Processo do Juízo de Família e Menores do Seixal

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

  1. No processo de divórcio entre A e B, foi homologado, a 20/06/2017, o acordo sobre a regulação do exercício das responsabilidades parentais em relação aos dois filhos menores do casal, C e D, nascidos respectivamente a 03/11/2006 e 13/08/2012, exercício que ficou a caber à mãe, tal como a guarda, atento o facto de o pai se encontrar a cumprir pena de prisão, e foi fixada a prestação alimentar de 100€ para cada menor, a actualizar em Janeiro de cada ano com referência ao índice de preços do consumidor, com início em Janeiro de 2018.
  2. A 28/05/2018 a mãe veio intentar incidente de incumprimento contra o pai, por falta de pagamento de prestação alimentar.
  3. O pai foi notificado e não respondeu.
  4. A 12/11/2018, o MP promoveu que se declarasse verificado o incumprimento e se solicitasse à segurança social a elaboração de inquérito acerca das condições do agregado familiar da mãe de modo a aferir da possibilidade de sub-rogação pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
  5. A 10/01/2019, o Instituto de Segurança Social, IP, apresentou o relatório do inquérito (num formulário AS28, relativo a um inquérito em que o ISS diz ter recorrido a várias fontes), do qual consta que o agregado familiar é composto pela mãe e pelos dois filhos, tendo aquela 150€ mensais de rendimento do trabalho e as duas crianças o total de 158,36€ de prestações sociais, pelo que considerou verificada a condição de recursos de acordo com o DL 70/2010, de 16/07, na sua versão actualizada, considerando que o rendimento per capita era de 75€ mensais, e assim concluiu que a mãe reúne as condições legalmente previstas para beneficiar da prestação social do FGADM.
  6. Perante isto o MP promoveu que se determinasse a intervenção do FGADM no pagamento da prestação de alimentos em substituição do pai.
  7. A 11/03/2019 foi declarado confessado e por isso verificado o incumprimento e depois fixou-se em 50€ mensais o montante a pagar pelo FGADM, em sub-rogação do devedor originário, relativamente a cada um dos mencionados menores, a remeter directamente para a progenitora dos menores.
  8. A 28/03/2019, a mãe recorreu de tal decisão – para que seja alterada, fixando-se o pagamento pelo FGA da pensão de alimentos de 100€ para cada menor, ou anulada, para que sejam realizadas as diligências necessárias à averiguação da (in)capacidade económica do agregado familiar e as necessidades específicas dos menores, em cumprimento do disposto no regime previsto no DL 164/99 de 13/05 -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem na parte que interessa e em síntese feita por este tribunal da relação de Lisboa:

         A decisão recorrida constata a deficitária situação económica do agregado, onde se inserem os menores.

         O MP pronunciou-se no sentido favorável à existência dos pressupostos do FGA.

         No formulário AS 28, Relatório Social, FGADM, no ponto 5.2 que “os rendimentos ilíquidos do agregado familiar são 150€ e a favor das crianças 158,36€”.

         Ao reduzir a pensão de alimentos a pagar pelo FGA aos menores, de 100€ para 50€, o tribunal não cuidou de dar cumprimento ao artigo 69/1 da Constituição da República Portuguesa, no que diz respeito à obrigação do Estado de velar pelo desenvolvimento integral das crianças.

         A invocação, pela decisão recorrida, do acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2015, publicado no DR n.º 85, de 04/05/2015 – no sentido de que a prestação a suportar pelo FGA não poderá ser superior ao montante a que está vinculado o devedor originário – [não] tem aqui alguma razão de invocação, pois o montante de 50€ fixado não é nem superior nem igual ao que está obrigado o progenitor.

         Nem se pode dizer que seja ligeiramente inferior, pois na verdade, trata-se de uma redução substancial, que atinge 50% da pensão judicialmente fixada.

         Como o tribunal a quo não averiguou das necessidades específicas dos menores, não poderia fazer tal redução, presumindo que 50€ para cada menor é o essencial para o seu sustento básico.

         No caso concreto, equitativo, legal e justo é estipular a pensão a pagar pelo FGA, no montante de 100€ para cada filho, até porque na sentença se reconhece expressamente que os menores estão inseridos num agregado familiar com deficitária situação económica.

         São as crianças que se encontram nestes agregados familiares que mais necessitam do apoio do Estado.

         Se (para efeitos da fixação do montante exacto a pagar pelo FGA) necessário é averiguar de quão deficitária é a situação económica do agregado dos menores, bem como as necessidades específicas dos menores e isso não foi feito, com a consequente impossibilidade de concluir, com segurança, pela verificação, ou não dos requisitos exigidos (Lei 75/98 de 19/11 e art. 3/3 do DL 164/99, de 13/05) impõe-se, de harmonia com o disposto nos artigos 639 e 662 do CPC anular a decisão recorrida, com vista à ampliação da matéria de facto.

               Não foram apresentadas contra-alegações.

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              Questões que importa decidir: se a prestação devia ter sido fixada em 100€ por menor ou se deviam ter sido feitas averiguações complementares para se apurarem os valores dos factores necessários à fixação de tal prestação.

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              Na decisão recorrida deram-se como provados, para além do que consta em 1 (embora com menos desenvolvimento) e do incumprimento referido no início de 7, os seguintes factos:

            i- Não é viável desconto em vencimento ou subsídio do progenitor.

      ii- Actualmente, o pai do menor não tem actividade profissional remunerada conhecida.

         iii- Não lhe são conhecidos emprego ou bens penhoráveis.

         iv- Está recluído em EP, atingindo o meio da pena em 2023.

          v- A mãe reside com os menores aludidos.

       vi- Este agregado aufere rendimentos per capita de montante inferior ao indexante de apoios sociais (= IAS).

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              A decisão recorrida não concretiza a situação do agregado familiar que descreve conclusivamente em (vi) dos factos provados.

              Essa omissão pode ser suprida agora porque o processo contém todos os elementos de prova que serviram de base à decisão do tribunal (art. 662/1-2c do CPC), ou seja, na parte que agora importa, o relatório social do ISS, transcrito na parte que interessa no ponto 5 do relatório deste acórdão.

              Assim, concretizando o que consta em (vi), acrescenta-se aos factos provados que o agregado familiar da mãe é composto por ela e pelos dois filhos referidos no ponto 1 do relatório deste acórdão, tendo a mãe 150€ mensais de rendimento do trabalho e as duas crianças o total de 158,36€ de prestações sociais.

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              A decisão recorrida descreve o regime legal e depois aplica-o mas não explica por que razão reduziu o valor da prestação alimentar dos 100€ a prestar pelo pai, para os 50€ a prestar pelo FGADM.

              Segundo o art. 1/1 da Lei 75/98, de 19/11 [vão-se citar todos os artigos legais na redacção em vigor já à data da decisão recorrida e tudo através das versões dos respectivos diplomas que estão publicadas no sitio da PGDL] quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189 do DL 314/78, de 27/10 [agora art. 48 do RGPTC], e o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação [praticamente igual ao art. 3/1 do DL 164/99, de 13/05 (que regulamenta esta Lei)].

              Por sua vez, o art. 2 dispõe: 1 – As prestações atribuídas nos termos da presente lei são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 1 IAS, independentemente do número de filhos menores. 2 – Para a determinação do montante referido no número anterior, o tribunal atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.

              Segundo o art. 3: 1 – Compete ao MP ou àqueles a quem a prestação de alimentos deveria ser entregue requerer nos respectivos autos de incumprimento que o tribunal fixe o montante que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar. 2 – Se for considerada justificada e urgente a pretensão do requerente, o juiz, após diligências de prova, proferirá decisão provisória. 3 – Seguidamente, o juiz mandará proceder às restantes diligências que entenda indispensáveis e a inquérito sobre as necessidades do menor, posto o que decidirá. […].

              Este artigo está regulamentado pelo art. 4 do DL 164/99: 1 – A decisão de fixação das prestações a pagar pelo Fundo é precedida da realização das diligências de prova que o tribunal considere indispensáveis e de inquérito sobre as necessidades do menor, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público. 2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, o tribunal pode solicitar a colaboração e informações de outros serviços e de entidades públicas ou privadas que conheçam as necessidades e a situação socioeconómica do alimentado e do seu agregado familiar.

              Segundo o art. 4-A, ainda da Lei 75/98: 1 – O montante da prestação de alimentos a cargo do FGADM não pode exceder o montante da pensão de alimentos estabelecida no acordo ou na decisão judicial de regulação do exercício das responsabilidades parentais ou de fixação de alimentos. 2 – Caso tenham sido fixados coeficientes de atualização da pensão de alimentos, devem estes ser considerados na determinação da prestação a atribuir pelo Fundo desde que a operação de liquidação possa ser realizada através de simples cálculo aritmético e com o recurso a coeficientes de conhecimento público. 3 – A atualização da prestação de alimentos é efetuada oficiosamente pelo Fundo de Garantia aquando da renovação dos pressupostos para a respetiva atribuição e tendo como referência a variação positiva em vigor no termo do ano anterior ao da renovação

              Segundo o art. 3 do DL 164/99, de 13/05 (que regulamenta a LGADM): […] 2- Entende-se que o alimentado não beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao valor do IAS, quando a capitação do rendimento do respetivo agregado familiar não seja superior àquele valor. 3 – O agregado familiar, os rendimentos a considerar e a capitação dos rendimentos, referidos no número anterior, são aferidos nos termos do disposto no DL 70/2010, de 16/06 [com as alterações entretanto ocorridas]. 4 – Para efeitos da capitação do rendimento do agregado familiar do menor, considera-se como requerente o representante legal do menor ou a pessoa a cuja guarda este se encontre. 5 – As prestações a que se refere o n.º 1 são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 1 IAS, devendo aquele atender, na fixação deste montante, à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor. […]

              Do DL 70/2010, de 16/06:

              Segundo o art. 2/3: Na verificação da condição de recursos são considerados os rendimentos do requerente e dos elementos que integram o seu agregado familiar, de acordo com a ponderação referida no artigo 5.º

              No art. 5, relativo à capitação do rendimento do agregado familiar, dispõe-se que no apuramento da capitação dos rendimentos do agregado familiar, a ponderação de cada elemento é efectuada de acordo com a escala de equivalência seguinte: requerente, peso 1; por cada indivíduo maior, peso 0,7; por cada indivíduo menor, peso: 0,5.

              Segundo o art. 3/1a, na parte que importa, para efeitos da verificação da condição de recursos, consideram-se os seguintes rendimentos do requerente e do seu agregado familiar: Rendimentos de trabalho dependente. […]

              Por força do seu extenso art. 4 e no que ao caso importa, o agregado familiar é composto apenas pela mãe e pelos dois filhos menores.

              Por fim, por força da Portaria n.º 24/2019, de 18/01, o valor do IAS para o ano de 2019 é de 435,76€.

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              Posto isto,

       Os menores fazem parte de um agregado familiar de 3 pessoas (um adulto/requerente e dois menores = 1 + 0,5 + 0,5) com uma capitação – formalmente de 75€ [150€ : 2] – manifestamente inferior ao IAS de 435,76€.

              O pai dos menores está judicialmente obrigado a prestar alimentos e não os está a pagar; os menores são residentes em território nacional; e não é possível cobrar a prestações pelas formas previstas no art. 48 do RGPTC.

              Logo o FGADM deve pagar em vez do pai.

              A conclusão do relatório do ISS – de um inquérito às condições do agregado familiar – vai no sentido de que a mãe reúne as condições legalmente previstas para beneficiar da prestação social do FGADM, sem pôr restrições quanto ao montante.

              A promoção do MP é no sentido da intervenção do FGADM no pagamento da prestação de alimentos em substituição do pai, sem propor que o montante seja reduzido.

              Dos factos não consta qualquer indício de que o acordo de alimentos homologado tenha fixado uma prestação alimentar em excesso relativamente às necessidades dos menores.

              O salário mínimo nacional [actualmente de 600€ – DL 117/2018, de 27/12] tem sido visto com um valor mínimo de uma subsistência minimamente digna do ponto de vista económico. Quando um agregado familiar é composto por mais de uma pessoa, também se costuma fazer o cálculo da capitação segundo ideias de economia de escala. Se no caso dos autos estivesse em causa uma questão de penhorabilidade [nos processos executivos] ou de fixação de rendimento mínimo indisponível [no CIRE], dir-se-ia – de uma forma ou de outra – que um agregado familiar de um adulto e dois menores deveria beneficiar de uma impenhorabilidade ou de um rendimento mínimo indisponível próximo de 2 SMN [assim, por exemplo, os acórdãos do TRP de 19/09/2013, proc. 3123/11.7TBVLG, do TRP de 05/05/2016, proc. 5757/15.1T80AZ, do TRL de 24/11/2016, proc. 9481/15.7T8LRS, do TRL de 22/03/2018, proc. 24815/15.6T8LSB-2, bem como, em dito lateral, do TRL de 24/04/2019, proc. 2159/14.0T8ALM.L1-2, e todos os acórdãos aí citados].

              O IAS substitui a referência ao SMN quando estão em causa prestações da segurança social. Sendo ele um valor mais baixo do que o SMN, considera-se que se pode dizer pelo menos o mesmo que se diz do SMN: para estas questões, o IAS representa pelo menos um limiar de subsistência minimamente digno. E de novo tendo em conta as economias de escala, dir-se-ia que um agregado de 1 adulto e 2 menores deveria beneficiar, pelo menos, de 2 IAS, ou seja, 871,52€ [= 435,76€ x 2].

              Ora, o agregado familiar em causa nestes autos recebe, por mês, apenas 150€ + 158,36€. Se se lhe der mais 100€ + 100€, fica com um total de 508,36€, que pouco mais é do que 1 IAS e muito menos do que 2 IAS.

              Assim sendo, não há qualquer modo de justificar uma redução dos 200€ que o pai tem de pagar para os 100€ que o FGADM foi posto a pagar pela decisão recorrida.

              Assim, o valor de 50€ por menor, fixado na decisão recorrida deve ser aumentado para 100€ por menor.

              Dado que os factos provados permitem já a conclusão de que a decisão deve ser alterada, não se justifica a necessidade de se fazerem quaisquer outras averiguações das condições de vida do agregado familiar e das necessidades específicas dos menores, isto é, dito de outro modo, não se justifica a necessidade de ampliação da matéria de facto (art. 662/2c, parte final, do CPC).

              Esse valor, por outro lado, tem de ser actualizado em relação a 2019 pelo FGADM, por força do art. 4-A, n.ºs 2 e 3, da Lei 75/98, transcritos acima, tendo em conta os termos previstos no acordo homologado.

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              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, alterando-se, com efeitos retroactivos à primeira prestação de 50€ já paga pelo FGADM, a prestação fixada na decisão recorrida para o valor de 100€ por cada menor, tendo o FGADM que ter em conta o disposto no art. 4-A/3 da Lei 75/98, na redacção em vigor.

              Sem custas.

              Lisboa, 26/09/2019

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto