Processo do Juízo de Execução de Lisboa

 

             Sumário:

            A escrituração comercial de um exequente comerciante faz prova plena contra ele (sujeita a contraprova) das declarações sobre os factos que lá são escritas, nomeadamente que uma factura da executada substitui umas notas de crédito anteriores e que o saldo resultante destas se torna, por força do valor daquela, num crédito da executada sobre a exequente (arts. 38 e 44/1 do CCom e 380/1 do CC).

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

           A-Lda, requereu uma execução contra B-Lda, para pagamento de 4033€ + 173,71€ de juros de 01/01/2015 a 11/08/2015 + 253,75€ de honorários a advogado + 51€ de taxa de justiça + 364,82€ de juros calculados sobre a soma de tudo o que antecede, desde 30/03/2016 a 26/05/2017, + 250€ de honorários a advogado pelo requerimento executivo, apresentando, como título executivo requerimento de injunção com aposição de fórmula executória.

              A executada deduziu oposição por embargos, alegando, em suma, que não deve a quantia peticionada, pois que a exequente voltou atrás quanto à devolução de material que tinha comprado à executada, quando esta em troca já tinha devolvido 2117€ do preço desse material, pelo que era a executada que era agora credora da exequente; diz que a exequente ao esquecer estes se encontra a litigar com má-fé, pedindo, por isso, que ela seja condenada em multa e indemnização a seu favor.

        A exequente contestou os embargos, pugnando pela inadmissibilidade dos embargos, e impugnando o alegado pela executada quanto a ter voltado atrás na devolução do material.

       Proferiu-se despacho saneador, no âmbito do qual se julgou improcedente a excepção deduzida.

             Foi interposto recurso dessa parte do despacho saneador e o recurso foi admitido, mas não lhe foi dado qualquer seguimento. Se a esse recurso vier a ser dado provimento, este acórdão poderá vir a ser anulado, por arrastamento (neste sentido, vejam-se, por exemplo, os elementos que constam do ac. do TRL de 07/11/2019, proc. 2877/11.5TBPDL-F), mas tal não justifica a suspensão deste processo – pois que seria atribuir àquele recurso, indirectamente, um efeito suspensivo que não tem, para mais quando nem sequer lhe foi dado seguimento sem que haja notícia de reacção da exequente contra isso.

           Depois de realizada a audiência final, foi proferida a 10/04/2019 sentença julgando os embargos improcedentes e, em consequência, determinando que a execução prosseguisse os seus trâmites.

        A sentença foi notificada por carta elaborada a 16/04/2019 e a executada a 03/06/2019 recorreu da sentença, impugnando dois pontos da decisão da matéria de facto.

           A exequente contra-alegou concluindo no sentido da improcedência do recurso; diz também que o recurso foi deduzido fora do prazo de 15 dias ou no 3.º dia útil do prazo adicional sem pagamento de multa…

                                                                 *

              Questões que importa decidir: se o recurso foi interposto fora do prazo para o efeito; se deve ser alterada a decisão da matéria de facto e, se sim, se tal implica necessariamente uma alteração na decisão da improcedência do embargos.

                                                                 *

                                 A questão da tempestividade do recurso

         As férias judiciais da páscoa foram de 15/04/2019 a 22/04/2019. A carta para notificação elaborada a 16/04/2019, durante as férias, não iniciou a contagem do prazo de recurso antes do termo das férias (art. 138/1 do CPC); ou seja, o prazo para o recurso só se iniciou a 23/04/2019. O prazo para o recurso é de 30 dias, acrescentado de 10 no caso de haver impugnação da decisão da matéria de facto com reapreciação da prova gravada (arts. 638/1 e 7 e 853/1 do CPC), como é o caso. Quarenta dias contados a partir de 23/04/2019, terminavam a 01/06/2019, que foi um sábado, dia em que os tribunais estão fechados, pelo que o termo do prazo se transferiu para 03/06/2019, 2.ª feira (art. 138/2 do CPC). Pelo que o recurso foi interposto dentro do prazo, sem sequer ser necessário adicionar o prazo de tolerância do art. 139/5 do CPC.

            A pretensão da exequente de que o prazo para o recurso da sentença de embargos é de 15 dias não tem o mais pequeno fundamento legal que seja.

                                                                 *  

              Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão destas questões (para além do que já consta do 1º§ do relatório deste acórdão; a ordem dos factos foi alterada por este acórdão, para ter em conta a cronologia dos mesmos, embora se tenha mantido a numeração; este acórdão vai aditar o ponto 10 aos factos provados, por força da decisão da impugnação da decisão da matéria de facto):

         4- A executada dedica-se à actividade de prestação de serviços e materiais para escritório.

         5/6- A exequente solicitou os serviços da executada e adquiriu diversos materiais informáticos, tudo no valor global de 8191,90€, IVA incluído, tendo sido emitida a respectiva factura, enviada à exequente, a 12/11/2014.

    7- E verificada a consonância com o serviço solicitado, a exequente deu ordem de pagamento no dia seguinte.

     8- Posteriormente, a exequente manifestou a vontade de proceder à devolução de parte do material, no valor total de 6150€.

        9 e 2- Nessa sequência e no âmbito da respectiva actividade comercial, foram emitidas as seguintes notas de crédito:

a) de 29/11/2014, no valor de 3997,50€; e

b) de 31/12/2015, no valor de 2152,50€.

       3- Para pagamento destas notas de crédito a executada entregou à exequente, 2117€.

                                                                       *

                                 Impugnação da decisão da matéria de facto

              O tribunal recorrido considerou que não se provaram as seguintes alegações de facto que a executada tinha feito:

a) posteriormente ao referido em 9, a exequente voltou atrás com a sua decisão, ficando então com o material adquirido, e para o efeito voltou a dar conhecimento dessa decisão à exequente.

b) pelo que voltou a executada a emitir nova factura à embargada, no valor de 6150€, com vista à anulação das duas notas de crédito referidas em 2.

              E fundamentou assim a sua decisão:

         A convicção do tribunal relativa à matéria de facto provada e não provada teve por base a admissão por acordo, e a conjugação da análise crítica do requerimento de injunção e dos documentos consistentes nos escritos, facturas e extracto juntos com o articulado de embargos de executado, com o depoimento da testemunha JCMC, contabilista da exequente, que referiu saber que houve umas notas de créditos porque os equipamentos fornecidos não estavam em conformidade, gerando-se uma controvérsia entre as partes.

         A testemunha não revelou saber algo sobre aquelas alegações de facto [as dadas como não provadas], sendo que tal matéria de igual modo não decorre da literalidade dos documentos juntos.

              A executada diz o seguinte contra isto:

         Sucede que, em Fevereiro de 2015, por acordo das partes, a executada emitiu uma factura de anulação e substituição das notas de créditos anteriormente emitidas, conforme resulta do documento n.º 3, junto aos autos com os embargos de executado.

         Andou mal o tribunal a quo ao não dar com provado que, após a emissão das notas de crédito, tenha existido acordo para emissão de uma factura de substituição das referidas notas de crédito, atendendo à conjugação dos documentos e da prova testemunhal.

         Resulta do documento n.º 3, que a exequente recebeu da executada a factura a substituir as notas de crédito, tendo reflectido tal factura na sua contabilidade, conforme resulta também do documento n.º 4, junto com os embargos.

         Informação que foi aliás confirmada pela testemunha (minutos 2:50, 2:52, 4:57, 5:05, 5:17, 5:35, 5:44, 6:10, 6:16 e 6:53 do ficheiro da gravação).

         Resulta ainda desse depoimento que a factura emitida em Fevereiro de 2015, foi contabilisticamente considerada e aceite pela exequente.

         Não tendo, em momento algum existido qualquer reclamação da existência da mesma, nem através de resposta ao e-mail datado de 16/02/2015, junto como documento n.º 3, nem mesmo após existir a sua reflecção na conta corrente da executada.

         E mais, resulta dos documentos e daquele depoimento (minuto 8:19 e 8:22 do ficheiro da gravação), que desde 2015 existe na conta corrente da executada um saldo a seu favor de 502,73€.

         Ora, andou mal o tribunal a quo ao não dar como provado que foi emitida nova factura substituindo as notas de crédito, quando da prova junta aos autos resulta o oposto, tanto mais que em momento algum a exequente rejeita a existência daquela factura.

         Acresce ainda que a exequente declarou, como devida, a factura emitida, vindo agora reclamar o pagamento das notas de crédito quando bem sabe não serem devidas.

         Resulta, assim, que a exequente aceitou a factura de substituição da nota de crédito, e aceitou ainda que é devedora da executada da quantia de 502,73€.

         Desta forma, entende a executada que deve ser considerado como provado que:

         “Posteriormente ao referido em 9, a exequente voltou atrás com a sua decisão, ficando então [com] o material adquirido, e para o efeito voltou a dar conhecimento dessa decisão à executada, pelo que voltou a executada a emitir nova factura à embargada, no valor de 6150€, com vista à anulação das duas notas de crédito referidas em 2).”

              A exequente contrapõe que (os números foram colocados agora por este TRL):

         i- A testemunha fulcral para o que importava apurar foi o contabilista da exequente que esclareceu que teve conhecimento que os equipamentos fornecidos pela executada não estavam em conformidade; em consequência alguns terão sido devolvidos, tendo sido emitidas umas notas de crédito; mais esclareceu que se gerou uma controvérsia ente as partes.

         ii- No seu depoimento, que foi claro, espontâneo e isento, esclareceu que desconhece se as notas de crédito foram anuladas por acordo, e se existiu algum ajuste entre as partes.

         iii- Inexiste qualquer documento nos autos que corrobore a posição da executada quando alega que após a emissão das notas de crédito existiu um acordo com a exequente para emissão de uma factura de substituição das referidas notas de crédito.

         iv- Ademais, havendo acordo entre a exequente e a executada para emissão da factura com vista à anulação das notas de crédito, que racionalidade haveria no facto da exequente ter interposto um requerimento executivo?

         v- A ser o caso, a exequente estaria a litigar com nítida má-fé processual que não está, nem poderá ser considerado como tal.

                                               *

              Decidindo:

              A fl. 7 do processo em papel, como doc. 3, consta uma alegada impressão de um e-mail da executada enviado às 10h57 de 16/02/2015, para t@e.com.pt, referente ao assunto factura exequente, com o seguinte texto: bom dia T, conforme conversa telefónica com o Sr. JC, junto em anexo factura com data de Fevereiro de 2015.

              Na contabilidade da exequente, especificamente no extracto da conta-corrente da executada na exequente, consta, com data de 28/02/2015, com referência ao Diário 6.D.O.D, n.º interno 200069, a descrição de lançamento ‘Mat. Escritório c/IVA dedutível’, a factura 2015110043, de 28/02, e o valor de 6150€. Como o saldo dessa conta era um débito de 5647,27€, o saldo ficou a crédito da executada no valor de 502,73€ (doc. 4, fl. 9 do processo em papel).

              Esta factura consta a fl. 8v do processo em papel, com a seguinte descrição: valor referente à substituição dos equipamentos referentes às notas de crédito 201411008 e 2014110009 de 2014.

              Não há notícia de qualquer reclamação contra a factura em causa.

              Nenhum destes documentos foi impugnado.

              A inscrição na contabilidade da exequente – conta corrente da executada e diário – de uma factura da executada (ambas sociedades comerciais), factura essa que substitui as duas notas de crédito que correspondem à dívida exequenda, mesmo sem prova de que a contabilidade esteja regularmente arrumada, é prova plena, contra ela, de que a factura existe e foi recebida e aceite, e que o crédito representado pelas duas notas de crédito foi ultrapassado pelo débito correspondente ao valor da factura [isto tendo em conta os artigos 29, 30, 38, 44/1 e 476 do Código Comercial, 380/1 e 2 e 347 do CC e Lebre de Freitas, A confissão no direito probatório, 1991, Coimbra Editora, págs. 369 a 373, ponto 18.3].

              Cabia então à exequente fazer prova do contrário.

              Ora, a testemunha contabilista da ré em vez disso, confirmou, no essencial, os factos em causa: que a factura foi recebida e que ela foi inscrita na conta corrente da executada na exequente e que ela tem o conteúdo assinalado, resultando por isso um saldo credor a favor da executada e não da exequente.

              Não importa que a testemunha desconheça se as notas de crédito foram anuladas por acordo, e se existiu algum ajuste entre as partes. Nem que não exista qualquer documento nos autos que corrobore a posição da executada quando alega que após a emissão das notas de crédito existiu um acordo com a exequente para emissão de uma factura de substituição das referidas notas de crédito.

              O que interessa é que foi emitida uma factura que tem aquele conteúdo e que ela foi recebida, aceite e inscrita na contabilidade da exequente e que esta não prova o contrário do que consta da factura e da inscrição na contabilidade.

              O que afasta a fundamentação da convicção do tribunal quanto às alegações de facto não provadas e o que é dito pela exequente em ii e iii.

              Quanto ao que a exequente diz em iv e v das contra-alegações, diga-se que a prova ou contraprova das alegações dos factos, não se faz com o raciocínio de que, se fosse de outro modo, a parte estaria a agir ilogicamente, ou a mentir ou de má-fé.

              Posto isto,

              É certo que aquela testemunha, apesar de não deixar dúvida de que, perante os documentos lançados na contabilidade da exequente, quem está a dever é a exequente e não a executada, lança a ideia de que a sua ex-empregada T poderá ter algo a ver com o que consta da contabilidade, mas não diz que a contabilidade seja falsa ou incorrecta, nem dá quaisquer razões para infirmar aqueles elementos da contabilidade da exequente.

              Apesar de nas contra-alegações do recurso, a exequente não ter dito nada do que se segue, revelador de que não tinha razões para o fazer, nem queria chamar a atenção para isso, veja-se o seguinte:

              O advogado da exequente, nas alegações orais feitas na audiência final, aceita que com o lançamento daquela factura [de Fev2015] na contabilidade da exequente não haveria razão para a acção, pois que quem é o devedor, tendo em conta essa contabilidade, é a exequente. Sugere, por isso, que a contabilidade da exequente está errada, mas não diz que tenha sido produzida qualquer prova nesse sentido. Apenas diz que terá havido uma engenharia financeira e argumenta que se fosse como a executada diz, então ela devia ter reconvencionado o pagamento de 2117€ e não o fez – esquecendo que a executada não pode reconvir nos embargos de executado. Por outro lado, o advogado da exequente fala da correspondência de Janeiro de 2015, em que o representante da executada reconhece que está a dever o dinheiro [das notas de crédito] à exequente; e diz que esta correspondência não foi impugnada. Isto é verdade, mas há que ter em conta que esta correspondência data de Janeiro de 2015 e a factura e a inscrição na contabilidade ocorreram depois disso, em Fevereiro de 2015. E que, repete-se não foi produzida qualquer prova de que a contabilidade tenha sido falsificada ou adulterada. Por outro lado, diz que o que é certo é que o material não foi entregue, mas no requerimento de injunção o que se diz é que os bens posteriormente foram substituídos por outros, o que indicia que o material foi entregue; e na contestação o que se diz é que o equipamento foi devolvido, o que de novo aponta para desconformidade, e não para a falta de entrega.

              Em suma, embora sem prova, ao contrário do que a executada pretende, de que a exequente tenha voltado atrás com a sua decisão, [decidindo] ficar com o material adquirido, e que, para o efeito, deu conhecimento dessa decisão à executada, há, sim, prova plena, contra a qual não foi produzida prova do contrário, de que:

           10. Posteriormente ao referido em 9, a executada emitiu em 16/02/2015 uma nova factura à exequente, no valor de 6150€, com o texto de “valor referente à substituição dos equipamentos referentes às notas de crédito 201411008 e 2014110009 de 2014”, factura que foi lançada na conta da executada na exequente, e como o saldo dessa conta era um débito de 5647,27€, o saldo ficou a crédito da executada no valor de 502,73€.

                                                                 *

              A sentença tem a seguinte fundamentação para a improcedência dos embargos, em síntese feita por este TRL:

         A exequente é titular de um crédito junto da executada, na sequência de uma relação de fornecimento de bens que vigorou entre ambas, crédito esse titulado pelo documento que serve de base à execução.

           Visou a executada, com a dedução dos embargos, a extinção da execução, alegando para o efeito que as notas de crédito vieram a ser anuladas por acordo das partes.

         A prova desse acordo recai sobre a executada, como facto extintivo do direito da exequente (art. 342/2 do CC).

         Como a executada não logrou provar esse acordo, nem qualquer outro facto que pusesse em causa o direito da exequente no pagamento do respectivo crédito, os embargos têm de improceder.

              Decidindo:

              O aditamento do ponto 10 dos factos provados põe em causa a fundamentação da improcedência dos embargos.

          O facto de na contabilidade da exequente estar escrito que ela estava a dever 502,73€ à executada, o que é decorrência da emissão de uma nova factura pela executada, pelo valor de 6150€, com o texto de “valor referente à substituição dos equipamentos referentes às notas de crédito 201411008 e 2014110009 de 2014”, o que levou à ultrapassagem do anterior saldo dessa conta que era um débito de 5647,27€ da executada (a dívida exequenda) à exequente, resultante dessas notas de crédito, invertendo-se então as posições, é uma confissão destes factos (arts. 38 do CCom e 380/1 do CC), com valor de prova plena contra a exequente (art. 44/1 do CCom e 347 do CC); tinha que ser a exequente, agora, a provar o contrário [este § tem por base a posição de Lebre de Freitas referida na obra e páginas citadas acima], sob pena de se ter que concluir que a obrigação exequenda já não existia.

              A exequente não provou o contrário.

           Assim sendo, dessas declarações provadas, decorre que a dívida exequenda deixou de existir: a exequente declarou que o saldo agora existente, resultante dos dois movimentos anteriores, é um saldo positivo a favor da executada, isto é, um crédito desta; verificou-se assim uma compensação tácita de créditos recíprocos (arts. 217/1, 847 e 848, todos do CC).

              Tanto basta para a procedência dos embargos e, por isso, também do recurso.

                                                                 *

           Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e em consequência revoga-se a sentença recorrida que se substitui por esta outra que julga agora os embargos procedentes, com consequente extinção da execução.

              Custas dos embargos e do recurso, na vertente de custas de parte (não existem outras) pela exequente (que é quem perde os embargos e o recurso).

              Lisboa, 11/12/2019

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto