Processo do Juízo Central Cível do Funchal – Juiz 3

              Sumário:

I – Provando-se os factos alegados pela ré numa escritura de justificação notarial, quanto à aquisição por usucapião de uma fracção predial onde sempre viveu desde 1996 como se fosse sua, com o preço todo pago e que tinha sido entregue pelo proprietário, a impugnação dessa escritura pela autora nesta acção improcede.

II – Tal como improcede o pedido de cancelamento do registo dessa fracção em nome da ré, feito com base nessa escritura, que prevalece sobre o registo da aquisição da mesma fracção a favor dos pais da autora feito apenas em 1998 e depois em 2012 a favor da autora, e sobre a presunção da titularidade do direito decorrente desses registos.

III – E provando-se que a autora, e antes os seus pais, nunca estiveram na posse dessa fracção, ocupando uma outra que ficava do outro lado dela, também não beneficiam da presunção da titularidade do direito que decorreria dessa posse.

IV – Pelo que o pedido de condenação da ré a reconhecer esse direito também tinha de improceder.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              Em 10/11/2017, A intentou uma acção declarativa contra B (e outros três réus entretanto absolvidos da instância), pedindo, em síntese, que (i) se declare nula e sem nenhum efeito a escritura de justificação notarial realizada a 17/09/2017 [em que a ré se declarou como proprietária, por a ter adquirido por usucapião, depois de uma posse de mais 20 anos, de uma fracção predial (2B, ou 2º fogo, ou fracção K) registada a favor da autora], (ii) se cancele o registo da aquisição da fracção efectuado a favor da ré com base nessa mesma escritura e (iii) se condene a ré a reconhecer que o direito de propriedade sobre aquela fracção pertence à autora por o ter adquirido por doação dos seus pais [e foram estes, tal como agora a autora, que sempre a possuíram].

              A ré contestou, alegando de novo tudo o que já tinha dito na escritura de justificação, e impugnou os factos alegados pela autora como base do pedido de reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre a fracção, para além de ter deduzido excepções que agora não importam. Diz ainda que nunca houve entre a ré e a autora (e antes os pais desta) qualquer conflito de vizinhança no que respeita ao que cada uma ocupava e relativamente ao que invocavam como propriedade respectiva e que toda a situação já tinha sido explicada ao pai da autora, pela notária, antes de lavrar a escritura de justificação, depois de notificar a autora nos termos impostos pelo art. 99 do Código do Notariado. Pediu a condenação da autora como litigante de má-fé, porque apesar de tudo isto a autora ainda assim intentou a acção.

              A autora impugnou a matéria do pedido de condenação como litigante de má fé, entre o mais dizendo ou sugerindo que a fracção K esteve registada a favor dos pais desde 1998 e inscrita na matriz a favor deles desde então, e agora está registada e inscrita em seu nome, tendo sido sempre os seus pais e ela a pagar os respectivos impostos. “Não exclui a possibilidade de erro de identificação [da sua fracção], tal como é explicado pela ré”, mas diz que “no caso o litígio não se desenrola à volta do título de posse ou propriedade [de uma fracção], mas sim de uma denominação registal, havendo dois proprietários que reclamam a mesma denominação para [fracções] diferentes” e que a escritura de justificação não era a via processual adequada para corrigir a situação.

              Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando a acção totalmente improcedente e em consequência absolvendo a ré dos pedidos contra si apresentados.

              A autora vem recorrer desta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

  1. A sentença viola os artigos 6 e 7 do Código do Registo Predial, bem como o artigo 291 do Código Civil.
  2. O artigo 6 do CRP, ao dispor que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, não permite que que haja uma usurpação da denominação registal da fracção que é propriedade da autora.
  3. A autora adquiriu a sua fracção por doação e os anteriores proprietários, seus pais, adquiriram a mesma fracção por título aquisitivo válido.
  4. Enquanto tal título aquisitivo não for anulado ou rectificado, deve manter-se a denominação registal que consta do mesmo.
  5. Qualquer erro de identificação do prédio no título aquisitivo originário do mesmo não é imputável nem à autora nem aos anteriores proprietários.
  6. Mesmo que viesse a ser considerado nulo o negócio aquisitivo inicial, os adquirentes gozam da protecção conferida pelo artigo 291 do CC aos terceiros adquirentes de boa-fé.
  7. Havendo uma disputa pela mesma denominação registal e já não pela mesma fracção física, deve prevalecer a inscrição registal realizada em primeiro lugar.
  8. Até ser anulado ou rectificado o título aquisitivo da autora ou dos anteriores proprietários, a inscrição predial a favor da autora goza da presunção consagrada no artigo 7 do CRP.
  9. O que a sentença fez foi confirmar a usurpação registal da denominação do prédio denominado fracção K a favor da ré sem ter em conta que a autora e os anteriores proprietários tinham adquirido, por um título aquisitivo válido, fracção do prédio com a mesma denominação, aquisição essa realizada de boa-fé.
  10. Mesmo admitindo que se encontram preenchidos os requisitos da usucapião, a solução a dar à denominação registal do prédio usucapido não passa pela usurpação registal da inscrição predial a favor da autora.
  11. Não é da competência dos tribunais comuns corrigir/alterar erros praticados pelo Município, quanto à constituição da propriedade horizontal.
  12. Deste modo, deverá prevalecer a inscrição predial a favor da autora, devendo ser cancelada a inscrição a favor da ré face à preexistência de um registo com título valido, realizado de boa-fé, e que não foi anulado nem rectificado.

              A ré contra-alegou concluindo pela improcedência do recurso.

                                                                 *

              Questão a decidir: se os pedidos deduzidos pela autora deviam ter sido julgados procedentes.

                                                                 *

              Os factos: nos termos do art. 663/6 do CPC, remete-se para os termos da decisão da 1ª instância a matéria de facto, já que ela não foi impugnada e não há lugar a qualquer alteração dela.

              Mas, para compreensão autónoma deste acórdão, faz-se a seguinte síntese dessa matéria na parte que importa e só no essencial:

         Em 1994, a ré, através do seu filho, celebrou com JV um contrato-promessa da compra e venda do fogo B, no 2.º andar, de um edifício que estava em construção no prédio registado sob o artigo 000/1990, pelo valor de 14.000 contos, pagando logo 10.000 contos do preço (com um seu cheque recebido na conta de JV).

         Em 27/10/1995 foi registada a constituição da propriedade horizontal sobre esse prédio: o fogo B, do 2º andar, com entrada pela Praceta 25 e com uma varanda com 5m2 que deita para essa Praceta, passou a constituir a fracção K desse edifício.

         Essa fracção confronta com uma outra fracção, no mesmo 2º andar, com uma varanda com 17m2, que deita para outro lado, estando as fracções separadas por um corredor, sendo uma à frente da outra.

         A fracção K foi entregue pelo promitente vendedor (que era o proprietário registado do prédio onde foi construído o edifício em propriedade horizontal).

         Os restantes 4000 contos foram pagos.

         A ré em fins de 1995, inícios de 1996, foi viver para a fracção K.

         Desde então a ré sempre lá viveu, à vista de todos e sem oposição de ninguém, considerando-se como sua proprietária, embora a escritura da compra e venda da fracção nunca tivesse sido feita (quando a ré para lá foi ainda não tinha sido emitida a licença de utilização para o edifício), o que a impedia de fazer o registo da compra.

         Em 1998, JV, que vive no 3.º andar do edifício, vendeu aos pais da autora uma fracção do 2.º andar, dizendo-se na escritura que era a fracção K.

         Os pais da autora registaram a aquisição na ficha predial da fracção K; em 2012 doaram a fracção à autora que também procedeu ao registo da aquisição na dita ficha K.

         Os pais da autora e agora a autora ocuparam a fracção que fica em frente da fracção K.

         Em 2017, a ré fez a escritura de justificação em causa nestes autos, dizendo, no essencial, o que consta acima, e depois foi registar a aquisição da fracção naquela ficha predial.

         A notária, antes de fazer a escritura, notificou a autora (por estar registada como proprietária da fracção k) e depois explicou ao pai da autora que haveria um erro de identificação da fracção registada em nome da autora.

                                                                 *

              Decidindo:

          Tendo presentes estes factos é claro que a ré estava, como disse na escritura de 2017, na posse da fracção K desde pelo menos o início de 1996, portanto há mais de 20 anos, como se fosse sua proprietária; fracção que lhe foi entregue de forma voluntária pelo proprietário da mesma e que usava à vista de todos; pelo que tinha uma posse boa para usucapião e com duração suficiente para o efeito (porque constituída e mantida sem violência nem ocultamente: arts. 1296 e 1297 do CC), que invocou na referida escritura (arts. 1287 do CC).

              A usucapião retroage à data do início da posse, 1996 (art. 1288 do CC), e prevalece sobre o registo posterior da fracção a favor de outrem (arts. 5 e 7 do CRP), pelo que é irrelevante o facto de ter sido vendida aos pais da autora, em 1998, a mesma fracção e eles a terem registado a seu favor, logo em 1998.

              Como diz Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 5.ª edição, Coimbra Editora, 1993, págs. 358-359: “[…] a usucapião […] é, para a nossa lei, o título fundamental de aquisição de direitos reais de gozo. Ela inutiliza por si todas as situações substantivas ou registais existentes, pelo que a sua actuação nunca poderia estar condicionada pelo registo. […]”. No mesmo sentido, também, José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, especialmente págs. 428 a 431.

              E ainda, por último, Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, AAFDL, 2017, págs. 46-47: “Por força da alínea a [do art. 5/2 do CRP], a aquisição fundada em usucapião dos direitos reais de gozo identificados no art. 2/1 pode ser invocada mesmo sem registo e contra qualquer registo (usucapio contra tabulas); ainda que a inscrição registal seja anterior ao início da posse, prevalece sempre o direito adquirido por usucapião, podendo servir, inclusive, para travar uma aquisição tabular. Se A, proprietário do prédio x, o vender a B que não regista e alienar novamente o mesmo prédio a C, que regista, este não consegue uma aquisição tabular se B demonstrar a usucapião. Aquele que invoca e prova a usucapião, impede o efeito atributivo [do registo].”

              A escritura de justificação foi feita nos termos do art. 91 do Código do Notariado e 116/2-3 do CRP, para estabelecimento de novo trato sucessivo, e o titular inscrito, a autora, foi notificada pela notária previamente à realização da escritura, nos termos do art. 99/1-2-4-10 do CN, não havendo notícia de qualquer reacção da sua parte, pelo que nada impedia a realização da escritura (neste sentido, por exemplo, Mónica Jardim, A evolução histórica da justificação de direitos de particulares, no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009, especialmente págs. 500-501).

              Assim, confirma-se o que consta da escritura de justificação e está correcto o registo actual da fracção a favor da ré feito com base nela, pelo que não podia proceder a impugnação dessa escritura pela autora, nem o pedido de cancelamento do respectivo registo a favor da ré, nem o pedido do reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre a mesma fracção, pois que quem é proprietária dela é a ré e a autora não goza da presunção da titularidade do direito decorrente desse registo da fracção posterior ao da posse da ré.

              E a autora nunca poderá opor a usucapião da fracção K a seu favor, visto que não a está a ocupar, nem os seus pais o fizeram, pois que o que ocuparam foi uma fracção predial em frente daquela. Ou seja, também não goza da presunção da titularidade do direito que decorreria da posse que nunca teve.

                                                                 *

              Isto tudo é evidente e era evidente já pelo menos na data da resposta da autora ao pedido de condenação como litigante de má fé, tanto que a autora, logo aí, “não exclui[u] a possibilidade de erro de identificação [da sua fracção], tal como é explicado pela ré”, e disse que “no caso o litígio não se desenrola à volta do título de posse ou propriedade [de uma fracção], mas sim de uma denominação registal, havendo dois proprietários que reclamam a mesma denominação para [fracções] diferentes”.

              Ou seja, desde então que a acção estava condenada ao naufrágio, pelo que a autora, para tentar fugir a ele, veio então dizer que não era isso que estava a discutir mas sim a titularidade da denominação registal de uma fracção predial.

              Mas é claro que os pedidos formulados pela autora não respeitavam a uma pretensão quanto a uma denominação registal, mas a uma acção complexa, como foi explicado pela sentença recorrida, em que, por um lado, se impugnava uma escritura de justificação notarial e, por outro, se pedia o reconhecimento do direito de propriedade sobre uma fracção predial. E, para mais, a autora dizia, sem fazer restrições, que estava a ocupar, como possuidora de facto, a fracção em causa, e não uma outra com o mesmo nome.

              Assim, a acção tinha de improceder no seu todo, como improcedeu.

                                                                 *

              De qualquer modo, para ter em conta os argumentos da autora, diga-se que uma descrição predial tem de corresponder a um preciso prédio, delimitado do modo possível (arts. 79, 82 e 86 do CRP); não é, por si, um bem, que possa ser atribuído a uma pessoa. Ora, no caso, não há dúvida – pela confrontação e pela descrição da fracção – que a fracção K do artigo 000 corresponde ao fogo B do 2º andar do edifício em causa.

              Pelo que essa ficha predial só pode ser a ficha dessa fracção e não da fracção que fica no outro lado do edifício. A autora não podia, mesmo que quisesse, registar a sua aquisição da fracção K na ficha predial da fracção L (apenas por exemplo), ou fazer criar uma outra ficha predial que corresponderia a uma fracção fantasma.

                                                                 *

              O art. 6 do CRP não tem aplicação ao caso, porque o conflito específico entre o registo de uma usucapião que retroage a momento anterior ao registo de uma outra aquisição e o registo desta, tem a solução específica referida acima (ou seja, resulta directamente do art. 5/1-2a do CRP).

                                                                 *

              O art. 291 do CC não tem a ver com o caso porque esta não é uma acção em que esteja em causa a anulação do negócio jurídico celebrado entre os pais da autora e o vendedor JV.

              O tribunal recorrido não corrigiu qualquer erro praticado pelo Município quanto à constituição da propriedade horizontal, nem o fez a notária que elaborou a escritura de justificação notarial que a autora impugnou com esta acção. Aliás, não há prova de erro praticado pelo Município.

             O que terá havido foi a atribuição de facto, pelo vendedor, de uma fracção predial aos pais da autora que não correspondia com a que lhes poderá ter sido realmente vendida.

             É certo que se tiver sido mesmo vendida a fracção K aos pais da autora, então terá havido uma dupla venda da mesma fracção.

            Mas não é por isso que se levantam os normais problemas de uma dupla venda, porque ela, a ter ocorrido, não teve correspondência com a fracção que foi entregue de facto aos pais da autora, o que possibilitou à ré que permanecesse na posse da fracção K por um prazo e modo suficientes para a usucapião da fracção, usucapião que, como explicado acima, prevalece sobre a venda e registo posterior da fracção aos pais da autora.

                                                                 *

              Tendo em conta estas circunstâncias a autora estará, aparentemente, protegida, quanto ao seu direito de propriedade sobre a fracção onde de facto vive, já que, pelo decurso do tempo da sua posse e da dos seus pais, poderá, se necessário, invocar a usucapião dela.

              O que não lhe evitará todos os problemas relacionados com o facto de ter perdido o registo da sua fracção predial e de ser colocada na situação de ter de fazer um novo sobre outra fracção, onde se lhe poderão colocar os mesmos problemas que se colocaram à ré. Isto torna compreensível que a autora não tenha sido condenada como litigante de má-fé e que a ré não tenha reagido contra tal decisão.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

           Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pela autora (que foi quem perdeu a acção).

              Lisboa, 26/09/2019

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto