AECOP 87345/14.7YIPRT da secção cível de Gondomar

              Sumário:

        Um requerimento de injunção onde a autora invoca um contrato celebrado com o devedor relativo ao fornecimento de bens e prestação de serviços em Junho de 2014, no âmbito da sua actividade comercial, por um certo valor, que estarão referidos numa factura com um número e data certos, para pedir o pagamento desse valor, não pode ser considerado inepto por falta de causa de pedir, mas apenas insuficiente, a impôr um despacho de aperfeiçoamento daquele requerimento depois dos autos serem distribuidos.

                Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

              P-Lda, requereu em 23/06/2014 uma injunção contra RF; nos termos do impresso aprovado pela Portaria 220-A/2008, de 04/03, completou a rubrica ‘contrato de:’ com ‘fornecimento de bens ou serviços’; nas rubricas “data do contrato” e “período a que se refere” escreveu, respectivamente, 06/06/2014 e 06/06/2014 a 23/06/2014; na “exposição dos factos que fundamentam a pretensão” escreveu, na parte que agora interessa: “1. A requerente é uma sociedade comercial que tem como actividade a construção civil. 2. Por conta desta sua actividade comercial, prestou a requerente ao requerido diversos serviços do seu comércio no montante global de 20.000€, conforme decorre da factura n.º FT 2014/4 datada de 06/06/2014.”

              O requerido deduziu oposição, excepcionando a ineptidão da petição inicial.

              Distribuído o processo como acção declarativa devido a esta oposição, foi proferido despacho para que a requerente/autora juntasse em 10 dias procuração forense com ratificação do processado e, depois de esta o ter feito, foi designada data para julgamento, que se iniciou com a pronúncia da autora sobre a excepção deduzida, seguida de imediato por despacho [trata-se de um despacho, não de uma sentença, como resulta do art. 590/3 do CPC] de procedência da excepção, considerando-se que, por ter sido deduzido oposição, “a matéria de facto alegada no requerimento de injunção [não era] bastante para preencher o requisito de individualização da causa de pedir.”

              Fundamentou-se, assim, no essencial, esta conclusão: “[…] a requerente […] nada […] escr[eveu] nos espaços destinados a dizer qual o n.º do contrato, a sua data e o período a que se refere. A alusão à natureza do contrato – fornecimento de bens ou serviços -, não se revela suficiente, por se tratar de mera qualificação jurídica, sem individualização do negócio concreto. No caso em análise, a requerente igualmente não identificou o contrato, não indicou o respectivo número nem a data da sua celebração, não juntou quaisquer facturas emitidas e respectivas datas, limitando-se a dizer que prestou ao requerido diversos serviços do seu comercio e que o preço devido era de 20.000€, desde 06/06/2014, sem que se saiba que serviços foram concretamente prestados, quantos, quais os seus valores e quando e onde foram executados, sendo certo que a menção da data da dívida tanto pode acontecer por se ter celebrado um só negócio nesse dia, como porque o dia mencionado correspondeu ao termo do prazo fixado para o pagamento dos vários serviços. Há, pois, uma manifesta falta de individualização do negócio que constitui a causa de pedir, que se não pode suprir por outros elementos, que não constam, igualmente, dos autos. […] No caso em análise, o contrato não está devidamente individualizado, não podendo o demandado chegar à compreensão daquilo que se invoca como causa de pedir, nem se assegurando, com a parca descrição da prestação de serviços, que fique, no futuro, devidamente definida a eficácia do caso julgado material.”

              A autora vem recorrer deste despacho, apresentando as seguintes conclusões (≈ corpo do recurso), que se transcrevem na parte minimamente útil:

E. Verifica-se que a autora na descrição do seu crédito refere que a dívida cujo pagamento reivindica diz respeito a serviços de construção civil que prestou ao réu conforme decorre da factura FT 2014/4 datada de 06 de Junho de 2014, no valor de €20.000.

F. A autora admite que poderia ter sido mais clara no delinear do fundamento da sua pretensão, esclarecendo quais os serviços prestados em concreto, no entanto, referiu que os mesmos decorrem da factura supra identificada, pelo que não se poderá afirmar que a origem do crédito e a sua definição se encontram totalmente subtraídos da petição inicial.

G. Nem mesmo se poderá, por conseguinte, considerar que o fundamento da acção seja ininteligível, dado que a exposição dos factos não se mostra ambígua nem mesmo confusa.

H. A autora peticiona apenas o pagamento de uma factura, caso diferente seria se estivéssemos perante diversas facturas, sem que as mesmas tivessem sido devidamente identificadas, e se reportassem a serviços de diversas áreas de actuação.

I. No caso em apreço, falamos de uma única factura referente a serviços de construção civil prestados pela autora a favor do réu, suportados pela factura FT 2014/4 datada de 06/06/2014, no valor de 20.000€, pelo que forçoso será de concluir que o núcleo fáctico se encontra identificado no requerimento de injunção em apreço.

J. De outro modo, temos que da própria sentença resulta, não uma causa de pedir inexistente, mas sim uma petição deficiente, pois o que o réu e o tribunal a quo consideram inepto poderia ter sido corrigido, com um aperfeiçoamento do articulado, bem como com a junção de documentos, que fizessem prova da quantia peticionada nos autos e do tipo de serviços prestados.

K. No entanto, o que parece ter sido esquecido é que nos termos e para os efeitos do disposto no Decreto-Lei n.º 269/98 de 01/09 é na audiência de julgamento que são oferecidas as provas, pelo que a autora não tinha que fazer, nem mesmo podia proceder à junção de quaisquer documentos no requerimento injuntivo conforme o tribunal a quo parece considerar.

L. Nestes termos, temos que os condicionalismos do requerimento injuntivo não podem prejudicar a parte que utiliza este procedimento, nomeadamente pela impossibilidade de junção imediata de documentos, sob pena de se comprometer o uso de um meio processual que se quer expedito e célere.

M. Acresce que a junção da factura reclamada nos presentes autos, em sede de audiência de discussão e julgamento, caso surpreendesse o réu, não iria colidir com a sua defesa, dado que sempre lhe seria conferido prazo para a sua apreciação, garantindo-se, nessa medida, oportunidade para reorganizar a sua defesa, caso o réu assim o entendesse.

N. Adicionalmente temos que não se pode deixar passar em claro o facto de o tribunal a quo não ter providenciado, quando findos os articulados e recebidos os autos, pelo aperfeiçoamento do requerimento de injunção, ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 17.º, diploma anexo ao DL 269/98, convidando a autora a juntar a factura peticionada nos autos como complemento essencial desse requerimento e dando nova oportunidade de contraditório ao réu.

O. Aliás, tal correcção sempre poderia ter sido ordenada no despacho proferido a 17/11/2014, o qual determinou a junção aos autos de procuração forense com ratificação do processado ou, mesmo no despacho datado de 02/12/2014, o qual designou o dia 03/02/2015 para a audiência de discussão e julgamento.

P. Evitando-se assim, quer a frustração da expectativa da autora provocada por uma absolvição da instância depois de todo o íter processual percorrido, quer a consequente inutilização de toda a actividade processual desenvolvida nos presentes autos.

Q. Nestes termos sempre deveria ter sido a autora convidada a suprir a eventual insuficiência ou imprecisão da petição apresentada, como aliás preceitua o disposto no art. 590, n.ºs 2 e 4 do CPC.

R. No entanto, o tribunal a quo, optou por apenas no inicio da audiência de discussão e julgamento proferir a presente sentença que se revela de sobremaneira surpresa, dado que nas suas anteriores intervenções, o tribunal em nada fez crer a autora que a sua petição configuraria uma petição inepta, pois caso assim o demonstrasse sempre poderia a autora, nos termos e para os efeitos dos citados preceitos legais corrigir a mesma!

S. Do exposto resulta que a sentença proferida pela Srª juíza a quo, deve ser revogada, devendo ser substituída por uma outra que determine o prosseguimento dos autos, devendo ser a autora convidada a aperfeiçoar a petição inicial constante dos presentes autos nos termos do art. 590, n.ºs 2 e n.º 4, do CPC.

              O réu não contra-alegou.

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            Questão a decidir: se o réu não devia ter sido absolvido da instância devido à excepção da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir; isto é, se o que se verificava era uma causa de pedir insuficiente (ou um articulado deficiente) que devia ter sido objecto de um despacho de aperfeiçoamento.

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              Factos principais (essenciais numa acepção ampla) e factos essenciais numa acepção estrita – falta de causa de pedir e causa de pedir insuficiente

              Nos termos do art. 552/1d) do CPC, “Na petição, com que propõe a acção, deve o autor […] expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir”, isto é, nos termos do art. 581/4 do CPC, o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, ou de modo mais preciso, o conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer (os que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito pretendido: arts. 552/1d, 5/1, 574/1 e 581/4, todos do CPC).

              Todos estes factos são factos principais (os essenciais do art. 5/1 do CPC, entendidos numa acepção ampla) e todos eles integram a causa de pedir; todos eles servem uma função fundamentadora do pedido; a falta de alegação de qualquer deles, se entretanto não for corrigida, dá lugar à absolvição do pedido da parte contrária, por insuficiência da fundamentação de facto do pedido, isto é, por insuficiência duma causa de pedir que se deixou incompleta.

              Mas alguns destes factos principais são factos essenciais (agora numa acepção estrita), isto é, são factos que cumprem a função individualizadora da causa de pedir, são eles que individualizam a pretensão do autor (a causa de pedir é, enquanto cumpre a sua função individualizadora, o núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido – Lebre de Freitas, A acção declarativa, pág. 41; Introdução ao processo civil…, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, págs. 64/72). Se estes factos essenciais estiverem alegados, a causa de pedir está identificada e a petição não pode ser inepta por falta de causa de pedir, embora esta possa estar incompleta se faltarem alguns dos outros factos principais.

              Se faltarem factos essenciais (na acepção estrita), a petição inicial é inepta (art. 186/2a do CPC) e os réus devem ser absolvidos da instância [arts. 278/1b, 577/b) e 595/1a), todos do CPC]. Se faltarem outros factos principais, a petição inicial não é inepta, mas a causa de pedir é insuficiente ou está insuficientemente concretizada; neste caso ela pode e deve ser alvo de um despacho de aperfeiçoamento (art. 590, nºs. 2b e 4 do CPC) destinado a completar a causa de pedir, com a alegação de factos que vão complementar ou concretizar os factos alegados na causa de pedir, ou pode a parte salvar a petição, completando ou concretizando a causa de pedir, por exemplo, manifestando a vontade de se aproveitar do aparecimento, durante a instrução do processo, desses factos (art. 5/2b do CPC).

              Assim, em suma, como diz Lebre de Freitas (Introdução, 2013, págs. 70/71), a função individualizadora da causa de pedir permite verificar se a petição é apta (ou inepta) para suportar o pedido formulado e se há ou não repetição da causa para efeito de caso julgado. Mas não é suficiente para que se tenha por realizada uma outra função da causa de pedir, que é a de fundar o pedido, possibilitando a procedência da acção (o autor desenvolve a questão ainda nas págs. 41/44, 47/48, 143/146, 157, 173, 183, 189 e 308/309 d’ Acção, e nas págs. 48/50, 56, 64/72, 165/169, l82/183 da Introdução; e, antes, também no artigo, mais antigo, Sobre o novo CPC (uma visão de fora), publicado na ROA, 2013/I, principalmente no ponto 5; no mesmo sentido, no essencial, vai a posição de Mariana França Gouveia, no artigo publicado sob o título O Principio do Dispositivo e a Alegação de Factos em Processo Civil, na ROA 2013/II/III, que continua a identificar os factos essenciais com os factos principais, reconduzindo a estes os factos complementares ou concretizadores – principalmente no ponto 5 e nos três primeiros parágrafos do ponto 6; a revista da OA é acessível no sítio da respectiva ordem).

            Perspectiva diferente tem Miguel Teixeira de Sousa que defende que a causa de pedir se limita aos factos essenciais na acepção estrita, correspondente, segundo este professor, aos factos essenciais referidos no art. 5/1 do CPC, pelo que, por outro lado, para este professor não há causas de pedir insuficientes, mas sim articulados deficientes, que têm de ser completados ou concretizados; os factos complementares ou concretizadores posteriormente introduzidos não fazem parte da causa de pedir, pois que esta, para este autor, não é constituída por todos os factos de que pode depender a procedência da acção, mas apenas por aqueles que são necessários para individualizar a pretensão material que o autor quer defender em juízo (Ónus de alegação e de impugnação em processo civil, Scientia Ivridica, nº. 332, págs. 396/397, e também nas entradas no blogo do IPPC de 19/07/2014, sob Factos complementares e causa de pedir, de 21/07/2014, sob Factos complementares e função da causa de pedir, de 14/08/2014, sob O regime da alegação dos factos complementares no nCPC; e de 11/03/2015, sob Jurisprudência (92)).

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                                         Aplicação ao caso dos autos

              No caso dos autos a variedade de factos expostos pela autora no requerimento executivo não deixa dúvidas sobre a causa do pedido que faz: trata-se de um contrato celebrado com o réu relativo ao fornecimento de bens e prestação de serviços em Junho de 2014, no âmbito da sua actividade comercial, por um certo valor, referidos numa factura com um número e data certa. A alegação destes factos principais/essenciais em sentido estrito é apta para suportar o pedido formulado e para efeitos de caso julgado.

              Já os elementos que o despacho recorrido diz estarem em falta – os serviços que foram concretamente prestados, quantos, quais os seus valores e quando e onde foram executados, a data do contrato [cuja alegação não parece perfeita, já que a data é a mesma da factura o que não parece compatível com a duração da prestação de serviços por um período posterior] e factura invocada – correspondem a factos complementares ou concretizadores da causa de pedir. A sua falta conduz a uma causa de pedir insuficiente (ou, na posição do Prof. Teixeira de Sousa, a uma petição deficiente).

              Assim, a solução não passava pela excepção da ineptidão da petição inicial, mas pela formulação, depois de recebidos os autos, de um despacho de aperfeiçoamento do articulado inicial, proferido ao abrigo dos arts. 17/3 do regime anexo ao DL 269/98, na redacção em vigor, e 590/2b) do CPC.

              Note-se, entretanto, que o despacho recorrido não tem razão em dizer que “a alusão à natureza do contrato – fornecimento de bens ou serviços -, não se revela suficiente, por se tratar de mera qualificação jurídica, sem individualização do negócio concreto”. É que essa qualificação foi apenas um nome dado, que não tem importância, porque o que conta é a qualificação que decorrer dos factos provados e não a que lhe for dada pelas partes; quanto à falta de indicação do número do contrato, nada indica que o contrato tenha ou tivesse que ter número; quanto ao facto de a autora não ter junto, no requerimento inicial, a factura invocada, a verdade é que a junção de documentos com o requerimento inicial não está prevista na portaria respectiva (nem sequer a procuração judicial deve ser junta, devendo-lhe ser feita apenas referência).

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              Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido que se substitui por este outro, que convida a autora a, em 10 dias, aperfeiçoar o articulado inicial, incluindo a apresentação, agora, da factura, de modo a suprir as deficiências apontadas no 2º§ da parte deste acórdão que trata da aplicação do direito ao caso dos autos.

              Custas por quem for vencido a final.

              Porto, 24/09/2015

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto