Processo  do Juízo de Família e Menores de Loures

              Sumário:

              I – A atribuição da casa de morada de família, nos termos do art. 1793 do CC, prevista no art. 990/1 do CPC, tem de ser feita, como resulta deste artigo, a título de arrendamento, não estando nos poderes do juiz fazê-lo a outro título, apesar de se estar no âmbito de um processo de jurisdição voluntária.

              II – Para se poder alterar a decisão de atribuição da casa de morada de família, tem de se verificar uma alteração das circunstâncias que estiveram na base dessa atribuição (arts. 1793/3 do CC e 988 do CPC), o que não está provado ter ocorrido no caso dos autos.

              Acordam no tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

              A 05/03/2018, AA intentou um processo especial de alteração da atribuição da casa de morada de família contra o seu ex-marido, RR, ao abrigo do disposto nos artigos 1793 do Código Civil e 990 do Código de Processo Civil, pedindo que:

              Seja alterado, por verificação de circunstâncias supervenientes, o acordo de atribuição do direito ao uso de uma fracção que identificou, passando a ser esse uso atribuído à requerente com efeitos desde a data da sentença proferida nos presentes autos e, bem assim, ser o requerido condenado a pagar à requerente uma sanção pecuniária compulsória no valor de ½ UC por dia de atraso na entrega da casa, em perfeitas condições de habitabilidade, à requerente, após trânsito em julgado da sentença que o decretar, sanção essa cujo valor será actualizado anualmente em função da taxa de inflação aprovada oficialmente pelo INE.

              Ou, caso assim não se entenda, seja anulado o acordo celebrado entre requerente e requerido quanto à atribuição da casa de morada de família, devendo, em consequência e atendendo aos factos acima mencionados, ser substituído por outro onde conste que até à venda do imóvel o requerido assumirá o pagamento integral do “valor relativo à amortização mensal do empréstimo para aquisição da habitação, bem como todos os encargos decorrentes da mesma (tais como seguros, condomínio, IMI e todas as demais despesas decorrentes da utilização regular da casa)”, devendo metade desse valor ser pago a título de arrendamento e a outra metade como responsável pelo pagamento de parte dos empréstimos contraídos.

              Alegou para tanto, em síntese, que: casou com o requerido em 02/09/2006, sem convenção antenupcial; na constância do casamento, requerente e requerido optaram por comprar uma casa, a qual integra, assim, o património comum do casal; para o efeito contraíram dois empréstimos bancários; o ex-casal viria, assim, a adoptar tal imóvel como casa de morada de família; em 14/06/2014, face aos desentendimentos do casal, a requerente optou por sair daquela casa, levando consigo a filha (Inês) menor do casal, na altura com 4 anos de idade; esta decisão visou garantir, essencialmente, o bem-estar da Inês, já que era frequente a criança ouvir algumas discussões entre o pai e a mãe, apercebendo-se, pois, que o ambiente em casa não era de verdadeira harmonia, o que, naturalmente, se fazia sentir negativamente na própria estabilidade e bem-estar da sua filha; face ao acima referido, a requerente considerou que, de facto, e enquanto não se formalizava a dissolução conjugal, seria mais benéfico para todos – mas principalmente para a criança – deixarem de residir na mesma casa, (9) passando naquela data a residir com os seus pais (avós maternos da criança). (10) Fê-lo, porém, provisoriamente, enquanto não se formalizavam os termos do divórcio, dando disso conhecimento ao ex-cônjuge marido. (11) Aliás, só por essa razão, é que a requerente optou por sair de uma casa que era sua, isto é, do seu espaço, com óptimas condições de habitabilidade, e voltar para casa dos seus pais, onde, por exemplo, passou a partilhar quarto com a filha de ambos. […] (13) Depois da referida saída, a requerente procurou chegar a um acordo com o requerido, quer no que se refere ao divórcio propriamente dito, quer a todas as questões com ele relacionadas, tais como regulação das responsabilidades parentais, utilização da casa e até a própria partilha; no dia 14/11/2016, no âmbito da tentativa de conciliação da acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, requerente e requerido requereram a convolação do divórcio para mútuo consentimento, acordando, entre outros aspectos e no âmbito da regulação das responsabilidades parentais, que a filha de ambos ficaria a residir com a mãe e que “a casa de morada de família, fica atribuída ao requerido, até à venda ou partilha”, nada mais tendo sido regulamentado, até porque ficou subjacente a ideia, entre requerente e requerido, que o ideal seria resolver definitivamente todas as questões; assim, atendendo ao acima referido, a requerente continuou (e continua) a suportar, aproximadamente (200€), metade dos encargos relativos aos empréstimos bancários contraídos para a aquisição do imóvel (457,60€). Ora, atendendo a que, no âmbito do processo de divórcio, não foi estabelecida qualquer contrapartida financeira, a favor da requerente, de modo a fazer face aos encargos decorrentes do uso da habitação, exclusivamente por parte do requerido, a ex-cônjuge mulher vê-se onerada com os encargos de um bem que não usa nem, tão-pouco, pode recolher quaisquer frutos, situação que, para além, disso, a impossibilita de encontrar uma alternativa de habitação (própria ou arrendada), quer para si, quer para a filha Inês. É que, do ponto de vista financeiro, os rendimentos mensais da requerente não lhe permitem, para além de continuar a suportar os encargos do imóvel que faz parte do património comum, nos termos já referidos, fazer face às suas despesas pessoais, a comparticipar nas despesas da filha menor e, ainda, aos encargos decorrentes de uma nova habitação (24), razão pela qual a requerente se vê obrigada a residir na casa dos seus pais, onde também vivem os seus irmãos e onde partilha quarto com a filha Inês, que (25) não raras vezes comenta que não tem um quarto seu, como as suas amigas, (26) onde pode ter todos os seus pertencentes. A Inês já iniciou o seu percurso escolar e tem, por isso, mais necessidade de ter um espaço para si, onde pode ter os seus livros e brinquedos, fazer os trabalhos de casa, estudar, brincar, receber as suas amigas, etc; ou seja, a situação existente em nada salvaguarda os interesses da filha do ex-casal, tal como não permite que a requerente possa reorganizar a sua vida, nomeadamente no que se refere à parte pessoal; como já referido, o acordo em causa foi alcançado tendo como pressuposto base que a situação se resolvesse com alguma brevidade, para que, num curto espaço de tempo, a requerente pudesse procurar outra habitação quer para si, quer para a sua filha; no entanto, o arrastar sistemático da situação em nada se coaduna com os interesses da requerente e, principalmente, com os da Inês; actualmente, a solução mais conveniente não é, de facto, a que foi estabelecida na data do divórcio; é que, relembre-se, não tendo sido possível chegar-se a um acordo – como parecia, de facto, ser a intenção de ambos na data da dissolução conjugal – a requerente vê-se impedida de reorganizar a sua vida; assim e porque, “a casa de morada de família deverá ser atribuída em função das necessidades de cada um dos cônjuges, assumindo particular relevância o «interesse dos filhos»” (ver acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/05/2015, proc. 5523/13.9TBVNG-B.P1), cumpre alterar a situação.

              Por último, caso o tribunal não venha a considerar a pretensão aqui requerida deverá, ainda assim, tal imóvel ser atribuído ao ex-cônjuge marido a título de arrendamento; é que tal situação permitirá um maior desafogo financeiro à requerente, desonerando-a do empréstimo bancário que a mesma continua a suportar, permitindo que a mesma possa dispor de rendimentos para, por exemplo, arrendar uma nova casa; e, a este título, não pode deixar de se referir que o arrendamento deverá estabelecer-se com base nas regras de mercado, no que se refere, por exemplo, ao valor da renda, bem sabendo a requerente que o mesmo ascende a cerca de 650€ mensais.

              Depois de uma frustrada tentativa de conciliação, o requerido foi notificado para contestar e fê-lo dizendo que: aceita como verdadeiros os factos vertidos nos artigos 1 a 5, 14 a 16, 19 e 20 (até 200€) da petição inicial e impugnando todos os restantes; excepcionou a falta de causa de pedir (artigos 552/1-d, 186/1-2-a e 577/-b do CPC), pois que peticiona a alteração da atribuição da casa de morada de família alegando a sua insatisfação com uma realidade que, na verdade, apenas se resolverá com a partilha do património do ex-casal (através da propositura do respectivo processo de inventário) e a factualidade pretextada afigura-se inepta para esse efeito; no pedido, é referenciada a “verificação de circunstâncias supervenientes”, que também não são devidamente identificadas ou concretizadas ao longo da PI; excepciona também o erro na forma do processo, pois que a título subsidiário a requerente pretende que seja “anulado o acordo”, não invocando nenhum facto que fundamente este seu pedido; estando o acordo homologado por sentença transitada em julgado, proferida nos autos principais, essa anulação teria que ocorrer ao abrigo do regime dos artigos 291 e 696-d do CPC, de que não se socorre a requerente; neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/02/2005, processo 04A3621: “escreveu-se no ac. deste STJ de 02/10/2003 (CJ X1-III-76) que ‘o acordo sobre o destino da casa de morada da família homologado por sentença transitada, proferida em acção de divórcio por mútuo consentimento, tal como a decisão do próprio divórcio, está acobertado pela força do caso julgado, nos termos do art. 673 CPC, pelo que só poderá ser atacado por via do recurso de revisão da própria sentença homologatória, nos termos do art. 771 do CPC, depois de obter sentença transitada em julgado a declarar nulo ou anulado o acordo, por falta ou vício de vontade das partes, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 301 do CPC.’ (no mesmo sentido o acórdão de 19/03/2002, proc. 555/02 […]).”.

              O requerido continua: determina o artigo 988/1 do CPC que, “nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.”; é alegando pretensas circunstâncias supervenientes que a requerente entende que o acordo de atribuição de casa de morada de família deve ser alterado, passando a ser a titular do uso da mesma; de facto, expõe a PI que, no processo de divórcio dos intervenientes, foi acordada a atribuição da casa de morada de família ao requerido, nada mais tendo ficado estipulado quanto aos encargos do imóvel, porquanto “o ideal seria resolver definitivamente todas as questões” (parte final do artigo 17 da PI); sucede que, efectivamente, volvidos cerca de dois anos desse acordo, o património conjugal ainda não se encontra partilhado, como se pretendia; porém, essa única circunstância não é bastante nem suficiente para sustentar cabalmente a alteração do acordo; se a requerente voltou para casa dos seus pais, onde passou a habitar e partilhar quarto com a filha Inês, como se alega no artigo 11 da PI, fê-lo por sua opção; como referido no artigo 15 da PI, cuja factualidade aceita, pai e mãe acordaram no exercício das responsabilidades parentais da Inês, no âmbito do proc. 5057/14.4TCLRS; tendo a requerente consentido no uso da casa de morada de família pelo requerido no período da sua separação, aceitado a sua atribuição ao mesmo no âmbito do divórcio, o presente incidente afigura-se peculiar.

              Mas mais, dispõe o artigo 1793/1 do CC, que, “pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um ‘dos cônjuges e o interesse dos filhos do casar; ora, a requerente não alega qualquer necessidade ou nenhum interesse que não tenha sido ou não esteja devidamente acautelado nos autos principais (nesse sentido, vide ac. do TRP de 25/02/2013, proc. 2891/11.0TBVNG.P1); a requerente não alega um único facto referente à sua situação económica, não concretizando porque se encontra impossibilitada de procurar nova habitação para si e para a Inês, porque continua a residir com os seus pais; limita-se a elencar os custos que a não realização da partilha da casa de morada de família lhe acarreta; a requerente não apresenta ao tribunal os seus rendimentos nem as suas despesas, para que se perceba qual a sua situação financeira nem necessidade; do mesmo modo, não pode reputar ao requerido uma melhor situação económico-financeira, sem escrutinar o seu rendimento e os seus gastos, onde se incluem, a título exemplificativo: os encargos do aludido empréstimo bancário, que suporá no valor mensal de 290€; quotas condominiais e IMI; as despesas correntes de água e electricidade; a pensão de alimentos à Inês de cerca de 150€ mensais mais a despesa escolar mensal no valor de 101€; outras atinentes à sua alimentação, vestuário, transporte e telecomunicações; aliás, é a própria que alude que o status quo actual é o de uma solução que não lhe é a mais “conveniente”; sucede que, essa conveniência não se trata de uma circunstância superveniente que permita proceder à alteração pretendida nesta lide; a requerente confunde os critérios de conveniência e oportunidade com que o tribunal pode decidir em processos de jurisdição voluntária, com as circunstâncias supervenientes que permitem a alteração dessas mesmas decisões (cfr., respectivamente, artigos 987 e 988 do CPC); de facto, nada mudou para que a requerente possa legitimamente demandar o requerido.

              Para que proceda uma decisão de alteração da atribuição de casa de morada de família, tem sido jurisprudencialmente decidido que a “alteração deverá assentar, em termos gerais, nos seguintes pressupostos cumulativos: «(a) Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de representações consideradas ao tempo da adopção das medidas, o mesmo é dizer, uma alteração ou transformação do ‘cenário’ contemplado pelos cônjuges ou pelo juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se postula. (…); (b) Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não resulte tão extraordinária ou transcendental. (…); (c) Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio, como definitiva. (…); (d) E, finalmente, que a alteração ou variação afecte as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adopção das medidas e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental da sua determinação. (…)” (remete-se, a título exemplificativo, para os acórdãos do TRP de 26/10/2006, proc. 0634785; de 05/02/2007, proc. 0657165; e de 25/02/2013, proc. 2891/11.0TBVNG.P1, já citado acima): ora, in casu, nenhuma destas situações se verifica; a requerente nunca transmitiu ao requerido que carecia de melhor habitação para si e para a filha comum; a requerente nunca procurou o requerido para dissolver a comunhão proprietária do imóvel; a Inês nunca transmitiu ao pai qualquer incómodo decorrente da sua habitação com os avós maternos, como os que agora são alegados; com a dedução do presente incidente, a requerente não logrará a pretendida resolução definitiva do seu problema; em conclusão, inexistem quaisquer circunstâncias supervenientes que permitam ao tribunal decidir pela alteração da atribuição da casa de morada de família.

              A 30/10/2018, foi proferido o seguinte despacho: Ao abrigo do disposto no art. 590/2-b-4 do CPC, notifique-se a requerente para explicitar – concretizando tal factualmente, se for o caso – se ocorreu qualquer alteração da sua situação financeira desde o acordo alcançado a 14/11/2016 quanto à atribuição da casa de morada de família, juntando aos autos, designadamente, as declarações de rendimentos relativas aos anos de 2015, 2016 e 2017 e respectivas notas de liquidação. Por outro lado, deverá esclarecer se já foi intentado inventário para partilha dos bens comuns e, em caso afirmativo, quem o intentou e qual o estado do mesmo.

              A requerente veio então dizer:

              Naturalmente que desde a data da separação até ao presente, a sua situação financeira não permaneceu inalterada, quanto mais não seja pelo facto de ter deixado de residir com o pai da sua filha e, nessa medida, ter deixado de repartir algumas despesas como ocorria na constância do casamento. No que respeita aos rendimentos da requerente, tal como ocorria na data da separação, tais rendimentos são, exclusivamente, os provenientes do seu trabalho, não tendo existido uma alteração substancial nos valores auferidos, tudo conforme declarações de IRS relativas aos anos de 2015, 2016 e 2017 que aqui se juntam. (aliás, houve até uma diminuição do valor recebido mensalmente ao ter deixado de receber os “duodécimos”). Actualmente – e, repete-se, como ocorria, em termos aproximados, quer na data da separação de facto, quer em Novembro de 2016 – a requerente aufere, como vencimento base, a quantia de 1201,48€, o que perfaz a quantia líquida de 948,21€. E, para além deste valor, a requerente recebe, do requerido, a título de pensão de alimentos para a filha do casal, a quantia mensal de 150€. Com o referido valor, a requerente tem que fazer face às seguintes despesas fixas: 50% do estabelecimento de ensino onde a filha do casal se encontra a estudar, no valor mensal actual de 140€; 200€ para pagamento da sua quota-parte da prestação dos empréstimos bancários contraídos para aquisição daquela que foi a casa de morada de família; 100% das actividades extracurriculares da filha do ex-casal, repartidos em 45€ para pagamento do Inglês e 60€ para equitação. Ora, no que respeita às despesas mencionadas no número anterior, refira-se que a totalidade das mesmas ascende, actualmente, à quantia de 445€, tendo-se verificado um acréscimo de 80€, na despesa do estabelecimento de ensino da Criança, em comparação com o ano lectivo anterior, tudo conforme facturas das mensalidades que aqui se juntam. Atendendo ao supra exposto, depois de pagas as despesas fixas acima identificadas, a requerente dispõe de cerca de 655€, aproximadamente, para fazer face às despesas relacionadas com alimentação, vestuário e produtos de higiene, combustível para deslocações, não só no que respeita aos gastos da própria mas também da filha do ex-casal que, relembre-se, reside com a mãe, Tendo também que suportar qualquer despesa de carácter extraordinário que surja, tais como, impostos, seguro do carro de que é proprietária e ainda despesas relacionadas com a própria filha, nomeadamente visitas de estudo, despesas de lazer, despesas de saúde, etc. É que, ainda que nos termos do acordo de regulação das responsabilidades parentais, a responsabilidade pelo pagamento das despesas extraordinárias da criança sejam da responsabilidade de ambos os progenitores, a verdade é que, num primeiro momento, o pagamento integral dessas mesmas despesas é – ou pelo menos tem sido – assumido pela mãe. E, para além disso, o pai não assegura o respectivo pagamento da totalidade desses encargos, tendo a requerente recorrido já aos meios judiciais próprios para assegurar o pagamento das quantias já vencidas e não pagas [não juntou prova documental do alegado]. A título de exemplo refira-se, por exemplo, que no mês de Fevereiro, a ora requerente teve que suportar a totalidade as despesas de oftalmologia da filha, compreendendo uma consulta, as lentes e a armação, perfazendo o total aproximado de 450€, não lhe tendo sido, ainda, reembolsada a quota-parte de 50% que recai sobre a responsabilidade do pai, nos termos do acordo celebrado. Mais, a requerente suportou também, sozinha, as despesas relacionadas com livros e material escolar, pagando com regularidade visitas de estudo e outro material escolar que, ao longo do ano, se vem a mostrar necessário, conforme consta, por exemplo, das facturas do estabelecimento de ensino já juntas. E, para além dos gastos acima mencionados, a requerente – por estar a viver “por favor” em casa da sua mãe – comparticipa ainda nos encargos dos consumos domésticos, naquilo que lhe é possível, de acordo com as despesas a que, em cada mês, tem que fazer face, optando, muitas vezes, por proceder, directamente, ao pagamento de algumas despesas da responsabilidade da sua mãe, como é o caso do IMI. […] Aliás, foi também por razões puramente financeiras que a requerente não intentou o competente processo de inventário. É que, após várias tentativas de se chegar a um acordo, a requerente, ao ver-se confrontada com o “arrastar” deste assunto, chegou a deslocar-se a um cartório notarial para dar início ao processo, tendo, no entanto, tomado conhecimento dos emolumentos notariais a que teria de fazer face, concluindo, assim, que não conseguia optar por esta via. Assim, a requerente optou por desencadear os procedimentos necessários para, de facto, levar a cabo aquilo que era intenção de ambos, enquanto casal, isto é, que o imóvel permanecesse no património dos ex-cônjuges para, mais tarde, passar a pertencer à filha do ex-casal. E esta continua a ser, aliás, a vontade primordial da requerente, considerando que deve continuar a ser, também, a do requerido, enquanto pai dedicado à sua filha. Em todo o caso, enquanto tal não acontece, haverá, naturalmente que fazer-se o uso mais conveniente e ajustado da casa de morada de família, tomando em consideração o interesse de todos mas, essencialmente, da Inês, tudo nos termos e de acordo com o já alegado.

              O requerido não foi notificado para resposta a este articulado.

              Após isto, o tribunal ainda notificou a mãe para responder à excepção deduzida pelo pai, o que a mãe fez pela seguinte forma:

              […] Ou seja, o requerido considera que “as circunstâncias de vida” dos intervenientes deste processo – as partes e a filha do ex-casal – mantém-se inalteradas desde o decretamento do divórcio por mútuo consentimento. Ora, no entender da requerente, só um pai desatento e despreocupado é que poderá considerar que as necessidades de uma criança são iguais aos 3 (data do divórcio dos pais) e aos 9 anos (idade actual da Inês). Como é evidente, actualmente a filha do ex-casal exterioriza frequentemente o desejo (e a necessidade, até) de ter um espaço só dela, onde poderá realizar os trabalhos de casa, ter os seus brinquedos e pertence. E, inclusivamente, receber as suas amigas e colegas de escola, tendo um espaço que chama e identifica como sendo a “sua casa”. Mais, a requerente, aliás, na data do divórcio, só acordou que a casa de morada de família fosse atribuída ao ex-cônjuge marido porque considerava que seria uma situação passageira, querendo ambos resolver definitivamente a questão da propriedade do imóvel. Naturalmente que se a requerente ponderasse, sequer, que ao fim de 6 anos esta situação se manteria, jamais a aceitaria, não só por razões financeiras, mas, essencialmente, pelo bem-estar da sua filha. Aliás, o decurso do tempo foi já considerado pelos tribunais superiores uma razão válida para alterar as decisões proferidas no âmbito dos processos de jurisdição voluntária. Veja-se, a este respeito, o ac. do TR de Coimbra de 24/10/2017, processo 273/13.9TBCTB-A.C1, em que se refere: “Em sede de relações familiares, o decurso do tempo pode alterar, só por si, as circunstâncias factuais, mormente quando se trata de crianças na primeira infância, pois estas crescem de modo acelerado, física e espiritualmente, à medida que o tempo passa nesses primeiros anos de vida. Por isso, a mera passagem do tempo pode ser relevante para efeitos de alterar uma decisão.” Por último, sublinhe-se, tal como referido anteriormente apresentado, o requerido não cumpre o acordo de regulação das responsabilidades parentais, nomeadamente na parte em que se prevê o pagamento das despesas extraordinárias da criança por ambos os progenitores, na proporção de 50% para cada um. Ou seja, por força de tal incumprimento, é à mãe que cabe o pagamento integral das despesas de saúde e das despesas escolares de carácter extraordinário da criança, Situação que, ainda que possa ter resolução judicial, naturalmente, repercute-se na capacidade financeira daquela em encontrar uma nova habitação já que lhe cabe a ela “avançar” o pagamento integral das despesas necessárias ao sustento da filha. A requerente, no momento em que aceitou a convolação do divórcio e acordou nos aspectos relacionados com o mesmo, jamais equacionou a hipótese de o requerido vir a incumprir aquilo que teria acordado, pelo que, assim sendo, esta é também uma circunstância diferente que deverá, também ela, ser tomada em consideração para a boa decisão da presente causa.

              A 11/03/2019, um ano depois de iniciado o incidente, é proferido um despacho saneador em que, quanto à excepção de falta de causa de pedir se diz que: “compulsado o requerimento inicial, constata-se que a requerente alicerça a sua pretensão no facto de o acordo alcançado quanto à utilização da casa de morada de família – aquando da convolação do divórcio para mútuo consentimento – ter ocorrido na pressuposição de que a situação relativa ao dito imóvel se resolveria a breve trecho, algo que permitiria à requerente procurar outra habitação para si e para a filha, sendo que, entretanto, a filha cresceu e precisa de ter um quarto só para ela – o que não acontece, antes partilhando um quarto com a mãe na casa dos avós -, na medida em que se trata de um espaço importantíssimo para o processo de individualização de uma criança, onde poderá ter os seus livros e brinquedos, fazer os trabalhos de casa, estudar, brincar, receber as amigas. Ora, perante o enunciado, não merece acolhimento a arguida ausência de causa de pedir, não podendo confundir-se a ausência de causa de pedir com uma potencial causa de pedir deficiente ou que careça de explicitação/densificação, sendo que, nesta eventualidade, cabe ao tribunal tomar a iniciativa de convidar ao aperfeiçoamento da predita causa de pedir, o que efectivamente teve lugar – cfr., nesta matéria, v.g., ac. do TRP de 08/01/2018 e ac. do TRC, de 27/09/2016. [acórdãos que dizem respeito a despachos de aperfeiçoamento em acções com processo comum – TRL]”

              Quanto ao erro na forma do processo quanto ao pedido subsidiário deduzido, diz o despacho: “cumpre interpretar devidamente o desiderato [do pedido subsidiário] da requerente. […] Todavia, a requerente não pretende, em rigor, uma “anulação” do acordo celebrado quanto à atribuição da casa de morada de família, mas, sim – a título subsidiário -, uma alteração desse acordo, consubstanciada na fixação de uma compensação/contrapartida em benefício da mesma decorrente da circunstância de o requerido fazer um uso exclusivo da sobredita casa, alegando, nesse sentido, factos que entende relevantes e ponderosos, mormente as necessidades e superior interesse da filha menor na actualidade, tendo tal respaldo na lei, mais concretamente no art. 1793/3, do CC – de acordo com o qual, e a propósito da casa de morada de família, “O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária” – e no art. 988/1 do CPC – segundo o qual “Nos processos de jurisdição voluntária as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração…”.

              Nesse mesmo despacho, mais à frente, diz-se: “estando a jurisprudência dividida quanto à questão de se saber se a requerente tem direito a receber, com base em circunstâncias supervenientes, uma compensação, não prevista no acordo inicial, pelo uso exclusivo da casa de morada de família por parte do requerido – cfr. nesse sentido, ac. do TRE de 18/01/2018 [neste dia não foi proferido qualquer acórdão do TRE sobre esta matéria – TRL], que faz uma resenha dos acórdãos nas Relações e no STJ, e, em particular, quanto à possibilidade de ulterior fixação de compensação pela ocupação, ac. do TRG de 28/09/2017 [neste dia foram publicados 20 acórdãos no TRG: o despacho estará a referir-se ao proferido no processo: 1163/13.0TBPTL-G.G1 – TRL] -, e tendo-se presente que, na apreciação da causa, importa ter em consideração as várias soluções plausíveis ao nível do Direito, é essencial à boa decisão da causa, face ao disposto no art. 1973 do CC, a determinação do valor locativo do bem imóvel alvo de litígio. Assim, e nos termos dos artigos 467/1 e 990/3, 1ª parte, ambos do CPC, determina-se a avaliação do valor locativo do imóvel que constitui a casa de morada de família por parte de um perito.

              A 16/11/2020, depois de realizada a audiência, foi finalmente proferida sentença, em que se atribuiu o direito de uso exclusivo da casa de morada de família à requerente, até à partilha; e se decidiu que: a requerente será responsável exclusivamente por todos os encargos – amortização do empréstimo, seguros inerentes, IMI, condomínio e consumos domésticos da habitação a partir do momento que dela tomar posse; não se fixa compensação pelo não uso da casa de morada de família a favor do requerido.

              O requerido recorre desta sentença, impugnando alguns pontos da matéria de facto e a decisão de direito.

              A requerente contra-alegou, levantando a questão prévia do efeito do recurso (que já foi objecto de despacho pelo relator) e defendendo a improcedência do mesmo.

                                                                 *

              Questões que importa decidir: se deve ser alterada a decisão da matéria de facto e se não devia ter sido alterada a atribuição da casa de morada de família.

                                                                 *

              Foram dados como provados os seguintes factos, que interessam à decisão das questões a decidir:

  1. A requerente e requerido contraíram matrimónio no dia 02/09/2006, sem convenção antenupcial, vigorando, por isso, o regime da comunhão de adquiridos.
  2. Na constância do referido casamento, requerente e requerido optaram por comprar uma casa – sita em x.
  3. Para efeitos da referida aquisição, requerente e requerido contraíram dois empréstimos bancários, junto do Banco M, no valor global de 155.000€.
  4. Prestando os pais da requerente fiança para tais dívidas bancárias.
  5. O ex-casal viria, assim, a adoptar tal imóvel como casa de morada de família, mobilando-a e decorando-a de acordo com as respectivas possibilidades e gosto pessoal de ambos.
  6. Em 14/06/2014, face aos desentendimentos do casal, a requerente optou por sair daquela que era casa de morada de família, levando consigo a filha menor do casal, na altura, com 4 anos de idade [a criança nasceu a 09/12/2009 – TRL, como decorre do que consta do processo de divórcio].
  7. Passou a residir, a requerente, com os seus pais, passando a partilhar um quarto com a sua filha.
  8. Depois da referida saída, a requerente procurou chegar a um acordo com o requerido, quer no que se refere ao divórcio propriamente dito, quer a todas as questões com ele relacionadas, tais como regulação das responsabilidades parentais, utilização da casa e até a própria partilha.
  9. No dia 14/11/2016, no âmbito da tentativa de conciliação da acção de divórcio sem o consentimento, processo sob o número 10316/16.9T8LRS, que correu os seus termos no Juiz 4 do Juízo de Família e Menores de L, requerente e requerido requereram a convolação do divórcio para mútuo consentimento.
  10. Acordando, entre outros aspectos e no âmbito da regulação das responsabilidades parentais, que a filha de ambos ficaria a residir com a mãe.
  11. E que “a casa de morada de família, sita em x fica atribuída ao requerido, até à venda ou partilha”.
  12. Naquela data, nada mais foi objecto de regulamentação, nomeadamente no que se refere aos encargos do imóvel.
  13. A requerente continuou (e continua) a suportar, aproximadamente, metade dos encargos relativos aos empréstimos bancários contraídos para a aquisição do imóvel.
  14. Os valores da mensalidade para pagamento do empréstimo ascendem ao montante mensal global de 457,60€, valor esse que é debitado, directamente, na conta bancária titulada por requerente e requerido.
  15. A requerente transfere para a já referida conta titulada por ambos e que está associada ao empréstimo, todos os meses e desde a data da saída da referida casa, a quantia de 200€, para pagamento da sua quota-parte do valor global da mensalidade.
  16. Esta situação que, para além, disso, a impossibilita de encontrar uma alternativa de habitação (própria ou arrendada), quer para si, quer para a filha Inês (do extinto casal) que com ela reside.
  17. A requerente, continuando a cumprir as suas obrigações, vê-se obrigada a residir na casa dos seus pais, onde também vivem os seus irmãos e onde partilha quarto com a filha Inês.
  18. A Inês refere que gostava de ter um quarto só seu.
  19. O acordo do divórcio foi alcançado na perspectiva de que a situação se resolveria com brevidade.
  20. O valor locativo do imóvel que corresponde à casa de morada de família é de 840€ por mês.
  21. O valor de mercado do imóvel que corresponde à casa de morada de família é de 168.700€.
  22. O património do casal ainda não se encontra partilhado.
  23. Nunca o requerido recusou a entrada ou afastou a filha da habitação.
  24. O requerido paga o IMI e o condomínio da casa de morada de família, bem como as despesas correntes da casa, ao que acresce a pensão de alimentos da filha Inês, no valor de 150€.

         25-30. A requerente em Abril de 2020 auferiu como rendimento do seu trabalho o valor de 223,93€; em Maio de 2020, 736,83€; em Junho de 2020, 1548,37€; em Julho de 2020, 651,97€; em Agosto de 2020, 1042,76€; e, em Setembro de 2020, 990,28€.

         31-32. A requerente declarou, no ano de 2018, 16.820,72€ como rendimento de trabalho para efeito de IRS, e no ano de 2018 [quis-se escrever 2019 – TLR], 18.340,37€ [este valor inclui 1800€ da pensão da filha – TRL].

         33-38. O requerido em Abril de 2020 auferiu como rendimento do seu trabalho 1005,94€; em Maio de 2020, 1516,66€; em Junho de 2020, 2268,40€; em Julho de 2020, 1119,06€; em Agosto de 2020, 1005,94€ e em Setembro de 2020, 1111,61€.

         39-40. O requerido declarou no ano de 2018, 21825,30€ como rendimento de trabalho para efeito de IRS; e no ano de 2018 [quis-se escrever 2019 – TRL], 23800,32€.

                                                                 *

Da impugnação da decisão da matéria de facto

              O requerido entende que os pontos de facto 7, 16, 17 e 18 estão incorrectamente julgados.

              A fundamentação da convicção do tribunal, deixando de lado as habituais afirmações genéricas, foi a seguinte, na parte que importa:

         “[…] os factos provados 1 a 15 resultaram da admissão por acordo, quer em sede de articulados, quer em sede de audiência de julgamento, atentas as declarações de parte prestadas pelo requerido. […]

         Os factos 16 a 19 resultaram das declarações de parte prestadas pela requerente em sede de audiência de julgamento, cuja espontaneidade conduziu a que fossem valoradas pelo tribunal. Em concreto quanto aos factos 17 e 18 levou o tribunal também em consideração o depoimento da testemunha SM, amiga da requerente, e que relevou ter conhecimento dos factos, tendo prestado um depoimento distanciado e isento, pelo que, nessa medida foi valorado pelo tribunal.

         Os factos 20 e 21 resultaram […].

         O facto provado 22 resultou […]

         Também os factos 23 e 24 resultaram de […]

         A prova dos factos 25 a 40 estribou-se na prova documental […]

         Mais se consideraram os depoimentos das testemunhas VM e JS, porquanto não se nos afiguraram comprometidos com as versões apresentadas pelas respectivas partes.

         […]”

              Contra isto, o requerido diz o seguinte:

         Quanto ao ponto 7, diz o tribunal a quo em relação aos factos provados n.ºs 1 a 15, que fundou a sua convicção em resultado da admissão por acordo, quer em sede de articulados quer as declarações de parte pelo requerido.         

         O ponto 7 está contemplado nos artigos 9 e 11 da PI. Na contestação o requerido, no seu artigo 1, apenas aceita “… como verdadeiros os factos vertidos nos artigos 1 a 5, 14 a 16, 19 e 20 (até 200€) da PI.” E no artigo seguinte diz: “Impugnando-se expressamente todos os restantes.” Logo, os pontos 9 e 11 (correspondentes ao ponto 7 dos factos provados) foram impugnados.

         O requerido sobre este facto, em defesa por impugnação, apenas refere na sua contestação, no seu artigo 31, que: “Se a requerente voltou para casa dos seus pais, onde passou a habitar e partilhar com a filha Inês, como se alega no artigo 11 da PI, fê-lo por sua opção.” Também aqui o requerido não admite que a Inês partilha quarto com a mãe na casa dos avós. Também das declarações prestadas pelo requerido (gravadas entre 11:02:13 a 11:14:20) não foi o mesmo questionado nem respondeu no sentido de a Inês estar em casa dos avós a partilhar quarto com a mãe.

         Pelo exposto, este ponto deve ser dado como não provado por admissão do requerido […]

              Quanto aos pontos 16, 17 e 18, o requerido contrapõe à fundamentação dessas decisões:

         Pelo depoimento de parte da requerente, em relação a esses pontos, efectivamente responde em consonância com o que a mesma alega o que se estranharia se assim não fosse.

         Vejamos se é sustentado como melhor prova pelas testemunhas que apresentou, uma vez que a ela recai esse ónus.

         Do depoimento SM (09:31 a 10:26), apenas se extrai que a testemunha nunca falou directamente com a Inês sobre esta gostar de ter um quarto para ela. Mas apenas que a Inês terá comentado com as suas filhas mais concretamente com a mais nova nesse sentido. Ora trata-se de conhecimento indirecto da testemunha que o tribunal não deve valorar como verdadeiro.

         Da questão da requerente residir na casa dos seus pais, onde também vivem os seus irmãos e onde partilha quarto com a filha Inês resulta do depoimento da testemunha (10:27 a 10:44) em que diz “… julgo que dorme com a mãe… ou seja, não tem um quarto dedicado a ela…”

         A testemunha começa e continua, como se pode verificar em gravação, com um depoimento que tem “ideia” que a Inês não tem um quarto para ela. Essa “ideia”, que não nos foi apresentada como certeza, mais se percebe pelas suas declarações seguintes (13:16 a 14:45) que ao referir-se à descrição da casa onde a requerente vive com a sua filha, a testemunha – que diz frequentar a casa – não soube dizer o número de quartos, não conhece o piso de cima, nem concretamente quem ou quantos lá vivem e se os quartos estão todos ocupados. Nem se pronuncia qual o quarto em que a Inês dorme e como é. Em suma, a testemunha, em rigor, não conhece totalmente a casa nem se a Inês divide o quarto com a mãe e se a casa oferece a possibilidade de a Inês ter o seu espaço ou se já tem.

         Entendemos que não foi feita prova quanto à divisão de quarto entre a requerente e a sua filha.

         E não foi feita prova que a Inês refere que queria um quarto para si.

              A requerente contrapõe o seguinte:

         A decisão recorrida é clara quanto à sua fundamentação: “fundou a sua convicção no conjunto da prova, analisada criticamente à luz das regras da experiência.”

         Nem de outra forma poderia ser: a prova produzida no presente processo foi, essencialmente, prestada quer por testemunhas, quer pelas declarações prestadas por ambas as partes.

         Tais meios probatórios são livremente apreciados pelo julgador, tudo nos termos do disposto no art. 466/3 e 607/5 do CPC.

         Mas mais: o tribunal a quo refere também ter formado a sua convicção também por consideração aos depoimentos das testemunhas VM e JS “(…) porquanto não se nos afiguraram comprometidos com as versões apresentadas pelas respectivas partes”.

         Ou seja, como não poderia deixar de ser – por vigorar, no ordenamento jurídico português o princípio da livre apreciação da prova (crf. o já mencionado artigo 607) – no presente processo, a prova produzida foi apreciada pelo tribunal a quo entre o equilíbrio das regras da experiência e da livre convicção do julgador (vide, neste sentido e a título de exemplo, o ac. do TRP de 14/07/2004, proc. 0412950).

         O requerido pretende “confundir” o tribunal ad quem, procurando desta forma alterar a matéria de facto considerada provada.

         Sendo certo que o depoimento prestado pelo requerido não abordou directamente tal aspecto, a verdade é que não só o mesmo, ao longo do presente processo, não apresentou qualquer contraprova do facto em causa, como tão pouco requereu qualquer diligência probatória susceptível de impugnar directamente o alegado pela requerente quanto a esta matéria, limitando-se apenas a uma impugnação genérica.

         Em suma, quanto ao facto relacionado com a partilha do mesmo quarto pela mãe e pela filha, o requerido optou por deixar tal questão totalmente ao critério da livre apreciação da prova produzida pela requerente quanto a esta matéria, tendo o tribunal a quo formado a sua convicção ao longo de todo o processo e de acordo com a globalidade e análise de todos os meios de prova, conforme é referido na decisão recorrida (nomeadamente em referência ao depoimento da testemunha SM).

         Admitir outra hipótese seria limitar os poderes do tribunal, no seu papel de julgador, isto é, na liberdade e isenção que o legislador pretendeu conferir na apreciação e valoração quer da prova testemunhal, quer da prova das declarações por parte.

         Para além do depoimento da testemunha SM, o tribunal a quo fundamentou também a sua decisão no depoimento da outra testemunha arrolada pela parte: a já referida VM.

         E, na verdade, também no depoimento desta última testemunha (11:32 e 11:44), a questão do quarto foi abordada, tendo sido pela mesma referido que “Não tem (quando questionada sobre se a Inês tem o quarto dela em casa da mãe). Não tem porque a Inês às vezes fala com o S que é o meu filho mais velho e comenta ter o quarto na casa onde está o RR, que tem lá o quarto dela e gostava do quarto dela e do espaço dela.”

         Ou seja, os depoimentos das duas testemunhas mostram-se, quanto a este aspecto, coincidentes, o que certamente contribuiu para formar a convicção que o mesmo corresponde à verdade, sendo, assim, considerado provado.

         E, ao contrário daquilo que o requerido pretende fazer crer, o depoimento indirecto consiste numa comunicação de um facto de que o sujeito teve conhecimento por intermédio de uma terceira pessoa, conforme ocorreu no caso concreto (em que as testemunhas arroladas pela requerente relataram o que a Inês refere aos filhos de cada uma delas a propósito do desejo de ter um quarto só seu), podendo o mesmo ser considerado válido e, portanto, valorável. Veja-se, a este respeito e a título de exemplo, os acórdãos do TR de Guimarães de 11/07/2017, proc. 3388/15.5T8BRG.G1, do TRL de 16/10/2014, [pr. 179/06.8TBLNH.L1-6 – TRL], e de 18/01/2018, proc. 1758/13.2TBMTA.L1-2. Deve ser valorado com cautelas e foi precisamente o que o tribunal a quo fez. Na verdade, não é incomum que, para uma criança de 11 anos – como é a Inês -, seja mais fácil expressar o que sente e desabafar com amigos da sua idade do que com adultos, o que efectivamente aconteceu com os filhos de ambas as testemunha arroladas, conforme foi dado a conhecer pelas próprias. Tais depoimentos foram, assim, considerados credíveis pelo tribunal a quo, tendo para tal contado com o auxílio das regras de experiência comum, bem como a avaliação de tais declarações pelo homem médio, impondo-se a sua verossimilhança.

         E, ainda que assim não fosse, a verdade é que o requerido não demonstrou a existência de circunstâncias qua abalem a credibilidade dos depoimentos prestados conforme determina o artigo 640 do CPC.

         Em suma, o requerido não logrou demonstrar que a prova produzida quanto à partilha de quarto entre a requerente e a sua filha, nem quanto à necessidade que a Inês manifesta quanto a ter um quarto só para si, não são verdadeiras.

              Decidindo:

              Apesar de o requerido pôr formalmente em causa o decidido nos pontos 7, 16, 17 e 18, a verdade é que substancialmente só pôs em causa o decidido nesses pontos quanto à divisão de quarto entre a requerente e a sua filha – isto é, que a requerente tenha passado a partilhar um quarto com a sua filha – e ao facto de a filha referir que queria um quarto para si – isto é, que gostava de ter um quarto só seu. Esta restrição do objecto do recurso, também resultaria do disposto nos arts. 639/1 e 640/1-a-c do CPC, já que só relativamente a esses pontos daqueles números consta algo nas conclusões do recurso e só em relações a eles é que o requerido diz que não ficaram provados.

              O requerido trata da matéria de forma separada, mas, dado que a requerente respondeu como se se tratasse da mesma questão, preferiu-se manter a transcrição de tudo, antes da decisão e agora tratar-se-á de questão em separado.

              Quanto a 7 (partilha do quarto da mãe com a filha)

              A fundamentação da decisão recorrida refere que se baseou na admissão por acordo, quer em sede de articulados, quer em sede de audiência de julgamento, atentas as declarações de parte prestadas pelo requerido.

              A argumentação do requerido, no entanto, demonstra suficientemente que ele não admitiu essa parte do ponto 7 dos factos provados, quer na contestação (onde impugnou expressamente o facto) – de resto, neste processo, não funciona a cominação para a falta de impugnação, como decorre do art. 990/3 do CPC -, quer nas declarações de parte (pois que nelas não se pronunciou sobre o ponto).

              É certo que a fundamentação da decisão recorrida acrescenta, mais à frente, que “mais se consideraram os depoimentos das testemunhas VM e JS”, mas não diz para que efeitos considerou tais depoimentos, pelo que é irrelevante.

              Assim, a fundamentação da decisão do ponto 7 está errada, o que não quer dizer que a decisão também o esteja, ao contrário do que o requerido parece pressupor. É que, se tiver sido produzida outra prova sobre o assunto, ela pode ser tomada em consideração, apesar de a decisão recorrida não a ter referido.

              Ora, das transcrições feitas, até pelo próprio requerido, pode-se entender que há um depoimento que, de algum modo, se pode reportar a este ponto, que é o da testemunha SM. E, depois, a requerente invoca, com o mesmo valor, o depoimento da testemunha VM.

              Ambas estas testemunhas reportam-se ao que a Inês comentou aos filhos das testemunhas: a Inês refere-se, em tom de lamento e de desejo, ao facto de ter um quarto só para ela em casa do pai, com o que implicitamente se está a queixar de não ter um quarto só para ela na casa onde vive com a mãe. É certo que se tratam de depoimentos indirectos – as testemunhas contam o que lhes foi dito pelos filhos –, mas estes são admissíveis em processo civil, sem as reservas que o processo penal lhes põe, como decorre dos vários acórdãos que a requerente citou, sendo uma questão líquida pelo que não se desenvolve.

              Com isto também fica resolvida a questão da vontade da filha querer um quarto só para ela, ou seja, o ponto 18 dos factos provados.

              Pelo que, independentemente do erro da fundamentação da decisão recorrida e de não se concordar minimamente com a argumentação da requerente – por exemplo, quanto (i) ao aproveitamento das considerações genéricas da fundamentação da decisão impugnada; (ii) incluindo aos depoimentos das testemunhas VM e JS; (iii) quando diz que o requerido pretende “confundir” o tribunal ad quem – pois que tal não está minimamente indiciado; (iv) quando pretende aproveitar o facto de o requerido não ter apresentado qualquer contraprova do facto em causa – pois que ele não o tinha necessariamente de fazer; (v) quando diz que o requerido optou por deixar tal questão totalmente ao critério da livre apreciação da prova produzida pela requerente – o que manifestamente não fez; e (vi) quando sugere que o requerido tinha que lograr demonstrar que a prova produzida quanto a tais factos não é verdadeira – o que não é correcto, pois que a prova produzida pela requerente não tem de ser afastada pela prova do contrário (como decorre do art. 346 do CC) – a impugnação dos pontos de facto deduzida pelo requerido improcede.

                                                                 *

Do recurso sobre matéria de direito:

              A sentença recorrida, nesta parte, tem a seguinte fundamentação:

         A casa de morada de família goza de protecção especial, revelada e suportada em diversos instrumentos legais destinados a preservar os interesses dos ex-cônjuges e filhos consigo conviventes, através da ponderação do destino da casa de morada de família e dos termos da sua atribuição, que poderá inclusivamente passar pela constituição judicial de um arrendamento a favor de um dos ex-cônjuges (ou elemento de união de facto que cessou, por força do disposto no art. 4 do DL 7/2001, de 11/05, na redacção introduzida pela Lei 23/2010, de 30/08), independentemente da natureza de bem comum ou próprio do outro.

         O processo de «atribuição da casa de morada de família» previsto no artigo 990 do CPC, não obstante se encontrar sujeito ao princípio do pedido – art. 1793/1 do CC e 3/1 do CPC -, tem a natureza de processo de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode decidir o mérito da causa por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita (art. 987 do CPC).

         Assim.

         Determina o art. 990 do CPC que:

             “1 – Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793 do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105 do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.

             2 – O juiz convoca os interessados ou ex-cônjuges para uma tentativa de conciliação a que se aplica, com as necessárias adaptações, o preceituado nos n.ºs 1, 5 e 6 do artigo 931, sendo, porém, o prazo de oposição o previsto no artigo 293.

             3 – Haja ou não contestação, o juiz decide depois de proceder às diligências necessárias, cabendo sempre da decisão apelação, com efeito suspensivo.

             4 – Se estiver pendente ou tiver corrido acção de divórcio ou separação, o pedido é deduzido por apenso.”

         Sobre esta matéria há que convocar o art. 1793 do CC que determina que:

             “1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.

             2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.

               3 – O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.”

         Tratando-se de bem comum dos cônjuges, apenas a este normativo se aludirá.

         Sobre os pressupostos enunciados no normativo transcrito, escreveu o Professor Pereira Coelho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, n.º 122, 1989-1990, páginas 137, 138, 207 e 208:

             “[…] a lei quererá que a casa de morada da família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro […]. Ora, este critério geral, segundo nos quer parecer, não pode ser outro senão o de que o direito ao arrendamento da casa de morada da família deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela. […] A necessidade da casa (ou a «premência», como vem a dizer a jurisprudência; melhor se diria a premência da necessidade) parece-nos ser, assim, o factor principal a atender. […] Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal ter em conta, em primeiro lugar, justamente estes dois elementos, que mais expressivamente a revelam […]. Trata-se, quanto à «situação patrimonial» dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais os rendimentos e proventos de um e de outro […]. No que se refere ao «interesse dos filhos», há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos menores […]. Mas o juízo sobre a necessidade ou a premência da necessidade da casa não depende apenas destes dois elementos. Haverá que considerar ainda as demais «razões atendíveis»: a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.”

         Com efeito, “É legalmente admissível a fixação de uma compensação patrimonial do cônjuge privado do uso daquela que foi a casa de morada de família por força da sua atribuição ao outro cônjuge até à partilha do bem. Tal compensação deve ter lugar por razões de justiça e equidade, designadamente porque o cônjuge privado do uso desse bem pode estar sujeito, e, por isso, não pode deixar de ter em conta as circunstâncias concretas da vida dos cônjuges.”, como ensina o ac. do TRC de 27/04/2017.

         No mesmo sentido o ac. do TRG de 26/03/2015, no qual se pode ler “E deve ser atribuída uma compensação ao outro cônjuge, pois sendo a casa um bem comum de ambos os cônjuges, não seria justo que se beneficiasse um deles (o cônjuge que fica com o direito de utilizar provisoriamente a casa de morada de família) sem compensar o outro da privação do uso e fruição de um bem que também lhe pertence.”

         Do pedido principal da requerente

         Em sede de tentativa de conciliação no divórcio as partes acordaram que “a casa de morada de família, fica atribuída ao requerido, até à venda ou partilha”.

         Resultou das declarações das partes que não existe ainda processo de inventário, sendo que o mesmo não é equacionado pelas partes.

         Assim, e nos termos do processo de jurisdição voluntária em que nos situamos, há então que ponderar: a necessidade ou premência de atribuição da casa de morada de família a um dos cônjuges; a necessidade dos filhos.

         Quanto à necessidade ou premência da atribuição da casa de morada de família a um dos cônjuges compete averiguar a sua situação económica, os seus proventos, as suas despesas, as suas alternativas habitacionais.

         Neste sentido, ac. do TRL de 31/01/203, no qual se escreveu que “O critério da «necessidade de um dos cônjuges» só poderá ser densificado se aferido em função dos concretos rendimentos e encargos de ambos os cônjuges, de modo a ajuizar qual deles se encontra numa situação mais desfavorável, isto é, qual deles tem maior premência da necessidade da casa.”

         A situação económica dos cônjuges não é muito díspar, situando-se ambos num nível médio de vencimento, sendo porém, o vencimento mensal da requerente inferior ao do requerido. Nada se provou quanto às suas efectivas despesas actuais, quer com consumos domésticos, quer com o exercício da parentalidade (o que existia no processo não é actual). Aliás, nada foi sequer alegado quanto a tal (não estando, contudo, o tribunal vinculado estritamente ao principio do pedido por nos encontrarmos em processo de jurisdição voluntária).

         Não existe uma clamorosa e substancial diferença no nível remuneratório dos ex-cônjuges.

         O empréstimo bancário está a ser suportado equitativamente, sendo que é o requerido que tem o uso da casa de morada de família. Ora, como facilmente se influi, suportando o encargo com o empréstimo para amortização do crédito contraído na constância do casamento, a requerente não terá disponibilidade financeira para comprar ou arrendar outra habitação, porquanto, o seu nível salarial não o permitirá.

         Mas a situação inversa conduziria a semelhante constatação.

         A separação do casal conduz inevitavelmente a uma diminuição do nível de vida, porque as despesas passam a ter de ser contabilizadas em dobro.

         Não se olvide que a situação económica e patrimonial dos cônjuges não terá sofrido alteração, mantendo-se semelhante ao que era por altura do divórcio.

         Vejamos agora o critério do interesse dos filhos.

         No que ao critério do interesse dos filhos respeita, filhos menores leia-se, porque é aos filhos menores que a lei dedica a sua protecção, precisamente por se entender que é o interesse deles que é erigido por lei como critério para atribuição da casa de morada da família.

         Lê-se no ac. do TRC de 09/01/2018, e quanto à interpretação deste critério que “Quanto a este último particular, o do interesse dos filhos, prende-se ele com a situação dos filhos menores, confiados à guarda de um dos pais, e que, para não ficarem sujeitos a outro trauma para além do que normalmente lhes resulta do divórcio destes, a lei entende por bem proteger de forma a que possam continuar a viver com estabilidade na habitação a que estavam habituados, sem mais mudanças para além da própria situação familiar. Na verdade, é aos filhos menores que a lei dedica a sua protecção, precisamente por se entender que é o interesse deles que é erigido por lei como critério para atribuição da casa de morada da família.”

         Não será esta, certamente, a situação dos autos. Com efeito, aquando da separação do casal em 2014, a requerente saiu de casa com a filha menor, pelo que, não há nenhuma situação de continuidade ou estabilidade a acautelar.

         Porém, existe uma circunstância superveniente a considerar – o decurso do tempo e o crescimento da filha Inês que se prepara para entrar na adolescência. Quando o acordo de atribuição da casa de morada de família foi realizado a filha do ex-casal tinha 7 anos de idade. Actualmente já tem 11 anos.

         As necessidades são substancialmente diferentes. A necessidade de identidade, de sentimento de pertença, de privacidade, de autonomia, de organização e de estudo são muito diferentes numa idade e noutra.

         Nos termos do acordo de exercício das responsabilidades parentais a menor ficou a residir com a mãe (não nos olvidamos que este acordo foi contemporâneo ao acordo de atribuição da casa de morada de família ao requerido). Actualmente a mãe reside na casa dos seus pais, ocupando um quarto nessa casa o qual divide com a filha pré-adolescente. O pai reside sozinho na casa de morada de família.

         É certo que o pai nunca impediu a filha de lá viver, mas isso não será o desejo da filha, porque se fosse já correria por apenso acção de alteração do exercício das responsabilidades parentais relativamente à menor.

         A casa de morada de família é de requerente e requerido, sendo que ambos se têm responsabilizado pelo pagamento do crédito à habitação. O requerido paga as despesas correntes porque é ele quem reside na casa, é no minino justo que assim seja.

         É certo que os cônjuges firmaram um acordo aquando do divórcio.

         Mas cremos que o decurso do tempo e o crescimento da filha são circunstâncias suficientes para alterar esse acordo, e com fundamento no interesse da menor atribuir o uso da casa de morada de família à requerente.

         Mas seria expectável fixar um valor pecuniário como contrapartida da alteração da atribuição do uso e fruição da casa de morada de família.

         E essa atribuição de compensação encontra a sua génese no primordial princípio da equidade e da igualdade entre cônjuges.

         A fixação desta compensação é facilmente entendível, pelo menos em casos como o dos autos, em que está em questão um bem que é comum de ambos, não fazendo sentido beneficiar um deles (o que fica com o direito de utilizar a casa de morada de família) sem compensar o outro (o que fica sem o direito de a utilizar) por se ver privado do uso e fruição de um bem que também é seu.

         Sendo este o momento certo para o fazer.

         Por forma a determinar o valor da compensação o tribunal atenderá às necessidades de cada cônjuge e ao valor locatício do imóvel.

         Mas há que atender que sobre o imóvel existe uma dívida bancária, a qual onera ambos os cônjuges e cujo montante mensal ascende a 457,60€.

         Cremos que o mais equitativo é quem usa a casa de morada de família ser responsabilizado por todos os encargos – amortização do empréstimo, seguros inerentes, IMI, condomínio – libertando o outro desses encargos por forma a que possa encontrar uma alternativa habitacional condigna. A sua desoneração dos encargos corresponderá à sua compensação pelo não uso da casa de morada de família.

         Procedendo o pedido principal, o tribunal não conhecerá do demais peticionado.

              Contra isto, o requerido diz:

         Tal como nos diz o artigo 988/1 do CPC: “Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes, que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.”

         O objecto do processo, cuja decisão se recorre, visa, pela requerente, a alteração da atribuição de casa de morada de família.

         Atribuição essa que ficou estabelecida por acordo de vontade das partes em atribuir ao requerido.

         Acordo esse que só pode ser alterado em processo de jurisdição voluntária apenas com fundamento em circunstâncias supervenientes.

         Não estamos, perante a atribuição de casa de família “inicial”, mas sim a alteração de um acordo que efectivamente foi celebrado para atribuição da casa.

         Contudo, o tribunal anuncia:

         “Assim, e nos termos do processo de jurisdição voluntária em que nos situamos, há então que ponderar: a necessidade ou premência de atribuição da casa de morada de família a um dos cônjuges; a necessidade dos filhos.”

         Ora, essa ponderação, que de forma abundante é patente na fundamentação de direito apresentada pela sentença, desvia-se do cerne da grande questão que é a das circunstâncias supervenientes.

         Contudo, sem desprezar o critério de julgamento, estabelecido no artigo 987 do CPC, em que o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, o tribunal a quo confunde e recorre a critérios doutrinais e jurisprudenciais para atribuição da atribuição da casa de morada de família descurando-se da alteração das resoluções com fundamento em circunstâncias supervenientes.

         Ainda que munido dessa liberdade o julgador in casu só pode alterar, em rigor, o acordo estabelecido com fundamento em circunstâncias supervenientes e não por conveniência ou oportunidade ainda que estas possam existir mas num segundo momento após uma realidade nova e ponderante.

         Da prova produzida, para o tribunal a quo e para nós, resultou que desde da separação do casal e de firmarem o acordo da atribuição da casa de família nada se alterou desde então em relação ao ex-casal.

         Apenas e só apenas, com excepção, e só para o tribunal a quo, que diz: [o requerido transcreve aqui a fundamentação da decisão recorrida, que já está transcrita acima].

         Resulta, portanto, que é apenas e só apenas o decurso do tempo e o crescimento da filha, que é uma realidade que naturalmente iria ocorrer, que o tribunal fundamenta a sua decisão em alterar o acordo estabelecido.

         Entendemos, como referido anteriormente, que não foi feita prova que a Inês partilhe quarto com mãe, nem a necessidade de ter o seu espaço, mas mesmo que assim fosse é uma realidade antiga, não nova, que necessariamente a autor previu quando firmou o acordo.

         Mais se dirá que, para que proceda uma decisão de alteração da atribuição de casa de morada de família, tem sido jurisprudencialmente decidido que a “alteração deverá assentar, em termos gerais, nos seguintes pressupostos cumulativos [o requerido volta aqui a citar o sumário do ac. do TRP já transcrito acima a propósito destes pressupostos cumulativos].

         Ora, in casu, atendendo à fundamentação já esplanada da sentença não se verifica a superveniência somente por a Inês ter mais idade. Uma vez que era uma alteração óbvia aquando a realização do acordo.

         Pelo que a sentença deveria ter absolvido o requerido, por não se terem verificado quaisquer circunstâncias supervenientes atendíveis para a alteração do acordo.

              A requerente contrapõe que:

         À data do divórcio, a intenção da requerente era chegar a um acordo para a resolução global das questões relacionadas com o imóvel. E, foi na convicção que os ex-cônjuges alcançariam rapidamente um entendimento que a mesma, à data do divórcio, aceitou que a utilização da referida casa de morada de família fosse atribuída ao requerido.

         Aliás, a precaridade dos termos do acordo alcançado no âmbito do divórcio por mútuo consentimento demonstra claramente esta situação: nada se regulamentou, por exemplo, a propósito da responsabilidade do pagamento das despesas relacionadas com o imóvel, continuando a requerente a suportar quase 50% das despesas daquela que foi casa de morada de família (o que, naturalmente, só se justifica porque na convicção da requerente esta decisão vigoraria durante um período limitado de tempo, já que rapidamente se resolveria em definitivo esta questão).

         Acontece, porém, que o acordo alcançado entre as partes ocorreu quando a Inês tinha 4 anos de idade. Hoje tem 11…

         A requerente nessa altura, optou por – provisoriamente, na sua convicção – mudar-se para casa dos seus pais, onde teve – e tem! – de partilhar um quarto com a sua filha, abdicando assim da privacidade de ambas (partilhando a casa não só com a sua mãe mas também com os seus irmãos e sobrinhos).

         Aquando do acordo, a Inês nada verbalizava a respeito da “sua” casa e a propósito das suas necessidades, o que não se verifica nos dias de hoje. Tal como resultou da prova produzida, actualmente a filha, por força do seu crescimento, manifesta, com regularidade, a necessidade de ter o seu próprio espaço – o seu quarto – para ler, estudar, brincar e receber os seus amigos numa casa que chame sua.

         Face ao acima exposto, dúvidas não existem que esteve bem o tribunal a quo ao considerar que se produziu uma alteração no conjunto das circunstâncias consideradas aquando do acordo celebrado entre os ex-cônjuges. Como já mencionado, a requerente apenas concordou que a casa de morada de família fosse atribuída ao requerido para colocar um termo na relação conjugal, sempre com o objectivo de acautelar o bem-estar da sua filha; e, mais ainda, nunca foi por ela previsto, que a situação temporária em que se encontrava – isto é, partilhar o quarto com a filha em casa da sua mãe – fosse perdurar no tempo.

         E, sendo certo que, de acordo com a jurisprudência – nomeadamente o ac. do TRC de 24/10/2017, proc. 273/13.9TBCTB-A.C1 [já citado acima], o próprio decurso do tempo é passível de produzir alterações nas relações familiares, considera a requerente que esteve bem o tribunal a quo ao considerar que aquando do acordo, a idade da Inês e as necessidades desta última eram diferentes do que são hoje.

         Logo, no caso concreto, o decurso do tempo trata-se de uma alteração substancial, que provocou uma mudança, que se perpetuou no tempo e que afectou as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes no momento da celebração do referido acordo.

         Com o arrastar da situação, a requerente vê-se impedida de reconstruir a sua vida e da sua filha, porquanto continua numa situação em que tem de pagar parte do empréstimo da casa de morada de família, sem dela usufruir, tem de comparticipar nas despesas habitacionais da casa da mãe e, dado a situação, não pode usufruir da casa de morada de família ou em alternativa arrendar/comprar casa para si e para a Inês.

         Como é afirmado na sentença recorrida um dos critérios para aferir a verificação de circunstâncias supervenientes que possam influir na alteração da atribuição da casa de morada de família é o interesse dos filhos. O interesse dos filhos está indubitavelmente ligado à vida dos pais pelo que se requerente, neste caso concreto, tem dificuldades em oferecer aquelas que, actualmente, seriam as condições habitacionais necessárias à filha, certamente que devem pesar na decisão do tribunal para acautelar o interesse dos filhos, as condições dos pais.

         Cremos que as necessidades da Inês são, hoje, substancialmente diferentes do que aquelas que existiam na data do divórcio, o que, por si, fundamenta a possibilidade de alterar o regime estabelecido anteriormente quanto à utilização da casa de morada de família. O estágio de desenvolvimento em que a Inês se encontra é totalmente diferente daquele em que estava aquando do acordo. As suas necessidades de desenvolvimento, de construção da identidade, de privacidade, de autonomia e da relação com os pares são agora diferentes e exigem outros cuidados que não são compatíveis com a sua situação actual.

              Decidindo:

Da necessidade de um arrendamento e de uma renda

              O incidente de alteração da atribuição daquela que foi a casa de morada de família, implica, como decorre expressamente do art. 990/1 do CPC, que essa atribuição seja feita nos termos do artigo 1793 do Código Civil, ou seja, através de um arrendamento, para a existência do qual é necessário o pagamento de uma retribuição, isto é, de uma renda (arts. 1022 e 1023 do CC).

              Neste sentido, por exemplo: o ac. do TRL de 22/02/2018, proc. 1.224/14.9T8SNT-D.L1-6

         “Esta configuração normativa conferida à decisão recorrida, proferida no âmbito do processo regulado nos artigos 990 do CPC e 1793 do CC, só por si, inviabiliza a pretensão formulada pela recorrente, neste recurso, de atribuição do direito de utilização da casa de morada de família, sem a sujeição dessa atribuição às regras do arrendamento e, naturalmente, ao pagamento de uma contrapartida pecuniária mensal, a titulo de renda. (…) Após o trânsito em julgado da sentença de divórcio, os ex-cônjuges só podem aspirar à atribuição definitiva do direito de utilização da casa de morada de família, segundo as regras do arrendamento, a título oneroso, ou seja, através da fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem comum do extinto casal (artigos 990 do CPC e 1793 do CC).”;

              e o ac. do TRL de 11/03/2021, proc. 1074/18.3T8VFX-A.L1-2:

          1. Estando em causa um pedido de atribuição da casa de morada de família a título definitivo, nos termos do art. 990 do CPC, se o tribunal entender que o ex-cônjuge tem necessidade da mesma, ou que tal corresponde ao interesse dos filhos do casal, ouvidas as partes, tem de constituir um arrendamento sobre o imóvel, estabelecendo uma quantia a título de renda, como contrapartida do seu uso exclusivo, conforme previsto no art. 1793 do CC.

              O processo de atribuição, do art. 990 do CPC, de uma casa nos termos do art. 1793 do CC, apesar de ser de jurisdição voluntária (art. 986 do CPC), não se pode transmutar noutra coisa diferente ao abrigo do art. 987 do CPC, isto é, não pode logicamente deixar de ser um processo que atribua um direito de arrendamento da casa, mediante o pagamento de uma renda ao requerido. É para isso que ele existe e não para outra coisa que o juiz entenda.

              E o mesmo vale para a alteração do já decidido, como decorre do art. 282 do CPC; aliás, como dizem, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira: “como ‘alterar o destino da casa de morada de família’ é ‘atribui-la’, valerão aqui as mesmas regras que disciplinam a atribuição da casa.” (Curso de direito da família, vol. I, 5.ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, página 767).

              Ora, a sentença recorrida, na senda do pedido formulado pela requerente, atribuiu o direito de uso exclusivo da casa de morada de família à requerente, até à partilha, sem a fixação de uma renda a ser paga ao requerido, violando desta forma o disposto nos artigos 990/1 do CC e 1793/1 do CPC), o que só por si bastaria para a revogação, ao menos parcial, da mesma.

              O facto de o requerido estar na posse da casa também sem o pagamento de uma renda, não permite que se decida agora em violação da lei, lei aliás que é imperativa e não pode ser afastada por vontade dos cônjuges ou ex-cônjuges – neste sentido, por exemplo, Rute Teixeira Pedro, no CC anotado, Almedina/Cedis, 2017, 13 da página 705.

              Por fim, os pagamentos referidos na sentença são a terceiros e não ao requerido. Destinam-se ao pagamento de outras prestações, a que terceiros têm direito, não servindo de sucedâneo ao pagamento de uma renda ao requerido. Por exemplo, ao fazer, só a requerente, a amortização do empréstimo contraído para o pagamento da casa, a requerente estaria a pagar mais do que devia pela casa e, assim, a adquirir direito de regresso sobre o requerido (art. 524 do CC). E, por isso, não há qualquer possibilidade de ver aí uma compensação sucedânea do direito do requerido à renda. É certo que na fundamentação da sentença se tenta ver neste pagamento uma compensação ao requerido, mas não se diz como é que tal operaria – o que é um outro modo de dizer que não se estabelecem os meios necessários para tal – e, aliás, no dispositivo da sentença diz-se expressamente que “não se fixa compensação pelo não uso da casa de morada de família a favor do requerido.” Sendo que a tentativa de reposição de um equilíbrio substancial posterior, depararia sempre com as dificuldades de que dá conta o ac. do TRG de 18/01/2018, proc. 120/16.0T8EPS.G1. A mesma argumentação, com as devidas adaptações, vale também para os pagamentos ao condomínio, já que na relação externa, esses pagamentos são devidos pelos proprietários da fracção e não por quem tem o seu gozo (ac. do TRL de 05/12/2019, proc. 27472/17.1T8LSB.L1-A-2). E o mesmo valeria ainda, para o IMI.

              Além disso, a pretensão da sentença de se servir da obrigação do pagamento da amortização de um empréstimo como compensação ao requerido, vai misturar questões de direito de propriedade sobre um bem, com a questão muito diferente do direito a rendas que, por sua vez, apresenta uma natureza quase-alimentar, e impossibilitar a retirada de consequências desta natureza (sobre essa natureza e consequências, veja-se, por exemplo, o que diz Jorge Duarte Pinheiro, o Direito da Família contemporâneo, Gestlegal, 2020, 7.ª edição, págs. 627-629; bem como Rute Teixeira Pedro, obra citada, anotação 10 da pág. 704 e Nuno de Salter Cid, CC anotado, Almedina/coord. Clara Sottomayor, 2020, pág. 579; inúmeras outras razões para não se fazer aquela confusão resultam da lição francesa, em aplicação dos arts. 255/4 e 285-1/3 do CC, no estudo de Yann Favier e Olivier Matocq, Droit de la famille, 8e édition, sob a direcção de Pierre Murat, Dalloz, 2019, págs. 274 a 276, 133.71 a 133.74).

                                                                 *

              Seja como for.

Da necessidade de uma alteração de circunstâncias

              A extensa fundamentação da sentença, transcrita acima, não deixa dúvidas. Como diz o requerido, ela trata do caso como se estivesse perante uma decisão inicial de atribuição da casa de morada de família, e não perante um incidente de alteração de um acordo homologado por sentença transitada em julgado. 

              Ora, como se está perante um incidente de alteração, a primeira e principal questão a decidir, não é a de saber a qual dos progenitores devia ter sido atribuído da casa de morada de família, mas sim o da de saber se existem circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração da atribuição, nos termos do já referido e transcrito art. 988 do CPC.

              É que, por outro lado, não existem actualmente dúvidas, de que a atribuição pode ser alterada, mesmo que esteja decidido com trânsito em julgado.

              (neste sentido, com amplos elementos sobre a divergência existente anteriormente e demonstração que ela já não existe, veja-se, apenas por exemplo e para além da jurisprudência e doutrina referidos mais abaixo, Nuno de Salter Cid, A protecção da casa de morada da família no direito português, Almedina, 1996, páginas 310/316,  e A alteração do acordo sobre o destino da casa de morada da família, in Comemorações dos 35 anos do CC e dos 25 anos da reforma de 1977, Coimbra Editora, 2004, vol. I, Direito da família e das sucessões, págs. 275 a 300, com anexo de jurisprudência, e Isabel Alexandre, Modificação do caso julgado material civil por alteração das circunstâncias, na versão digital antes da adaptação à versão da reforma de 2013 do CPC, páginas 418 a 420; o requerido, embora cite acórdãos em sentido contrário, a propósito da questão do erro na forma do processo quanto ao pedido subsidiário, também não coloca em dúvida a possibilidade da alteração, desde que se verifiquem circunstâncias supervenientes, pelo que a questão não merece mais desenvolvimento)

*

Quanto à superveniência de circunstâncias

              A exigência dos pressupostos cumulativos para a alteração da atribuição, nos termos sintetizados por um autor espanhol (e com base nos artigos 90, §3, e 91 do Código Civil espanhol), seguido expressamente por Nuno Salter Cid, na obra já citada, já transcritos acima, corresponde hoje a uma posição praticamente unânime da jurisprudência sobre a questão da superveniência de circunstâncias para este tipo de casos.

              Neste sentido, por exemplo, para além dos três acórdãos citados pelo requerido;

              – do TRP de 26/10/2006, proc. 0634785;

              – do TRP de 05/02/2007, proc. 0657165:

         Tendo sido celebrado na pendência de divórcio acordo nos termos do qual o cônjuge marido ficaria a residir na casa de morada de família – bem comum do casal – até à partilha dos bens – sem a contrapartida de qualquer pagamento, pode a mulher requerer que o tribunal fixe em seu benefício uma quantia mensal por aquela ocupação se, entretanto, se alteraram em seu desfavor, as circunstâncias que estiveram na base da gratuitidade daquela consentida ocupação.

              – e do TRP de 25/02/2013, proc. 2891/11.0TBVNG.P1;

vejam-se ainda os seguintes, apenas por exemplo:

              – ac. do TRL de 07/04/2011, proc.  9079/10.6TBCSC.L1-2:

         III. A decisão transitada que fixe alimentos ou condene na satisfação de prestações daquela natureza, pode, como reflexo da regra rebus sic stantibus sobre o caso julgado, ser substituída por uma outra quando se altere a situação de facto subjacente.

       IV. Para que uma obrigação parental seja modificável, com base na alteração das circunstâncias, aquele que pretende a alteração deve alegar as circunstâncias existentes no momento em que aquela obrigação foi contraída e as circunstâncias presentes no momento em que requer a modificação dessa mesma obrigação.

     V. Só deve autorizar-se a modificação dessa obrigação se juízo de comparação entre as circunstâncias contemporâneas da decisão e o contexto actual tornar patente uma variação.

            Este acórdão trata de uma pretensão de alteração do acordo de regulação das responsabilidades parenteais; o incidente foi julgado improcedente e o acórdão confirmou a decisão recorrida.

              – ac. do TRP de 22/05/2017, proc. 395/12.3TBVLC-I.P1:

         Pode revelar-se atendível o pedido unilateral de modificação do acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado pelo tribunal, com fundamento em circunstâncias supervenientes, face ao disposto no n.º 3 do artigo 1793, exigindo-se o preenchimento dos requisitos enunciados no artigo 2012 do Código Civil, ou seja, que o requerente alegue e prove: i) que se alteraram as circunstâncias que determinaram a sua aceitação do acordo; que tal alteração, tendo natureza substancial, evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória; que a referida alteração tenha modificado a “base negocial” ou dos pressupostos fácticos que determinaram a vontade negocial das partes.

              Este acórdão trata de uma pretensão de alteração do acordo sobre a atribuição da casa de morada de família; o incidente foi julgado improcedente e o acórdão confirmou a decisão recorrida. O acórdão esclarece: “verificavam-se, à data da celebração do acordo, todas as circunstâncias justificadoras da atribuição da casa de morada de família à requerente; no entanto, as partes acordaram que a habitação era atribuída ao requerido; após tal acordo, não se verificou (não ficou provada) uma alteração das circunstâncias que legitime a alteração do acordo celebrado. […] Não se verificando a exigida alteração superveniente das circunstâncias, deverá naufragar a pretensão recursória, mantendo-se a sentença recorrida.”

              Isto decorre do entendimento correcto de que o facto de estarmos

“num processo de jurisdição voluntária em que os critérios de legalidade estrita nem sempre se impõem totalmente ao tribunal quando lhe é solicitada a adopção de uma solução […] não permite que se abstraia totalmente das normas em vigor, como se elas não existissem e como se, acima delas, estivesse o critério subjectivo do julgador ou os interesses individuais das partes” (ac. do TRC de 01/02/2000, proc. 792/99, CJ.2000.tI, páginas 15 a 17 (2ª coluna da pág. 16).

              No mesmo sentido, o ac. do TRP de 28/01/2014, proc. 1551/12.0TMPRT-D.P1:

         “Só que, e não obstante estarmos perante um processo de jurisdição voluntária, onde os critérios de legalidade estrita não se impõem totalmente, o tribunal deve adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, mas sem abstrair em absoluto do direito positivo vigente […]”;

              Ou como se diz no ac. do TRC de 28/06/2016, proc. 677/13.7TBACB.C1

         “haverão de ser razões de estrita objectividade jurídica, em função da matéria que resulta assente na matéria provada, de que se deu conta, e não expressões subjectivas de decisionismo voluntarista, assumido, ou meramente putativo, a condicionar a decisão sobre estre específico problema judiciário. O qual, sem o ignorar, não pode acobertar-se em qualquer resguardo de “equidade”, e sem que isso implique, igualmente, do mesmo modo, olvidar “que se está perante um processo de jurisdição voluntária […]”).

              Ou seja, neste tipo de processos, têm de se observar, na mesma, os pressupostos legais do processo em causa, e um deles, é, no caso, uma alteração das circunstâncias sem a qual o acordo feito não pode ser alterado, e isto não deve ser contornado através de interpretações forçadas das circunstâncias para se ver nelas alterações que não existem.

              – ac. do TRC de 09/01/2018, proc. 238/13.0TMCBR-B.C1;

              – ac. do TRG de 14/06/2018, proc. 423/17.6T8GMR.G1:

         I- Não tendo ficado explicitamente estabelecido e decidido, por acordo entre os ex-cônjuges, que a atribuição da casa de morada da família a um deles dependeria de uma contrapartida pecuniária a prestar ao outro, fica excluída a possibilidade deste último vir ulteriormente, em acção declarativa comum (por via principal ou reconvencional), pedir e obter essa mesma contrapartida pecuniária, unicamente fundamentada nesse direito, que eventualmente lhe assistiria, mas que do mesmo acordo não fez constar.

         II- No entanto, sempre assistirá ao ex-cônjuge, que se veja posteriormente desfavorecido com tal acordo celebrado sobre o destino da casa de morada da família, alterar tal resolução tomada em processo de jurisdição voluntária, lançando mão do processo (ou incidente) de “atribuição/alteração da casa de morada da família”, com base nas disposições conjugadas dos arts. 1793/3 do CC e 988/1 e 990 do CPC.

         III- De qualquer modo, esta alteração, com recurso aos meios processuais próprios da jurisdição voluntária, designadamente em face do disposto no art. 988/1 do CPC, pressupõe necessariamente a alegação e demonstração de uma “alteração superveniente das circunstâncias” que estiveram na base daquele acordo.

              – ac. do TRG de 17/12/2018, proc. 1163/13.0TBPTL-G.G2:  

         É actualmente direito vigente a possibilidade de se alterar o regime da casa de morada da família previamente estabelecido por homologação do acordo dos cônjuges ou por decisão do tribunal (cf. art. 1793/3 do CC), nos termos dos arts. 986 e ss do CPC, ou seja, sem sujeição a critérios de legalidade estrita, antes adoptando a solução que se julgue mais conveniente e oportuna, contudo, essa modificação deverá estar assente em circunstâncias novas ou de conhecimento superveniente (por ignorância anterior ou motivo ponderoso) que importem uma resolução diversa da anteriormente adoptada.

              Este acórdão trata de uma pretensão de alteração do acordo sobre a atribuição da casa de morada de família, para que seja paga uma compensação por essa atribuição, que não tinha sido fixada no acordo que se pretende alterar; o incidente foi julgado improcedente e o acórdão confirmou a decisão recorrida.

              – ac. do TRG de 17/09/2020, proc. 114/14.0TCGMR-A.G1:

         I- A atribuição da casa de morada da família é um incidente de jurisdição voluntária, podendo as suas resoluções ser alteradas com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, sem sujeição a critérios de legalidade estrita, antes adoptando a solução que se julgue mais conveniente e oportuna.

         II- Não está em causa reapreciar a bondade da solução anterior, mas sim averiguar se houve alteração superveniente das circunstâncias que justifiquem a alteração do que então foi acordado/decidido.

         III- Se se verificar, dos factos provados nos autos, que não se alterou de forma substancial, o circunstancialismo que foi determinante para o acordo celebrado, deve ser recusada a alteração.

         IV- O processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada de família, não se caracteriza pela provisoriedade que é própria do incidente de atribuição da casa de morada de família na tramitação da acção de divórcio “sem consentimento do outro cônjuge”, podendo tal atribuição ser, apenas, alterada, conforme previsto no n.º 3 do artigo 1793 do CC, o que é próprio dos processos desta natureza (art. 988 do CPC).

              – ac do TRG de 29/10/2020, proc. 4797/15.5T8BRG-E.G1:

         I- O recurso à providência tutelar cível de alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais pressupõe o incumprimento por ambos os pais do acordo ou decisão final atinente ao regime da regulação do exercício das responsabilidades parentais ou a ocorrência de circunstâncias de facto supervenientes que justifiquem essa alteração.

         II- Deve considerar-se infundado o pedido de alteração quando não se mostra concretamente alegada qualquer factualidade que seja por si só susceptível de fundamentar a pretendida alteração nem as circunstâncias alegadas pela requerente permitem consubstanciar uma modificação que além de sobrevinda seja relevante e idónea para produzir uma mudança substancial das circunstâncias que determinaram a fixação do regime da regulação das responsabilidades em vigor, o que implica estabelecer uma comparação com os dados existentes ou conhecidos na data do regime a alterar.

              Este acórdão – que confirma um indeferimento de uma alteração da regulação do poder paternal, principalmente mas não só de alimentos, deduzida cerca de 2 anos depois de uma outra, num extenso requerimento com alegação de supostas alterações de circunstâncias – cita, no mesmo sentido e com o mesmo resultado, os seguintes acórdãos ainda não referidos:

            – do TRE de 09/03/2017, proc. 926/10.3TBBRR-B.E1:

3. A alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais, nomeadamente no que respeita aos alimentos, só pode ter por fundamento a existência de circunstâncias supervenientes (objetivas ou subjetivas) que justifiquem ou tornem necessária a alteração/redução da prestação alimentar fixada – art. 182/1 da OTM e art. 42/1 do RGPTC.

4. É de manter a prestação de alimentos fixada em abril de 2010, no valor de 120€ mensais, se o recorrente não alegou, nem demonstrou, factos que levem a concluir que a sua situação económica, após essa data, sofreu uma alteração substancial que justifique a redução desse montante.

             – do TRL de 23/10/2012, proc. 4772/04.5TBCSC-G.L1-7:

4. Nessa medida, incumbirá, à pessoa obrigada a prestar alimentos o ónus de alegar e provar os factos supervenientes que importem a sua redução, como factos constitutivos que são desse efeito pretendido, nos termos combinados dos artigos 342/1 do CC e 264/1 do CPC.

5. Assim, cabia ao ora A. o ónus de provar a alteração das circunstâncias em que se fundou a fixação dos alimentos por sentença já proferida, de forma a demonstrar a necessidade da sua redução.

                 – e do TRL de 11/06/2013, proc. 638/10.8TBCLD-A.L1-1:

4. Tratando-se da regulação do exercício das responsabilidades parentais, a existência de circunstâncias supervenientes à fixação do respectivo regime e que tornem necessário alterar o que tiver ficado estabelecido permite a qualquer dos progenitores requerer nova regulação (artigo 182/1 da LTM).

5. Tratar-se-á, então de circunstâncias que afectem significativamente o primitivo equilíbrio, impondo a uma das partes um sacrifício injustificado. O que, em casos de regulação do exercício das responsabilidades parentais, deve ser sempre aferido recorrendo ao interesse do menor (artigos 180 da LTM e 1905 do CC).

6. Tratando-se de factos constitutivos do direito de quem pretende prevalecer-se da alteração (artigo 342/1 do CC), a ele cabe a demonstração da verificação daquelas circunstâncias e contra ele há-de ser resolvida a dúvida existente (artigo 516 do CPC). Sem esquecer-se, contudo, os poderes oficiosos do artigo 1409/2 do CPC.

              No sentido da necessidade da alteração de circunstâncias, veja-se também: Rute Teixeira Pedro, obra citada, anotação 12, pág. 705; Nuno de Salter Cid, CC anotado, citado, págs. 580-581; Jorge Duarte Pinheiro, A casa de morada da família e o respectivo recheio, no quadro dos efeitos transformadores do casamento, CC, Livro do cinquentenário, vol. II, CIDP/Almedina, 2019, pág. 97 e nota 41, e O direito da família contemporâneo, Gestlegal, 7.ª edição, 2020, páginas 624, 625, 627-629; Guilherme de Oliveira, Manual de direito da família, Almedina, 2020, página 292, números 618 e 620; no mesmo sentido, ainda, a jurisprudência espanhola, com a diferença de se ter deixado de exigir uma alteração substancial, para se passar a falar numa alteração relevante ou séria ou certa ou significativa (Agustín Pardillo Hernández, El derecho de família en la reciente jurisprudência del tribunal supremo, Tirant lo banch, Valencia, 2017, páginas 179 a 183); mantendo aqueles 4 pressupostos cumulativos, veja-se Maria Isabel Mondéjar Penã e Remedios Aranda Rodriguez, Efectos comunes a la nulidade, separación y divorcio, pág. 574 (8/420) e 614-616 (8/445) com referência a três acórdãos relativos à modificação do uso da casa de morada de família (Practicum Familia, 2020, Thomson Reuters, 2020 – a lei espanhola tem a particularidade de, no art.96 do CC, estabelecer que na falta de acordo dos cônjuges aprovado pelo juiz, o uso da casa de morada da família [vivenda familiar] e dos objectos de uso ordinário que existem nela, corresponde aos filhos e ao cônjuge que fique com a guarda; bem como a jurisprudência francesa a propósito do art. 285-1/3 e 255/4 do Code Civil, exigindo a superveniência de um facto novo para que o juiz possa alterar medidas provisórias relativas à atribuição da casa de morada de família (por exemplo, os três acórdãos constantes da anotação 13 ao art. 255 na edição de 2019, 118e, do CC annoté, Dalloz, 2018, pág. 409.

              Tudo isto decorre também de, nos casos, como o dos autos, em que a atribuição da casa de morada resulta de um acordo das partes homologado por sentença, haver que ter em conta ainda o disposto no art. 437 do CC, pois que, como diz Isabel Alexandre (obra citada, pág. 665), a propósito do art. 619/2 [ou melhor 671/2 do CPC na versão anterior à reforma de 2013]: “Quando se trate de modificação de sentença homologatória de transacção […] a existência de uma regulação processual […] não exclui a aplicabilidade dos artigos 437 e seguintes do CC.” Ora, o art. 437 do CC exige, para além do mais, uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar.

              Posto isto,

              A única alteração invocada realmente pela requerente foi o decurso do tempo. O mais que escreveu são factos que ou teriam relevo para a atribuição inicial da casa de morada, ou para o divórcio ou para a distribuição de culpa no divórcio litigioso de antigamente, ou é a descrição da situação que já existia e continuou a existir.

              Com o despacho de “aperfeiçoamento” de 30/10/2018 fica a sugestão de uma outra alteração, que seria a das condições financeiras da requerente, mas o extensíssimo articulado subsequente apresentado pela requerente é, para além do mais (por exemplo: continua a confundir a data da separação com a data do divórcio; diz que a situação se alterou por já não ter os rendimentos do ex-marido, mas isso já se verificava desde a separação em 2014 e não se alterou com o divórcio em 2016; reconhece que não houve alteração substancial, mas nem sequer refere uma alteração não substancial, e a referência à diminuição de rendimentos por inexistência dos duodécimos só se está a referir a uma diminuição mensal, não a uma diminuição real anual) revelador de que não houve qualquer alteração dessas condições. É tão evidente que é assim que os próprios factos provados sobre tal matéria na sentença recorrida, não espelham qualquer alteração, o que é reconhecido na sentença recorrida, e nem sequer consignam a declaração de rendimento da requerente relativamente a 2016 (data do acordo que se pretende alterar, elemento essencial para a comparação) apesar de ela ter sido junta naquele articulado e ter relevo para uma eventual comparação, o que demonstra a inequívoca desvalorização pela própria sentença desta eventual alteração.

              Assim, em suma, própria sentença apenas refere uma circunstância superveniente, mas, por ser manifestamente insuficiente, apresenta-a como se fossem duas: o decurso do tempo e o crescimento da menor. Mas o crescimento da menor é apenas o aspecto subjectivo do decurso do tempo: o tempo passou e por isso a menor cresceu. Não se tratam de duas circunstâncias supervenientes, mas apenas de uma.

              O decurso do tempo verifica-se sempre, pelo que, só por si, nunca pode ser suficiente para preencher a previsão da alteração de circunstâncias que vai permitir a alteração do decidido. Os pressupostos transcritos por Nuno Salter Cid e por toda a jurisprudência subsequente, não podem obviamente ficar preenchidos só com o decurso do tempo, senão seriam uma pura inutilidade.

              A mãe, para dizer que o decurso do tempo é relevante, vai buscar o ac. do TRC de 24/10/2017, processo 273/13.9TBCTB-A.C1. Mas o acórdão não diz que o decurso do tempo seja uma circunstância superveniente, mas sim que o decurso do tempo pode alterar, só por si, as circunstâncias factuais. E depois diz que a mera passagem do tempo pode ser relevante para efeitos de alterar uma decisão, mas não diz que seja suficiente para o efeito. Relevante não é o mesmo que suficiente. E se se ler o referido acórdão, vê-se que o mesmo se preocupa em demonstrar, para efeitos que são diferentes do caso [estava em causa uma questão de residência alternada], a alteração de circunstâncias decorrentes do decurso do tempo.

              No mesmo sentido, Isabel Alexandre (obra citada, páginas 144/145) lembra que um autor espanhol assinala que, “em vários sistemas jurídicos, a modificação não aparece prevista apenas em situações em que tenham surgido factos novos que tornem aconselhável uma adaptação”, isto é, “é possível que tal modificação tenha lugar sem a concomitante ocorrência de factos novos, ou seja, que se funde no mero decurso do tempo, sempre que tal seja necessário para salvaguardar os interesses objecto de protecção.” Mas a autora logo diz que “não é esta, porém, a solução do direito português vigente, no campo da jurisdição voluntária. A modificação exige sempre a superveniência de uma circunstância, nomeadamente de um facto, ainda que essa superveniência seja subjectiva (ou equiparada): excepto apenas, ao que parece, em matéria de regulação do poder paternal […].”

              Porque, como se disse, o decurso do tempo era manifestamente insuficiente, a sentença recorrida, para além de o subdividir, mais que triplica o intervalo que está em causa: diz que o decurso do tempo tem a duração de 4 anos: dos 7 anos aos 11 anos.

              A artificialidade da construção fica patente com o facto de ter sido apresentada com duas versões diferentes: a mãe fala de um intervalo entre os 3 anos (data do divórcio dos pais [que já se viu não ser esta – TRL]) e os 9 anos (idade actual da Inês) – = 6 anos – e o tribunal fala de um intervalo dos 7 aos 11 anos – = 4 anos.

              Mas não foram 6 anos nem 4 anos, foi apenas um intervalo de menos de 16 meses: o acordo de divórcio e de atribuição de casa foi homologado a 14/11/2016 (tinha a criança 7 anos) e o pedido de alteração foi apresentado a 05/03/2018 (tinha a criança pouco mais de 8 anos).

              Com efeito, o que interessa, logicamente, são aqueles dois momentos, pois que do que se trata é de comparar a situação que se verifica no momento em que o pedido de alteração é feito e a situação que se verificava no momento em que o acordo foi alcançado. Quando se faz um pedido de alteração porque a situação se alterou, está-se a dizer que a situação já está alterada, não que ela se vai alterar e o que importa, para a procedência de um pedido, é saber se era verdade que, no momento em que ele foi feito, a situação se alterou. A requerente não faz o pedido – nem seria natural que o fizesse para mais num simples incidente que é suposto ser célere e não durar mais do que uns poucos de meses – de que seja alterada a atribuição da casa de morada da família porque, daí a três anos, a situação estará alterada.

              Há muito que se defende que os direitos que as partes pretendem ver reconhecidos em tribunal têm que ter os seus pressupostos preenchidos na data da propositura de uma acção. Ou seja, ninguém pode meter uma acção e esperar que os factos constitutivos do seu direito se venham a verificar no decurso da acção (como se a demora processual fosse um facto constitutivo do direito: neste sentido, ac. do STJ de 30/04/1997, BMJ 466, páginas 472 e seg, lembrado por Nuno de Salter Cid, Desentendimentos conjugais e divergências jurisprudenciais, Lex Familiae, RPDF, ano 4, n.º 7, 2007).

              Assim, por exemplo, a maior e melhor parte da doutrina e da jurisprudência sempre defendeu que não se podia intentar uma acção de divórcio litigioso baseada na separação de facto por mais de um ano, sem que esse prazo de um ano já estivesse verificado na data da propositura da acção (hoje a questão põe-se em relação ao divórcio sem consentimento, por separação de facto por mais de um ano: arts. 1781/-a e 1782, ambos do CC).

              [neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa: “esse prazo (…) deve estar completamente decorrido à data da propositura da acção de divórcio, porque sem o decurso daquele prazo a separação de facto não pode ser invocada como causa do divórcio (ac. RP de 11/10/1979, BMJ 291, pág. 538)” (O Regime Jurídico do Divórcio, Almedina, 1991, pág. 84); Abel Pereira Delgado, O Divórcio, Petrony, 1980, pág. 69 (é um prazo de carácter substantivo, pelo que há-de verificar-se à data do pedido => acórdão do STJ de 1/3/1979, publicado no BMJ. 285/324); Pais do Amaral, Do Casamento ao Divórcio, Cosmos, Direito, 1997, pág. 96 (: o prazo deve estar completo no momento da propositura da acção, por se tratar de um elemento constitutivo do direito ao divórcio); Ferreira Pinto, Causas do Divórcio, Almedina, 1980, pág. 122; Acórdão do STJ de 24/10/2006, proc. 06B2898; Rute Teixeira Pedro, anotação 4 ao art. 1781, no CC anotado citado, pág. 682; e, principalmente, Nuno de Salter Cid, estudo citado, págs. 18 a 23, que desenvolve a questão e relembra muitos autores e artigos que vão todos neste sentido, indicando e criticando acórdãos que vão em sentido contrário, bem como o aproveitamento incorrecto que eles faziam do então art. 663 [agora 611] do CPC, também neste ponto com várias indicações de doutrina no mesmo sentido; bem como, entre muitos outros, os acórdãos do TRL de 15/05/2012, proc. 9139/09.6TCLRS.L1-7; de 22/10/2013, proc. 16/11.1TBHRT.L1-7; de 17/12/2015, proc. 425/13.1TMLSB.L1-2; e de 10/05/2018, proc. 29812/15.9T8LSB.L1-2]

              Mas, mesmo que, a benefício da discussão, se admita a contagem do tempo até à sentença, e portanto que o intervalo seja de 4 anos, mesmo assim, trata-se apenas e sempre do decurso do tempo; para haver algo mais do que isso – isto é, uma eventual alteração de circunstâncias decorrentes deste lapso de tempo – esse algo teria de ser alegado num articulado superveniente para poder ser legitimamente considerado (artigos 588 e 611 do CPC).

              De qualquer modo, e considerando-se então – a benefício da discussão – a alteração invocada pela mãe, e isso até à data da decisão recorrida, trata-se de saber, numa das variadas versões alegadas pela requerente [(i\ no dia 14/11/2016, fizeram o acordo em causa, ficando subjacente a ideia, entre requerente e requerido, que o ideal seria resolver definitivamente todas as questões; ii\ o acordo em causa foi alcançado tendo como pressuposto base que a situação se resolvesse com alguma brevidade, para que, num curto espaço de tempo, a requerente pudesse procurar outra habitação quer para si, quer para a sua filha; iii\ não tendo sido possível chegar-se a um acordo – como parecia, de facto, ser a intenção de ambos na data da dissolução conjugal; iv\ era intenção de ambos, enquanto casal, que o imóvel permanecesse no património dos ex-cônjuges para, mais tarde, passar a pertencer à filha do ex-casal; v\ a requerente na data do divórcio só acordou que a casa de morada de família fosse atribuída ao ex-marido porque considerava que seria uma situação passageira, querendo ambos resolver definitivamente a questão da propriedade do imóvel)], algumas contraditórias [a requerente, por exemplo, diz, numa delas, que nunca pretenderam vender a casa de morada, mas a hipótese da venda é uma das duas expressamente previstas no acordo – ponto 11 dos factos provados – e por isso está implícita nas outras versões que assim contraria], se a conjugação dos factos provados sob 11 e 19 – isto é: a casa de morada de família foi atribuída ao requerido, até à venda ou partilha, na perspectiva, implicitamente da requerente e do requerido, de que a situação se resolveria com brevidade, com a sua venda ou a partilha – com o facto de, passados 4 anos a situação ainda não estar resolvida, continuando por isso, a filha, a partilhar com a mãe um quarto na casa dos avós maternos, como já acontecia desde a separação (2014) e do divórcio (2016), é suficiente para permitir a alteração do acordo homologado.

              Ora isto, como se vê, é apenas o prolongamento no tempo de uma situação existente, não uma alteração de circunstâncias. E, para mais, o termo da situação dependia e continua a depender de qualquer dos ex-cônjuges, pelo que, não pode ser porque a requerente não quer pôr termo à situação nos termos previstos no acordo (venda ou partilha), querendo antes alterar um acordo com o qual já não concorda, que poderá justificar a alteração do acordo.

              Dito de outro modo: nem a possibilidade de terminar com brevidade a situação se alterou, pois que ela não deixou de ser possível nos mesmos termos: basta que um dos ex-cônjuges o queira fazer; por exemplo, requerendo o inventário para partilha; facto de que aliás o tribunal recorrido e a requerente têm consciência, pois que o primeiro tentou saber porque é que a requerente ainda não tinha requerido o inventário, e a segunda veio justificar-se, mas invocando para tal uma razão sem sentido: os custos de um processo de inventário – que não procurou minimamente concretizar -, pois que, para além de também para os processos de inventário ser possível requerer apoio judiciário, o património comum do ex-casal não tem um valor significativo (já que ao valor da casa há que descontar o passivo do empréstimo) e as custas daquele não serão superiores, por exemplo, às deste processo.

              Tendo em conta tudo isto, até se pode dizer que, do que se trata é da pretensão da requerente alterar um acordo, com base no seu incumprimento, incumprimento imputável indistintamente aos dois ex-cônjuges; ora a requerente não pode, por um lado, faltar ao cumprimento do acordado que levaria à cessação da situação, porque já não quer essa cessação (nem a partilha nem a venda previstas) e, ao mesmo tempo, invocar esse incumprimento para levar à alteração do acordado.

                                                                 *

              Em suma, a alteração invocada pela requerente não é suficiente para se traduzir uma alteração de circunstâncias supervenientes que permita a alteração do acordo entre os cônjuges quanto à atribuição da casa de morada de família.                  

              E isto tanto vale para o pedido principal como para o pedido subsidiário, pois que este, já estando transitado em julgado o indeferimento da questão levantada do erro na forma do processo, não pode ser tomado senão como “[um pedido] de uma alteração desse acordo”.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a sentença recorrida e em sua substituição julga-se improcedente o pedido de alteração do acordo homologado por sentença transitada em julgado.

              Custas, na vertente de custas de parte, pela requerente (por ser ela que perde o recurso).

              Lisboa, 15/04/2021

              Pedro Martins

              1.ª Adjunta

              2.ª Adjunta, vencida, nos termos da declaração que segue:

              Votei vencida, por considerar que devia ter sido negado provimento ao recurso.

              Em face das conclusões da alegação de recurso (que delimitam o objeto do mesmo, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), colocam-se apenas as duas questões referidas no acórdão:

              1.ª) Se deve ser alterada a decisão da matéria de facto;

              2.ª) Se não devia ter sido alterada a atribuição do uso da casa de morada de família.

              Quanto à primeira, concordo que a impugnação dos pontos de facto deduzida pelo Requerido improcede. A minha discordância respeita apenas à resposta dada, no acórdão, à 2.ª questão. O Apelante não se insurge contra o conteúdo do novo regime fixado na sentença recorrida, mas apenas defende que o regime inicialmente fixado, por acordo homologado mediante sentença transitada em julgado, não podia ter sido alterado porque não existiam circunstâncias supervenientes que o consentissem.

              No acórdão entendeu-se que uma alteração seria, em tese, possível contanto existissem circunstâncias supervenientes que a justificassem, nos termos do art. 988.º do CPC, o que também me parece inequívoco: o regime cuja alteração foi requerida foi fixado, por acordo das partes, num processo de jurisdição voluntária (divórcio por mútuo consentimento, por convolação do divórcio sem consentimento), podendo ser alterado “com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso”. Não acompanho, todavia, a posição, adotada no acórdão, de que, no caso concreto, “a alteração invocada pela requerente não é suficiente para se traduzir uma alteração de circunstâncias supervenientes que permita a alteração do acordo entre os cônjuges quanto à atribuição da casa de morada de família”.

              Nos presentes autos, a Requerente veio pedir a alteração do regime acordado, e, para tanto, invocou razões de ordem financeira e familiar: em síntese, o facto de o acordo alcançado ter sido perspetivado para vigorar durante breve trecho, até se resolver a situação do imóvel, o que permitiria àquela procurar outra habitação para si e para a filha, sendo que, entretanto, a filha cresceu e precisa de um quarto próprio, o que é importante para o seu processo de individualização, não tendo a Requerente capacidade financeira para pagar uma outra habitação.

              Na sua alegação de resposta, a Requerente invocou, além do mais, o acórdão da Relação de Coimbra de 24-10-2017, processo n.º 273/13.9TBCTB-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt; embora tenha sido proferido no âmbito de processo tutelar cível, lembra-se neste acórdão, com pertinência para o caso, que: “Em sede de relações familiares, o decurso do tempo pode alterar, só por si, as circunstâncias factuais, mormente quando se trata de crianças na primeira infância, pois estas crescem de modo acelerado, física e espiritualmente, à medida que o tempo passa nesses primeiros anos de vida. Por isso, a mera passagem do tempo pode ser relevante para efeitos de alterar uma decisão. O tribunal poderá tomar medidas diversas, quanto à mesma criança e à mesma questão, consoante ela seja recém-nascida (ou tenha um ou dois anos) ou tenha 5, 6 ou 7 anos. E o decurso do tempo também pode alterar as posturas comportamentais dos progenitores em relação aos filhos ou ao outro progenitor, porque o decurso do tempo tende a diluir os ressentimentos e a promover a tolerância e a compreensão das atitudes alheias, mormente quando anteriormente não se dispunha de informação suficiente que só o tempo trouxe.”

              Tal como se descreve neste acórdão, o caso dos autos ilustra bem as repercussões do tempo na dinâmica do agregado familiar, em particular no tocante às necessidades habitacionais. De salientar que a fração autónoma em apreço é uma habitação com a tipologia T2 (cf. doc. 1 junto com a Petição Inicial). Na altura do aludido acordo, a filha do ex-casal, tinha cerca de 7 anos, estava ainda na infância, pelo que viver em casa dos avós e partilhar o quarto com a mãe, embora não fosse seguramente ideal, até podia ser aceitável. Entretanto, a filha cresceu, já vai fazer 12 anos, já entrou (ou está, pelo menos, prestes a entrar) na adolescência, numa idade em que é, sem dúvida, da maior relevância para o seu salutar desenvolvimento (a nível, emocional e psíquico, da aprendizagem e autonomia), deixar de partilhar o quarto com a mãe, com quem, também por acordo das partes, ficou a residir. Está inclusivamente provado que a própria filha tem verbalizado essa vontade.

              Ademais, a partilha ou venda não foi obtida com a brevidade que se perspetivava (cf. pontos 8 e 19), pelo que deixou de se verificar essa previsão de resolução a curto prazo de todas as questões relacionadas com o divórcio. Não se diga que os progenitores sabiam que a filha ia crescer, pelo que o acordo se deve manter apesar desse crescimento. Na verdade, o que as partes pensavam era que, nessa altura, quando a filha do casal fosse mais crescida, a situação da partilha ou venda da casa já estaria resolvida, perspetiva que deixou de existir.

              Portanto, em face da situação atual, tal como vem descrita nos factos provados, e tendo em atenção a ratio das normas que regem sobre o destino da casa de morada de família (abundantemente tratada pela doutrina e jurisprudência citadas no acórdão, acrescentando-se apenas, pelo seu interesse, o artigo de Sandra Passinhas, “A ATRIBUIÇÃO DO USO DA CASA DE MORADA DA FAMÍLIA NOS CASOS DE DIVÓRCIO EM PORTUGAL: CONTRIBUTO PARA UM “AGGIORNAMENTO” INTERPRETATIVO”, in “Actualidad Jurídica Iberoamericana”, núm. 3 bis, noviembre 2015, pp. 165 – 191, disponível online), considero que se encontra verificada a previsão do n.º 1 do art. 988.º do CPC, sendo admissível a alteração do regime fixado por acordo homologado por sentença transitada em julgado.

              2.ª Adjunta