Processo do Juízo Local Cível de Oeiras

              Sumário:

              I – Nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação, quando o juiz tencionar conhecer, de imediato, do mérito da causa, a audiência prévia não pode ser dispensada (arts. 593/1, a contrario, e 591/1-b, ambos do CPC), sob pena de nulidade (art. 195/1 do CPC), contra a qual, se a dispensa estiver a coberto de um despacho judicial, se deve reagir com um recurso.

         II – Ao abrigo do poder de adequação processual (arts. 6 e 547 do CPC), pode-se aceitar, no entanto, essa dispensa, desde que, pelo menos, ouvidas as partes, estas a aceitem ou não se oponham a ela.    

       III – Aquela nulidade não fica sanada pelo facto de o contraditório ter sido observado por escrito, pois que a audiência prévia pressupõe a oralidade.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

         A-Lda, requereu uma injunção contra B-Lda, para que esta lhe pagasse 19.379,88€, com juros, preço de serviços que lhe tinha prestado no âmbito de um contrato celebrado entre ambas.

           A requerida deduziu oposição, subordinando-a a duas excepções: uma ‘da ineptidão do requerimento de injunção’ e outra ‘da excepção peremptória’. Não tem qualquer parte da petição dedicada a impugnação.

              Face à oposição, o requerimento foi remetido à distribuição e autu-ado como acção declarativa para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, a qual, face ao valor – 21.412,03€, superior a metade da alçada da relação – passou a seguir a forma de processo comum.

              Depois de regularizada a instância – a autora não tinha juntado procuração a favor do seu advogado subscritor do requerimento de injunção – foi proferido o seguinte despacho na parte que importa:

         […A]tento o alegado no requerimento de injunção, agora entendido como petição inicial, entende-se que essa peça processual padece de insuficiências na articulação dos factos, que importa suprir.

         De notar que não havendo lugar à junção de documentos com a apresentação do requerimento de injunção, não podendo, consequentemente, o requerente socorrer-se da técnica de alegação por remissão para documentos, é necessário que na exposição dos factos que fundamentam a pretensão estejam devidamente alegados os factos concretos que consubstanciam a causa de pedir e que justificam o pedido, levando à sua procedência caso consiga prová-los.

         Assim, em conformidade com o artigo 10/3 do DL 62/2013, de 10/05, convida-se a autora para, em 10 dias, apresentar petição inicial aperfeiçoada na qual concretize o alegado quanto aos serviços prestados, cujo preço é reclamado, elencando/identificando cada um desses serviços, concretizando em que consistiu a “assistência técnica” a que, alegadamente, se reportam quatro das facturas indicadas e, ainda, o acordado quanto a “aprovação das licenças”.

             A autora apresentou uma petição inicial aperfeiçoada.

            A ré fez um requerimento de análise da petição inicial aperfeiçoada, em que alega que a autora não deu cumprimento ao despacho de aperfeiçoamento.

             Foi então proferido o seguinte despacho:

        A ré defendeu-se por excepção, arguindo a nulidade de todo o processado, por ineptidão da petição inicial.

         Esta excepção encontra-se já suficientemente debatida pelas partes nos respectivos articulados e peças processuais, não se afigu-rando necessária qualquer discussão adicional a esse propósito, estando o tribunal em condições de apreciar e decidir da mesma.

         Antecipando-se, desde já, que a decisão do tribunal será no sentido da improcedência dessa excepção, caberá ter, de seguida, em conta que, na sua contestação, a ré não impugna os factos essenciais, complementares e concretizadores alegados pela autora em sede de requerimento inicial e de petição inicial aperfeiçoada, pelo que os mesmos serão de considerar admitidos por acordo, nos termos do disposto no artigo 574/2 do Código de Processo Civil.

         Note-se que, embora na oposição a ré haja apresentado um capítulo denominado “excepção peremptória”, acaba por não aduzir qualquer verdadeira excepção (designadamente de não cumprimento), pois apesar de fazer referência, nos artigos 43 a 46 da oposição, a reclamações, a projectos incorrectamente elaborados e a defeitos, alega desconhecer se os serviços concretamente integrados nas facturas aqui peticionadas foram alvo das ditas reclamações ou padecem dos referidos defeitos, acabando por não invocar sequer qualquer excepção a este propósito.

         Acresce que, na resposta à petição inicial aperfeiçoada (onde surgem concretizados de forma suficientemente esclarecedora os serviços prestados e que nesta sede são peticionados), a ré não esclarece se as reclamações e defeitos genericamente referidos na sua oposição respeitam aos serviços a que se reportam as facturas juntas, deixando cair esta possível linha de defesa e limitando-se a arguir a ineptidão (também) da petição inicial aperfeiçoada.

         Ora, na ausência de controvérsia quanto à factualidade alegada pela autora, e não havendo invocação de factos que a ré integre como verdadeira excepção peremptória ao direito nesta sede invocado pela autora, está o tribunal em crer que os autos contêm, também, já todos os elementos necessários à prolação de decisão final.

         Apesar de não se desconhecer a existência de uma corrente jurisprudencial e doutrinária que sustenta a interpretação restritiva do artigo 593/1 do CPC, no sentido de a remissão para o artigo 595/1, operada no artigo 591/1-d, para a qual o referido artigo 593/1 remete, se dever entender como restringida ao artigo 595/1-a do CPC, não se perfilha desse entendimento, considerando-se que, salvo melhor opinião, a letra da lei não deixa margem para tal conclusão, configurando a mesma verdadeira interpretação ab-rogante das normas em presença.

         Entende-se, deste modo, ser legalmente admissível a dispensa de audiência prévia nos termos do artigo 593/1 do CPC nos casos em que esta se destinasse apenas a conhecer imediatamente, e sem necessidade de mais provas, do mérito da causa.

         Assim, no uso do poder de simplificação e agilização processual e adequação formal (cfr. artigos 6 e 547 do CPC) considera-se, neste circunstancialismo, ser de dispensar a realização da audiência prévia, proferindo-se a decisão por escrito, sem realização dessa diligência.

         Ponderando, no entanto, a necessidade de observância do princípio do contraditório (cfr. artigo 3/3 do CPC), notifique as partes para, em 10 dias, se pronunciarem, querendo, sobre a possibilidade do tribunal dispensar a realização da audiência prévia e, concordando com essa dispensa, para, querendo, alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência prévia se esta tivesse lugar quanto ao possível conhecimento imediato do mérito da acção por se encontrarem admitidos todos os factos essenciais, complementares e concretizadores alegados pela autora no requerimento inicial e na petição inicial aperfeiçoada.

         Desde já se adverte as partes que caso nada seja dito no prazo ora concedido para o efeito, o tribunal proferirá decisão final por escrito, dispensado a audiência prévia.

              A autora pronunciou-se e nada disse quanto à dispensa da audiência prévia.

              A ré pronunciou-se, dizendo que: tinha deduzido defesa por impugnação e por excepção; por ter havido impugnação não se podiam dar como provadas as alegações de facto, pelo que tinha que haver produção de prova sobre elas; não se verificam os requisitos legais para a dispensa da realização da audiência prévia.

         Foi então proferido o seguinte despacho, que se transcreve na parte que importa:

         “Da dispensa da audiência prévia

         De acordo com o disposto no artigo 593/1 do CPC, “Nas acções que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia, quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º.”

         No caso dos presentes autos, o teor dos articulados apresentados demonstra não ser viável a realização de tentativa de conciliação atentas as posições assumidas pelas partes. Por outro lado, os termos do litígio encontram-se suficientemente delimitados, tendo já sido dada a possibilidade às partes de exercerem o contraditório quanto ao conhecimento imediato do mérito da causa, cfr. resulta do despacho proferido a fls. 47 e 48.

         Em resposta ao convite efectuado pelo tribunal, a ré apresentou requerimento a fls. 59 a 65, no qual se opõe ao conhecimento imediato do mérito da causa, na medida em que considera não estarem preenchidos os requisitos necessários à verificação da dispensa de audiência prévia, tecendo considerações sobre o facto de a autora não ter provado concretamente quais os serviços em causas e respectivo cumprimento e do tribunal entender que se consideram admitidos por acordo todos os factos alegados na petição inicial e que a ré não deduziu excepção, o que não comporta uma verdadeira oposição à dispensa da audiência prévia mas antes uma argumentação referente ao próprio conhecimento do mérito da causa.

         Ora, no caso dos autos, considerando a posição que as partes assumiram nos respectivos articulados quanto aos factos que balizam o objecto da acção, afigura-se-nos poder conhecer do respectivo mérito, sem necessidade de produzir qualquer outra prova.

         Assim, atendendo a que a audiência prévia apenas se destinaria à finalidade prevista nos artigos 591/1-d e 595/1, ambos do CPC, ao abrigo do disposto no artigo 593/1 do CPC, dispenso a realização da audiência prévia.

         Notifique.”

        Após este despacho, mas na mesma peça processual, o tribunal deu a fundamentação da possibilidade do imediato o conhecimento do mérito da causa e depois a sentença, com discriminação dos factos provados e fundamentação da decisão.

                 A ré recorre do que consta desta peça processual, em 29 páginas de recurso com mais de 4 páginas de conclusões, terminando as suas alegações com conclusões em que diz que: o tribunal, face àquilo que a ré disse na oposição à injunção e à resposta à petição aperfeiçoada, que corresponderia a impugnação dos factos, não devia ter dispensado a audiência prévia, nem ter dado como provados, por não impugnados, os factos alegados pela autora, nem ter conhecido do mérito da causa; devia, sim, ter julgado procedente a excepção dilatória da ineptidão da petição inicial, absolvendo a ré da instância; ou julgado procedentes as excepções peremptórias que a ré diz ter deduzido, absolvendo-a do pedido; ou devia ter considerado que a ré impugnou a existência da dívida, alterando a decisão de dar como provados alguns dos factos; por isso, não estão preenchidos os pressupostos para a dispensa da audiência prévia, pelo que o tribunal devia determinar a sua realização nos termos do art. 591/1-b-c-d-g do CPC e a subsequente tramitação normal do processo.

            A autora contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso, no essencial dizendo que não se verifica a ineptidão da petição inicial; não foram deduzidas, de forma concretizada, excepções peremptórias; os factos alegados por si não foram impugnados, pelo que a decisão da matéria de factos não está errada.

                                                                 *

                Questões que importa decidir:

              Tendo em conta as alegações, a ordem seria esta: se a ré impugnou as alegações de facto feitas pela autora e se, por isso, o tribunal não podia ter decidido a matéria de facto como o fez, devendo ter deixado seguir o processo para produção de prova; se se verificava a arguida excepção dilatória da ineptidão da petição inicial; se as excepções peremptórias deviam ter sido consideradas procedentes; e se a audiência prévia não podia ter sido dispensada.

              No entanto, tendo em conta a ordem lógica das coisas, começar-se-á pela questão da dispensa da audiência prévia; se ela não tiver sido bem dispensada, as outras questões ficarão prejudicadas, visto que então deverão ser apreciadas na audiência prévia que se vier a realizar. 

                                                                 *

              Decidindo:

                                      A dispensa da audiência prévia

              O art. 591/1 do CPC dispõe:

         “Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:

         […]

      b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;

         […]

        d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;

         […]

              O art. 593/1 do CPC dispõe:

         “Nas acções que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º.

              Logo, claramente, como se estava perante o fim indicado na al. b do art. 591/1 – pois que o juiz tencionava conhecer, imediatamente, do mérito da causa – a audiência não podia ser dispensada.

              Neste sentido, o ac. do TRP de 12/11/2015, proc., 4507/13.1TBMTS-A.P1, com o qual o Prof. Miguel Teixeira de Sousa [num post de 21/12/2015 no blog do IPPC] concorda, embora dizendo que “O acórdão complica o que era bastante mais simples de fundamentar; a audiência prévia não podia ser dispensada, simplesmente porque a sua realização é obrigatória sempre que o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador (art. 591/1-b e 593/1 a contrario, CPC).

              O despacho recorrido diz que o art. 591/1-d se refere à hipótese de se visar proferir despacho saneador, nos termos do art. 595/1, e que este tem duas alíneas. Quando o art. 593/1 permite a dispensa da audiência prévia no caso do art. 591/1-d está a permiti-la quer seja o caso da al. a ou da al. b do art. 595/1. Como a al. b se refere à hipótese de conhecimento imediato do mérito da causa, a possibilidade da dispensa abrange esta hipótese.

              O despacho recorrido esquece, com isto, que o art. 593/1 diz que a audiência só pode ser dispensada quando ela se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d a f, não abrangendo, por isso, a al. b do art. 591/1. Assim, a interpretação feita pelo despacho recorrido é que é uma interpretação ab-rogante do art. 593/1 do CPC.

                                                                 *

Da dispensa com base no poder de adequação processual: da necessidade de consentimento ou de não oposição

              Tem-se vindo a admitir, no entanto, a dispensa da audiência prévia com base no poder de adequação processual (arts. 6 e 547 do CPC).

          Isto apesar das muito pertinentes dúvidas de alguns e da recusa bem fundamentada de outros (pondo em dúvida a possibilidade de ser dispensada a audiência prévia com base no poder de gestão processual, veja-se o ac. do TRP de 27/09/2017, proc. 136/16.6T8MAI-A.P1, acabando por o aceitar em casos limites e com fortes reservas; bem como o ac. do TRG de 17/01/2019, proc. 4833/15.5T8GMR-A.G3; não admitindo sequer essa possibilidade – da dispensa com uso do poder de adequação -, vejam-se os acs. do TRE de 10/05/2018, proc. 2239/15.5T8ENT-A.E1; e 18/10/2018, proc. 2118/16.9T8ENT-C.E1).

            Mas, aceitando-se embora essa possibilidade, há que ter em conta que a “adequação processual tem sempre como limite as normas imperativas e os princípios fundamentais do processo civil” (Lebre de Freitas, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, 2017, pág. 472), e que, como se diz no ac. do STJ de 12/09/2019, proc. 1238/14.9TVLSB.L1.S2, com o exercício do dever de gestão processual se pretende obter uma tramitação expedita dentro dos mecanismos previstos na lei, e não a realização de actos não permitidos por lei […].” Pelo que não se pode chegar ao ponto de, através do poder de adequação processual, mas sem o acordo das partes, se dispensar actos ou formalidades prescritos pela lei com carácter obrigatório.

              Neste sentido, do consentimento das partes como um dos requisitos da dispensa da audiência com base no poder de adequação, veja-se, expressamente, o ac. do TRL de 04/06/2019, proc. 214/16.1T8MFR.L1-7; é este também, ao que se crê, o entendimento daqueles que se pronunciam no sentido da decisão da dispensa ser precedida da consulta das partes (veja-se Lebre de Freitas, obra citada, 2.º vol., pág. 650, e os acórdãos aí referidos, conjugado com a critica, logo a seguir, no mesmo parágrafo, a um outro acórdão do TRL que admite a hipótese de, por adequação processual, após a audição das partes, o juiz poder dispensar a audiência prévia, com fundamento em que a matéria em causa já fora suficientemente debatida nos articulados; com idêntica crítica, veja-se Rui Pinto, Notas ao CPC, vol. II, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2015, págs. 57-58). Para que é que se consultariam as partes sobre a possibilidade da dispensa, se depois, perante a oposição de uma delas, se dispensaria a mesma? De resto, pareceria ser este, também, o entendimento do despacho recorrido, quando refere: “e, concordando com essa dispensa, para, querendo, alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência prévia […].”

              (Defendendo a verificação da nulidade, mas sem se pronunciarem sobre a questão de saber se ela se verificaria caso as partes tivessem sido ouvidas sobre a dispensa (mesmo que não a aceitassem), vejam-se, por exemplo, os acs. do TRL de 08/02/2018, proc. 3054-17.7T8LSB-A.L1-6; do TRG de 01/03/2018, proc. 9217/15.2T8VNF.G1; do TRL de 18/10/2018, proc. 8195/17.8T8ALM.L1-2; do TRE de 18/10/2018, proc. 3870/17.0T8FNC-A.E1; do TRP de 05/11/2018, proc. 1425/17.8T8GDM.P1; do TRL de 30/05/2019, proc. 4952/17.3T8LSB.L1-8; do TRL de 11/07/2019, proc. 5774/17.7T8FNC-A.L1-6; do TRP de 12/09/2019, proc. 2470/09.2TBMAI-A.P1; do TRL de 10/10/2019, proc. 1970/15.0T8CSC-A.L1-2; e do TRE de 10/10/2019, proc. 1582/12.0TBCTX-A.E1)

              Ora, no caso dos autos, a ré opôs-se expressamente à dispensa da audiência prévia e não é correcta a interpretação, feita pelo tribunal recorrido, dessa expressa/clara oposição, de modo a convertê-la numa não oposição.

              Não deixe de se dizer, ainda, que o princípio da adequação processual tem por fim permitir a adopção de mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável (arts. 6 e 547 do CPC); ora, a complicada tramitação processual que se tem de exigir para que a dispensa da audiência prévia, quando obrigatória, não provoque nulidade processual, não se tem mostrado compatível com aquela simplificação e agilização processual; e muito menos o é a insistência nessa dispensa quando há uma inequívoca oposição de uma das partes a que ela seja dispensada.

                                                                       *

                                 Da irregularidade que é uma nulidade

              A dispensa da audiência prévia, quando se está perante um caso que não admite essa dispensa, ou quando ela não foi devidamente dispensada do modo referido acima, é uma irregularidade processual que implica uma nulidade processual, porque a lei entende que a observância do contraditório – na vertente de se dar às partes a possibilidade de influenciarem uma decisão antes de ela ser proferida – deve ter lugar oralmente, perante o juiz e, por isso, a não observância deste modo de exercício do contraditório pode, segundo a lei, influir no exame ou na decisão da causa (art. 195/1 do CPC).

              Ou seja, na concepção da reforma de 2013 do CPC, concorde-se ou não se concorde com ela, “a audiência prévia […] assume[-se] como um dos momentos mais marcantes da acção declarativa. Esta audiência visa assegurar, com efectividade, a aproximação entre as partes, e estas e o tribunal, através de uma cultura de diálogo. Visa ainda que a actuação dos sujeitos processuais seja dominada pela ideia da oralidade e da cooperação entre todos. A audiência prévia contém virtualidades que a tornam um palco privilegiado onde, simultaneamente, actuam todos os intervenientes processuais, numa verdadeira comunidade de trabalho, sendo tal audiência um dos expoentes máximos da oralidade e da cooperação que caracterizam o processo civil moderno. […] […A] regra acerca da realização da audiência prévia expressa o entendimento legislativo de que há objectivos que só serão efectivamente alcançados por via desta audiência e das suas virtualidades […]” (as passagens entre aspas são de Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2015, págs. 256 e 322).

              Ou como diz Lebre de Freitas, obra citada, vol. 2.º, pág. 641: “No novo código […] o juiz não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, entre as partes […]” (o realce é de Lebre de Freitas).

           Na Proposta de Lei n.º 113/XII PL 521/2012 2012.11.22, apresentada pela presidência do Conselho de Ministros, de reforma do CPC, escreve-se: “O novo figurino da audiência prévia, designação ora dada à audiência a realizar após a fase dos articulados, assente decisivamente num princípio de oralidade e concentração dos debates, pressupondo a intervenção activa de todos os intervenientes na lide, com vista a obter uma delimitação daquilo que é verdadeiramente essencial para a sua plena compreensão e justa resolução […]. Há um manifesto investimento na audiência prévia, entendida como meio essencial para operar o princípio da cooperação, do contraditório e da oralidade. […].”

                                                                 *

                    Contra isto não vale dizer que a nulidade se encontra sanada, ou que ela não se chega a verificar, porque o contraditório acabou por ser observado (veja-se, por exemplo, o voto de vencido ao ac. do TRL de 10/10/2019, citado acima).

             Primeiro, porque já se disse que é o modo como o contraditório deve ser observado que no caso tem relevo e não a formal observância do contraditório.

              Segundo, porque, como referido acima, a observância do contraditório por escrito apenas teria relevo se ambas as partes tivessem aceitado a dispensa da audiência prévia (oral) ou não se tivessem oposto a ela.

                                                                 *

                 Assim, verifica-se a nulidade da dispensa da audiência prévia que, entre o mais, tinha como finalidade o conhecimento do mérito da causa.

             Não devendo ter sido dispensada, era nela que devia ter sido decidido tudo aquilo que foi decidido pelas decisões recorridas (o art. 593/1do CPC só permite a dispensa quando a audiência se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d a f), o que implica que todos elas sejam anuladas, por arrastamento da declaração da nulidade da dispensa (art. 195/2 do CPC).

                                                                 *

                                                Do meio de reacção

              Apesar de ser uma nulidade processual, ela está coberta, expressamente, por um despacho judicial. Por isso, no caso, o modo de reacção contra ela não é a arguição da nulidade, sujeita ao prazo de 10 dias, mas o recurso contra o despacho em causa (neste sentido, Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, págs. 384-385).

         A igual solução se chega considerando a posição de Teixeira de Sousa, ainda naquela anotação ao ac. do TRP:

         “O acórdão entende que o proferimento do saneador-sentença pela 1.ª instância constitui uma nulidade processual (art. 195/1, CPC); isto é verdade, mas não é toda a verdade: o que é nulo não é apenas o processo, mas o saneador-sentença que se pronunciou sobre uma questão de que, sem a audição prévia das partes, não podia conhecer (cf. art. 615/1-d, CPC); a nulidade do processo só se verifica atendendo ao conteúdo do despacho saneador (ou seja, é o conteúdo deste despacho que revela a nulidade processual) e o despacho não seria nulo se tivesse outro conteúdo, isto é, se não tivesse conhecido do mérito da causa (o que mostra que a nulidade não tem apenas a ver com a omissão de um acto, mas também com o conteúdo do despacho).”

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, declarando a nulidade do despacho que dispensou a audiência prévia, com a consequente anulação, por arrastamento, das outras decisões proferidas na sequência da dispensa daquela audiência, e determinando-se agora que o processo prossiga nos seus termos normais.

              Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pela autora, que é quem perde o recurso.

               Lisboa, 11/12/2019

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto