Processo do Juízo Central Cível do Funchal – Juiz 1

              Sumário

              I – A pessoa colectiva, quer responda por facto próprio (art. 483/1 do CC) quer por facto de outrem (art. 500/1 do CC), não deixa de ser uma pessoa responsável pelos danos para os efeitos do art. 497/1 do CC, pelo que a sua responsabilidade, perante o lesado, é solidária com a do seu órgão ou com a do seu representante.

           II – A obrigação da seguradora, que a lei permita possa ser demandada juntamente com o seu segurado, é solidária por força das respectivas normas legais e não por via do art. 497/1 do CC.

      III – O direito de regresso, numa acção em que esteja em causa o pedido de indemnização feito por lesado, não é objecto da acção, excepto se isso tiver sido pedido num caso em que tal pode ser pedido (art. 317/1 do CPC).

      IV – Se tiver sido provocada a intervenção principal de outros eventuais litisconsortes, a relação material controvertida tem a configuração que lhe for dada por autor e réus, não se podendo afirmar que há violação da causa de pedir invocada na petição inicial pelo facto de os réus primitivos terem sido condenados em parte por factos que eles próprios alegaram quando provocaram a intervenção do novo réu, também considerado obrigado solidário, ou quando a seguradora chamada é condenada com base no que eles alegaram.

              V – Se a autora acende uma chama dentro de uma sala de uma moradia onde não pode deixar de sentir o cheiro a gás, deve considerar-se que um facto culposo dela também concorreu para a produção dos danos, no caso em 20%, devendo a indemnização ser reduzida com esse fundamento (art. 570/1 do CC), como o foi.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

           A propôs um acção contra (i) B-Unipessoal, Lda, e (ii) C, pedindo a condenação de ambos a pagar-lhe 120.000€ a título de danos morais e 4877,72€ a título de dano patrimoniais, a ampliar em função do montante dos danos que vier a ser determinado pelo Instituto de Medicina Legal, quanto aos danos morais e quanto à medida da incapacidade a fixar à autora, e dos valores que, por vir a estar de baixa, deixará de auferir; e ainda no pagamento de todas as despesas que venha a fazer em resultado dos danos corporais que sofreu, nomeadamente operações estéticas ou de recuperação, internamentos, viagens, medicamentos e outras.

              Alega, muito em síntese, que no dia 23/10/2012, foi vítima de uma explosão de gás, seguida de incêndio, em casa de um amigo, onde tinha ido a pedido do mesmo, para ligar o alarme e verificar se estava tudo bem; a explosão deu-se quando acendeu um isqueiro a gás para fumar um cigarro na sala; o gás que provocou a explosão derramou de um tubo na cozinha, saído da parede, por detrás do armário que acondicionava o fogão; o proprietário da casa, D, remodelou a casa em 2010; a colocação e montagem da instalação de gás foram feitas pela ré B-Lda na zona da cozinha; como o proprietário, na altura, preferiu um fogão constituído por uma placa de indução a electricidade, o tubo do gás que provinha das bilhas exteriores não foi ligado a electrodoméstico nenhum e foi tampado com uma tampa de plástico e não tamponado com um bojão roscado ou fixado por processo equivalente, nomeadamente com batoque em latão; por outro lado, foi instalada, por cima do local onde a placa estava instalada e por cima do tubo de gás, uma torneira de corte de gás; tal torneira, precisamente porque o tubo do gás estava interrompido, devia estar colocada em posição de não poder ser aberta, isso é, deveria ter uma tranca para impedir rodar o manípulo, ou então não ter este; o que não ocorreu, pois no local foi instalada uma torneira de corte, mas com um pequeno torniquete/manípulo de abertura fácil (bastava girar com pouca força); o gás que provocou a explosão proveio do tubo, não selado, que alimentaria o fogão de cozinha; sendo que a tampa de plástico cedeu à pressão do gás a correr no tubo; a afluência de gás ao tubo ter-se-á devido ao facto de alguém, inadvertidamente, ter rodado a dita torneira de segurança, que não ocorreria caso a mesma estivesse nas condições referidas supra; foi o réu C, técnico de gás, quem pessoalmente esteve no local a montar a instalação de gás, quem praticou os actos de instalação; em resultado da explosão de que foi vitima, a autora sofreu inúmeras lesões, permanentes e com sequelas, e reflexos patrimoniais e não patrimoniais e vai continuar a sofrê-los.

              Os réus contestaram, excepcionando a ilegitimidade de ambos, porque a ré tinha coberto a sua eventual responsabilidade civil para com terceiros através de um contrato de seguro celebrado com a Seguros-SA; e, também, quanto ao réu, porque não haveria contrato com este; e impugnando alguns dos factos alegados pela autora: as obras de instalação do gás foram realizadas correctamente e os danos, a verificaram-se, estão calculados com exagero; excepcionaram também a culpa do dono da moradia, por ter sido ele que, ao ter instalado uma placa de indução, tornou inútil o tubo de gás instalado para um fogão a gás, e, apesar de alertado para a necessidade de o fazer, não ter feito colocar um tampão cego no aludido tubo, nem retirado o (nem permitido a retirada do) manípulo da válvula do corte de gás para o fogão de modo a obstar a que alguém a pudesse abrir (artigos 16, 17, 19, 21, 25 e 26), criando assim as condições necessárias para o que veio a acontecer (art. 83); e ainda porque foi ele que abriu a torneira de segurança do tubo [por onde veio a sair o gás que provocou a explosão]; isto como resulta também do que alegam nos artigos 76 a 85 e do que dizem no art. 90, com remessa para os artigos anteriores e para o que teria sido dito pelo próprio dono: arts. 47 a 50, para o que foi dito pela PJ: arts. 52 a 55 e para as suas próprias conclusões: arts. 56 a 60; ainda dizem que relativamente às obras mencionadas o dono não deu entrada na Câmara Municipal qualquer projecto, de obras ou outro, e após a realização das obras não deu entrada nem requereu qualquer autorização de utilização do imóvel e consequentemente a Câmara não emitiu qualquer licença de utilização do imóvel (arts. 45 e 46); e da própria autora, que actuou de forma negligente ao acender um isqueiro na sala onde se encontrava o gás; a ré requereu, nos termos dos artigos 316 e seguintes, a intervenção principal provocada da sua seguradora, como sua associada, e do proprietário da moradia, D, como associado da autora.

              A autora opôs-se ao pedido de intervenção do dono da moradia como seu associado, por ser evidente que o interesse deste não era igual ao seu. A B-Lda veio então dizer que tinha havido um lapso, requerendo que se passasse a entender que tinha pedido a intervenção do dono da moradia como seu associado e não como associado da autora. A este requerimento a autora opôs-se dizendo que não havia qualquer lapso manifesto.

              Citado para o efeito, o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, deduziu, contra os réus e contra os chamados, pedido de condenação solidária no reembolso de prestações da segurança social, no montante de 13.701,04€, acrescidos dos valores que, entretanto, viessem a ser pagos até ao encerramento da discussão e julgamento da causa, e dos juros a contar da notificação do pedido de reembolso até integral pagamento.

           Por despacho de 19/06/2015 foi admitida a intervenção principal dos chamados, como associados dos réus, nos termos do artigo 316/3-a do Código de Processo Civil (litisconsórcio voluntário como devedores solidários: artigos 483, 490, 493/1 e 497, todos do Código Civil); ambos contestaram os pedidos da autora e do ISSM:

               – a seguradora, em resumo, impugnando alguns dos factos alegados pela autora e aderindo à e completando a contestação da B, dizendo que foi o dono da moradia que não deixou que o trabalho daquela tivesse sido concluído em condições e que o evento danoso nunca teria ocorrido sem esse impedimento;

             – e o réu D, a 04/01/2016, aceitando alguns factos alegados pela autora e admitindo a possibilidade da verificação de outros; impugnou os factos alegados pelos réus chamados como base da responsabilidade que lhe imputavam a si; e requereu a intervenção principal provocada de J, o empreiteiro da obra de remodelação, e de L-SA, como seus associados, para exercer um eventual direito de regresso, o que foi indeferido. Entre o mais, o réu dizia que a autora tinha recebido parte do montante do valor da eventual responsabilidade civil coberta pelo seu seguro, a título de danos corporais (esta contestação foi notificada a todas as outras partes, na sequência do despacho de fls. 290 e 291 do processo em papel, de 10/02 e 16/03/2016).

              A autora respondeu às excepções suscitadas na contestação apresentada pelos réus B-Lda e C, impugnando a respectiva base de facto.

         No despacho saneador julgou-se improcedente a excepção da ilegitimidade processual passiva dos réus C e B.

              Depois da realização de exame médico-legal, a autora deduziu incidente de liquidação do pedido genérico, aumentando para 37.574,96€ o valor dos danos patrimoniais; o incidente e os factos alegados, foram impugnados pelos réus.

         Na audiência final de 12/12/2018, a E disse que só nesse dia tinha tido conhecimento que a autora teria recebido uma indemnização de 20.000€ por parte da seguradora do interveniente D ou da respectiva seguradora L, e requereu a notificação da autora e do respectivo interveniente para juntarem aos autos cópia do respectivo recibo indemnizatório e, caso no mesmo não conste a natureza do respectivo pagamento, a que título foi paga a referida importância. Efectivamente tal montante poderia ser tido em conta no peticionado na presente acção, pelo que se mostrava de todo o interesse apurar a respectiva factualidade. A autora respondeu que a intervenção da L Seguros tinha sido requerida pelo interveniente D tendo sido indeferida pelo tribunal, pelo que entendia não ter que juntar qualquer documento que tenha estabelecido com a mesma. O réu D disse que nada tinha a opor à junção do eventual documento. Os réus B-Lda e C aderiram ao requerimento da E, referindo ainda que também só agora tiveram conhecimento da factualidade em causa, concretamente atinente ao facto de já haverem sido pagos, por conta do mesmo sinistro, 20.000€ para ressarcimento dos danos que a autora teria sofrido e daí toda a pertinência para a respectiva junção aos presentes autos e o conhecimento do tribunal. E depois a E ainda requereu que se notificasse a L para vir juntar aos autos toda a documentação do processo de sinistro relativo ao pagamento de 20.000€ à autora e toda a documentação do processo de sinistro inclusive toda a negociação existente. A autora, o réu D e o ISSM disseram nada a opor e os réus B-Lda e C aderiram ao requerimento da E, tendo então o tribunal proferido o seguinte despacho: Atenta a posição assumida por todos os intervenientes concede-se o prazo de 10 dias ao réu D para proceder à junção do documento nos termos do requerimento ou dizer o que tiver por conveniente. Quanto ao mais, oficie à L mencionada pelo requerente, nos termos requeridos.

              A 03/01/2019, o réu D juntou a relação discriminada dos valores pagos pela L à autora, no valor global de 20.732€.

              A 15/01/2019, a autora disse que com excepção da última verba constante da listagem apresentada, no valor de 10.964,17€, todas as outras se destinaram a reembolsar a autora ou a pagar despesas incorridas pela mesma, após ter tido alta do Hospital onde esteve internada 155 dias por virtude da explosão de gás. Na verdade, mesmo antes da propositura da presente acção, o réu D accionou a sua apólice multirriscos habitação, ao abrigo da qual a L foi pagando à autora todos os tratamentos, consultas, cremes, fisioterapia e tudo o mais de que a mesma foi carecendo até Maio de 2015; nenhuma dessas despesas está reclamada na presenta acção. Em Abril de 2018, querendo a L encerrar o processo de sinistro, entendeu pagar à autora a quantia que faltava para esgotar o plafond da apólice. Foi nesse sentido que procedeu ao pagamento à autora de 10.964,17€. Fê-lo, contra a entrega pela autora do recibo de que ora se junta cópia, sendo que a referida quantia não é nenhuma das reclamadas pela autora na presente acção, pelo que os pagamentos feitos pela L em nada relevam no presente processo. E requereu a notificação do réu D para que viesse confirmar que todos os valores constantes do documento que juntou, com excepção do ultimo, se referem, não a entregas em numerário feitas à autora, mas sim ao pagamento directo ou reembolso à mesma de despesas por ela incorridas com tratamentos e medicamentos a que teve que recorrer em virtude do acidente de que foi vitima. Juntou documento da L onde, com referência aos detalhes dos pagamentos, consta, danos corporais, e ao valor: 10.964,17€ e um recibo de quitação da autora à L.

              A 17/01/2019, os réus B-Lda e C escreveram que 1: Integram o objecto da presente acção, à luz da causa de pedir e do pedido, considerando quer a petição inicial quer o incidente de liquidação deduzido, os alegados danos corporais sofridos pela autora. […] 3: Acontece que, face ao requerimento apresentado pela autora, bem com face ao documento que o acompanha, se verifica que aquela já recebeu, em função dos ditos danos corporais, pelo menos 10.964,17€. 4. Integra ainda tal documento a quitação integral dada a esse título à seguradora que efectuou o pagamento em causa: L. 5. Assim, vêm os requerentes expressamente arguir, como defesa a título de excepção, quer o aludido pagamento, quer a aludida quitação integral, uma vez que a todos os respectivos devedores liberam, considerando que a responsabilidade civil extracontratual é fonte de solidariedade: cfr. arts. 497/1 e 512/1 do CC. 6. Na verdade “se, em vez de recorrer à via judicial, o credor exigir a prestação extrajudicialmente a um dos devedores, não fica inibido de a reclamar de outro ou outros, enquanto não for efectuada”, sendo que, no caso concreto, tal prestação já foi efectivamente realizada, na integra, face ao documento apresentado pela autora, devidamente assinado pela mesma, e no qual consta, assinado por aquela o recibo do pagamento da quantia acima identificada e a quitação integral referente aos alegados e ditos danos corporais. 7. A presente matéria só agora, em face do comportamento processual da autora, foi conhecida dos requerentes. Termos em que deve ser admitido o presente articulado nos termos do art. 588/3-c do CPC.

              A 17/01/2019, a E subscreveu integralmente tal requerimento, aderindo à posição ali manifestada.

              A 04/02/2019, a autora veio dizer, entre o mais, que “de acordo com o princípio da economia processual, a autora vem desde já responder ao articulado superveniente, arriscando a que a resposta seja considerada extemporânea, como, aliás, o é o próprio articulado a que ora se responde, porquanto, nos termos da norma acima referida, só deveria ser apresentado na continuação da audiência final. Respondendo: Não tem os réus qualquer razão. De facto, e como já o afirmou anteriormente a autora, todas as verbas despendidas pela L, com excepção dos 10.964,17€, foram para pagar tratamentos ou deslocações ou outras despesas, todas incorridas pela autora antes da propositura da presente acção e nenhuma delas reclamada na mesma. Quanto aos 10.964,17€ recebidos pela autora, não foi a título de danos corporais como afirmam os réus, no artigo 3º do articulado superveniente, que assim se impugna. Nem a autora deu quitação integral àquela seguradora, como se afirma no art. 4 do articulado superveniente, que assim se impugna, mas tão só a quitação daquela quantia, como resulta com evidente clareza do recibo de quitação. Nem a autora prescindiu de reclamar quantias remanescentes. Acresce que a L não é ré na presente acção, pelo que não poderá ser condenada em qualquer pagamento, pelo que nem sequer pode recair sobre ela a responsabilidade solidária que, para este efeito, pretendem os réus. Termos em que deve ser rejeitado o articulado superveniente, porquanto o nele alegado não interessa à boa decisão da causa.

              A 19/02/2019, a L apresentou uma lista de pagamentos à autora, coincidente com aquela que já constava dos autos.

              A 07/03/2019, a autora disse que, notificada da junção aos autos da listagem de pagamentos feitos pela interveniente L, que coincide, aliás, com a junta pelo réu D vem requerer que se ordene a notificação de ambos para, em complemento, virem aos autos informar se todas as despesas indicadas como tendo sido recebidas por ela, autora, o foram efectivamente ou se foram reembolsos à mesma de despesas feitas por esta e depois reembolsadas contra a entrega dos respectivos comprovativos, bem como informem, de uma forma genérica, qual a natureza de tais despesas (consultas, medicamentos, tratamentos, transportes, etc.).

        A 08/03/2019, os réus B-Lda e C dizem que a informação mencionada no requerimento da autora não faz qualquer sentido no que toca aos 10.964,17€ de que a autora foi abonada: não só tal quantia foi expressamente excluída pela mesma do elenco de despesas em que incorreu (citando-a: “com excepção da última verba constante da listagem apresentada, no valor de 10.964,17€, todas as outras se destinaram a reembolsar a autora ou a pagar despesas incorridas pela mesma”), como, nos expressos termos do documento emitido pela L e junto aos autos, tal quantia não corresponde ao reembolso de quaisquer despesas, antes integra a compensação pelos respectivos danos corporais […]

              A 21/03/2019, foi proferido o seguinte despacho, em síntese:

             Vieram os réus B-Lda e C deduzir articulado superveniente, alegando que […]. […]. Notificada a autora do articulado, a mesma, além de arguir a extemporaneidade da respectiva apresentação, impugnou alguns dos factos alegados pelos réus […]. Nos termos do disposto no artigo 588, n.ºs 1 a 4, do CPC os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão. […]. O novo articulado em que se aleguem factos supervenientes deve ser oferecido na audiência prévia, se houver lugar a esta, quando os factos que dele são objecto hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respectivo encerramento, nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado audiência prévia, ou na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores. O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo […]. […]. No presente caso, não foi realizada audiência prévia, tendo o despacho saneador sido proferido em 04/11/2016. Os réus vieram alegar materialidade consubstanciada em documento datado de 17/04/2018 […]. Assim, o prazo para a apresentação último articulado possível nestes autos terminou antes do momento em que terão ocorrido os factos supervenientes, conforme se extrai do documento em que assenta a factualidade supervenientemente alegada. Sucede que o despacho que designou data para a realização da audiência de julgamento que, entretanto, se iniciou, foi notificado aos réus em causa em 16/10/2018 […]. Nesta sequência, a factualidade superveniente carreada para os autos, assente no documento datado de 17/04/2018 mencionado, ocorreu até aos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência de julgamento. Assim sendo, o prazo para a apresentação do articulado superveniente em causa terminou nos referidos 10 dias posteriores à mencionada notificação da data designada para a realização da audiência de julgamento. E diz-se terminou uma vez que nenhuma prova foi indicada no articulado superveniente apresentado (artigo 588/5 do CPC) e, por conseguinte, poderá ser produzida, no sentido da demonstração do conhecimento posterior da factualidade alegada em tal articulado (artigo 588/3-b-c do CPC). E nem se poderá afirmar que resulta dos próprios autos o conhecimento posterior pelos réus desses mesmos factos supervenientes, uma vez que o documento em que os mesmos réus assentam a matéria vertida no articulado superveniente foi junto aos autos na sequência de requerimento da E a que os réus apresentantes do articulado em causa aderiram em sede de audiência de julgamento […]. É que, ainda na fase dos articulados, e com data de 04/01/2016 […] o chamado D, na contestação por si apresentada em que, concomitantemente, deduziu requerimento de intervenção principal provocada precisamente da seguradora L, alegou que esta havia já pago valores à autora “a título de danos corporais” (cfr. artigo 51), articulado este que foi notificado aos réus na sequência do despacho com a ref. 417028758 fl. 291). Conclui-se, deste modo, que não alegam, nem oferecem os réus prova de que o conhecimento pelos mesmos dos factos alegados no articulado superveniente apresentado terá ocorrido depois do momento referido no n.º 3, alínea b) do [do art. 588 do] CPC. Assim sendo, pese embora os factos alegados pelos réus no articulado ora em apreço se mostrem objectivamente supervenientes, por se tratar de factos ocorridos posteriormente ao decurso do prazo para a apresentação do último articulado, não resulta alegado nem foi oferecida prova do conhecimento dos réus posterior ao momento estabelecido no art. 588/3-b do CPC desses mesmos factos, sendo certo que a respectiva ocorrência é anterior à notificação da data designada para a realização da audiência de julgamento, havendo, ainda na fase dos articulados, notícia nos autos, de que estavam já a decorrer pagamentos à autora por parte da seguradora L. Conclui-se, deste modo, que não estão preenchidos os pressupostos de admissão do articulado superveniente apresentado. Pelo exposto, rejeita-se o articulado superveniente apresentado pelos réus.

        Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença condenando solidariamente os réus a pagar:

         – à autora 73.600€, a título de indemnização por danos patrimoniais [= 29.600€] e não patrimoniais sofridos [= 44.000€].

         – e ao ISSM 10.830,19€, acrescidos de juros, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação para a dedução do pedido de reembolso e até efectivo e integral pagamento.

              Os réus B-Lda e C recorreram desta sentença, impugnando a decisão de três pontos da matéria de facto, arguindo nulidades da sentença e pondo em causa a procedência da acção.

              A autora recorreu subordinadamente, nos termos e ao abrigo do art. 633 do CPC, na parte em que a sentença lhe é desfavorável, isto é, na consideração de que a conduta dela concorreu em 20% para a produção de danos e em consequência reduziu a indemnização (art. 570 do Código Civil); entende que a indemnização deve manter-se no valor dos danos, de 92.000€, ou, quando muito, considerar-se que a autora é culpada apenas em 8%, sendo os réus condenados solidariamente no valor de 84.640€.

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              Questões que importa decidir: as nulidades; as impugnações das decisões da matéria de facto; se os réus recorrentes não deviam ter sido condenados a pagar uma indemnização à autora; se à autora não devia ter sido atribuída culpa no acidente ou, se, no máximo, lhe devia ter sido atribuída apenas 8% da culpa.

                                                                 *

              Foram dado s como provados os seguintes factos (não se transcrevem os referentes aos danos causados à autora e ao ISSM, ao menos para já):

  1. Em 23/10/2012, a responsabilidade civil da B-Lda perante terceiros por danos materiais ou corporais causados decorrentes de acções relativas à instalação de redes e/ou montagem e reparação de aparelhos de gases combustíveis, estava assumida pela E-SA, até ao limite de 600.000€, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 6000791100010/11.
  2. Correu termos processo de inquérito com o nº 524/12.7JAFUN, da 1ª Secção dos Serviços do Ministério Público do Funchal.
  3. A autora é beneficiária da Segurança Social com o n.º 10342664734.
  4. A B-Lda estava, no momento referido em 1, e está, credenciada pela Direcção Regional do Comércio, Indústria e Energia da Região Autónoma da Madeira como “Entidade Instaladora de Redes de Gás”.
  5. O réu C estava, no momento referido em 1, e está, credenciado pela mesma Direcção Regional como “Soldador de Redes de Gás”, “Instalador de Redes de Gás” “Mecânico de Gás”.
  6. No âmbito do processo referido em 2, J, na qualidade de empreiteiro geral das obras em causa, declarou a fls. 99 e seguintes daqueles autos, que adjudicou a parte da execução da instalação de gás à B. Mais declarou, e em síntese, o seguinte: “Como na altura o proprietário da casa comprou no continente os móveis de cozinha com uma placa de indução, esta foi aplicada na cozinha, tendo o tubo de gás na parede por cima do móvel uma torneira de passagem e em baixo, na ponta, o técnico de gás colocou uma tampa plástica para não entrar lixo”; “Na altura adjudicou a parte do gás à B-Lda do Sr. F, com sede na Ribeira Brava, que tem a licença para fazer este tipo de instalações, e veio testar a instalação confrontou-se com o facto do acesso ao tubo do gás existente por baixo da placa do fogão já estar fechado pela bancada de mármore e não poder assim soldar ou colocar o batoque de latão na ponta do tubo que lá estava”; “Todos os materiais e equipamento (…) eram comprados pelo proprietário da casa”; “O carpinteiro (…) quando montou a bancada de cozinha não se lembrou que havia a ponta do tubo do gás para fechar”; “(…) lembra-se do Sr. Faria ter alertado o proprietário da casa Sr. D para a existência da torneira de passagem na parede ter de estar sempre fechada, já que a ponta do tubo ter apenas uma tampa plástica e não estar soldada”.
  7. Ainda no âmbito daquele processo, resulta da participação da Polícia de Segurança Pública constante de fls. 4 e seguintes daqueles autos que: “(…) a vítima, segundo informações da equipa da ambulância, encontrava-se no exterior do prédio aquando da chegada destes (…)”; “Pelo facto de a vítima até ao presente momento ainda estar a receber tratamento hospitalar, não foi possível chegar à fala com esta. Após diligências, viemos a apurar que esta é companheira do proprietário da residência, informações estas prestadas pela vítima, a qual, apesar de, no momento, estar nos “Cuidados Intensivos” daquela unidade de saúde, informou que o nome do seu companheiro é D, o qual encontra-se ausente na Suécia”.
  8. No âmbito do mesmo processo, resulta da “Informação de Serviço” da Polícia Judiciária de fls. 18 e seguintes daqueles autos que: “Segundo foi possível apurar, A, namorada do proprietário, deslocou-se à residência alvo de explosão com o intuito de accionar o alarme; “(…) mantida breve conversa com a mesma, referiu que entrou na aludida residência, tendo de imediato sentido um odor estranho”.
  9. No mesmo processo de inquérito, resulta das declarações da aqui autora de fls. 85 e seguintes daqueles autos que: “Quando chegou à residência verificou um forte odor a gás que lhe pareceu vir de umas obras, já que andavam na moradia vizinha a arranjar os esgotos, pelo que não deu importância ao cheiro”; “Na cozinha, por trás do armário que acondicionava o fogão eléctrico, não tinha conhecimento da existência de um tubo de cobre de alimentação do gás saído da parede, próprio para futura instalação de gás no fogão e que presume ter sido aí o derrame de gás para o interior da residência por o mesmo se encontrar mal selado”.
  10. A petição inicial da presente acção deu entrada em juízo no dia 07/01/2014.
  11. No âmbito do mesmo processo, por despacho de 06/11/2013, de fls. 161 e seguintes daqueles autos, o Ministério Público autorizou a consulta ao processo, tendo, posteriormente, por despacho de 15/11/2013, deferido a confiança do processo à aqui autora.
  12. Após a realização das obras, o proprietário do imóvel não deu entrada nem requereu qualquer autorização de utilização do mesmo e, consequentemente, a Câmara Municipal não emitiu qualquer licença de utilização de habitação do imóvel.
  13. Ainda no âmbito daquele processo, consta “Informação de serviço” da PJ, a fls. 18 e seguintes daqueles autos, que: “A residência afectada é propriedade de D (…)”; “ Em conversa com este apurou-se, conforme já referido, que o mesmo se encontrava na Suécia, tendo-se ausentado de casa por volta das 4h30, tendo para o efeito fechado o passador de gás existente na cozinha, na parede junto ao fogão.
  14. Em declarações por si prestadas, a fls. 58 e seguintes ainda desse processo, o aqui réu D afirmou que: Na cozinha, por trás do armário que acondicionava o fogão eléctrico tinha conhecimento da existência de um tubo de cobre de alimentação de gás, saído da parede, próprio para futura instalação a gás no fogão”.

         Em declarações prestadas a fls. 89 e seguintes, o mesmo réu referiu que: “(…) esteve a residir nesta casa cerca de dois anos e desde o início com esquentador a gás ligado e nunca detectou derrames ou fugas de gás no interior da sua residência durante esse período”; “A pré-instalação de gás na cozinha foi efectuada pelo construtor mas que nunca foi ligado o gás porque teve sempre fogão eléctrico”; “Face ao relatório da peritagem verificou-se duas irregularidades graves na instalação do gás aquando da instalação do gás aquando da construção, por um lado, uma devida ao fecho do tubo do gás da pré-instalação junto ao fogão que estava tapado com uma tampa plástica quando o tubo deveria estar devidamente selado ou plumbeado. Por outro lado, a torneira de passagem do gás, colocada na parede por cima do fogão deveria ter uma tranca na posição de fechada com impedimento de abertura e que não tinha”; “recorda-se de no dia anterior ter estado a limpar a parede da cozinha na zona da torneira e, apesar de não se lembrar, acha possível que a tenha aberto sem querer, razão porque, depois face à pressão fez saltar a tampa plástica da ponta do tubo na pré-instalação do fogão e foi por aí que se deu a fuga do gás”; “(…) caso (…) não tivesse inadvertidamente aberto a referida torneira de passagem este acidente/explosão não teria acontecido apesar das irregularidades existentes na instalação do gás”.

  1. Do “Relatório de Missão constante de fls. 75 sempre daquele processo, da PJ, consta o seguinte: “Em suma, e tendo em conta a avaliação dos Bombeiros, as causas do incidente são desconhecidas”.

         Depois, do relatório da PJ a fls. 110 e seguintes daqueles autos consta, além do mais, que: o proprietário do imóvel “esclareceu que quando deixou a casa tomou banho de água quente e os passadores se encontravam abertos e os redutores ligados às garrafas de gás sendo que não mexeu em qualquer torneira ou ponto de instalação de gás; “Em novas declarações o proprietário da casa” referiu que “recordava-se de no dia anterior ter estado a limpar a parede da cozinha na zona da torneira e referiu que, apesar de não se lembrar, achava possível que tivesse aberto a mesma sem querer, razão porque, depois face à pressão fez saltar a tampa plástica da ponta do tubo na pré-instalação do fogão e foi por aí que se deu a fuga do gás”; “(…) caso (…) não tivesse inadvertidamente aberto a referida torneira de passagem este acidente/explosão não teria acontecido apesar das irregularidades existentes na instalação do gás”; “Foi afastada a intervenção dolosa de terceiros na origem da deflagração do incêndio e explosão, apontando todos os indícios para uma deflagração acidental havendo negligência ao nível da instalação do gás aquando da reconstrução da casa a somar claro às negligências do proprietário por ter aberto inadvertidamente as torneiras de passagem na cozinha e da amiga deste A que cheirou gás no exterior da casa e dentro acendeu o cigarro”; “No entanto, tais falhas eram do conhecimento do proprietário da casa conforme declarações do empreiteiro e do técnico do gás e não fosse alguém (confirmou-se ter sido o proprietário da casa) ter aberto a torneira de passagem do gás na cozinha que originou um derrame de quantidade de gás indeterminada no interior da residência e depois, face à existência de chama viva aquando a A acendeu o isqueiro que originou um pequeno foco de incêndio junto ao sofá e a explosão, excluindo-se a possibilidade de crime doloso na origem do incêndio e da referida explosão; “a explosão ocorreu devido à conjugação de pequenas negligências individuais ao longo do tempo que vão desde o técnico do gás, do empreiteiro, do proprietário da casa e da amiga deste, que cada uma, por si só, não eram susceptíveis de provocar a explosão.

  1. Do artigo 20/1 das “Condições Particulares” da apólice referida em 1, consta que “Mediante convenção expressa, pode ficar a cargo do Tomador do Seguro ou do Segurado uma parte da indemnização devida a terceiros, não sendo, porém, esta limitação de garantia oponível a estes”, sendo que, em consonância, ficou acordada uma franquia de 10% do valor da indemnização, com um mínimo de 249,40€.
  2. E do artigo 28/1-b dessas Condições consta que “Satisfeita a indemnização, a E tem direito de regresso, relativamente à quantia despendida, contra o Tomador do Seguro ou o Segurado, nos seguintes casos: b) Danos decorrentes do incumprimento por parte do Segurado, ou do pessoal ao seu serviço, das regras de segurança exigidas por lei, relativas à instalação de redes e/ou montagem e/ou reparação de aparelhos de gases combustíveis.
  3. No dia 23/10/2012, por volta das 13h30, a autora dirigiu-se a casa do réu D, uma moradia no Funchal.
  4. A autora procedeu da forma referida em 1 a pedido do réu D para ligar o alarme e verificar se estava tudo bem.
  5. O réu D encontrava-se ausente no estrangeiro.
  6. Pouco tempo depois de ali chegar, a autora resolveu fumar um cigarro, para o que acendeu o seu isqueiro a gás.
  7. De imediato, e motivado pelo acender do cigarro, deu-se uma explosão seguida de incêndio.
  8. Tal explosão deveu-se à presença de gás butano/propano na sala onde a autora se encontrava.
  9. Na data referida em 1, a moradia só tinha dois pontos de entrada de gás: um esquentador que se encontra na lavandaria, situada numa varanda, e que era o único electrodoméstico que tinha ligado o gás como energia, e um tubo na cozinha, saído da parede, por detrás do armário que acondicionava o fogão e que ligava às bilhas de gás colocadas no exterior da moradia em local resguardado.
  10. Foi nesse tubo da cozinha que se derramou o gás que provocou a explosão.
  11. A lavandaria (onde se encontrava o esquentador, a funcionar) foi um dos espaços que não sofreu danos.
  12. O piso superior é constituído por três quartos, um wc e uma varanda.
  13. O telhado ruiu.
  14. Foi na sala, onde a autora acendeu o cigarro, que se deu a ignição da explosão.
  15. O proprietário da casa, o réu D remodelou a moradia em 2010.
  16. E entregou a realização geral da obra a uma empresa de construção civil detida e gerida por J.
  17. Este, por sua vez, encarregou a B-Lda para a colocação e montagem da instalação de gás.
  18. A instalação para o esquentador ficou completa.
  19. Na zona da cozinha, como o proprietário, na altura, preferiu um fogão de cozinha constituído por uma placa de indução a electricidade, o tubo do gás que provinha das bilhas exteriores não foi ligado a electrodoméstico nenhum e foi tampado com uma tampa de plástico e não tamponado com um bujão roscado ou fixado por processo equivalente, nomeadamente com batoque em latão.
  20. Por outro lado, foi instalada, por cima do local onde o fogão de cozinha estava instalado e por cima do tubo de gás, uma torneira de corte de gás.
  21. No troço final de abastecimento, na posição do fogão na cozinha, por ser uma linha de reserva (não existir nenhum equipamento de gás alocado à mesma), o final da linha a jusante do pater e respectiva válvula de corte, deveria estar selado/obturado ou por roscagem de um tampão “cego” ou soldando a ponta da tubagem de cobre, de forma a não ser possível a fuga de gás perante uma possível abertura acidental da respectiva válvula de corte, e também não estava nessas condições.
  22. O gás que provocou a explosão proveio do tubo, não selado, que alimentaria o fogão de cozinha.
  23. Sendo que a tampa de plástico cedeu à pressão do gás a correr no tubo.
  24. O que não ocorreria caso a torneira referida em 35 estivesse na posição de fechada e a instalação estivesse nas condições referidas em 36.
  25. O local onde se encontram as bilhas de gás, por se encontrar situado no quintal na fachada da moradia para a via pública e em armário próprio, existe a necessidade de o mesmo se encontrar permanentemente fechado e com tranca.
  26. Para este tipo de abastecimento deveria existir uma válvula de corte ao fogo (do tipo redutor de segurança), localizada no lado exterior do armário ou na fachada da moradia que dá para o passeio da via pública, sinalizada e de fácil acesso.
  27. Desta forma permitiria o rápido corte geral do gás da moradia em caso de emergência.
  28. Na data referida em 1 existia apenas a possibilidade de corte geral de gás na moradia na válvula existente no interior do armário de garrafas.
  29. Foi o réu C quem pessoalmente esteve no local a montar a instalação de gás, quem praticou os actos de instalação.
  30. O réu C é técnico de gás.
  31. No dia 31/10/2012, compareceu no local a SGS-SA, membro do grupo SGS, entidade reconhecida internacional e internacionalmente neste tipo de peritagens, a qual produziu, em 31/10/2012, o Relatório de Inspecção de fls. 27 a 32.

         […]

  1. As obras de instalação de gás efectuadas pela B, pelo réu C na moradia referida em 1 foram entregues, recebidas e aceites sem qualquer reserva ou reparo pelo respectivo proprietário.
  2. A instalação de gás executada pelos réus referidos em 71 ficou pronta, designadamente, para instalar um fogão a gás na cozinha da moradia.
  3. Daí que os mesmos réus tenham preparado a instalação para esse efeito, ou seja, para que o tubo referido em 34, na ocasião própria, pudesse ser ligado a um fogão a gás.
  4. Não existindo ainda gás na moradia, a tampa plástica de vedação do extremo do tubo era a suficiente.
  5. Destinando-se a mesma, apenas e exclusivamente, a não permitir a entrada de areia, cimento ou lixo para o tubo, provenientes do revestimento da parede.
  6. Isto sem prejuízo de existir um dispositivo ou torneira de corte do gás na parede por cima do espaço destinado ao fogão da cozinha, a qual, não obstante ainda não existir gás, foi colocada, pelos réus referidos em 71, na posição de fechada.
  7. Torneira essa, com mecanismo de fecho de segurança, uma vez que, para rodar o respectivo manípulo, é necessário previamente pressionar firmemente para dentro, já que sem tal pressão a mesma não roda nem permite a passagem de gás.
  8. Tal torneira de segurança destinava-se a ligar e a cortar a passagem do gás para o fogão a gás.
  9. Os réus regressaram à obra a fim de efectuar as ligações da instalação aos respectivos equipamentos a gás, nomeadamente ao esquentador.
  10. Tendo então constatado que já havia sido montado o móvel da cozinha, o qual incorporava uma placa eléctrica, esta também já instalada.
  11. Mais verificando que tal móvel escondia e tapava completamente o tubo de saída do gás para o fogão.
  12. Tendo o réu C alertado de imediato o proprietário do imóvel para a necessidade de cortar tal móvel e de colocar um tampão cego no tubo referido em 34, bem como para retirar o manípulo da válvula do corte do gás para o fogão, de modo a obstar a que alguém a pudesse abrir.
  13. O proprietário não assentiu nem numa coisa nem a noutra, evitando o corte do móvel e a retirada do manípulo da válvula.
  14. Alegando que ficava inestético sem o manípulo, já que estava à vista.
  15. A escusa do proprietário a cortar o móvel de cozinha, de modo a permitir a vedação segura e definitiva do tubo do gás, e a permitir a retirada do manípulo da válvula de corte do gás levou a que os réus [referidos em 71 – TRL] recusassem emitir e entregar ao proprietário, como habitualmente acontece, o termo de responsabilidade relativamente às instalações de gás em causa.
  16. Os trabalhos de colocação do móvel e de instalação da placa de indução referidos em 80, não foram executados pelos réus referidos em 71.
  17. Não sendo instalado o fogão a gás, seria antes da colocação do móvel de cozinha que o tubo devia ter sido retirado.
  18. Ou, não sendo tal possível, tamponado com um bujão roscado, ou fixado por processo equivalente, uma vez que já não se destinava a permitir ligar e desligar o gás do fogão, ficando consequentemente fora de serviço.
  19. Desde a data da instalação de gás em 2010 ao dia 23/10/2012, a moradia vinha sendo regularmente utilizada.
  20. O respectivo proprietário nunca reclamou de qualquer deficiência dos trabalhos de instalação de gás realizados pelos réus referidos em 71.
  21. As tubagens do gás são propriedade do dono da moradia.
  22. No momento referido em 1, a autora era namorada do proprietário da moradia, o réu D.
  23. E era frequentadora habitual de tal moradia.
  24. A qual conhecia.
  25. Quando chegou a tal moradia a autora verificou um cheiro a gás.
  26. Não deu entrada na Câmara Municipal do Funchal qualquer projecto, de obras ou outro relativamente às obras realizadas no prédio urbano sito à Rua do Castanheiro, nº 19 de polícia.
  27. No dia anterior ao referido em 1, o réu D procedeu à limpeza da cozinha na zona da torneira do gás.
  28. O réu C efectuou um 1.º teste à instalação do gás quando instalou e soldou os tubos, tendo o ensaio sido efectuado com 1,5 bares de pressão, utilizando um manómetro de pressão na ponta de saída.
  29. Não tendo sido detectada qualquer fuga.
  30. A B-Lda efectuou o teste, fechando, para o efeito, a válvula de corte para o tubo do fogão.
  31. A B-Lda alertou o proprietário do imóvel para nunca abrir a torneira de corte (torneira essa que exige que seja efectuada uma pressão para dentro e só depois é possível rodá-la).
  32. A obra referida em 31, atinente à reconstrução da moradia, incluía a instalação de canalização de gás.
  33. Tal moradia destina-se à habitação própria do réu D, bem como a ser utilizada pela filha, genro e netos do mesmo.
  34. No âmbito do acordo referido em 31 ficou estabelecido e foi reciprocamente aceite que os móveis da cozinha seriam escolhidos e adquiridos a gosto pelo proprietário do imóvel e por conta deste.
  35. O réu D, em 06/08/2010 adquiriu no IKEA, em Lisboa, o mobiliário de cozinha.
  36. Móveis esses que foram posteriormente transportados pela R-SA e depositados numa moradia no caminho de L, em F, por indicação do referido J.
  37. A moradia foi entregue ao réu D pronta a habitar.
  38. O único equipamento existente na moradia utilizando gás era o esquentador.

         […]

  1. A B-Lda tem, desde a respectiva constituição, como sócio e gerente o réu C.
  2. A autora nasceu em 27/02/1971.
  3. No âmbito do processo referido em 2, com data de 30/10/2015, foi proferido pelo magistrado do MP despacho que, depois de declarar encerrado o inquérito, determinou o arquivamento do mesmo, “uma vez que não foi possível coligir indícios suficientes de se ter verificado o crime de incêndio, explosões ou outras condutas especialmente perigosas.

*

Da impugnação da decisão da matéria de facto

              A B-Lda entende que as alegações correspondentes aos factos 25, 37 e 38 não estão provadas.

           Para o efeito diz que [a numeração foi colocada por este TRL para facilitar as referências]:

         I- É facto que o cheiro a gás se verificava no exterior da casa.

         II- E é facto que ocorriam obras na vizinhança.

         Na verdade, e como foi feito constar do ponto 9 da matéria de facto, resulta das declarações da autora que: “quando chegou à residência verificou um forte odor a gás que lhe parecer vir de umas obras, já que andavam na moradia vizinha a arranjar os esgotos, pelo que não deu importância ao cheiro”.

         III- É ainda facto que a autora reportou sentir o cheiro a gás, no exterior da casa, mais do que dentro da mesma.

      O tribunal a quo contraditou essa afirmação, nos termos acima transcritos, concretamente no ponto anterior.

       Afirma aí o tribunal a quo que o cheiro teria que ser necessariamente mais forte dentro de casa.

         Essa afirmação, contudo, carece de suporte probatório.

         Essa afirmação, na verdade, parte do pressuposto do tribunal de que a fuga de gás está dentro de casa.

       Nada impede ou exclui a possibilidade da fuga de gás ter a sua origem no exterior, aliás, nas próprias obras a que a autora fez menção, e que esse gás, a seguir o seu caminho, se tivesse também concentrado no interior da casa em questão.

         E não só nada impede ou exclui tal possibilidade, como, à luz das próprias declarações da autora, que inequivocamente afirmou ser mais forte o cheiro no exterior, tudo leva bem pelo contrário a crer que é justamente no exterior que se encontraria a fuga de gás em causa – seguindo para tanto o exacto raciocínio do tribunal a quo no sentido de que a dispersão do gás é maior no exterior.

         IV- É facto que as obras tinhas mais de dois anos, em plena utilização, e que nunca ali nenhuma fuga se verificou.

         Como consta do facto 14, resulta das declarações do chamado D que: “esteve a residir nesta casa cerca de dois anos e desde o início com esquentador a gás ligado e nunca detectou derrames ou fugas de gás no interior da sua residência durante esse período”, e ainda “a pré-instalação de gás na cozinha foi efectuada pelo construtor mas que nunca foi ligado o gás porque teve sempre fogão eléctrico”.

         E como consta do facto 89, “desde a data da instalação do gás em 2010 ao dia 23/10/2012, a moradia vinha sendo regularmente utilizada”.

         V- É facto que a explosão ocorre, não na cozinha, mas na sala da casa, onde se encontrava a presença de gás.

         Como consta dos factos 21 a 23 e 29 “a autora resolveu fumar um cigarro, para o que acendeu o seu isqueiro a gás”; “de imediato, e motivado pelo acender do cigarro, deu-se uma explosão seguida de incêndio”; “tal explosão deveu-se à presença de gás butano/propano na sala onde a autora se encontrava”; “foi na sala, onde a autora acendeu o cigarro que se deu a ignição da explosão”.

         VI- É facto que os Bombeiros não identificaram a causa do sinistro.

         Como consta do facto 15, “tendo em conta a avaliação dos Bombeiros, as causas do incidente são desconhecidas”.

         VII- É facto que o perito que verificou a instalação de gás da casa em causa, após o sinistro, a testou e verificou que a mesma estava perfeitamente estanque, ou seja, sem qualquer fuga.

       Remete-se, nesta matéria, para o respectivo depoimento (depoimento da testemunha MG, prestado na audiência da manhã do dia 12/12/2018, cfr. acta com a refª. 46483812, gravação com a refª. 20181212123256_899898_2871374) – de 50:00 em diante:

         “Advogado – Entre aquilo que o Sr. viu e aquilo que estava no dia da ocorrência, o Sr. não sabe se estava tal qual ou se houve alguma alteração designadamente quanto à posição da torneira?

         Resposta – Não.

         Advogado – Não sabe. Pergunto-lhe ainda outra questão. Podendo haver aquelas desconformidades, umas leves outras graves, que referiu, no estado em que encontrou no tal dia 30 de Outubro aquela instalação, pergunto se o senhor fez por acaso algum teste de carga àquela instalação, para excluir a hipótese de qualquer outro ponto de fuga naquele local? (…) No fundo, quando, e já teve a oportunidade de esclarecer o tribunal, quando fez a sua vistoria, e já explicou que aquela torneira estava numa posição de aberta, portanto obviamente que se fizesse um teste de carga nessa altura o gás escaparia por…

         Resposta – Exactamente.

      Advogado – … imediatamente por ali, mas o que lhe estou a perguntar é se por acaso fez, fechou a torneira e fez um teste de carga à instalação com aquela válvula fechada para ver se havia ainda assim algum ponto de fuga noutro sítio daquela instalação de gás ou não?

         Resposta – Eu gostaria só de confirmar no meu próprio relatório, mas eu tenho quase a certeza que fiz ensaio de estanquidade.

         Juíza – Ensaio?

         Resposta – Ensaio para verificar se existe alguma falta, alguma fuga em qualquer ponto da instalação. (…) Está aqui no 4.1: ensaio de estanquidade, feito a 150 milibares, aceite, no decorrer do ensaio a instalação não tem fuga.

      Advogado – Portanto o Sr. para fazer esse teste fechou aquela válvula…

         Resposta – Exactamente.

         Advogado – … Na posição fechada e fez o teste de estanquicidade?

         Resposta – Sim, não há outra maneira.

         Advogado – Não houve qualquer fuga.

         Resposta – Não.

         Advogado – Portanto a válvula estava em perfeitas condições e na posição fechada cortava totalmente…?

         Resposta – Mesmo depois do acidente, sim.

         Advogado – Cortava totalmente a saída de gás?

         Resposta – Sim, não havia qualquer fuga.”

         VIII- É facto que nada se apurou quanto a qualquer torneira da instalação de gás ter sido aberta, provocando a fuga em causa.

         Na verdade, o facto 39 (“o que não ocorreria caso a torneira referida em 35 estivesse na posição de fechada e a instalação estivesse nas condições referidas em 36”) não o esclarece.

         Bem pelo contrário, além do que respeita à instalação e foi dado como provado sob 33 a 35, o tribunal a quo especificamente deu como não provados os seguintes factos:

         – “a afluência de gás ao tubo ter-se-á devido ao facto de alguém, inadvertidamente, ter rodado a dita torneira de segurança” – não provado;

           – “no momento referido em 97, o réu D abriu a torneira, sem querer – não provado;

           – “levando a que, por pressão, tenha saltado a tampa plástica com a inerente fuga de gás” – não provado.

        Não há assim como concluir pela proveniência do gás, nos termos em que o tribunal a quo o fez.

              Decidindo:

            Tendo em conta os factos 21 a 24, 26 e 29 – Pouco tempo depois de ali chegar, a autora resolveu fumar um cigarro, para o que acendeu o seu isqueiro a gás. De imediato, e motivado pelo acender do cigarro, deu-se uma explosão seguida de incêndio. Tal explosão deveu-se à presença de gás butano/propano na sala onde a autora se encontrava. Na data referida em 1, a moradia só tinha dois pontos de entrada de gás: um esquentador que se encontra na lavandaria, situada numa varanda, e que era o único electrodoméstico que tinha ligado o gás como energia, e um tubo na cozinha, saído da parede, por detrás do armário que acondicionava o fogão e que ligava às bilhas de gás colocadas no exterior da moradia em local resguardado. A lavandaria (onde se encontrava o esquentador, a funcionar) foi um dos espaços que não sofreu danos. Foi na sala, onde a autora acendeu o cigarro, que se deu a ignição da explosão – tendo em conta, dizia-se, estes factos, não tem qualquer plausibilidade a hipótese alternativa que está, no fundo, subjacente à crítica da B.

              A explosão não se pode ter dado com gás proveniente do exterior. Se assim fosse, a explosão na sala – onde chegou a haver um início de incêndio cortado pelo refluxo da explosão (como consta do relatório de missão de fls. 119 da SOCIEXSS da PSP) – teria necessariamente provocado outras explosões ou pelo menos muitos outros danos, quer na moradia quer nas moradias adjacentes. Ora, a explosão nem chegou a provocar danos na lavandaria e provocou poucos noutras divisões.

             Por outro lado, não há qualquer dúvida sobre a fonte do gás que levou à explosão: foi o tubo de gás que levaria ao fogão a gás (se este estivesse instalado), cuja torneira de corte de gás estava aberta, como resulta da primeira parte do ponto 39 (“O que não ocorreria caso a torneira referida em 35 estivesse na posição de fechada […]” – ou seja, só ocorreu porque estava aberta).

              É certo que – como sugere a B-Lda em VIII – dos factos dados como provados, não consta, designadamente, que a torneira tenha sido aberta, ou como ou por quem foi aberta, e que não se deram como provadas as alegações de facto, transcritas a seguir pela B, que a isso se referiam. Mas isso não impede que se tenha dado como provado que ela estava aberta. E por isso, tendo em conta esta primeira parte do ponto 39, com este sentido inequívoco, conjugada com os factos 21 e 24, 26 e 29, não há qualquer dúvida de que se podia e devia dar, como se deu, como provado o que consta dos factos 25, 37 e 38.

              E nenhuma perturbação a isto é causada pelo facto de as fotografias tiradas pela PJ ao local (no próprio dia do acidente), mostrarem (fl. 484v do processo em papel) que a torneira de corte estava na posição de fechada, pois que no relatório (fl. 472) diz-se que “Aquando desta inspecção todos os passadores se encontravam fechados e os redutores fora extraídos das garrafas, o que foi feito pelos elementos dos Bombeiros que ali se deslocaram. Refira-se que a botija maior apresentava sinais de condensação no seu exterior, fruto da libertação rápida de gás.” Nem se retruca que aquela frase se está a referir às garrafas ou ao exterior, pois, para além de não ser inequívoco que assim seja, trata-se apenas da descrição de um modo de proceder perfeitamente natural, o que seria suficiente indício de que teria acontecido mesmo que não fosse dito. Os bombeiros, deslocando-se ao local de uma explosão de gás, fecham, naturalmente (como qualquer outra pessoa com presença de espírito), todos os possíveis pontos de fuga de gás. Não os vão deixar abertos, para poder ocorrer outra explosão. Aliás, antes, no mesmo relatório, já havia a seguinte descrição: “o chefe dos Bombeiros […] referiu que quando acorreu ao local, por questões de segurança, teve necessidade de estroncar o compartimento que acondicionava as duas botijas de gás e fechar o compartimento que acondicionava as duas botijas de gás, e fechar o circuito do mesmo. […]”. No mesmo sentido, na participação do acidente feita pela PSP do Funchal (fl. 499v) diz-se: “Chegado ao local, já se encontrava uma equipa de Bombeiros […] O chefe […] informou que à sua chegada, não havia chama, pelo que, supondo ser acumulação de gás, desligou a electricidade, gás e válvulas de gás.”

              De resto, a B-Lda chamou à acção o réu D, dono da moradia, precisamente por achar que tinha sido a conduta do mesmo as criar as condições necessárias para o que veio a acontecer: ou seja, ao não ter feito colocar um tampão cego no aludido tubo, nem retirado o (nem permitido a retirada do) manípulo da válvula do corte de gás para o fogão de modo a obstar a que alguém a pudesse abrir; e ainda porque foi ele que abriu a torneira de segurança do tubo [por onde veio a sair o gás que provocou a explosão].

              Os factos que a B-Lda vai dizendo que estão provados, não põem – antes pelo contrário – em causa esta conclusão.

            Quanto ao facto de a autora dizer que tinha sentido cheiro a gás apenas no exterior e a toda a discussão que a B-Lda a partir daí desenvolve, diga-se que a fundamentação da sentença está certa e não deixa dúvida nenhuma:

         “Relativamente ao sucedido antes da explosão, nomeadamente antes da autora acender o cigarro e, mais concretamente, no que concerne ao cheiro a gás, pese embora a autora tenha declarado ter sentido tal cheiro apenas na rua, quando se dirigia à casa, e a uns 10 a 15 metros da mesma casa, cheiro esse que associou a umas obras que estavam a decorrer na rua, tendo chegado mesmo a afirmar não ter sentido cheiro de gás no interior da casa, desde logo este relato não se revela consentâneo com a normalidade da vida, com o que a experiência de vida apresenta e o que o conhecimento dos homens e as regras da lógica patenteiam. Efectivamente, seguro que a autora não tinha qualquer limitação física a nível olfactivo, uma vez que afirmou ter sentido cheiro a gás, considerando a singularidade, intensidade e volatilidade do odor em causa, muito dificilmente tal odor poderia ter sido sentido apenas a 10/15 metros da casa e não o ter sido no interior da casa, onde o grau de concentração teria de ser tal, que o acender de um isqueiro conduziu ao sinistro em causa, sendo certo que, na rua, a existir cheiro a gás, o lógico e normal seria uma dispersão do gás e, consequentemente, do cheiro. E afigura-se-nos não ser bastante para refutação da constatação explanada a justificação que a autora alvitrou (e que lhe terá sido adiantada por um terceiro) de que não terá sentido o cheiro a gás no interior da casa, eventualmente porque o cheiro na rua se terá impregnado no seu sistema olfactivo, nomeadamente nos pêlos nasais. De facto, a diferença entre a concentração de gás que, como se disse, teria que existir no interior da casa que, segundo a própria autora referiu, estaria com as janelas e as portas fechadas, e a dispersão que na rua logicamente haveria que verificar-se, de acordo com a natureza das coisas e as compreensões adquiridas pela prática cognitiva e sensorial, teria que conduzir a uma diferença de intensidade de cheiro tal no interior da casa e no exterior da mesma, que muito dificilmente não seria minimamente detectada, nomeadamente quando o cheiro que terá começado a ser sentido no exterior não tivesse tido muito tempo para se impregnar e ficar impregnado no sistema olfactivo da autora, de tal forma a que a permanência do mesmo provocasse insensibilidade. […]”

              Acrescente-se apenas que esta parte das declarações da autora são, claramente, uma forma de ela se desculpar, ou seja, de tentar evitar que o seu comportamento seja visto como uma das causas do dano e que a culpa dela releve para a fixação da indemnização. Não merece qualquer credibilidade. 

              Assim, improcede a impugnação da decisão da matéria de facto.

                                                                (I)

                                 Das nulidades e dos títulos de solidariedade

              A sentença recorrida tem a seguinte fundamentação, em síntese:

         O objecto da presente acção enquadra-se no domínio da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (art. 483/1 do Código Civil).

         O facto revela-se na explosão, enquanto conduta humana dominável ou controlável pela vontade, em concreto nos factos 22, 23, 25, 37 e 47. A explosão assim descrita preenche o primeiro pressuposto da responsabilidade civil por factos ilícitos.

         O segundo pressuposto traduz-se na ilicitude.

         Dos factos 24, 34, 36 a 39, 87, 88 e 96 resulta a violação dos artigos 44/1 e 47/3 da Portaria 361/98, de 26/06, alterada pela Portaria 690/2001, de 10/07, e também dos artigos 1/2 e 11, n.ºs 1 e 3, do DL 521/99, de 10/12, vigente à data do sinistro, que prevêem cautelas e procedimentos que devem ser observados em matéria de instalação de gás em edifícios, inclusivamente de instalação de tubagens, e do DLR 19/2012/M, de 16/08.

         Acresce que, tendo em conta os factos 47 a 68 estão violados os direitos de personalidade e patrimoniais da autora, atendendo às lesões e danos que a autora sofreu.

         O requisito seguinte da responsabilidade civil extracontratual é o nexo de imputação do facto ao lesante, ou seja, a culpa.

         Ora, dos factos 5, 24, 25, 30 a 32, 34, 36 a 39, 44, 45, 71 a 73, 82, 85, 87, 88, 96, 101 a 103 e 117, resulta, desde logo, que é possível imputar a explosão em que se traduziu o sinistro em análise ao réu C, técnico de gás que pessoalmente montou no local a instalação de gás, de molde a fundamentar um juízo de censura dirigido à respectiva conduta.

         De facto, tal réu, desde logo, aquando da colocação da obra, e no cumprimento rigoroso das disposições do regulamento a que se reporta a Portaria 361/98, de 26/06, tendo verificado que existiam tubagens que estivessem ou se destinassem a ser colocadas fora de serviço, deveria retirá-las ou, não sendo tal possível, tamponá-las com um bujão, isto é, com uma peça que se destina a assegurar a estanquidade de um orifício, roscado ou fixado por processo equivalente, não devendo ter deixado, por não permitida, qualquer solução provisória, situação esta última para que apontam os factos 72 a 82 e 85.

         E não se diga que a culpa deste réu é afastada ou mesmo atenuada em face dos factos 71 a 88, 90, 91 e 101.

         Efectivamente, ante os normativos acima enunciados e as características e perigosidade que a actividade que desenvolvia acarretavam, impunha-se o cumprimento rigoroso dos deveres que sobre o réu C impendiam. Isto mesmo em face da posição manifestada pelo proprietário da casa e não se esbatia com simples alertas do proprietário para determinados comportamentos ou com a mera recusa de emissão do termo de responsabilidade.

         Cumprimento rigoroso significa observância intransigente, inflexível, rígida, sem margem para condescendências e tolerâncias, ainda que advertidas e prevenidas.

         E perante dificuldades ou mesmo a impossibilidade de um tal cumprimento rigoroso dos deveres, outra solução que não fosse o alerta necessário das autoridades, quaisquer que fossem, para a situação em que a instalação de gás se encontrava, não se mostra susceptível de esbater a censurabilidade da conduta do réu C.

         Acresce que, como resulta dos normativos supra enunciados, incumbia também ao réu C, enquanto instalador, cumprir com rigor os projectos das instalações.

         Ora, ante o facto 96, mesmo antes de iniciar qualquer obra de instalação de gás, tal cumprimento afigurava-se impraticável para o réu em causa, situação que não obstou nem inibiu tal réu de levar a cabo actos de instalação de gás na moradia.

         Aliás, aponta-se que a negligência se presume, quando há inobservância das leis ou regulamentos, o que dispensa a prova da negligência em concreto (cfr. Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3ª ed. págs. 205-206 e acs. do STJ de 10/03/98, BMJ 475-635, e de 09/09/98, BMJ 479-592).

      A responsabilidade das pessoas colectivas por actos ilícitos dos seus representantes, mandatários ou agentes está sujeita ao regime legal da responsabilidade civil por facto de outrem (extracontratual ou delitual), baseada no risco, conforme os artigos 165, 998/1 e 500 todos do CC, o mesmo parecendo acontecer, de resto, com a responsabilidade desses entes por actos ilícitos dos seus órgãos (cfr. Brito Correia, [Direito Comercial, 2º vol., Sociedades Comerciais, AAFDL, 2.ª edição, 1987, pág.] 274).

         Nos termos do disposto no art. 500/1 do CC (que se enquadra no instituto da responsabilidade pelo risco), “aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar”.

         De acordo com o disposto no art. 500/2 do CC, a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.

         Trata-se de uma responsabilidade objectiva do comitente, porquanto o mesmo é responsável mesmo que não tenha culpa, mas só é responsável se o comissário tiver culpa. Ou como afirma Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, pág. 322, “a responsabilidade do comitente é uma responsabilidade objectiva, pelo que não depende da culpa sua na escolha do comissário, na sua vigilância ou nas instruções que deu. No entanto, essa responsabilidade objectiva apenas funciona na relação com o lesado (relação externa), já que posteriormente o comitente terá na relação com o comissário (relação interna) o direito a exigir a restituição de tudo quanto pagou ao lesado, salvo se ele próprio tiver culpa, caso em que se aplicará o regime da pluralidade de responsáveis pelo dano (artigo 500/3 do CC)”.

         Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (CC anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 507), “o comitente poderá, no entanto, responder independentemente de culpa do comissário, se tiver procedido com culpa (culpa in eligendo, in instruendo, in vigilando, etc.). Nesse caso, já não haverá responsabilidade objectiva, mas responsabilidade por actos ilícitos, baseada na conduta culposa do comitente”.

         A aplicabilidade do artigo 500 do CC depende, assim, da existência de uma relação de comissão, e esta pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo – Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, pág. 446 -, sendo que “a expressão comissão não tem aqui o sentido técnico referido no artigo 266 do Código Comercial, mas antes o sentido amplo de tarefa ou função realizada no interesse e por conta de outrem, podendo abranger tanto uma actividade duradoura como actos de carácter isolado e tanto actos materiais como jurídicos” (Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, pág.323).

         O regime de responsabilidade objectiva do comitente pelos factos danosos praticados pelo seu comissário tem os seguintes pressupostos:

                   a) A existência de uma relação de comissão;

           b) Prática de factos danosos pelo comissário no exercício da função;

                  c) Responsabilidade do comissário.

         Apreciando o que ficou dito à luz dos factos 5, 24, 25, 30 a 32, 34, 36 a 39, 44, 45, 71 a 73, 82, 85, 87, 88, 96, 101 a 103 e 117, impõe-se a conclusão de que, vislumbrando-se uma relação de comissão, aparecendo como comitente a B-Lda e comissário o réu C, estão preenchidos os pressupostos do regime da responsabilidade objectiva do comitente pelos factos danosos praticados pelo seu comissário, razão pela qual é também a B-Lda responsável pelos actos ilícitos do seu órgão, no caso, do réu C.

         Por seu turno, dos factos 24, 25, 30, 34, 36 a 39, 71 a 73, 79 a 88, 90, 96 e 101 a 103, resulta também ser imputável ao réu D, proprietário da moradia, a explosão em que se traduziu o sinistro em análise.

         Com efeito, tendo tal réu tido conhecimento do estado em que se encontrava a instalação de gás, mormente no que concerne ao mecanismo que havia sido instalado para fazer a ligação ao fogão a gás, e sido alertado para o facto de ser necessário proceder a intervenções no mesmo por razões de segurança, deveria o mesmo réu, não só ter assentido em tais intervenções, como exigido as mesmas, jamais devendo ter permitido qualquer ligação, colocação em funcionamento, permanência e utilização da instalação de gás no estado em que se encontrava.

         Um bom pai de família ou o homem médio (in abstracto), normalmente diligente e prudente, com as capacidades do réu D e em face das mencionadas circunstâncias, não só devia, mas podia ter agido de tal modo e, por conseguinte, de modo diferente do escolhido pelo mencionado réu. Daí que a sua conduta mereça a reprovação ou censura do direito.

         Assim, o facto é igualmente imputado ao réu D a título de culpa, na forma de negligência, traduzida esta na omissão da diligência devida ou do discernimento exigíveis para ter evitado a violação do direito alheio ou da disposição legal destinada a proteger interesses alheios, ou para a ter prevenido ou evitado quando, porventura, nem sequer dela se tenha apercebido.

         Tendo resultado provada a culpa efectiva dos mencionados réus, afastada fica a possibilidade de uma eventual obrigação de indemnizar resultante de responsabilidade objectiva ou pelo risco por danos causados por instalações de energia eléctrica ou gás, nos termos, na medida e limites do disposto nos artigos 483/2, 499 e 509 a 510, todos do CC. É que este tipo de responsabilidade, de carácter excepcional, em que o dano tem que representar a concretização de um risco específico, em atenção ao qual a responsabilidade é imposta e que surge independentemente de culpa, serve para indemnizar quando não se prova ou não se presume a culpa. Aliás, basta que o acidente seja devido, atribuível, ao lesado, mesmo que não haja culpa dele, para que a lei, no artigo 505 do CC, considere quebrado, em virtude do facto praticado pela própria vítima, o nexo de causalidade entre o risco e o dano, excluindo-se a responsabilidade objectiva.

         No entanto, nem só os mencionados réus agiram com negligência.

         Com efeito, pode concluir-se, perante os factos 18 a 23, 29 e 92 a 95, que a autora agiu também negligentemente.

         Efectivamente, tendo verificado cheiro a gás quando chegou à moradia onde o sinistro ocorreu, deveria a autora ter evitado fazer lume, chama, ou a utilização de qualquer aparelho cujo manuseamento pudesse provocar faíscas.

         Ora, dos factos provados e já referidos só pode concluir-se que a autora não soube prever que o cheiro que sentia poderia constituir um indício de derrame ou fuga de gás e evitar o acender de um isqueiro a gás que poderia conduzir a uma explosão.

         Não agiu a autora com a diligência que lhe era devida.

         A autora podia e devia ter agido de outro modo. Podia e devia ter previsto que o cheiro a gás que sentia poderia indicar a ocorrência de derrame ou fuga de gás e abster-se de acender um isqueiro no local ou perto do local onde o cheiro se fazia sentir.

         No entanto, a culpa da autora não pode considerar-se muito elevada uma vez que, não resulta da factualidade provada que a mesma tivesse conhecimento da situação em que a instalação de gás se encontrava, sendo que era frequentadora da casa que vinha sendo utilizada regularmente desde a instalação de gás, sem qualquer reclamação (factos 89 a 94). Caso a autora tivesse sido alertada para desconformidades relacionadas com a instalação de gás, estaria mais preparada para, em face das sensações que experimentava, prever o resultado e agir por forma a evitá-lo.

         Nos termos do artigo 570 do CC, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concebida, reduzida ou mesmo excluída.

         Assim sendo, no caso sub judice, afigura-se-nos ser de atribuir 20% de culpa à autora.

              Mais à frente a sentença ainda faz a análise da existência dos outros pressupostos da responsabilidade civil, ou seja, o dano e o nexo de causalidade entre o dano e a explosão provocada pela conduta dos réus C e D.

              Por fim, a sentença acrescenta:

         Atendendo aos factos 1 e 16 e 17, motivo pelo qual a ré seguradora foi demandada, é esta também, pois, responsável pelo pagamento da indemnização à autora e pelo reembolso ao ISSM.

         Em sede de responsabilidade civil extracontratual, sendo várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a responsabilidade (artigo 497/1 do CC).

         Assim, e atento o disposto no artigo 512 do CC, cada um dos devedores responde pela prestação integral da dívida e esta a todos libera.

         Daqui resulta que todos os réus são solidariamente responsáveis pelo pagamento da indemnização à autora.

                                                                 *

              A B-Lda e réu C dizem, contra isto, o seguinte:

         1 – Em primeiro lugar, sendo certo que, ao longo da fundamentação, para além de aludir diversas vezes ao réu D e à seguradora, o tribunal a quo utiliza a designação réus para abranger, ou pretendendo abranger, indistintamente todos os referidos [sic] quatro demandados, sucede que aqueles dois foram chamados a intervir.

         2 – Resulta assim, no ver dos recorrentes, que, das duas uma:

         – A condenação respeita efectivamente aos quatro ditos réus – B, C, E e D –, independentemente destes dois últimos serem chamados, em regime de solidariedade, e, nessa medida importa esclarecê-lo, sob pena de nulidade, da sentença, a qual expressamente argúem;

         – A condenação respeita apenas à ré B-Lda e ao réu C, sem prejuízo da vinculação dos chamados aos efeitos da mesma, mas, neste caso, verifica-se uma objectiva contradição entre os fundamentos e a decisão da sentença recorrida, o que integra nulidade, nos do artigo 615/1-c do CPC, a qual expressamente argúem.

         3 – Tal questão releva designadamente em que determina a medida exacta de responsabilidade de cada um dos devedores solidários, nas respectivas relações internas, o que objectivamente depende do aludido esclarecimento, ou, na segunda hipótese, determina e integra objectivamente a assinalada contradição.

         4 – Em segundo lugar, integra os fundamentos da sentença recorrida o regime da responsabilidade do comitente em relação ao comissário – na relação da ré B-Lda com o réu C – e mais integra, no que tange à chamada E, a respectiva responsabilização como seguradora da ré B.

         5 – À luz da matéria de facto considerada pelo tribunal a quo, supostos responsáveis intervenientes no sinistro serão apenas três, o réu C, o chamado D e a própria autora.

         6 – Estão em causa títulos de responsabilidade diferentes, e, em função dos mesmos, sob pena de erro de direito à luz dos próprios regimes legais considerados pelo tribunal a quo, ainda que fosse entendida a solidariedade entre o réu C e o chamado D, já o mesmo não se aplicaria à ré B-Lda e à chamada E, posto que estas respondem apenas e na medida da responsabilidade daquele primeiro.

         7 – Ou seja, a admitir-se a valia do juízo do tribunal a quo sobre o sinistro sub judice, designadamente em função da matéria de facto apurada, a condenação teria que ser solidariamente dos dois chamados, D e E, sem prejuízo (e sem conceder) do eventual direito de regresso desta em relação à respectiva segurada, a ré B, e ao eventual direito de regresso desta em relação ao réu C.

         8 – A aplicação, indistintamente, do regime de solidariedade, como a feita pelo tribunal a quo, nos termos do referido artigo [sic] integra erro de direito que expressamente se invoca para todos os efeitos.

            Decidindo:

           A sentença condena os quatro réus solidariamente no pagamento da indemnização calculada.

          As pessoas cuja intervenção principal como associados dos réus é provocada (art. 316/3-a do CPC – norma expressamente invocada pelo despacho que admitiu a intervenção) assumem a posição de réus e são réus tanto como os primitivos réus. Eles seriam, tal como os anteriores, supostamente (no momento do despacho de admissão da intervenção) sujeitos passivos da relação material controvertida (parte final do citado art. 316/3-a do CPC) e a sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia se realmente o são, constituindo, quanto a eles, caso julgado (art. 320 do CC). Daí que se diga que a sentença serve, também quanto a eles, de título executivo para obter deles o pagamento da indemnização (neste sentido, por exemplo, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 2014, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 616, anotação 3 ao art. 316). 

              Todos os réus foram condenados como se fossem responsáveis pelos danos, com invocação do disposto no art. 497/1 do CC.

                                                                 *

              A B, segundo a sentença, responde pelos danos a título de responsabilidade pelo risco, como se fosse comitente do seu sócio e gerente, o réu C, o qual, por sua vez, seria comissário dela. E isso por força dos artigos 165, 998/1 e 500/1, todos do CC, e pode-se agora acrescentar, 6/5 do Código das Sociedades Comerciais.

              Esta via da responsabilização da sociedade pela actuação do gerente como seu comissário, tem suporte doutrinário em, entre muitos outros, Brito Correia, obra citada pela sentença recorrida, págs. 253 a 277; Carvalho Fernandes, Teoria Geral de Direito Civil, vol. I, 2.ª edição, Lex 1995, págs. 500-510; Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, TGDC, 9.ª edição, Almedina, 2019, págs. 184-186; e Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, A parte geral do CC português, 2.ª edição, 2019, Almedina, págs. 430 a 437.

      Outros autores entendem que a responsabilidade da sociedade é uma responsabilidade própria (art. 483 do CC) não por facto de outrem; resulta da actuação culposa do seu gerente (descrita e analisada a seguir) sem necessidade daquele suporte legal, até porque não há nenhuma relação de comissão entre a sociedade e o gerente. É a posição de, entre muitos outros, Oliveira Ascensão, Direito civil, teoria geral, vol. I, Coimbra Editora, págs. 244 a 247; Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil Delitual por facto de terceiro, Coimbra Editora, 2009, págs. 27-29: “é a própria pessoa colectiva que actua através dos seus órgãos ou dos titulares dos seus órgãos”, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol.II, 2011, 4.ª edição, Almedina, 207-208, e do CSC em comentário, vol. I, Almedina, 2010, pág. 1212. E, logicamente, a responsabilidade da sociedade é uma responsabilidade pela culpa dela própria (o ‘aquele que’, a que se refere o art. 483/1 do CC, abrange as pessoas físicas e as pessoas colectivas, entre elas as sociedades comerciais).

              Em qualquer caso, como se vê, justifica-se a condenação da B, como responsável pelos danos.

                                                                 *

              Segundo a sentença a condenação do gerente da B, ou seja, do réu C, resulta de ser ele o autor material do acto ilícito e culposo causador de danos: art. 483 do CC.

              Para qualquer das posições referidas acima, a posição do réu C como gerente da sociedade não afasta a sua eventual responsabilidade civil. Aliás, ela está expressamente prevista no art. 79/1 do CSC: eles respondem, nos termos gerais, para com terceiros, pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções.

          Mas, para além de gerente da sociedade, ele foi quem, como trabalhador (no sentido de quem trabalha, embora não subordinadamente) da sociedade, tendo feito a instalação de gás, não actuou de modo a impedir que ela permanecesse em condições de causar prejuízos a terceiros. A responsabilidade dele, aqui, ocorre por dois fundamentos, qualquer deles bastante: (i) por ter feito a instalação de gás sem projecto (facto 96), ao contrário do que lhe imponham as normas citadas pela sentença recorrida; ora, se não tivesse aceitado fazer essas obras sem esse projecto, o acidente não poderia ter ocorrido; e (ii) por ter omitido a conduta necessária para que a fonte de risco por ele criada e de que passou a ser garante, não se viesse a concretizar: como diz a sentença recorrida, não lhe bastava recusar-se a passar o termo de responsabilidade pela obra, teria que ter feito algo mais, como a comunicação a uma autoridade qualquer, de modo a que o réu D viesse a ficar incapaz de utilizar a instalação de gás nos termos em que ele a tinha deixado. Assim, a responsabilidade dele tem suporte nos artigos 483 e 486 do CC.

              Neste sentido, a sentença recorrida invoca as normas da Portaria 361/98 e delas resulta, realmente, o dever de fazer a instalação de acordo com um projecto. Por sua vez, diga-se agora, a Portaria 362/2000, de 20/07, no seu art. 5 acrescenta: 1: A entidade distribuidora só pode iniciar o abastecimento quando na posse do termo de responsabilidade emitido pela entidade instaladora e depois de a entidade inspectora ter procedido a uma inspecção das partes visíveis, aos ensaios da instalação e à verificação das condições de ventilação e de evacuação dos produtos de combustão, por forma a garantir a regular utilização do gás em condições de segurança. 2 – Sendo detectados defeitos no decurso da inspecção que antecede o início do abastecimento, a entidade distribuidora deverá notificar o proprietário de modo que este tome as medidas necessárias à correcção das anomalias e solicite novamente a intervenção da entidade inspectora.

              Para além disso, a sentença recorrida invoca ainda as normas dos artigos 1/2 e 11, n.ºs 1 e 3, do DL 521/99, de 10/12, semelhantes às do DLR 19/2012/M, de 16/08. Estas normas não se podem aplicar, pois que o DL só dizia respeito ao território continental e não ao das Regiões Autónomas, entre elas a Madeira, como decorre do art. 1/1 do DL 521/99, e o DLR só entregou em vigor em Set2012, sendo que a instalação foi feita em 2010.

        Mas o conteúdo substancial destas últimas normas invocadas – a que se acrescentariam os arts. 4 e 12 do DL 521/99, também com correspondência no DLR – revela a lógica da actuação que um criador de uma fonte de perigo deve ter, como foi dito acima, sem necessidade de invocar estas normas. Assim: deve haver um projecto. O projecto deve ser apresentado para se verificar a sua conformidade. A obra deve ser executada de acordo com ele. Tal deve ser verificado e só depois deve ser emitida a licença de utilização. O fornecimento de gás só deve ser iniciado depois de tudo isto estar verificado. Se não estiver garantida a regular utilização do gás em condições de segurança, o proprietário deve ser informado para proceder às necessárias correcções. Caso este não o faça inicia-se um procedimento na lógica do qual a instalação não poderá funcionar se se comprovar que não está em condições.

             Ora, o gerente/trabalhador da B-Lda sabia que (i) a instalação tinha sido efectuada sem projecto – já que não disse ter seguido qualquer projecto e se sabe que ele não foi apresentado –, (ii) não tinha ficado terminada em condições, (iii) havia perigo na existência e (iv) o proprietário recusava-se a fazer as alterações necessárias para acabar com esse perigo. Não lhe bastava, pois, recusar-se emitir o termo de responsabilidade, para evitar que o perigo continuasse a existir. Pelo que, ao menos, tinha que comunicar a situação a alguém com autoridade para impor as necessárias correcções ao proprietário.

                                                                 *

             A condenação do réu D resulta do facto de a sua conduta ter sido uma das causas do dano: primeiro, por ter mandado fazer as obras de instalação de gás na moradia sem projecto e as ter utilizado sem o subsequente termo de responsabilidade (factos 96 e 85). Se ele tivesse providenciado para que as obras fossem feitas com respeito com estas exigências, o acidente não poderia ter ocorrido; segundo, porque (factos 82 e 83) tendo sido alertado pelo réu C para a necessidade de cortar um móvel e de colocar um tampão cego no tubo referido em 34, bem como para retirar o manípulo da válvula do corte do gás para o fogão, de modo a obstar a que alguém a pudesse abrir, não assentiu nem numa coisa nem a noutra, evitando o corte do móvel e a retirada do manípulo da válvula (factos 82 a 85). Ora, se não o tivesse feito, a obra não ficaria no estado em que ficou e por isso o acidente não se daria.

                                                                 *

            Sendo todos eles responsáveis pelos danos são responsáveis solidários, por força do art. 497/1 do CC.

                                                                 *

           Quanto à responsabilidade da E, seguradora da B, a responsabilidade dela deriva, como diz a sentença, do contrato de seguro que celebrou com a B.

            A sentença acrescenta, depois, a referência ao art. 497/1 do CC. É também um modo habitual de colocar a questão. Assim, por exemplo, o ac. do TRP de 15/11/2012, proc. 3868/11.1TBGDM-A.P1: “perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis, nos termos do art. 497 do CC […]”.

               Mas não é a correcta.

       A condenação da seguradora não se justifica por ela ser uma das pessoas responsáveis pelos danos (art. 497/1 do CC), pois que não o é. Quem é responsável pelos danos são só a B-Lda e os réus C e D. A E, por isso, não pode ser considerada como mais uma pessoa ao lado dos três responsáveis pela indemnização, mas uma pessoa que cobre/garante a responsabilidade de um deles.

              A responsabilidade pelos danos, como elemento da previsão do art. 497/1 do CC, que, segundo uns, talvez pela inserção sistemática do artigo, deveria ser lida como responsabilidade pelo ilícito culposo dos danos (assim: Ana Prata, que fala, embora a propósito do art. 497/2 mas em contraponto ao n.º 1 na anotação 1 ao art. 497 do CC anotado, vol. I, 2017, Almedina, pág. 651, “em contribuições causais das condutas” e Menezes Cordeiro que fala em “o beneficiário do processo que originou os danos”, “as pessoas reconhecidas como autoras da lesão”, “ilícitos praticados pelos co-responsáveis” e “imputação delitual a várias pessoas”, no Tratado de direito civil, II/II, 2010, Almedina, pág. 732), segundo outros deve ser antes lida sem essa ligação à causa, ainda para mais culposa, ou seja, deve ser lida, como resulta do artigo, como responsabilidade pelos danos, sem mais (Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 475), mas ainda assim deve ser relacionada apenas com a responsabilidade civil por danos e não como abrangendo também a obrigação de responder por eles por força de um contrato.  

         A seguradora não é, pois, mais uma responsável pelos danos; os que são responsáveis pelos danos, a título de culpa ou pelo risco, são apenas três e não quatro pessoas, como seriam se se contasse com a seguradora.

              A condenação da seguradora resulta de ela ser uma obrigada e essa obrigação resulta do contrato de seguro, por força do qual a seguradora fica obrigada a garantir a eventual responsabilidade civil da sua segurada (arts. 137 e 138/1 da Lei do contrato de seguro). Pela verificação do sinistro nascem duas obrigações. A da segurada, responsável civil, pelo facto que deu causa aos danos. A da seguradora, obrigada contratual, pela verificação do sinistro previsto no contrato.

              O contrato de seguro de entidades instaladoras e montadoras de redes de gás combustível é um contrato de seguro obrigatório, como foi assumido por todas as partes no processo e é o que resulta do art. 5 do anexo I do DL 263/89, de 17/08, em vigor à data dos factos (o art. 5 foi revogado a partir de 18/03/2015, pela Lei 15/2015, de 16/02 – que continua a impor o seguro obrigatório nos arts. 5-c e 7 – e o DL foi revogado pelo DL 97/2017, de 10/08, segundo consta no sítio do Diário da República).

              O contrato de seguro obrigatório tem regras especiais (arts. 146 a 148) em relação ao regime comum do contrato de seguro voluntário de responsabilidade civil (arts. 137 a 145). Ou seja, e no que importa ao caso, nos casos de seguros obrigatórios, como regra geral, o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador (art. 146/1 da LCS), o que é diferente do que acontece no caso dos seguros voluntários, em que tal só pode ocorrer em duas situações (art. 140/2-3 da LCS). E como o direito de demandar directamente o lesante/segurado não desaparece, pois que não há nenhuma norma idêntica ao regime previsto no art. 64/1-a do DL 291/2007, de 21/08, do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (assim, por exemplo, José Vasques, Lei do Contrato de Seguro, anotada, 2011, Almedina, 2.ª edição, pág. 494), o lesado tem o direito de optar por demandar o lesante/segurado e/ou a seguradora. Assim sendo, há um caso nítido de obrigação plural solidária: qualquer dos obrigados pode ser demandado à escolha do credor e o pagamento da indemnização livra da prestação (face ao credor) o outro devedor (art. 512/1 do CC).

                                                                 *

              Assim, não há dúvidas de que todos os réus – e os chamados são réus como já se disse – podiam ter sido condenados como obrigados solidários como o foram.

              O que se poderá discutir é qual a fundamentação correcta para essa condenação.

              Quanto à condenação da seguradora, já se viu que se entende que a solidariedade decorre das normas legais citadas acima e não do art. 497/1 do CC. Mas não há nenhuma norma que retire a legitimidade passiva, processual ou substantiva, da segurada para responder, também ela, perante a lesada, pelo que a diferença de fundamentação não tem relevo para a B, recorrente, que não poderá ser absolvida com esse fundamento. E o direito dela reclamar da seguradora aquilo que vier a pagar, decorre directamente do contrato de seguro.

              Quanto ao diferente fundamento da condenação da B, ele poderá ter reflexos no relacionamento interno entre a B-Lda e o seu gerente C, consoante se considerasse que a responsabilidade da B-Lda era por facto ilícito culposo próprio (art. 483/1 do CC) ou por facto de outrem, pelo risco (art. 500/1 do CC). No entanto, a questão da configuração do direito de regresso entre a B-Lda e o réu C (as várias posições sobre ele podem ver-se por exemplo, em Maria Graça Trigo, obra citada, págs. 364 a 373) não é objecto destes autos, como decorre do facto de o art. 317/1 do CPC prever os pressupostos para que o fosse, entre eles um pedido que tivesse sido formulado com esse objectivo. Para além disso, essa configuração também não é objecto deste recurso, isto é, do teor das alegações dos dois réus recorrentes não se demonstra que algum dos réus pretendesse discutir ter um direito de regresso contra o outro.

              Posto isto e tendo agora em consideração directa as conclusões do recurso dos réus recorrentes diga-se que:

              A condenação solidária dos 4 réus é clara e está correcta. Não há necessidade de qualquer esclarecimento, nem há qualquer contradição que torne nula a sentença (art. 615/1-c do CPC).

              Nos termos da sentença, os que causaram o acidente foram os réus B, C e D e não apenas, como pretendem os réus recorrentes, os réus C e D. A responsabilidade pelos danos reparte-se por 3, incluindo a B, e não por dois.

              A condenação da B, seja a título de responsabilidade pelo risco (facto de outrem) ou pela culpa (facto próprio), não a elimina como terceira pessoa responsável.

              A seguradora (i) não é uma quarta pessoa responsável, (ii) a sua condenação não afasta a condenação da B-Lda e (iii) a sua condenação solidária com os outros réus não a tornava, mesmo na lógica da sentença, uma quarta pessoa responsável.

              Aliás, se qualquer seguradora fosse obrigada solidária por força do art. 497/1 do CC, o disposto no art. 140/2 e 3 da LCS seria um contra senso e não o é, como decorre do que se diz mais à frente.

(II)

Da alteração da causa de pedir

              Os réus B-Lda e C dizem que:

         9 – Em terceiro lugar, a causa de pedir da acção da autora assenta na alegação de que a instalação de gás executada apresentava vícios imputáveis ao réu C, os quais foram especificamente a causa da fuga de gás e da explosão sub judice.

         10 – Sendo esta a matéria sobre a qual os referidos réus tiveram a oportunidade de se defender e, segundo se julga, validamente refutaram, a mesma, em rigor, não resultou provada.

         11 – Resultou pelo contrário, para além do que consta especificamente provado sob os pontos 73 a 84 que: “a escusa do proprietário a cortar o móvel da cozinha, de modo a permitir a vedação segura e definitiva do tubo de gás, e a permitir a retirada do manípulo da válvula de corte do gás levou a que os réus recusassem emitir e entregar ao proprietário, como habitualmente acontece, o termo de responsabilidade relativamente às instalações de gás em causa”.

         12 – Ao não emitir o termo de responsabilidade, os réus B-Lda e C, não validaram a conclusão desse modo da instalação de gás em causa, e, em bom português, por esse mesmo motivo excluíram-se da respectiva responsabilidade […].

         13 – Sucede que, nessa circunstâncias, a condenação dos réus ora recorrentes, por referência à actuação do réu C, resulta de uma imputação a título diverso, em rigor de uma causa de pedir diversa, a saber a alegação de que não existia projecto, devendo existir, ou a alegação de que devia haver um qualquer outro aviso a qualquer outra entidade, como considerado pelo tribunal a quo.

         14 – Na medida em que a suposta ausência de projecto e a suposta ausência de aviso a quaisquer entidades, é matéria que não integra a causa de pedir, sobre a qual os referidos réus não tiveram oportunidade de se defender, ao decidir pela respectiva condenação, alicerçada nesses fundamentos, a sentença recorrida padece de nulidade nos termos do art. 615/1-d do CPC, a qual expressamente e para todos os efeitos se argúi – sendo que entendimento [diverso] do expendido viola o princípio do Estado de direito.

              Decidindo:

              A autora pedia a condenação dos réus B-Lda e C, alegando para tanto, em síntese, que o réu C, gerente da ré B, instalou um tubo de gás que não levava a lado algum, pelo que deveria tê-lo fechado de forma definitiva e sem possibilidade de por lá correr gás; mas, como não o fechou como devido e deixou uma torneira que podia ser aberta por descuido, o gás correu por ele, possivelmente por alguém ter aberto o tubo inadvertidamente, o que veio a provocar uma explosão que lhe provocou danos.

              Os réus B-Lda e C vieram dizer que o acidente ocorreu porque o réu D, dono da moradia, não deixou fechar o tubo e retirar a torneira e mais tarde abriu a torneira por onde flui o gás que provocou a explosão. E ainda falavam na ausência de projecto e de licença de utilização. Razão pela qual requereram a intervenção principal do dono como associado deles.

              Dito de outra forma, os réus vieram dizer que, a relação material controvertida tal como configurada pela autora, estava errada, porque quem era parte nela, do lado passivo, era o réu D, e não eles.

             Apesar disto, o incidente de intervenção principal provocada do dono da moradia, como associado dos réus, foi admitido na lógica de que estava em causa era saber se o chamado era um obrigado solidário e não apenas o único. O que é aceitável e foi aceite por todas as partes no processo; implícito no requerimento de intervenção principal provocado de outro réu como único responsável civil por danos causados, está o pedido de condenação dos requerentes/réus primitivos em menos do que era pedido na petição inicial, se se viesse a apurar que o chamado também é responsável e não o único responsável, porque, neste caso, o chamado passava a ser considerado mais um devedor solidário, em litisconsórcio voluntário (voluntário no sentido de não ser imposto por lei, ou seja, contraposto a necessário)

              Ora, se a lei permite isto, como permite de facto (art. 316/3-a do CPC), então é porque permite que seja alterado parcialmente o objecto da acção, ou seja que, face à posição dos réus, o tribunal venha a apreciar se a relação material controvertida é aquela que foi configurada pela autora ou se é a aquela que foi configurada pelos réus ou se é uma que tem elementos de uma e de outra. Ou seja, nestes casos não vale só a configuração da relação material dada pela autora, vale também a dada pelos réus (o que aliás está salvaguardado, para outros efeitos, pela primeira parte do art. 30/3 do CPC; lembre-se, de resto, que o n.º 4 do art. 28 do CPC, na redacção do DL 329-A/95, dizia que: na legitimidade plural, a titularidade do interesse relevante afere-se em função da relação controvertida tal como é configurada por ambas as partes e resulta do desenvolvimento da lide”, e entende-se que a revogação de tal norma, em 1996, não teve por fim alterar a tese que aí estava consagrada). A condenação do réu alternativo posto na acção pelos réus primitivos, tem que se basear, quase necessariamente, em factos que o autor não tinha alegado. E se o tribunal pode utilizar esses factos, também os pode utilizar para condenar não só o outro réu, mas também os réus primitivos. Ou seja, se os réus B-Lda e C admitem que, com base nos factos por eles alegados, o tribunal podia vir a condenar o réu D, têm de admitir que com base nesses mesmos factos se possa vir a considerar que a condenação também os deve abranger, porque a relação material que se veio a apurar, com base na contribuição de todos os réus, tem uma configuração da qual decorre que todos eles são responsáveis embora em medida diferente da que era pressuposto em relação aos réus primitivos na petição inicial.

             Assim, embora se aceite que a causa de pedir foi alterada – o facto jurídico concreto (art. 581/4 do CPC: o acidente concreto descrito pela autora) alterou-se – a verdade é que essa alteração ocorreu nos moldes pressupostos pela lei e aceite pelas partes.

           E essa modificação, de resto, não foi significativa: a condenação dos réus recorrentes baseou-se no que eles e a autora alegavam: uma explosão provocada por gás proveniente de um tubo instalado pelos réus recorrentes, não finalizada correctamente, incluindo uma torneira que podia permitir que o gás circulasse pelo tubo e que devia ter sido retirada e não o foi. A fundamentação da condenação dos réus, por terem omitido a comunicação da situação a qualquer autoridade, baseia-se nos factos por eles alegados, de que tinham avisado o dono da moradia para a necessidade de modificações no estado de coisas e que se tinham recusado a emitir termo de responsabilidade, bastando-se com isso para afastarem a sua responsabilidade, pelo que são eles próprios, implicitamente, a dizer que não fizeram mais nada. A ausência de projecto e de licença também foi, por eles próprios, afirmada.

           Assim, não há razão para se dizer que os réus recorrentes não tiveram a oportunidade de se defenderem dos fundamentos da condenação, parte deles alegados pelos próprios réus e os outros alegados pela autora, pelo que não se verifica a nulidade da sentença prevista no art. 615/1-d do CPC, ou uma interpretação inconstitucional das normas aplicadas que ponha em causa os direitos de defesa dos réus.

              Repare-se, aliás, que a intervenção principal da seguradora na lide, provocada pelos réus recorrentes, e a sua condenação, também não resulta só dos factos articulados pela autora, e apesar disso não se pode dizer que haja uma adição ilegítima de uma causa de pedir.

               É que admissibilidade da intervenção principal e a condenação da seguradora no caso do seguro obrigatório resulta do conjunto das normas legais que permite que ela intervenha na lide ao lado do segurado, como descrito acima (neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, págs. 523 e 617-618; a mesma situação também se verifica no caso dos seguros voluntários em que se permita, ao abrigo do art. 140/2 e 3 da LCS, a demanda da seguradora: neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra e local citados; José Vasques, LCS anotado, pág. 484; Salvador Costa, Incidentes de instância, 2016, Almedina, 8.ª edição, pág. 109 (dois penúltimos §§ do ponto 7.2.1); quando não se permite, já a intervenção é só a acessória: ac. do TRP de 31/01/2013, proc. 2499/10.8TBVCD-A.P1; é que nem sempre um contrato de seguro é um contrato a favor de terceiro; neste sentido, já o ac. do TRP de 14/11/2013, proc. 1394/13.3TBMAI-A.P1).

(III)

Da culpa da autora

              Os réus B-Lda e C dizem ainda que:

         15 – Em quarto lugar, face à matéria de facto apurada pelo tribunal a quo, é a autora quem, ao acender o cigarro, provoca a explosão, sendo a sua causa directa e imediata – não podendo, à luz dos mais elementares deveres de cuidado, ter agido do modo em que o fez.

         16 – Perante o cheio a gás, confessadamente forte, já sentido desde o exterior da moradia, e independentemente da autora achar que o mesmo podia provir de umas obras na casa vizinha – como aliás bem pode ter provindo, impunha-se-lhe não acender o cigarro ou qualquer outra fonte de ignição – reitera-se, à luz dos mais elementares deveres de cuidado, em prol da sua própria segurança, como da dos outros (cfr. art. 487/2 do CC).

         17 – Ao agir como agiu, nessas circunstâncias, com negligência grosseira, à autora não poderá deixar de ser imputada, pelo menos, metade da respectiva responsabilidade, e, inerentemente, reduzida a indemnização, sob pena de violação do disposto no artigo 570/1 do CC.

              Apreciando:

             Os réus invocam um facto não provado: o cheiro forte a gás. Com efeito, o facto de se dar como provado que a autora disse ter sentido um forte cheiro a gás, no facto 9, não quer dizer que isso está provado. Provado está apenas que a autora o disse. Mas não convenceu o tribunal recorrido, pelas razões já referidas acima, sendo que essas razões explicam que a declaração não tem um sentido confessório, pretendido pelos réus, mas antes pelo contrário, têm o sentido de uma procurada desculpa para a sua conduta.

              A necessidade dos réus invocarem um facto não provado – e fazem-no por três vezes no corpo das alegações – chama a atenção para a falta de argumentos para se tentar alcançar um resultado diferente do obtido pela sentença quanto à culpa da autora, isto é, passar dos 20% da culpa para os 50% pretendidos pelos réus recorrente. Realmente, tendo em conta os factos invocados na sentença, a contribuição da conduta culposa da autora não tem nada de especial.

              O recurso da autora, que versa sobre esta matéria, pode ser agora considerado. O que se passa a fazer:

                                                               (IV)

              Se autora não devia ter sido considerada culpada ou se, no máximo, lhe devia ter sido atribuído apenas 8% da culpa:

              A autora sobre isto diz o seguinte [transcreve-se quase na íntegra; evitam-se apenas duas repetições]:

  1. O tribunal a quo tomou essa decisão com a argumentação de que, tendo a recorrente sentido o cheiro a gás fora de casa, não pode deixar de ter sentido o mesmo dentro de casa, onde certamente a sua densidade seria ainda superior, dada a provável maior concentração de gás nesse local.
  2. No entanto, esta conclusão do tribunal foi formulada sem suporte em qualquer prova, mas apenas naquilo que o tribunal a quo chamou de normalidade da vida, (…) experiência de vida (…) conhecimento dos homens e as regras da lógica (…).
  3. De facto, nos autos apenas se deu como provado que a autora sentiu o cheiro a gás na parte exterior da moradia.
  4. Em lado algum se refere que sentiu o mesmo cheiro dentro de casa.
  5. Foram as declarações da autora prestadas na audiência de julgamento que motivaram o tribunal a quo a dar como provado que aquela sentiu o cheiro a gás fora de casa.
  6. Mas tendo a autora afirmado, no mesmo depoimento, que não sentiu cheiro a gás dentro de casa, e tendo dado uma explicação plausível para esse facto, já tais declarações não motivaram que o tribunal o desse como provado.
  7. Tendo tirado uma conclusão exactamente oposta ao declarado pela autora.
  8. Tendo-o feito, como se disse, supostamente ao abrigo de uma certa normalidade e experiência da vida, conhecimento dos homens e das regras da lógica.

   10-11. Contudo, não é plausível, lógico, que se a autora tivesse sentido o cheiro a gás dentro de casa, tivesse acendido um cigarro.

  1. Esta conclusão do tribunal a quo não tem qualquer lógica e não tem qualquer suporte na prova produzida.
  2. O depoimento da autora no julgamento foi prestado, não como depoimento de parte, mas sim nos termos do artigo 466 do CPC, pelo que não se aproveita apenas a parte que constitui confissão (como no depoimento de parte), podendo aproveitar-se também todo o depoimento, mesmo na parte favorável à autora.
  3. A amplitude de julgamento que o artigo 607/5 do CPC concede ao juiz não pode conduzir a que este decida questões importantes sem qualquer prova.
  4. Uma coisa é retirar dos factos provados uma determinada interpretação, outra, bem diferente, é retirar uma conclusão (com uma importância vital) sem qualquer facto, e baseado apenas num raciocínio, ainda para mais sem qualquer lógica ou razoabilidade.

   16-17. Ao decidir que a recorrente teve culpa no acidente de que foi vitima, o tribunal recorrido violou também o artigo 570/1 do CC.

  1. Na verdade, para que o ato de acender um cigarro fosse culposo necessário seria que fosse ilícito.
  2. Ora, fumar um cigarro não é, quando feito dentro de uma casa particular, um acto ilícito.
  3. Não sendo um ato ilícito, não é susceptível de acarretar para a autora qualquer culpa, nos termos em que esta é exigida pelo art. 570/1 do CC.
  4. E sempre seria excessiva a percentagem de 20% atribuída à autora, porquanto tal significa equipará-la, em termos de responsabilidade, a qualquer um dos réus, todos eles condenados solidariamente, o que significa, por aplicação do artigo 516 do CC, uma quota de 20% a cada um deles.
  5. De facto, seria chocante considerar-se a autora tão responsável quanto cada um dos réus.
  6. Termos em que, a responsabilidade da recorrente não deveria exceder os 8%, acrescendo a cada um dos réus 3%, só assim se fazendo justiça.

              Decidindo:

              Nota-se que a autora não impugna nenhum ponto da decisão da matéria de facto dada como provada. O que crítica é uma conclusão tirada na fundamentação de direito da sentença, com base nas regras da lógica e da experiência comum da vida, a partir dos factos discriminados como provados.

             Posto isto, é certo que não consta dos factos provados expressamente que a autora tenha sentido cheiro a gás dentro de casa. Isto embora o facto 96 possa ser lido no sentido de que o cheiro também existia na casa (já aquilo que resulta das declarações transcritas no facto 9 e que também poderia ser lido nesse sentido, não interessa e a sentença, bem, não lhe deu relevo, porque se trata de prova produzida num inquérito sem observância do princípio do contraditório (art. 421/1 do CPC)).

              Mas, tendo em conta que a explosão se deu na sala da moradia e que dos factos provados resulta que os danos não se prolongaram para além dela, não pode haver a mais pequena dúvida de que o cheiro na sala teria que ser superior ao cheiro existente na rua: é o que resulta da lógica e da experiência comum das coisas. Pelo que se a autora cheirou o gás já na rua, não o podia ter deixado de cheirar também em casa.

        E a explicação por ela adiantada não tem sentido: para além do que diz a fundamentação da decisão recorrida, se o cheiro se tivesse impregnado no nariz da autora, o resultado seria ela sentir o cheiro por todo o lado e não tê-lo deixado de sentir na sala, pois que não haveria tempo para qualquer dessensibilização (e se a autora com isso o que poderia querer sugerir é que, como lhe cheirava a gás por todo o lado, por ter o nariz impregnado do cheiro, pensou que o facto de cheirar a gás na sala não era indicação de que houvesse mesmo gás na sala, mas apenas uma consequência de ter o cheiro de gás no nariz, a crítica da negligência pode continuar a ser feita nos mesmos moldes que se faz já de seguida).

              Posto isto,

              É certo que, como diz a autora, é contra a lógica das coisas, que alguém que tenha sentido o cheiro de gás, mesmo assim acenda um isqueiro no local onde lhe está a cheirar a gás. Mas esse é precisamente um dos motivos para a conduta da autora ser censurável a título de negligência. Ninguém com o mínimo de experiência de vida – e a autora tinha já 41 anos de idade -, desvaloriza o cheiro de gás, mesmo que ponha a hipótese de o cheiro estar apenas no nariz, ao ponto de acender um isqueiro no local onde está a cheirar a gás. 

           Por fim: a repartição dos 20% para a autora e 80% para os réus, feita pela sentença, pode, em vez de ser interpretada como o fazem os réus recorrentes e a autora, ser vista como dizendo só respeito à repartição de culpas, pelas pessoas físicas; isto é, no sentido de dizer que a conduta dos réus C e D é, cada uma delas, 2 vezes mais censurável do que a da autora, ou seja, estabelecendo uma divisão de 40%, 40% e 20%. E, como se viu acima, pode-se aceitar este resultado, dos 20% de culpa para a autora, como bom, em vez de lhe atribuir, como ela quer, apenas 8% da culpa, para dar 3% a cada um dos 4 réus, que a sentença considerou responsáveis a títulos diversos.

                                                               (V)

                                             Do nexo de causalidade

              A sentença diz o seguinte sobre o nexo de causalidade:

            O último requisito da responsabilidade civil extracontratual a apreciar é o nexo de causalidade entre o facto e os danos. Nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito são incluídos na responsabilidade do agente, mas apenas os resultantes do facto (artigo 483/1 do CC), os causados por ele.

          Sobre esta matéria rege o artigo 563 do CC [que] consagra a teoria da causalidade adequada.

          Segundo a formulação negativa desta teoria construída por Enneccerus-Lehmann, que deverá reputar-se a adoptada no nosso direito constituído, o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação de dano, tendo-o provocado só por virtude de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto. O dano que o facto só provocou mercê de circunstâncias extraordinárias, não previsíveis de modo nenhum por um observador experiente na altura em que o facto se verificou, serão suportados pela pessoa lesada (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª ed., vol. I, págs. 889 e 899).

         Ora, no caso sub judice, e como resulta do que ficou já dito, a causa dos danos sofridos pela autora foi a explosão, sendo certo que esta é adequada a causá-los. Por outras palavras, uma explosão não é de forma alguma indiferente à produção de danos tais como os vertidos na factualidade provada. Não foram circunstâncias excepcionais que interferiram na causação dos danos provocados; foi a natureza geral da explosão que os provocou, pelo que se conclui existir um nexo causal entre os danos provocados o sinistro.

         Assim sendo, consideram-se preenchidos os requisitos do artigo 483/1 do CC; a autora tem direito a ser indemnizada, nos termos supra referidos.

              Os réus limitam-se a dizer o seguinte contra isto:

         18 a 26 – Em quinto lugar, eliminados os factos 25, 37 e 38 [com fundamentação que foi considerada a propósito da impugnação das decisões da matéria de facto], fica a faltar a prova de qualquer nexo de causalidade, o que também por isso, determina a necessária absolvição dos réus recorrentes, in totum.

              Apreciando:

              Esta argumentação dos réus tinha o seu ponto de apoio na eliminação dos factos 25, 37 e 38, pretensão que se discutiu acima e que já se demonstrou que não tem fundamento.

                                                               (VI)

                                     Pagamento ocorrido entretanto

              Dizem ainda os réus recorrentes que:

         27 – […Q]uanto aos montantes indemnizatórios apurados pelo tribunal a quo, face ao requerimento apresentado pela autora, sob a referência 31230566, verifica-se que, no que se refere aos mencionados danos corporais, a mesma já recebeu 10.964,17€, bem como mais deu, em função dos mesmos, quitação integral – sendo que o pagamento que deu causa tal quitação integral, ainda que esta a outro se dirija, a todos os devedores libera (cfr. art. 512/1 do CC).

              No corpo das alegações, os réus acrescentam que “tal prova [o recibo de quitação integral] prestada pela própria autora e não impugnada, antes aceite pelas partes restantes, tem valor de prova plena.”

              Apreciando:

             Face ao relato feito acima (no relatório deste acórdão) dos factos relativos a esta questão, vê-se que os réus pretendem aqui voltar a discutir questão já decidida com trânsito em julgado, referenciada no relatório desta sentença.

             Os documentos destinam-se à prova de factos. O facto, que os réus pretendem que o documento invocado prova, foi objecto de um articulado com que eles o pretenderam introduzir – mais de 2 anos depois de dele poderem ter conhecimento actuando com a diligência devida -, articulado esse rejeitado por despacho de que não recorreram embora o pudessem ter feito: art. 644/2-d do CPC.

              Assim sendo, a questão não pode ser reaberta e o facto em causa, correspondente a uma eventual excepção de pagamento parcial, não pode ser considerado.

                                                                     (VII)

Valor da indemnização por danos não patrimoniais

              Os factos que interessam a esta questão são os seguintes:

  1. Em resultado da explosão de que foi vitima, a autora sofreu queimaduras de 2º grau profundo na face, membros superiores (braços e mãos) e áreas dispersas do tronco, atingindo mais ou menos 30% da área do corpo.
  2. Esteve internada no hospital desde o dia da explosão, 23/10/2012 até ao dia 27/03/2013.
  3. Foi submetida a múltiplas intervenções cirúrgicas – desbridamentos e enxertos cutâneos.
  4. E foi observada e tratada por equipas multidisciplinares, nomeadamente psiquiatria, medicina interna, ORL, hiperbárica.
  5. Sofreu, sofre, e vai sempre sofrer, dores, comichões e outros incómodos e desconfortos constantes.
  6. Durante algum tempo não conseguiu fechar alguns dos dedos de ambas as mãos ou fazer pequenos gestos simples, como agarrar pequenas coisas e, ainda hoje, o seu braço esquerdo não dobra na totalidade, sendo imprevisível se algum dia o vai voltar a fazer.
  7. A autora deixou de suportar o calor, o que a limita no usufruir dos espaços ao ar livre.
  8. A autora sofreu o incómodo de estar internada durante 155 dias.
  9. Ficou traumatizada, sonhando muitas vezes com o ocorrido e acontecendo-lhe muitas vezes, mesmo acordada, relembrar o susto que apanhou e ficar obcecada com o mesmo.
  10. Muitas vezes entra num estado depressivo e de angústia, não só pelo passado, como pelo que sofreu e pelas cicatrizes que a marcam para o resto da vida, nos membros superiores, na cara, nas costas e em outras zonas do corpo.
  11. Esses estados depressivos tornaram-se crónicos, o que a obrigam a acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico.
  12. A autora perdeu a alegria natural que tinha, passando a estar muitas vezes num estado melancólico, depressivo e de ansiedade.
  13. As queimaduras estão cicatrizadas.
  14. E afectam diariamente a sua auto-estima, pois são quase impossíveis de tapar e desfiguram-na.
  15. A autora é escriturária de 3ª na sociedade Cimentos Europa, SA.

         […]

  1. Desde o acidente que a autora tem estado, em períodos, de baixa, motivada pelas lesões sofridas em consequência do mesmo.

[…]

   68. A autora esteve com doença com incapacidade para o trabalho durante os períodos de 23/10/2012 (data do acidente) até 26/03/2013 e de 17/04/2013 a 30/09/2014;

         […]

  1. Em resultado da explosão de que a autora foi vítima o quantum doloris é fixável no grau 6/7.
  2. O dano estético permanente é fixável no grau 4/7.
  3. A autora ficou com necessidade de acompanhamento médico-psiquiátrico regular e adequado.
  4. A repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer é fixável no grau 2/7.
  5. A autora sofreu 155 dias com défice funcional temporário total.
  6. A autora ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 17 pontos.
  7. As sequelas com que ficou a autora são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicando esforços ligeiramente acrescidos.
  8. É aconselhável para a estabilidade psicológica da autora que a mesma exerça a respectiva actividade profissional.

         A sentença entendeu que o valor dos danos sofridos pela autora era de: 37.000€ os patrimoniais; e de 55.000€ os não patrimoniais.

              Para o cálculo destes últimos, escreveu o seguinte:

         O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, e ainda atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica, à do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor do moeda, etc.. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida (cfr. obra supra citada, pág. 501).

         Ou seja, para calcular a compensação a atribuir por danos não patrimoniais “que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” (art. 496/1 do CC), o tribunal decide segundo a equidade, tomando em consideração “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso” (art. 496/3 e 494 do CC).

         Em face dos factos provados, não restam quaisquer dúvidas de que os danos sofridos pelo autor são graves e não podem deixar de merecer a tutela do direito.

         Cumpre ter em conta as circunstâncias do acidente, o sofrimento que implicou, os tratamentos médicos, intervenções, internamentos e períodos de incapacidade que se lhe seguiram (cfr factos 47 a 60). Em particular, cumpre dar relevo ao tempo durante o qual se prolongaram esses tratamentos e essas intervenções. O acidente ocorreu em 23/10/2012 (facto 1) e a lesada esteve incapacitada para o trabalho durante os períodos de 23/10/2012 (data do acidente) até 26/03/2013 e de 17/04/2013 a 30/09/2014 (facto 69).

         Há, ainda, que valorar a incapacidade parcial permanente resultante para a autora, na sua repercussão não patrimonial, nos termos já em geral referidos – o dano biológico é uma lesão ao direito à integridade física (cfr. factos 51 a 54).

         Também há que considerar as sequelas do acidente, as repercussões estéticas, as dores e demais sofrimento, que se prolongarão pela vida da autora (cfr. em especial os factos 47 a 60 e 109 a 116), que tinha alegria natural à data do acidente (facto 58), e que não esquecer que, nessa data, a autora tinha 41 anos (facto 118), o que desde logo significa que, de acordo com a esperança média de vida, poderão manter-se por mais de duas décadas.

         Finalmente cumpre atentar no grau de culpa dos agentes causador do sinistro, o que, em si mesmo, tem de ser ponderado no cálculo da indemnização por danos não patrimoniais: para o acidente concorreu a culpa dos réus C e D na forma de negligência, isto é, de uma atitude descuidada ou leviana em face das exigências que lhes eram impostas no caso concreto.

              Contra tudo isto, os réus recorrentes limitam-se a dizer que:

         28 – Já no que tange à quantia fixada a título de “danos não patrimoniais”, nos quais não se inclui, necessária e logicamente quanto já foi apurado em termos de danos corporais, ou seja, 55.000€, a mesma afigura-se excessiva, considerando o a esse específico título dado como provado, devendo como tal ser reduzida.

          Apreciando:

         A conclusão 28 é a reprodução integral do § correspondente do corpo das alegações, ou seja, ela não corresponde, no essencial, a qualquer argumentação sintetizada, mas a uma afirmação, sem qualquer argumentação: a indemnização é excessiva e por isso deve ser reduzida. É que, quanto ao resto, é manifesto o erro: os danos corporais sofridos também têm reflexos não patrimoniais: quem fica com uma limitação funcional do corpo de 17% e sofreu queimaduras profundas na face, braços e mãos e áreas dispersas do tronco, atingindo mais ou menos 30% da área do corpo, tem, também, o desgosto inerente de ficar com esse corpo com essas características e não só o reflexo patrimonial desses danos.

              Posto isto, diga-se que, face aos factos provados transcritos acima, o que talvez se pudesse concluir é que a valorização dos danos não patrimoniais até peca por defeito; nunca por excesso. Isto é tão evidente que dispensa outras fundamentações face ao que já se disse acima e ao que foi dito pela sentença recorrida e à falta de argumentação dos réus em sentido contrário.

                                                             (VIII)

                                     Dos valores atribuídos ao ISSM

              Os factos que interessam a esta questão são:

  1. A autora esteve com doença com incapacidade para o trabalho durante os períodos de 23/10/2012 (data do acidente) até 26/03/2013 e de 17/04/2013 a 30/09/2014;
  2. A autora apresentou no ISSM os boletins de internamento e os certificados de incapacidade temporária para o trabalho, respeitantes aos períodos de tempo referidos em 68, com solicitação de atribuição de subsídio de doença.
  3. Tendo o ISSM processado e pago à autora o subsídio de doença solicitado para o período de incapacidade referido em 74 [obviamente que se quis escrever 68 – TRL], no valor global de 13.537,74€.

              A sentença justificou assim a condenação nestes valores:

         Depois de transcrever os factos 68, 69 e 70, escreveu: Nos termos do artigo 70 da Lei 4/2007, de 18/01, no caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes conceder.

         Por seu turno, o artigo 7 da Lei 28/2004 de 04/02, estabelece que “nas situações de incapacidade temporária para o trabalho decorrentes de acidente de trabalho ou de acto da responsabilidade de terceiro, pelo qual seja devida indemnização, há lugar à concessão provisória de subsídio de doença enquanto não se encontrar reconhecida a responsabilidade de quem deva pagar aquelas indemnizações” (n.º 1), sendo que, “sempre que seja judicialmente reconhecida a obrigação de indemnizar, as instituições de segurança social têm direito ao reembolso dos valores correspondentes à concessão provisória do subsídio de doença até ao limite do valor da indemnização” (n.º 3).

         Pelo que fica dito, no presente caso, só pode concluir-se que deve ser atendido o pedido de reembolso do ISSM, porém apenas no montante de 13.537,74€, sendo que não resulta da factualidade provada que vieram a ser pagos até ao encerramento da discussão e julgamento da causa quaisquer outos valores.

         No entanto, tendo em conta a repartição de culpas supra referida (20% de culpa para a autora e 80% de culpa para os demais réus), os réus só poderão ser condenados a pagar ao ISSM o montante de 10.830,19€.

              Os réus dizem o seguinte contra isto:

         29 – Finalmente, em sétimo e último lugar, mais uma vez à cautela, quanto aos montantes indemnizatórios, apurados pelo tribunal a quo, não resulta esclarecido a que período aí concretamente se reporta a sentença, face à remissão do facto 70 para o facto 74.

         30 – Mas para além disso, considerando a prova documental apresentada pelo ISSM junto com o respectivo articulado (refª. 19138340, docs. 21 e 26), é inequívoco que não pode ser considerada a quantia pelo mesmo peticionada de 13.537,74€, mas apenas de 11.116,52€ (independentemente da respectiva redução em função da quota parte de responsabilidade no sinistro a atribuir à autora).

         31 – Na verdade, nos termos do “certificado de incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença” datado de 27/05/2014, a baixa então apresentada é, nos seus próprios e expressos termos, “inicial”, logo, logicamente, face àqueles ditos termos, não podendo relacionar-se com a matéria dos autos, tal como as restantes, as quais integram a prorrogação daquela.

              Apreciando e decidindo:

              A argumentação dos réus pode equivaler a uma impugnação da decisão do facto 68. A autora, a partir de 27/05/2014, não teria estado de baixa em consequência do acidente, mas por outro facto qualquer. O elemento de prova, utilizado pelos réus para o efeito, seria o doc. 21 (fl. 200v) do qual resulta que nesse dia se teria iniciado um novo período de baixa, logo não teria relação com o acidente.

              Os réus não têm razão.

            No facto 63, já transcrito acima, cuja decisão não foi impugnada pelos réus, consta que “desde o acidente que a autora tem estado, em períodos, de baixa, motivada pelas lesões sofridas em consequência do mesmo.” O que aliás se compreende no contexto dos outros factos dados como provados. Pelo que, o facto de não haver continuidade nos períodos de baixa, não corta a ligação de cada um deles ao acidente em causa nos autos.

                                                                 *

              Pelo exposto, julgam-se os recursos improcedentes.

         Custas dos recursos, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelos recorrentes (que decaíram nos recursos).

              Lisboa, 21/05/2020

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto