Embargos de Executado – Juízo de Execução do Funchal

 

              Sumário:

              I – Sendo o título executivo um título cambiário é ao executado que cabe o ónus de alegar e provar a inexistência de qualquer obrigação subjacente, ou a sua extinção (incluindo por pagamento).

              II – Sendo o título executivo um título cambiário – mesmo que não prescrito -, se o exequente invocar a causa da obrigação subjacente, é ao executado que cabe o ónus da alegação e prova de qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo, mas agora apenas da obrigação subjacente invocada e não da inexistência de qualquer obrigação subjacente.

              III – É também ao executado que cabe o ónus da alegação e prova da existência e conteúdo de acordos quanto ao preenchimento de títulos de crédito em branco e do preenchimento desconforme com eles (art. 10 da LULL).

            IV – A inversão do ónus da prova não é o mesmo que inversão do ónus de alegação.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

              A 03/02/2015, o Banco-SA, requereu uma execução contra F, com base, para além do mais, numa livrança na qual consta o valor de 187.156,55€, com data de vencimento a 10/12/2014, que junta e dá por reproduzida (em fotocópia – o original foi junto a 13/02/2015), e da qual consta a subscrição pelo executado e a sua entrega ao exequente para garantia das obrigações decorrentes de um contrato de empréstimo celebrado em 26/02/2013, também junto; diz que a livrança foi apresentada a pagamento na data do seu vencimento e não foi paga; quer o pagamento daquele valor, bem como dos juros de mora e imposto de selo respectivo.

              A O-SA, a 02/08/2016, deu notícia de ter sucedido ao B-SA e a 10/09/2018 foi dado despacho a reconhecer a sua legitimidade para a execução sem necessidade de habilitação (citando-se nesse sentido o ac. do STJ de 28.09.2017, processo n.º 1570/13.9TBCSC-A num caso similar).

              A 25/10/2017, o executado deduziu, para além do mais que agora não interessa, embargos de executado, alegando para o efeito, em suma, que:

         (9) a exequente não juntou o contrato de empréstimo, sem o qual é impossível apurar se houve ou não incumprimento por parte do executado e se a livrança foi preenchida de acordo com o pacto convencionado; (10) foi a exequente que preencheu a livrança sub judice, (11) sem que tivesse junto o respectivo pacto de preenchimento, ou alegado quaisquer outros factos ou junto documentos comprovativos do seu vencimento, do incumprimento ou da quantia efectivamente em dívida; (13) a exequente não alegou os factos constitutivos da relação subjacente ao título, pelo que o título executivo não pode servir de base à presente execução, por violação do disposto no art. 703/1-c do CPC; (14) trata-se de uma situação de “incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução”; (18) o executado era sócio-gerente e accionista de várias sociedades comerciais pertencentes ao grupo familiar DS, as quais atravessaram sérias dificuldades financeiras devido à crise instalada; (19) entre finais de 2012 e princípios de 2013, num período em que o executado se encontrava psicologicamente muito abatido e afectado, foi fortemente pressionado pela exequente para constituir uma hipoteca sobre o imóvel que constituía a sua habitação efectiva e permanente, por forma a adquirir um crédito que a exequente detinha numa dessas sociedades comerciais, a C-SA, cujo presidente do Conselho de Administração era o próprio executado; (20) como forma de a exequente poder conceder um empréstimo bancário à M-Lda., empresa do grupo familiar; (23) através do contrato de empréstimo garantido por esta livrança e hipoteca, e da entrega pelo executado à exequente de 30.000€, esta obrigou-se a disponibilizar as verbas necessárias para o executado adquirir a dívida que a exequente detinha na C-SA, (24) só que a quantia mutuada nunca entrou em nenhuma conta bancária, quer do executado, quer da C-SA, nem a exequente titulou por qualquer forma essa cedência de crédito, ou comunicou à sociedade, ou ao executado, ou, posteriormente, à Administradora de Insolvência desta sociedade; (25) sendo que anteriormente a essa data reclamou esse crédito, no valor de 232.000€, no âmbito do processo de insolvência da mesma; (26) não obstante o alegado em 23, a exequente não informou a AI, de que já não era a titular desse crédito, pelo que continuou a constar da lista actualizada de credores elaborada em 2015; (27) o executado está convicto que está em causa o mesmo crédito: o reclamado no referido processo de insolvência, o adquirido pelo executado com a disponibilização das verbas do empréstimo concedido e a quantia reclamada na presente execução; (28) a quantia mutuada nunca foi entregue ao executado, pese embora, este tenha pago várias prestações até perceber que estava a pagar indevidamente o que nunca tinha recebido; (29) pelo que tem dúvidas sobre a própria existência da dívida titulada pela livrança e hipoteca constituída, o que se invoca para todos os efeitos legais.

              Só a 14/12/2017 é que executado juntou os documentos que tinha protestado juntar.

              A exequente deduziu contestação, pugnando pela improcedência dos embargos; disse que:

         (i) a livrança tinha sido preenchida de acordo com o que constava do contrato de empréstimo que garantia e pelo valor em dívida no momento em que foi preenchida – e junta o contrato em causa; (ii) apesar de o ter feito, não tinha de invocar a relação subjacente à livrança, nem de invocar factos que consubstanciassem a causa de pedir, porque eles constavam da livrança, título de crédito suficiente para o efeito, pelo que também não tinha que juntar o contrato em causa; (iii) é falso o alegado desconhecimento do executado quanto à data e valor pelo qual a livrança foi preenchida, e não séria a alegação da sua impossibilidade em apurar se a livrança foi correcta ou abusivamente preenchida, e carecem de sentido as alegadas dúvidas do executado no que concerne à certeza, exigibilidade e liquidez da dívida peticionada; (iv) a finalidade do empréstimo era “para reembolso de dívidas ao B-SA, autorizando desde já a proceder aos necessários movimentos” tal como resulta da cláusula 1.ª do contrato de empréstimo junto, e não a cedência ao executado do crédito que o B-SA detinha sobre a sociedade de que o executado era presidente do CA; (v) é ridícula a afirmação do executado de que a quantia mutuada nunca entrou em nenhuma conta bancária do executado ou da aludida sociedade devedora, pois que nos termos do disposto na cl.ª 4.ª do contrato de empréstimo o montante mutuado é creditado nesta data na conta de depósitos à ordem e será utilizado integralmente e de imediato pelo 2.º outorgante [o executado] e conforme resulta do ponto 5 da cl.ª 1.ª do contrato de empréstimo, para efeitos do contrato deveria considerar-se a conta de depósitos à ordem n.º 0000000000/00, de que o executado era titular; ora, do doc.6, que corresponde a um extracto de movimentos da referida conta de depósitos à ordem, foi feito o depósito da quantia de 200.788,00€, a 26/02/2013, com a descrição ‘Abertu. Emprest.’ correspondente ao montante mutuado de 202.000€, deduzido da quantia de 1212€, correspondente ao imposto de selo devido pela operação (0,6 %).

           Por requerimento de 26/09/2018, o executado pediu que se notificasse a exequente para juntar aos autos os seguintes documentos, para prova dos factos supra alegados:

a) Ordem de transferência de 199,977.86€ mencionada no extracto junto à contestação como doc.6, com identificação do respectivo ordenante e beneficiário (conta e titular);

b) Comprovativos de pagamento de todas as prestações liquidadas pelo executado.”

              A 31/10/2018 foi proferido seguinte despacho, na parte que importa:

         “[…] notifique a exequente para vir, no prazo de 10 dias, juntar aos autos a documentação requerida nas alíneas a) e b) do requerimento [de 26/09/2018].

         Consigna-se que o requerimento […] peticiona a junção dos mesmos documentos que se requer na petição inicial.”

              No ponto XV do despacho saneador de 25/02/2019 diz-se:

         “Notifique a exequente de que volvido o prazo concedido para juntar a documentação solicitada sem que o tenha feito ou invocado justo impedido vai condenada na multa processual de 204€.

         Mais a notifique de que cabe a si o ónus de provar a entrega do dinheiro mutuado no contrato subjacente à livrança, sendo insuficiente a mera prova testemunhal nessa matéria.

         Tendo sido ordenada a prova dos pagamentos do contrato subjacente, sem que tenha vindo juntar tais documentos, o ónus dessa matéria passa a pertencer-lhe no sentido de ter de provar ausência de pagamentos/situação de incumprimento, que carece, igualmente, de prova documental nos termos do disposto no artigo 344/1 do CC.”

         Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença a 07/05/2019 julgando os embargos procedentes, determinando-se a extinção da execução e o cancelamento da penhora.

          A exequente recorre desta sentença – para que seja revogada para que a execução prossiga -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões [sintetizadas por este tribunal de recurso e apenas na parte que importa]:

         A livrança foi dada em garantia das obrigações decorrentes de um contrato de empréstimo, celebrado em 26/01/2013, conforme alegado na exposição de factos do requerimento executivo.

         A livrança em branco é admitida pela lei, nos termos dos artigos 10 e 77 da Lei Uniforme de Letras e Livranças, e torna-se eficaz quando, depois de preenchida de acordo com o contrato de preenchimento convencionado, for dada à execução.

         A livrança foi preenchida pela exequente, nos termos da convenção de preenchimento, pelos exactos montantes das responsabilidades do executado.

         Verificando-se o incumprimento do contrato já referido, e nada tendo sido liquidado após interpelação feita pela exequente, foi a livrança preenchida pelos exactos valores em dívida, e nos termos precisos previstos no respectivo pacto, tornando-se inteiramente completa, válida e exigível.

         A esta obrigação estão inexoravelmente ligadas as características de literalidade e abstracção; como tal, e uma vez que a livrança dada à execução reveste a natureza de direito cartular, ao contrário do que pretende o executado, a exequente não tinha de invocar a relação material subjacente, embora o tenha acabado por fazer.  

         É manifesto que, ao contrário do que vem dito pelo embargante, a exequente não teria de juntar aos autos o contrato de crédito cujo bom cumprimento a livrança garantia, nem teria de alegar factos ou juntar comprovativos do seu vencimento, do incumprimento ou da quantia efectivamente em dívida.

         O tribunal diz que não se logrou provar que a quantia mutuada foi efectivamente transferida para o embargante, mas o ónus de prova não cabia à exequente, mas, sim, ao executado; mais se dizendo que é difícil provar um facto inexistente como é o caso de provar a falta de um pagamento.

         Como confessado pelo executado, o mesmo era sócio-gerente e accionista de várias sociedades comerciais, sendo que, algumas delas eram clientes do B-SA e que haviam junto do mesmo crédito, como é o caso das C-SA e M-Lda.

         O executado era responsável solidário e avalista nas referidas obrigações, mais concretamente, era o mesmo avalista da C-SA no âmbito de um contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada que aquela havia celebrado com o B-SA.

         A exequente desconhece, nem tem obrigação de conhecer exactamente, os fundamentos que levaram o executado a pretender contrair o crédito na origem da dívida executada junto do B-SA, mas resulta claramente da cláusula 1.ª do contrato de empréstimo tal propósito: “Finalidade: Exclusivamente para reembolso de dívidas ao B-SA, autorizando desde já a proceder aos necessários movimentos.”.

         Configura-se como uma deturpação da realidade a ideia espelhada nos embargos de executado que o negócio visava a cedência ao embargante do crédito que o B-SA detinha sobre a C-SA e é ridícula a afirmação do executado de que a quantia mutuada nunca entrou em nenhuma conta bancária do executado ou da aludida sociedade devedora, e que apenas mais tarde, tendo-se apercebido de tal, teria cessado por esse motivo os pagamentos das respectivas prestações, posição esta que é corroborada pelo tribunal, o que constituiu uma verdadeira surpresa para a exequente.

         Nos termos do disposto na cl.ª 4.ª do contrato de empréstimo, “O montante mutuado é creditado nesta data na conta de depósitos à ordem e será utilizado integralmente e de imediato pelo 2.º outorgante”.

         Ora, conforme resulta do documento n.º 6 que foi junto aos autos, e que corresponde a um extracto de movimentos da referida conta de depósitos à ordem, foi feito o depósito de 200.788€, a 26/02/2013, com a descrição “Abert. Emprest.”, correspondente ao montante mutuado de 202.000€, deduzido de 1212€, correspondente ao imposto de selo devido pela operação (0,6 %).

              O executado não contra-alegou.

                                                                 *

              Questões que importa decidir: se os embargos não deviam ter sido julgados procedentes.

                                 *

              Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão daquela questão:

  1. A 22/01/2015, foi apresentado à execução, em apenso, livrança, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, na qual consta, na parte relativa ao subscritor a identificação do embargante e a sua assinatura.
  2. Consta, igualmente, como local e data de emissão “Funchal 2013-02-26”, como data de vencimento “2014-12-10”, como importância em Euros “187.156,55”, como valor “Dívida Comercial – Contrato de Empréstimo celebrado em 2013-02-26”.
  3. Essa livrança foi assinada em branco pelo embargante, tendo sido, posteriormente, preenchida pelo B-SA.
  4. Foi assinada para garantir o cumprimento pelo embargante do contrato de empréstimo junto como documento n.º 1 com a contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
  5. No mesmo consta que a finalidade do empréstimo consistiu «exclusivamente para reembolso de dívidas ao B-SA, autorizando desde já a proceder aos necessários movimentos».
  6. Encontra-se datado de 26/02/2013.
  7. Consta como montante emprestado 202.000€, aos quais acrescem segundo o clausulado, juros, comissões e despesas, bem como, em caso de incumprimento, penalizações.
  8. O mencionado empréstimo destinava-se a liquidar/pagar a dívida da C- SA.
  9. Por conta desse empréstimo foram efectuados pagamentos.

                                                                                  *

              A sentença tem a seguinte fundamentação de direito:

         “O título executivo consiste em livrança subscrita pelo embargante. Tal título cambiário destinou-se a garantir o cumprimento de contrato de mútuo. É unânime que um contrato de mútuo traduz um contrato real quoad effectum — cf. artigo 1142 do Código Civil. Isto é, que somente se encontra completo com a entrega do capital mutuado. O ónus de prova de tal entrega cabe ao credor. Não tendo logrado demonstrar a exequente tal entrega a execução não pode prosseguir.

         Mas, ainda que se tivesse concluído que tal entrega ocorreu, a execução não poderia prosseguir até que a exequente demonstrasse os pagamentos efectuados e o momento em que o executado incorreu em mora e a mesma foi convertida em incumprimento definitivo, sem prejuízo do prazo de deserção.

         Na verdade, tendo o embargante solicitado que a embargada juntasse os comprovativos de pagamento de todas as prestações liquidadas pelo executado, tendo-lhe sido deferido por despacho oportunamente transitado em julgado, sem que a exequente tivesse anuído a proceder a tal junção, nem alegando qualquer fundamento para não o fazer — não colhendo qualquer mera invocação de não ter ainda encontrado tal documentação nos seus arquivos, que não significa que a mesma não lhe tenha sido entregue pelo B-SA —, o ónus de que não ocorreram pagamentos, designadamente que o título executivo não deixou de contemplar pagamentos efectuados, passou a caber à exequente como foi decidido no despacho saneador no ponto XV, que não foi objecto de reclamação ou de recurso.”

                                                                 *

              Nada disto está certo.

              Veja-se:

                                                                (I)

           Do ónus da alegação e prova da constituição da relação subjacente à obrigação cambiária?

              O exequente munido de um título de crédito executivo que faz prova, só por si, quando não impugnada a respectiva assinatura, da existência de obrigação cambiária exequenda [arts. 373/1, 374, 376/1 do Código Civil], não tem que alegar e provar factos dos quais se possa concluir pela existência de uma obrigação fundamental subjacente à obrigação cambiária que se constituiu (arts. 703/1-c e 724/1-e, ambos do CPC).

              Está, pois, errado o tribunal recorrido quando diz que “cabe [à exequente] o ónus de provar a entrega do dinheiro mutuado no contrato subjacente à livrança […].”

              É, sim, ao executado, que cabe alegar e provar – quando seja parte na relação fundamental (pois que se não o for, ela é-lhe alheia, isto é, res inter alios acta, e nem sequer a pode invocar, isto é, alegar meios de defesa relacionados com ela: arts. 406/2 do CC e 17 da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças: Carolina Cunha, Letras e livranças…, Almedina, 2012, págs. 169, 253-254 e 595) – que não se chegou sequer a constituir qualquer relação subjacente ou que ela se modificou (art. 342/2 do CC).

              Não é também ao exequente, por isso, que cabe o ónus da alegação e prova de que a obrigação fundamental subjacente à obrigação cambiária exequenda já não existe, ou não existe na totalidade, por já ter sido paga, na totalidade ou em parte.

              O pagamento (ou pagamentos), sendo matéria de excepção peremptória, tem de ser alegado e provado pelo devedor, não pelo credor (art. 342/2 do CC).

              E muito menos – nestes casos em que o título cambiário executivo é suficiente por si, sem ter que ser complementado – o exequente tem de alegar e provar os factos dos quais se possa concluir que a mora no cumprimento da obrigação subjacente se converteu em incumprimento definitivo.

              É, pois, ao executado que cabe alegar e provar tudo o que tem a ver com a obrigação fundamental que quer opor ao exequente: que ela não se constituiu, que não se constitui nos termos pressupostos, que já não existe, na totalidade ou parcialmente, etc..

              E tem de o fazer com alegações de facto concretas que sejam susceptíveis de prova, não com afirmações dubitativas que não se podem provar, como são, no essencial, as que o executado fez nestes embargos (e para o demonstrar, transcreveram-se longas passagens dos embargos em que isso é notório).

              Neste sentido, por exemplo, veja-se o ac. do TRP de 03/03/2016, proc. 175/14.1T8LOU-A.P1:

         “[…] sempre se tem entendido que é aos embargantes que cabe a alegação e a prova da inexistência da relação subjacente à obrigação cambiária e do pagamento da dívida.

         O título executivo serve de base à execução e é simultaneamente prova da existência da mesma; daí que, como diz Lebre de Freitas, “[a] obrigação exequenda tem de constar do título e a sua existência é por ele presumida […] dispensando a indagação do direito que pressupõe […]”; presumida [a existência da obrigação exequenda] pelo título executivo, dela não há necessidade de fazer prova”; “ao exequente mais não compete, relativamente à existência desta obrigação [a exequenda] do que exibir em tribunal o título (executivo) pelo qual ela é constituída ou reconhecida” (A acção executiva…, 6.ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 24, 25, 38, 43, 72, 81, 83, 85, 90, 97).

         Por isso, são os executados que têm de alegar e provar a inexistência da relação subjacente à relação cambiária (Lebre de Freitas, ob. cit., págs. 206-207, invoca como correctos os acs. do TRP de 21/10/1996, CJ.V, pág. 183, e de 13/03/2003, CJ.II., pág. 179, que decidiram ser ónus do executado a prova da inexistência da relação fundamental).

         Postas as coisas nos termos de Carolina Cunha: “qualquer que seja o significado particular de uma concreta vinculação cambiária, o certo é que atribui objectivamente ao credor um instrumento poderoso: a faculdade de exigir o pagamento de uma quantia em dinheiro com a simples apresentação do título e dentro dos pressupostos ou limites que o próprio título enuncia (prazo, soma, sujeitos, etc.). Ao contrário do que sucede com um cre­dor vulgar, nada mais tem o credor cambiário que alegar ou provar para obter a satisfação do seu direito. O que não significa, contudo, que o resultado seja auto­mático: justamente na medida em que ao devedor seja reconhecida a faculdade de opor excepções causais, pode a satisfação do credor ver-se impedida pelo êxito dessa oposição. Mas ainda quando isso aconteça, diz-se, beneficia o credor cambiário, no confronto com um credor vulgar, de uma significativa vantagem: o benefício da inversão do ónus da prova, já que é ao devedor (imediato) que cabe alegar e provar os factos respeitantes à causa (aos seus revezes ou à sua ausência). Equacionando o problema no âmbito do princípio geral da necessidade de indicação da causa, estamos em presença de um desvio mediante o qual a ordem jurídica concede reconhecimento ad-hoc ao puro efeito documentado (constituição da relação obrigacional cambiária), dispensando o credor de realizar qualquer demonstra­ção relativa à função económico-social que torna inteligível o negócio (cartular) de onde promana. Esta preciosa simplificação processual do exercício do direito combina-se, no nosso ordenamento jurídico, com uma outra vantagem de peso: à luz do dis­posto no art. 46/1-c do CPC [agora art. 703/1-c do CPC], o título cambiário constitui um título exe­cutivo extrajudicial. Serve, portanto, de fundamento à instauração directa de um processo executivo, sem precedência de processo declaratório: o credor cam­biário não pede ao tribunal que condene o devedor a cumprir a obrigação cam­biária, e sim que dê realização material coactiva à pretensão documentada no título” (obra citada, págs. 267/268).”

                                                                 *

                                                                (II)

              Das consequências da invocação, pela exequente, da relação subjacente à obrigação cambiária

              Há, no entanto, uma distinção a fazer em relação ao que antecede, quando o exequente, por qualquer razão, invoca a “causa da obrigação subjacente”, pois que assim “introduz esta como objecto do processo executivo, mesmo que ainda não tenha prescrito a dívida abstracta.” (Lebre de Freitas, obra citada, 4.ª edição, pág. 77).

              Neste caso, que é o caso dos autos, sendo invocada a causa de pedir da obrigação subjacente e constando do título a promessa de pagamento de uma dada quantia por força da assinatura constante do quirógrafo a que o título de crédito cambiário continua a dar corpo, é ao executado que continua a caber o ónus da alegação e prova da existência de alguma causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação subjacente invocada, mas já não de toda e qualquer obrigação subjacente à obrigação cambiária.

            Para o que importa ao caso dos autos, a distinção é, pois, praticamente irrelevante, continuando a estar errada a afirmação do tribunal recorrido de que “cabe [à exequente] o ónus de provar a entrega do dinheiro mutuado no contrato subjacente à livrança […].” Não é ao exequente que passa a caber o ónus da prova dos factos constitutivos da relação fundamental.

              Isto resulta do facto de que a promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida constituem presunções legais que, como tal, invertem o ónus da prova (Lebre de Freitas, obra citada, 7.ª edição, Gestlegal, Set2017, nota 48-B, pág. 75 e págs. 75-76 e nota 51-A).

              Como este Professor explica a propósito doutra questão:

         “Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa do ónus da alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir (CPC, art. 467/1-c [=> agora 552/1-d na redacção de 2013]), o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência de forma do art. 458/2 do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental. Este facto ficará provado por apresentação do documento, isto é, por ilação tirada, nos termos do art. 458/1 do CC, da declaração representada nesse documento conjugada com a alegação do credor, a qual, ao mesmo tempo que satisfaz uma exigência processual, é um acto integrador da fatispécie da norma probatória do art. 458 do CC, isto é, um acto processual com mera relevância substantiva […]. Não se verifica, pois, o perigo de a prova se fazer relativamente a qualquer possível causa constitutiva do direito, pois se faz apenas relativamente àquela que for invocada pelo credor, e configura-se assim uma prova por presunção. […] O devedor terá de fazer prova do contrário para que a presunção seja ilidida […] A ilação que permite dar como provado o facto constitutivo da obrigação não é extraída directamente da declaração do devedor, mas sim do conjunto formado por esta declaração e pela alegação do credor” (A confissão no direito probatório, Coimbra Editora, 1991, págs. 387 a 394, espec. págs. 390 a 392; ou A acção declarativa (pág. 245, nota 26): […] No caso da promessa de cumprimento ou do reconhecimento de dívida, a invocação da causa pelo credor completa a base da presunção, assim se configurando a presunção e não a dispensa de prova (A confissão, n.º 19.2.2.A […]).

              No mesmo sentido e para os casos em que a obrigação cambiária está prescrita, que é como se fosse a situação dos autos dado ter sido invocada a relação subjacente, diz o ac. do STJ de 07/05/2014, 303/2002.P1.S1 [os sublinhados foram colocados agora]:

         “1. Os títulos de crédito, desprovidos dos requisitos que permitiriam a aplicação do regime de abstracção substantiva previsto na respectiva LU, podem ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão – beneficiando do regime de presunção de causa afirmado pelo art. 458 do CC quando, atenta a sua natureza material, se consubstanciarem em actos de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação, sem indicação da respectiva causa.

        2. Porém, a parte que quer prevalecer-se do título – letra – invocado como quirógrafo da obrigação causal subjacente à sua emissão  tem o ónus de alegar, na petição inicial ou no requerimento executivo, os factos essenciais constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, desprovido de valor nos termos da respectiva LU, identificando adequadamente essa relação subjacente, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao demandado/executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458 do CC.”

            Ainda neste sentido, o ac. do TRL de 16/11/2016 – proc.4161/15.6T8FNC-A, num caso de título de crédito prescrito:

         “II – Ao exequente não cabe o ónus da prova da existência da relação fundamental, cabe-lhe apenas o ónus de a alegar; ao executado cabe o ónus da prova da inexistência da relação fundamental alegada.”

                                                     *

(III)

Do ónus da alegação e prova do pagamento (que cabe ao executado)

              Quanto ao pagamento sempre se entendeu que não é ao credor que cabe a prova da falta de pagamento; cabe-lhe apenas alegar a falta de pagamento o que faz implicitamente, no tipo de processo agora em causa, ao vir executar a letra ou a livrança; é ao devedor/executado que cabe, como matéria de excepção peremptória, o ónus de alegação do pagamento – já que o pagamento/cumprimento é uma causa de extinção de uma obrigação, logo facto extintivo do direito do credor/exequente [vejam-se as epígrafes do capítulo VII, cumprimento e não cumprimento das obrigações, secção I, cumprimento, e capítulo VIII, causas de extinção das obrigações além do cumprimento, do Livro II, do Título I, do CC, arts. 571/2, parte final, e 576/2 do CPC; e, por exemplo, Lebre de Freitas, A acção declarativa comum à luz do código revisto, Coimbra editora, 2000, pág. 100, dando como exemplo de excepção peremptória o pagamento da obrigação).

              Dito em termos gerais: Quando o credor/autor/exequente exige o cumprimento de uma obrigação, tem o ónus de alegação do não cumprimento (nem que seja implicitamente, apenas para evitar a inconcludência do pedido), mas daí não decorre que tenha também o ónus da prova do não cumprimento. É antes ao devedor/réu/executado que cabe o ónus de alegar e provar o cumprimento da obrigação.

              (veja-se, neste sentido, Joaquim de Sousa Ri­beiro, embora tratando o assunto no seu estudo sobre as Prescrições Presuntivas, na RDE 5, 1979, págs. 402/403, nota 31: “Muito embora o incumprimento, em acções deste tipo, não tenha que ser provado pelo autor – nesse sentido, com largo desen­volvimento, Alberto dos Reis, CPC anotado, III, 3ª ed., Coimbra, 1948, pág. 285 s. – deverá ser por ele alegado, para evitar a inconcludência do pedido – Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, IV, Coimbra, 1969, pág. 123, nº.1”).

              Explica o Prof. Joaquim de Sousa Ribeiro (págs. 403/404):

         “No que ao incumprimento diz respeito, há que advertir, em primeiro lugar, que ele não constitui fundamento essencial do pedido, mas antes a resposta antecipada à afirmação de cumprimento que o réu venha eventualmente a opor. Prevendo que a parte contrária invoque esse facto extintivo, o autor adianta-se a negar a sua verificação (Castro Mendes, DPC, III, Lisboa, 1980 [AAFDL], pág. 99). O que não invalida, todavia, que, nessa qualidade, ele conserve a natureza de fundamento de uma excepção, a deduzir pelo réu, a tal não obstando a circunstância de já constar, sob a forma negativa, da petição inicial [remete para Manuel de Andrade, Anselmo de Castro e Castro Mendes].

         Por aqui se vê que não tem qualquer cabimento falar-se, a este respeito, em ónus de impugnação especificada […]. Ao réu não cabe impugnar a alegação de incumprimento, pela simples razão de que tal matéria se encontra incluída no ónus da prova a seu cargo, e, como é evidente, o ónus da impugnação não faz sentido em relação a factos cuja afirmação cabe à parte produzir […]. Mais do que negar o incumprimento, o que lhe compete é afirmar e provar que cumpriu, o que o autor, esse sim, poderá, por sua fez, impugnar”.

                                                                 *

                                                               (IV)

              Da prova do acordo de preenchimento e do preenchimento abusivo

              E tudo isto é também assim, naturalmente, quanto à existência de acordo quanto ao preenchimento e do preenchimento desconforme, no caso das letras e livranças em branco (art.10 da LULL) – era ao executado que cabia alegar e provar tudo isso (o que aqui não se desenvolve porque o executado tendo levantado as questões inerentes, depois nada disse nas contra-alegações do recurso sobre a matéria – a matéria é desenvolvida no já citado acórdão do TRP de 03/03/2016).

                                                               (V)

                                      Da inversão do ónus da prova?

              No entanto, como se viu acima, a sentença recorrida diz que inverteu o ónus da prova por despacho transitado em julgado.

              Veja-se então.

              Como já se disse, o ónus da alegação e prova dos pagamentos cabia ao executado. Alegar o pagamento é afirmar que ele foi feito, como já se disse acima, não como fez o executado, dizer que lhe é impossível apurar se houve ou não incumprimento por parte do executado; que não lhe é possível apurar se a letra foi correctamente preenchida; que pagou várias prestações; que tem dúvidas sobre a própria existência da dívida titulada pela livrança. Provar alegações de facto pressupõe, primeiro, que elas foram feitas. Prova-se ou não o que se afirma, não se pode provar o que não se afirma.

              O art. 417/2 do CPC, pressuposto no despacho invocado na sentença recorrida, embora sem ser mencionado expressamente, e que diz que no caso de a parte recusar a colaboração devida o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do art. 344 do CC, tem a ver, como decorre da sua transcrição, com o ónus da prova, não com o ónus da alegação.

              Por isso, mesmo que tivesse havido um despacho, e transitado em julgado, a inverter o ónus da prova, o ónus da alegação dos factos não tinha sido invertido. E não havendo factos alegados, a inversão do ónus da prova não tem qualquer efeito.

              Dito de outro modo: o entendimento da sentença é errado. Ela considera que a inversão do ónus da prova é inversão do ónus da alegação. Com efeito, a sentença diz que passava a ser o exequente a ter de provar que não tinha havido pagamentos (para além dos por ela já referidos, ao descontar ao valor do empréstimo garantido aquilo que ela entendia que tinha sido pago), o que conduz a isto: o credor alegou que o devedor/executado, dos 202.000€ emprestados, só pagou 15.000€ (daí que só tenha executado 187.000€). Agora a sentença impõe-lhe a prova de que não houve outros pagamentos, ou seja, que o executado não pagou os 187.000€ e não o fazendo não poderia obter o pagamento de nada.

              Ora, a inversão do ónus da prova tem a ver com a prova dos factos alegados pela parte onerada com o ónus da prova, não com a prova dos factos contrários. Ou seja, tem a ver com situação oposta: o devedor executado alegava, por exemplo, que tinha pagado mais 50.000 do que constava do requerimento executivo; o credor/exequente tornava impossível a prova dessa alegação de facto pelo onerado; logo, invertia-se o ónus, ou seja, o prejuízo decorrente de não se ter feito a prova, e ele passava a onerar o exequente/credor; portanto, o que passava é que devia ficar provado que o devedor tinha pagado mais 50.000. São coisas completamente diferentes.

              Como diz, Lebre de Freitas, “[o] CC cuida do ónus da prova, mas não do ónus da alegação, de que trata a lei do processo. O ónus da alegação é distribuído entre autor e réu em termos coincidentes aos do art.342: ao autor, ou réu reconvinte, cabe alegar os factos constitutivos do direito que invoca (art. 552/1-d do CPC); ao réu, ou autor reconvindo, cabe alegar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado (art.576/3 do CPC). Nenhuma norma determina a dispensa ou inversão do ónus da alegação. Compreende-se, com efeito, que este não deva ter excepções […]” (CC anotado, vol. I, 2017, Almedina, pág. 428). No mesmo sentido, falando apenas de “passar a ser [a outra parte] a suportar o risco da falta de prova daquele facto […]”, veja-se Rita Lynce de Faria, Comentário ao CC, Parte geral, UCE, 2014, pág. 818.

              Em suma, na inversão do ónus da prova trata-se de vir a ficar provado um facto alegado pelo executado apesar de este não ter produzido prova sobre ele, não de pôr a cargo da outra parte a prova do facto contrário.

              Para além disso, a inversão do ónus da prova não é algo que possa ser feito por despacho anterior ao julgamento da matéria de facto, tem de acompanhar este e demonstrar que a parte contrária tornou impossível a prova ao onerado (art. 344/2 do CC) e tudo isto para dar como provados factos sobre os quais a parte onerada acabou por não fazer prova. Ora, no caso, não se tratou de dar como provados certos factos, mas de pôr a cargo, para o futuro, até à deserção da instância, o ónus da prova do facto contrário.

              Não pode ser.

                                                                 *

              Assim, sendo o exequente portador de uma livrança não prescrita que executou com a invocação da relação subjacente, contra a qual o executado nada provou – porque não tinha alegado nada aproveitável por apenas ter expressado dúvidas -, os embargos tinham de improceder.

              Não importa, contra isto, que não conste expressamente dos factos provados a entrega do dinheiro correspondente ao mútuo subjacente, pois que a exequente não tinha que provar essa entrega; mas, de qualquer modo, diga-se que ela resulta, tal como explicado acima, da promessa de pagamento constante da livrança, conjugada com a alegação da causa da promessa pela exequente no requerimento executivo. De resto, repare-se que só o facto de ter sido entregue a quantia mutuada é que pode explicar, com razoabilidade, o pagamento de amortizações que o executado admite ter feito (facto provado sob 9).

              Por fim, quanto às hipóteses e construções que são passíveis de fazer com base nos factos provados sob 5 e 9 – na fundamentação da decisão da matéria de facto fazem-se várias – diga-se que não passam disso mesmo e que não têm em conta, por exemplo, que há possibilidade de haver dívidas de devedores principais e de devedores garantes e possibilidade de executar/reclamar ambas (como está mais que esclarecido com a hipótese de se executar o avalizado e o avalista). O que se terá de evitar é o duplo pagamento, mas quanto a isso nada consta dos autos.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por esta que julga os embargos improcedentes, devendo a execução prosseguir, com o aproveitamento da penhora já realizada.

              Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), quer dos embargos quer do recurso, pelo embargante (que é quem perde os embargos e o recurso).

              Lisboa, 21/11/2019

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto                     

             

               Aditamento 1:

           Nos dois §§ sublinhados pouco acima, incorri num erro de argumentação que, nada afectando a correcção da decisão final, nem o essencial da fundamentação, importa assinalar.

             É que com o erro que está na base da redacção desses dois §§, se dá a ideia de que o resultado da inversão do ónus da prova é um resultado probatório, isto é, ao nível dos factos, quando ele é antes uma consequência, tirada a nível do direito, de um resultado probatório insuficiente, que dá origem a uma situação de incerteza sobre qual das versões apresentadas pelas partes se provou ou não e, perante essa situação de incerteza, se decide pela verificação da versão da parte que originalmente era prejudicada pelas regras do ónus da prova

              (para isto, veja-se, Lebre de Freitas, Introdução do processo civil, 2017, 4.ª edição, Gestlegal, págs. 41 a 50, e Acção declarativa, 2017, 4.ª edição, Gestlegal, págs. 239 a 247, especialmente notas 14 e 30; Pedro Múrias, Por uma distribuição fundamentada do ónus da prova, Lex, 2000, especialmente págs. 19 a 25)

              Ou seja, aplicando ao caso, se o executado tivesse afirmado (o que no caso não fez) que já tinha pago e no final, depois de estabelecidos os factos provados, não constasse esse pagamento, era ele que seria prejudicado com a falta de prova e o juiz teria de decidir como se se tivesse provado a versão contrária (da exequente, que ao instaurar a execução, está logicamente a dizer que o executado não pagou). Ora, se houvesse razões para inverter o ónus da prova (art. 344/2 do CC – por a exequente ter impossibilitado a prova), a decisão devia ser a inversa, isto é, o juiz teria agora de decidir, de direito, como se se tivesse provado a versão do executado (ou seja, que ele tinha pago – isto se ele o tivesse dito, o que, repita-se, não fez).

             A redacção daqueles dois §§, deveria ser, por isso, na lógica da argumentação do acórdão, a seguinte:

              Em suma, na inversão do ónus da prova tratar-se-ia de se julgar de direito como se estivesse verificado um facto alegado pelo executado apesar de este não ter produzido prova sobre ele, não de pôr a cargo da outra parte a prova do facto contrário.

              Para além disso, a inversão do ónus da prova não é algo que possa ser feito por despacho anterior ao julgamento da matéria de facto, tem de se seguir a este e demonstrar que a parte contrária tornou impossível a prova ao onerado (art. 344/2 do CC) e tudo isto para se julgar, de direito, como se tivesse ficado provada a versão de facto alegada pela parte onerada, apesar de ela não ter feito prova dela. Ora, no caso, no despacho recorrido não se tratou disso, mas de pôr a cargo da exequente, para o futuro, até à deserção da instância, o ónus da prova do facto contrário.

           Pedro Martins (01/05/2020)

 

                    Aditamento 2

                A inversão do ónus da prova, prevista no art. 344/2 do CC, não é uma decisão autónoma, susceptível de recurso também ele autónomo, mas uma consequência, tirada na fundamentação de direito de uma sentença.

                   Como se pode ver no caso das acções de investigação de paternidade:

           É no recurso da sentença que tenha invocado a inversão do ónus da prova (dizendo que, normalmente, perante a falta de prova de que o filho nasceu das relações entre o réu e mãe, a sentença teria que decidir pela improcedência da acção; mas, considerando que, pelo preenchimento da previsão do art. 344/2 do CC, se deve inverter o ónus da prova, então, a consequência da dúvida derivada da falta de prova daquele facto é outra, ou seja, a dúvida passa a desfavorecer o réu e por isso a decisão deve ser proferida contra ele, como se o facto alegado pelo autor estivesse provado), que o réu deve pôr em causa essa inversão.

               Antes da sentença, mesmo que exista um despacho a dizer que se inverte o ónus da prova, ainda não há a dúvida – ainda não se realizou o julgamento e por isso ainda não se decidiram quais os factos provados – sobre a verificação de uma ou outra das versões apresentada pelas partes, pelo que as regras de decisão baseadas numa situação de incerteza por força do insuficiente resultado probatório alcançado – as regras do ónus da prova objectivo -, ainda não se podem aplicar. E só depois de elas serem aplicadas pela sentença é que pode surgir a decisão recorrível e a discordância com ela.

              Assim sendo, o despacho que declarou a inversão do ónus da prova não tem qualquer efeito que não seja o de advertir o réu de que o juiz titular do processo pensa que pode ser tomada uma decisão de direito com base na inversão do ónus da prova e isto se for ele a fazer o julgamento de facto e a proferir sentença. Por isso, tal despacho não vincula o juiz que elaborar a sentença e não é recorrível autonomamente.

                 Pelo que tal despacho não é susceptível de recurso.

                 Pedro Martins (02/05/2020)