de lapso, que teria justificado a menção na escritura e a inscrição no registo em partes iguais do direito de cada um sobre o imóvel, serve apenas como explicação para o sucedido, e não pretende constituir qualquer fundamento para anulação do negócio ou existência de vício da vontade/divergência entre a vontade e a declaração negocial – por isso, não há que discutir a questão da essencialidade de tal circunstância ou o seu conhecimento por parte da ré, como esta alegou na sua contestação.

         Tendo o autor demonstrado que, do preço total de 19 mil contos, pagou 15,5 mil contos, é titular do imóvel na percentagem correspondente, devendo o seu direito ser definido em conformidade e como tal reconhecido.

              A ré diz o seguinte contra isto:

         O AUJ 12/2015 do STJ não pode ser aplicado ao caso, porque, diferentemente da situação desse AUJ, o autor e ré, na data da aquisição do imóvel eram solteiros. Nestes autos, ao contrário do processo sobre o qual recaiu o acórdão do STJ não se discute a natureza do bem como próprio e/ou comum. Acresce, também, que, ao contrário do que acontece no caso do AUJ, no caso dos autos existem terceiros que devem ser protegidos, ou seja, o BPI, a favor do qual foram constituídas duas hipotecas sobre os imóveis em 17/03/1995 (ap.7) e em 25/11/1998 (ap.6).

         Por outro lado, estão em causa os princípios de confiança e de boa-fé nas relações contratuais. Autor e ré acordaram em determinado momento, adquirir um imóvel; para tal recorreram ao crédito bancário, não só para a aquisição, como também para as obras. Durante 20 anos, nunca em momento algum foi questionado a quota que qualquer um detinha na compropriedade. Investiram tempo e dinheiro, num imóvel (que por acaso era casa morada de família), cientes que era um projecto comum e partes iguais. Só em manifesta violação daqueles princípios, se pode admitir, como o fez o tribunal a quo, determinar uma alteração da proporção das quotas, com fundamento numa alegada desproporção de comparticipação no pagamento do preço.

                                         *

              Decidindo:

              O imóvel em causa nos autos foi comprado por autor e ré antes de casarem um com o outro, mais tarde, sob o regime de separação de bens.

             Assim, eles são comproprietários do imóvel (que adquiriram e pagaram todo antes do casamento – o que eles foram pagando depois foram as amortizações do empréstimo ao banco mutuante com o qual empréstimo pagaram logo a 3ª parcela do preço na data da escritura antes do casamento).

           O art. 1403/2 do CC, respeitante à noção de compropriedade, dispõe que: Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo.

              No título constitutivo, que no caso é a escritura notarial transcrita no ponto 1, consta que a venda foi feita ao autor e à ré em comum e partes iguais, pelo que, autor e ré devem ser considerados como titulares de quotas, no prédio, iguais, de 50% cada um, por força desse título e sem aplicação de qualquer presunção.

              Sabe-se, no entanto, que o autor pagou 15,5/19 avos do preço do imóvel, muito mais do que a ré (que apenas pagou 3,5/19 avos).

              Qual a consequência disto?

              Parecem possíveis três soluções:

              (i) considerar-se que a prova do pagamento em proporções diferentes prevalece sobre a afirmação que consta da escritura de que a compra foi em comum e partes iguais; é a solução adoptada pela sentença recorrida e pelo autor, colocada primeiro a nível dos factos, mas que pode continuar a ser defendida a nível do direito e os factos são suficientes para isso.

              (ii) considerar-se que é o que resulta da escritura pública que prevalece [a ré também levanta a questão da impossibilidade da prova do pagamento em contrário do que consta da escritura, por aplicação do disposto no art. 394 do CC, mas não tem razão, como o explica a sentença; acrescente-se ao que é dito pela sentença, que é entendimento doutrinal e jurisprudencial unânime – vários exemplos são dados pelo autor nas contra-alegações -, “de que havendo outro meio de prova admissível que constitua um início de prova” admite-se a prova testemunhal “como meio de prova complementar” em contrário do que consta de documento (as partes entre aspas são de Rita Gouveia, em anotação ao art. 394 do CC, no Comentário ao CC, Parte geral, FD/UCE, 2014, pág. 892); o artigo 364 do CC, que também poderia ser visto como obstáculo à primeira solução, só teria aplicação ao caso se a ré não tivesse participado na escritura, como o demonstra o comentário de Remédio Marques citado abaixo].

              (iii) considerar-se que as duas coisas são compatíveis,  o que,  diga–se desde já, é a solução correcta.

              A sentença recorrida e o autor defendem a primeira solução com recurso ao lugar paralelo do art. 1723/-c do CC e àquilo que a propósito deste foi dito pelo AUF do STJ 12/2015 (que, por facilidade de leitura, se passam a citar de novo):

              O artigo 1723 do CC dispõe que “conservam a qualidade de bens próprios: […] (c) os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.”

              Ora, o AUJ citado [proferido no proc.899/10.2TVLSB.L2.S1] veio dizer:  “Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723/-c do CC, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal.”

              Segundo a sentença recorrida, se no caso do art. 1723/-c do CC é possível contrariar aquilo que resulta de uma escritura pública, também os comproprietários, no caso do art. 1403/2 do CC, poderiam provar que as quotas foram adquiridas em proporção diferente daquela que resulta do título constitutivo e isto com a consequência de se considerar que as quotas são diferentes.

              É certo no entanto que no caso do art. 1723/-c do CC a situação resultante é a de uma prova contra o que resulta de uma omissão de uma menção (na escritura não se disse nada sobre a proveniência do dinheiro e no julgamento faz-se a prova dessa proveniência), enquanto no caso do art. 1403/2 do CC estar-se-ia a fazer a prova do contrário do que consta da escritura.

              Mas as situações são de facto semelhantes, como se verá, e é sempre bom o recurso a lugares paralelos para se entender um regime jurídico (sendo que a ré também acaba por utilizar argumentos do AUJ em causa e este acórdão também o fará). Note-se, de qualquer modo, que não existe ainda qualquer doutrina ou jurisprudência que tenha defendido esta solução ou tentado aplicar ao tipo de casos em causa a solução do AUJ 12/2015.

              Mas a objecção principal à solução defendida pela sentença recorrida e pelo autor é que, por um lado, apesar de estar provado que o preço foi suportado pelo autor em parte muito superior à da ré, não se fez prova de que aquilo que consta da escritura não seja verdade (daí a eliminação dos pontos 11 a 13 dos factos provados) e, por outro lado, as duas afirmações não são contraditórias.

              Ou seja, apesar do autor ter suportado um valor muito superior ao da ré no preço da compra do imóvel, a verdade é que ambos declararam ter comprado em comum e partes iguais, e isso pode corresponder à vontade de ambos, por variadíssimas razões, entre elas, já se disse, o quererem considerar o imóvel, que seria a casa onde iriam viver juntos como família, como uma coisa dos dois, em partes iguais, havendo uma liberalidade implícita (definitiva ou não, sujeita implicitamente a uma condição resolutiva ou não, revogável ou não, não interessa agora) por parte do autor a favor da ré (assim como se entende que a omissão das formalidades exigidas pelo artigo 1723/-c do CC, pode envolver um mudança na composição das diversas massas patrimoniais, sendo que não se pode invocar aqui, contra a validade de tal liberalidade, qualquer razão ligada ao princípio da imutabilidade de regime de bens no casamento, porque isto ocorreu antes do autor e ré se casarem e, inclusive, antes de celebraram a convenção antenupcial da separação de bens – sobre estas questões, veja-se Rita Lobo Xavier, Limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges, Almedina, 2000, págs. 341 a 365, especialmente a partir de 358).

              Note-se que não se estão a utilizar factos que não constam dos provados, pois que apenas se está a dizer que o que consta da escritura da compra do imóvel pode corresponder à verdade, apontando-se uma hipótese muito plausível de ser assim (e não se invocam outras, para não se ir além daquela que foi sugerida pela ré). Ou seja, está-se apenas a dar uma hipótese de explicação para o que consta de uma escritura pública, cujo conteúdo não foi afastado pela prova produzida.

              Ainda em defesa da inexistência de qualquer incompatibilidade das duas afirmações e por isso, também, da admissibilidade da prova da primeira apesar da segunda constar de uma escritura pública, pode-se recorrer à discussão que existe a propósito do art. 1723/-c do CC, com notícia naquele acórdão de AUJ do STJ, e nos comentários de que foi alvo, por exemplo, em Reflexões sobre a alínea c do artigo 1723 do CC e o AUJ do STJ 12/2015, de 02/07/2015, à luz de uma perspectiva histórica, de J. P. Remédio Marques, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Carlos Pamplona Corte-Real, Almedina, Nov2016 (em sentido favorável mas com uma restrição ligado ao art. 364 do CC), e AUJ 12/2015, de 02/07/2015, proc.899/10.2TVLSB.L2.S1, de Cristina Dias, Cadernos de Direito Privado, n.º 51, Julho-Setembro de 2015, págs. 77 a 85 (em sentido desfavorável).

              É que, quanto ao art. 1723/-c do CC, quase toda a doutrina e jurisprudência são unânimes em interpretá-lo como não impedindo que, não constando do título aquisitivo as menções constantes do art. 1723/-c do CC, se faça a prova, por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges, havendo apenas divergências quanto às consequências desta prova: se pode ser aproveitada para decidir quanto à natureza do bem a que se refere o título de aquisição, ou se só pode valer para a questão do direito de compensação a que o cônjuge prejudicado tem direito contra o cônjuge que beneficiou do facto de se ter de considerar o bem como comum. Como se vê da fundamentação do AUJ em causa, dos votos de vencidos e da posição de Cristina Dias no comentário referido (e que será também a posição de Rita Lobo Xavier, como resulta da obra citada acima), mesmo aqueles que defendem a solução adoptada pelo AUJ não recusariam este direito à compensação no caso de o bem não se poder considerar comum (com a única excepção, na doutrina, de Antunes Varela, em obra referida por Cristina Dias).

              Ou seja, apesar de um bem se ter de considerar como bem comum, por não terem sido feitas as menções exigidas no art. 1723/-c do CC, o cônjuge prejudicado pode fazer a prova de que o preço foi pago com bens próprios. Assim, não há incompatibilidade em se considerar que, por força das regras jurídicas vigentes (que no caso dos autos têm a ver com o facto de na escritura constar expressamente que a compra foi feita em comum e em partes iguais e os factos não apontarem para a falta de vontade de se ter querido dizer isso mesmo), o bem se tem de ter como bem comum e, apesar disso, ficar provado que foi um dos cônjuges que pagou todo o preço.

              Com as devidas adaptações pode-se então dizer – com a sentença recorrida e com o autor – que, por maioria de razão, um dos comproprietários pode provar que foi ele que pagou 15,5/19 avos do preço, apesar de, aqui já em desacordo com a sentença e o autor, por força do que se declarou na escritura pública, as quotas se terem de considerar como iguais.

                                                                      *

              Sendo como se defende acima, não se pode condenar a ré a reconhecer que o autor detém uma quota ideal correspondente a 81,57% (= a 15,5/19 avos) do direito de propriedade referente ao imóvel, nem se pode dar procedência aos restantes pedidos que deste são decorrência lógica.

              Pelo que a ré deve ser absolvida de todos os pedidos.

              Sendo assim, aquilo que a ré alega quanto a empréstimos posteriores relativos ao imóvel, garantidos por hipotecas, e às obras que nele foram feitas depois da compra, não pode ter qualquer influência no resultado final deste recurso, o que torna inútil qualquer ampliação da matéria de facto.

              E também por isto não tem relevo discutir a existência de interesses de terceiros que devessem ser protegidos (se não fosse a absolvição, a questão teria sentido, já que a alteração do que consta da escritura, do registo e da matriz poderia implicar com esses interesses, até porque nos termos formulados ela poderia ser vista como tendo eficácia retroactiva).

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por esta que absolve a ré de todos os pedidos.

              Custas da acção e do recurso, pelo autor.

              Desentranhe-se o documento junto pela ré com o recurso. A ré vai condenada em 1 UC de multa pela apresentação indevida do mesmo (arts. 443/1 do CPC e 27/1 e 4 do RCP).

              Lisboa, 12/09/2019

            Pedro Martins (vencido parcialmente enquanto relator de acordo com o voto de vencido que se seguirá)

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto

                                                                 *

           Embora relator do acórdão voto parcialmente vencido, pois que, apesar de também revogar a sentença pelas razões expostas, considero que ela deveria ser substituída por um acórdão que condenasse a ré a reconhecer que, do preço da compra transcrita em 1 dos factos provados, o autor pagou 15,5/19 avos e a ré pagou apenas 3,5/19 avos.

             Ou seja, consideraria que o pedido principal do autor poderia ser julgado parcialmente procedente, declarando-se que o autor pagou 81,57% do preço da compra do imóvel e a ré apenas 18,43% e condenando-se a ré a reconhecer isso.

           Esta declaração e condenação estavam contidas implicitamente no pedido principal do autor e o tribunal podia condenar em menos do que é pedido (a redução qualitativa de que fala Castro Mendes, lembrado por um dos votos de vencido no acórdão do STJ de 29/03/2012, proc. 680/2002.L1.S1).

              Isto é: o autor intentou esta acção, na prática, como acção prejudicial de uma futura acção de divisão de coisa comum. O efeito prático-jurídico por ele visado é que se tenha em conta que ele pagou mais do que a ex-mulher na compra do imóvel. Formulou um pedido demasiado amplo, mas isso não implica que, provando-se apenas parte dos factos, não lhe pudesse ser concedido o que, na prática, ele pretendia obter, embora algo diferente da pretensão formulada e em quantidade mais reduzida: não se lhe concederia o reconhecimento de que tem 81,57% na propriedade do imóvel, mas apenas de que tinha pago 81,57% no preço da compra do imóvel.

              Isto seria apenas válido para o pedido (a), não para os outros pedidos, visto que, quanto a eles não se fez prova dos factos necessários, como resulta do que foi dito acima.

              Note-se que estando em causa factos relativos só à compra do imóvel, era só relativamente a esta compra que se podia declarar a proporção apurada, não se podendo estender a afirmação ao direito de propriedade, pois que o direito de propriedade não se adquire só pela compra (também se pode adquirir por outros modos: arts. 1316 e 1317 do CC), nem se adquire necessariamente apenas num único momento, podendo resultar da conjugação de uma pluralidade de títulos e ser de formação sucessiva.

              Pedro Martins