Processo do Juízo Local Cível de Lisboa

              Sumário:

              I – A partilha de uma herança de um cônjuge, não é a mesma coisa que a partilha do património comum de que procedeu essa herança.

              II – Requerida apenas a partilha de uma herança de um cônjuge, não se pode estar a partilhar os bens do património comum de que procedeu aquela herança.

              III – Um testamento de 2006 que atribui, como se fosse o primeiro, a quota disponível da herança a uma pessoa, revoga tacitamente (art. 2313/1 do Código Civil), por incompatibilidade material, um testamento anterior, de 1966, que atribuía essa quota disponível a uma outra pessoa, pois que a totalidade de uma coisa não pode ser atribuída a duas pessoas diferentes.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              AP, divorciada, requereu que se procedesse a inventário visando a partilha da herança de MA.

              Alegou para tanto que:

         1. Em 05/05/1982, faleceu sem ter feito testamento ou última disposição de última vontade, AG, no estado de casado no regime da comunhão geral de bens com MA.

          2. Deixou como únicos e universais herdeiros: a viúva e [o único] filho [de ambos], JA, ao tempo casado com MG, sob o regime da comunhão de adquiridos [entre parenteses colocaram-se expressões que decorrem dos documentos invocados – TRL].

          3. Em 10/08/2006, faleceu este filho, sem testamento ou disposição de última vontade, no estado de divorciado, deixando como únicos herdeiros, seus filhos: a ora requerente, divorciada, e LF, solteiro, maior.

          4. Em 04/12/2017, faleceu a inventariada, no estado de viúva de AG.

       5. Fez dois testamentos, um, no dia 12/05/1966, pelo qual institui herdeiro da sua quota disponível, seu filho [consta: “que faz o seu testamento e disposição de última vontade pela forma seguinte: institui herdeiro da quota disponível de todos os seus bens, direitos e acções, seu filho, com ela convivente, desejando, todavia, que na mesma quota disponível fiquem compreendidos todas as jóias e todos os demais bens de uso pessoal dela testadora”], e o outro, no dia 22/12/2006, no qual institui como herdeiro da sua quota disponível, EC [consta: “que institui EC herdeiro da quota disponível da sua herança. Que dá assim por concluído o seu testamento, que é o primeiro que faz.”] [as partes entre parenteses foram colocadas por este tribunal da relação, reproduzindo as partes relevantes de tais testamentos, invocadas pelo interessado EC].

       6. Conforme relação anexa, a herança da inventariada, por não ter sido feita a partilha emergente do óbito de AG, compreende a respectiva meação nos bens do respectivo casal, bem como o quinhão hereditário na respectiva herança.

                 Deu à acção o valor de 323.985,66€.

         Juntou escrituras de habilitação de herdeiros e assentos de nascimento e de óbito, resultando destes documentos o que consta dos pontos 1, 2, 3 e 4, e juntou os dois testamentos que comprovam o que consta de 5.

                 Apresentou procuração e compromisso de honra relativo a inventário por óbito da inventariada.

                 Apresentou também relação de bens que consta da seguinte

                       “VERBA ÚNICA

                       DIREITO

         Direito à meação e ao quinhão hereditário nos bens do casal formado por AG e MA e que integram os seguintes bens imóveis:

        a) Prédio urbano sito na Travessa S, descrito na Conservatória do Registo Predial de L sob o n° 0000 da freguesia de B e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 000 da freguesia de S, com o valor patrimonial de 298.769,55€; [que é igual ao valor patrimonial constante da matriz – parenteses colocado por este TRL].

        b) Prédio urbano situado em N, descrito na Conservatória do Registo Predial de C sob o n° 1111 da freguesia de N e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 111 da freguesia de N, com o valor patrimonial de 25.216,11€. [que é igual ao valor patrimonial constante da matriz – parenteses colocado por este TRL].

         – pelo que se atribui ao direito relacionado o valor de 323.985,66€.

              No despacho saneador de 14/09/2020, consta a seguinte parte inicial: “Fixo o valor da presente causa em 323.985,66€ […], considerada a soma do valor dos bens a partilhar.” E a seguinte parte final: “Da notificação para proposta de forma à partilha: “[…] dê cumprimento ao disposto no artigo 1110/1-b do CPC.”

              Na sequência, os netos (requerente e irmão [que entretanto também passou procuração ao advogado da sua irmã]) fizeram a seguinte proposta de forma à partilha:

         Sucederam à inventariada, como herdeiros legitimários, os seus netos, em representação de seu pré falecido filho – art. 2042 do CC.

         Sucederam-lhe, também: os seus mesmos netos, em representação (art. 2041/1 do CC) do referido filho, como herdeiro testamentário (1.º testamento); e EC, como herdeiro testamentário (2.º testamento).

         Considerando que a inventariada faleceu no estado de viúva, a legítima que correspondia à do seu pré falecido filho e agora aos seus representantes, aqui requerentes, é de metade da herança – art. 2159/2 do CC.

      A outra metade corresponde à quota disponível, na qual concorrem os netos (1.º testamento) e EC (2.º testamento).

          Sendo assim, as quotas ideais de cada interessado são as seguintes:

         – neta: 3/8 (2/8 correspondentes à quota legitimária e 1/8 correspondente à parte testamentária);

         – neto: 3/8 (2/8 correspondentes à quota legitimária e 1/8 correspondente à parte testamentária); e

                – EC: 2/8 (= 1/4) correspondente à parte testamentária.

              O beneficiário do 2.º testamento, por sua vez, fez a seguinte proposta de forma à partilha:

         A de cujus casou com AG no regime da comunhão geral de bens.

         Em 05/05/1982 faleceu AG, sem ter feito testamento, pelo que foram seus herdeiros o único filho do casal e a referida mulher.

         Os bens que ficaram por óbito de AG são os mesmos que são objecto da presente acção. Nos termos da legislação então em vigor a de cujus era proprietária da meação conjugal em tais bens e herdou metade da meação do marido, sendo a outra metade herdada por seu referido filho.

         A de cujus fez testamento a favor do seu filho, mas este faleceu em 10/08/2006 e os respectivos filhos (AP e LF), netos da de cujus, votaram a avó a um abandono total, que esta muito sentiu, pelo que fez testamento (que está junto aos autos) instituindo o interessado ora requerente herdeiro da quota disponível da sua herança.

         Em tal testamento, a de cujus declarou que o mesmo era o primeiro que fazia, o que, não sendo verdade, permite entender, sem margem para dúvidas, qual era o pensamento e a vontade da testadora — morto o filho querido, para a de cujus o primeiro testamento tinha deixado de existir e pretendia instituir o interessado ora requerente herdeiro da quota disponível da sua herança.

         Manifestamente a de cujus só não deserdou os netos que a haviam abandonado totalmente porque não podia, dado tratar-se de herdeiros legitimários. Não há outra interpretação possível.

         Tendo um único filho a sua quota disponível é metade da herança.

         Assim sendo, reduzindo matematicamente a totalidade da herança a oitavos por ser um possível denominador comum, os interessados neste inventário têm as seguintes participações:

a) a neta 1/8 herdados de seu pai e 1/8,5 provenientes da quota indisponível de sua avó;

b) o neto 1/8 herdados de seu pai e 1/8,5 provenientes da quota indisponível de sua avó; e

c) o beneficiário 3/8 dos bens que correspondem à quota disponível de cujus.

              Depois, na mesma peça processual, este interessado ainda diz, entre o mais: “sucede que a herança em questão é constituída por dois prédios […] Pelo exposto, deve ser ordenada a constituição em propriedade horizontal do prédio […]” e ainda requer avaliação dos bens [isto é, dos prédios].

              No despacho determinativo da forma à partilha, de 03/02/2021, diz-se:

         Procede-se a inventário em consequência do óbito de MA, falecida em 04/12/2017.

         A inventariada era viúva à data da sua morte.

         A inventariada lavrou, em 22/12/2006, um testamento através do qual instituiu como herdeiro da quota disponível da sua herança o interessado EC.

         Neste particular se consigna que, ao abrigo do disposto no artigo 2313/1 do Código Civil, foi tacitamente revogado o testamento outrossim lavrado pela inventariada, em 12/05/1966, através do qual havia instituído como herdeiro da quota disponível de todos os seus bens, direitos e acções o filho pré-falecido (10/08/2006). Mais se consigna que não tem aplicação o artigo 2317/1-a do CC, justamente pela sua parte final.

         A inventariada não fez doações ou outra disposição de última vontade.

         A inventariada deixou como herdeiros, à data da sua morte (tempo da abertura da sucessão), os seus netos, filhos do seu filho pré-falecido.

         O acervo hereditário é constituído por verba única e não foi relacionado passivo.

         Ora, atento o exposto e a previsão dos artigos 2179 e seguintes e 2131, a contrario senso, 2159/2, 2160, 2162, 2042 e 2044/1, todos do CC, a partilha da herança da inventariada dever-se-á organizar pelo seguinte modo, assim se definindo as quotas ideais dos interessados.

         Primeiramente, ter-se-á em consideração o valor da verba única, inexistindo passivo a subtrair.

         Após, dividir-se-á tal valor por dois, assim se achando a quota disponível e a quota indisponível. A metade correspondente à quota disponível caberá na íntegra ao herdeiro testamentário. A metade correspondente à quota indisponível dividir-se-á por dois, assim se achando a legítima de cada um dos herdeiros legitimários.

              Depois, ainda na mesma peça processual, dá-se notícia do requerimento do interessado EC, diz-se que é possível a constituição de propriedade horizontal por decisão judicial no processo de inventário, mas é necessário que se verifiquem os requisitos exigidos pelo artigo 1415 do CC, o que não foi feito por ele, sendo então convidado a fazê-lo, para além de dizer porque é que não aceita o valor que é atribuído aos prédios […].

                                                                 *

              Os interessados AP e LF recorrem do despacho determinativo da forma à partilha, com as seguintes alegações:

         A decisão recorrida entendeu que o testamento lavrado pela inventariada em 12/05/1966 foi tacitamente revogado pelo testamento outorgado em 22/12/2006.

         No 1.º testamento, a inventariada instituiu herdeiro da quota disponível de todos os seus bens, direitos e acções, o seu filho.

         Pelo 2º testamento, instituiu EC como herdeiro da quota disponível da sua herança.

         Ao considerar que este testamento revogara tacitamente o anterior, a decisão recorrida fundou-se no art. 2313/1 do CC o qual dispõe que “o testamento posterior que não revogue expressamente o anterior, revogá-lo-á apenas na parte em que for com ele incompatível”.

         O 2.º testamento não revogou expressamente o 1.º

         E contrariamente ao que resulta da decisão recorrida que, aliás, se limitou à invocação genérica do citado art. 2313/1 do CC, não há incompatibilidade entre eles.

         Em ambos os testamentos a inventariada fez deixa da quota disponível dos seus bens. Nada existe na lei no sentido de que a quota disponível não possa ser deixada a várias pessoas.

         A incompatibilidade entre dois testamentos que traduz uma revogação tácita do anterior existe quando duas disposições testamentárias conflituam entre si, na medida em que o cumprimento de uma impede o cumprimento, total ou parcial, da outra – ac. do TRP de 17/09/2001, proc. 0150385.

         A revogação tácita, por não assentar no propósito directo do testador de eliminar o testamento anterior, tem que resultar da contradição ou incompatibilidade existente entre as declarações que produziu num e noutro testamento – ac. do TRP de 17/09/2001, proc. 35/2001.

         A revogação tácita de testamento apenas poderá decorrer do preceituado no art. 2313 do CC, não podendo considerar-se revogado um testamento por outro quando isso não resulte do seu texto, ainda que de forma imperfeitamente expressa – ac. do TRL de 11/05/2004, proc. 2478/2004-7.

         No 2.º testamento a inventariada não declarou revogar o 1.º testamento.

         E entre ambos não existe incompatibilidade porquanto é possível o cumprimento de ambas as deixas da quota disponível deles constantes.

         Não poderá, consequentemente, manter-se o decidido no despacho recorrido de que o 2.º testamento revogou o 1.º

              O interessado EC não contra-alegou.

                                                                 *

              Questão que importa decidir: qual a forma à partilha correcta.

                                                                 *

              Factos que interessam à decisão desta questão: os constantes da decisão recorrida, antes da forma à partilha, mais concretizados no requerimento inicial, tudo devidamente documentado e não impugnado, e o conteúdo dos dois testamentos que, na parte que importa, já foi transcrito, no relatório deste acórdão.

                                                                 *

              Decidindo:

              A questão levantada pelos dois netos da inventariada não se pode limitar a saber se o 2.º testamento revogou ou não o primeiro. Essa é apenas uma parte de um despacho determinativo da forma à partilha.

              Desde logo, para se saber qual a quota disponível, objecto do testamento em causa, tem que se saber sobre o que é que ela recai, e os interessados e o tribunal, apesar de não ser visível logo de imediato, não estão de acordo sobre isso, pelo que o apuramento da quota disponível a que chegaram é diferente.

              Posto isto,

              Antes de mais, note-se que o requerimento é de um inventário para partilha da herança da inventariada. Só e apenas.

              Consequentemente, a cabeça-de-casal não arrolou os dois imóveis como bens da herança, mas apenas o direito da inventariada à meação no património do qual eles fazem parte e à herança do outro cônjuge pré-falecido. E a forma à partilha que propõe refere-se apenas à inventariada, à herança desta e aos seus herdeiros. E o mesmo faz a decisão da forma à partilha.

              Portanto, não haveria dúvidas de que o inventário é para partilha apenas da herança da inventariada MA.

              Só que esta herança, como resulta dos factos provados, ainda não está concretizada em bens concretos. É composta, para já, apenas por dois direitos, embora descritos pela requerente como um só: o direito da inventariada à meação no património comum do casal que foi formado por si e pelo seu marido e o quinhão dela na herança/meação do seu marido. Isto é assim, repete-se, apesar desses dois direitos estarem descritos como um só pela requerente do inventário na relação de bens.

              Ora, os direitos em causa estão reportados a um património comum de um casal. E como ainda não estão concretizados, não se poderia dizer que eles recaem sobre os dois imóveis que compõem esse património comum. Só que dessa relação também consta o valor desses dois imóveis e a requerente do inventário e cabeça-de-casal deu ao inventário o valor da soma dos dois imóveis. E o mesmo fez o tribunal recorrido.

              Pelo que, se até então tínhamos que a requerente dizia que a herança da inventariada era composta pelo direito à meação e ao quinhão hereditário relativos a um património comum ainda não partilhado, ou seja, dizia respeito apenas a parte de um património, ao dar o valor a esse direito, diz que ele é igual à soma dos dois imóveis que compõem esse património, o que são duas coisas completamente diferentes.

              Ou seja, por um lado está a afirmar que o direito é a uma parte desse património comum e por outro lado está a dizer que o direito é ao todo do património comum. E o tribunal recorrido também entende implicitamente que está a partilhar o património comum (dado que o valor que deu ao processo corresponde à soma dos dois prédios). O que poderá determinar, por exemplo, que o tribunal tome decisões sobre os dois imóveis como se eles fossem o objecto da partilha [como está indiciado que pode vir a acontecer dada a parte final da peça de 03/02/2021] e que seja comunicado ao registo predial a sentença como se ela dissesse respeito a esses dois imóveis e, ainda por cima, na íntegra. 

              Ora, isto não pode ser assim, porque é contraditório.

              Quando A e B se casam num regime de comunhão de bens e depois adquirem bens, dão origem a um património comum de que são contitulares. Contitulares do património comum e não de cada um dos bens. Assim, se adquiriram dois prédios com o valor global de 324.000, por exemplo, eles são contitulares desse património, com esse valor, e não de metade, cada um deles, de cada um dos imóveis.

              Quando o casamento se dissolve, por óbito de um deles, o património comum tem de ser partilhado, por igual, ficando uma metade para o sobrevivente, como sua meação, e a outra metade é a meação/herança do outro (art. 1689/1 do CC), que, depois, tem de ser dividida para ser partilhada entre os seus herdeiros, sendo um deles o outro cônjuge e, no caso, também o filho (C) (art. 2157 do CC).

              Assim, se, por exemplo não houver testamento, metade do património comum é a meação de B [art. 1689/1 do CC] e a outra metade é a meação/herança de A, que terá de ser repartida por B e C em partes iguais [arts. 2131 a 2139 do CC]. Pelo que B receberá ½ de meação + ¼ (= ½ de ½) de quinhão hereditário, isto é, ¾, e C receberá ½ de ½, ou seja, ¼.

              Assim, os direitos à meação e ao quinhão hereditário, quando há mais do que um herdeiro, nunca podem ser iguais ao património comum (ou seja, se este for composto de 2 prédios, os direitos à meação e ao quinhão hereditário nunca podem ser iguais à soma do valor dos dois prédios).

              Por isto ser assim, nunca se viu proceder à partilha da herança de um cônjuge sem antes se partilhar o património comum; o que é feito de forma a apurar-se a meação/herança de cada um dos cônjuges. Isto é, o inventário por óbito do 2.º cônjuge a falecer é uma dependência da partilha do património comum (art. 1094/1-b-c do CPC). E, por isso, costuma proceder-se a uma cumulação de inventários dos dois cônjuges, o que, como se viu, está previsto e permitido por lei.

              Mas, sendo permitido por lei, quer dizer que não é obrigatório e se a cumulação não foi requerida o juiz não pode cumular os dois inventários, pois só foi requerido um.

              Assim, há que aceitar que, tal como requerido, só se está a proceder à partilha da herança da inventariada.

              Mas, se é assim, então há que deixar claro que o que se está a partilhar é a herança da inventariada, composta pelos direitos dela à meação no património comum e ao quinhão na herança do seu marido falecido, e não pelos dois imóveis que estão descritos como fazendo parte daquele património comum.

              É necessário esclarecer isto tudo porque a forma como a requerente do inventário pôs as coisas, parcialmente acompanhada pelo tribunal ao dar ao inventário o valor da soma dos dois imóveis, deu a ideia de que se estava a partilhar os dois imóveis e, por isso, a partilhar o património comum do casal da inventariada e marido, como é costume acontecer, para resolver definitivamente as coisas.

              E foi isso que o interessado EC pensou que fosse o objecto do inventário. Daí que a forma à partilha que ele sugere respeite a todo o património comum e à subsequente herança dos dois cônjuges falecidos (AG e MA).

                                                                 *

              Posto isto, sendo o objecto deste processo apenas a partilha da herança da inventariada e sendo esta composta apenas pelos dois referidos direitos, não estando ainda concretizada em bens, é apenas como tal que pode ser partilhada, sendo que o tribunal não se pode pronunciar a título definitivo quanto à forma da partilha do património comum e da herança de AG que não são objecto deste inventário, como o pretendeu fazer o interessado EC.

              Mas tem de o fazer a título de questão prejudicial e com efeitos limitados a este processo (artigo 91 do CPC), pois que senão nem sequer poderá dizer qual a parte que caberá à inventariada naquele património comum, nem se saberá qual o valor do processo, nem o valor da parte de cada um dos interessados na herança.

              Assim, com os factos que estão provados, o valor a partilhar é de ¾ do valor dos dois imóveis que compõem o património comum do casal que era formado pela inventariada e pelo seu pré-falecido marido: metade como meação e um quarto como quinhão na herança do seu ex-marido (já que só havia dois herdeiros: a inventariada e o filho).

              Assim sendo, o valor da soma dos dois prédios divide-se por 4, tendo a herança da inventariada o valor de 3/4, correspondente à meação naquele património e a um quarto como quinhão na herança/meação do seu ex-marido.

                                                                 *

              Esse valor, divide-se por dois (arts. 2156, 2157, 2159/2, 2160, 2140 e 2136 do CC: a legítima de dois netos de um filho é de metade), sendo o valor de uma das metades correspondente a quota indisponível da herança e o valor da outra correspondente à quota disponível da herança.

              O valor da quota indisponível da herança (1/2) divide-se por dois, sendo uma das metades a legítima da neta (= a ¼ da herança) e a outra metade a legítima do neto (= ¼ da herança).

              Quanto à quota disponível (= ½ da herança) coloca-se então a questão dos testamentos.

              Ora, quanto a isto tem inteira razão a decisão recorrida e o interessado EC.

              O 2.º testamento, no qual a inventariada institui como herdeiro da quota disponível da sua herança, EC, como se fosse o primeiro testamento que fez, tem o evidente sentido de lhe atribuir toda a quota disponível da herança.

              Primeiro, porque se está a referir à quota disponível e não a parte dela. Isto é, está-se a referir à mesma quota de que tinha instituído herdeiro o seu filho pelo 1.º testamento.

              Segundo, porque a instituição como herdeiro de apenas metade dessa quota disponível, pressuporia que a inventariada tivesse presente a existência de um outro testamento, em que já tinha destinado a quota disponível ao seu filho, e a intenção de o manter. Mas o que se diz no 2.º testamento é precisamente o contrário, pois que se diz que é o primeiro.

              Ora, a mesma coisa não pode ser atribuída a duas pessoas diferentes.

              Assim, há claramente uma revogação tácita do 1.º testamento, por força do artigo 2313/1 do CC, como o entendeu a decisão recorrida e, sendo tão evidente a incompatibilidade (isto é, por força do art. 2313/1 do CC, a revogação tácita), compreende-se que a decisão recorrida não tenha sentido necessidade de dizer mais nada para além de invocar o artigo 2313/1 do CC.

              Os recorrentes não argumentam para tentar demonstrar o contrário e quanto aos acórdãos que citam [os dois links foram colocados por este TRL] diga-se que o primeiro é um simples sumário com o conteúdo transcrito pelos recorrentes, não sendo possível tirar ilações em sentido contrário desse sumário para o caso concreto; o segundo não é localizável; e a situação do terceiro não tem nada a ver com o caso dos autos: no acórdão desse terceiro caso estava em causa, em síntese, um testamento de 1980, que instituiu a favor de A um legado de metade do direito de propriedade de um prédio, e um testamento de 1989 que instituiu B e C na qualidade de herdeiros.

              Em suma: cada um dos netos tem direito a ¼ do valor da herança; o herdeiro testamentário tem direito a ½ do valor dela.

                                                                 *

              Pelo que a decisão da forma à partilha está correcta, excepto quanto à referência implícita ao valor da herança, que não é igual à soma do valor dos dois prédios (como implicitamente o entende, tal como o deram a entender também os recorrentes), mas é igual a ¾ da soma do valor desses dois prédios.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso é improcedente, mas o valor da verba a partilhar é igual apenas a 3/4 da soma do valor dos dois prédios e não igual à soma do valor dos dois prédios.

              Custas, na vertente de custas de parte, pelos recorrentes (porque perdem o recurso).

              Lisboa, 15/04/2021

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto