Acção 2483/11.4TBSTS – J4 – 2ª secção cível – Póvoa de Varzim

            Sumário:

            Uma acção em que a autora pede a declaração de nulidade de uma venda que o seu ex-marido fez de um, alegadamente, bem comum (ou próprio dele) a uma sociedade, e subsidiariamente impugna paulianamente essa venda, não se torna supervenientemente inútil pelo facto de a autora ter requerido, dois anos depois, a insolvência do seu ex-marido.

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            A 26/05/2011, M intentou esta acção contra o seu ex-marido L e I, Lda, pedindo que [isto já englobando, por força de despacho de rectificação –  apesar da oposição da ré e de não se terem apreciado os fundamentos dessa oposição -, o primeiro pedido (a) que a autora disse ter omitido por erro de escrita]:

        (a) seja declarado que o prédio (urbano devidamente identificado) é um bem comum do extinto casal; [subsidiáriamente ou sem prescindir], (b), seja reconhecido que a autora tem direito à meação do valor investido nesse prédio com rendimentos comuns do casal; (c) seja julgado nulo e de nenhum efeito, por simulação, o contrato de compra e venda celebrado [em Março2011] entre o réu e a ré, pela escritura (devidamente identificada) e os réus condenados a reconhecê-lo; (d) seja ordenado o cancelamento do registo efectuado a favor da ré sobre o mencionado imóvel com base naquele contrato; (e) subsidiariamente, seja julgada procedente a impugnação [pauliana] da venda efectuada pelo réu à ré, e, consequentemente, seja restituído o imóvel ao património comum da autora e do réu, ou, subsidiariamente, ao património do réu; (f) sejam os réus condenados a reconhecer a procedência dessa impugnação e consequente restituição desse imóvel.

            Os réus contestarem, excepcionando e impugnando.

            A autora replicou.

            Depois da instância ter sido suspensa, adiada e interrompida por várias vezes e por vários pretextos (questões relativas a apoio judiciário, suspensão por vontade das partes [4], registo [2], impedimentos dos mandatários [2], etc.)…

            … e de, inclusive, invocando-se para tanto o art. 85 do CIRE – artigo que já tinha levado à notificação da administradora da insolvência para os termos dos autos e para constituir mandatário, o que esta fez – o processo ter sido remetido, para apensação a um processo de insolvência entretanto requerido pela autora contra o réu [que foi logo devolvido, tendo o tribunal do processo da insolvência explicado que, nos termos do art. 85 do CIRE: (i) não tinha determinado a apensação e era a ele que lhe cabia tal determinação; (ii) a apensação não apresentava qualquer conveniência para os fins do processo da insolvência ou para a liquidação da massa insolvente; (iii) não se mostravam apreendidos nesta acção bens compreendidos na massa insolvente, pois, ao menos por agora, os bens que nesta acção se discutem, estão fora da esfera jurídica do insolvente]…

            … quatro anos depois da entrada da acção foi proferido o seguinte despacho, que se transcreve na parte que importa:

         “Na pendência da […] acção, veio a constatar-se que o réu L (ex-marido da autora) foi declarado insolvente, por sentença datada de 10/09/2013.

         Considerando este facto, foram as partes notificadas, por despacho de 23/04/2015, para se pronunciarem quanto à inutilidade superveniente da presente lide, nada dizendo estas.

         […]

         […E]ntende o tribunal que todas as questões suscitadas nos presentes autos deverão ser dirimidas no âmbito do processo de insolvência do réu, no confronto com os demais credores deste, e não apenas entre as partes que constam dos presentes autos.

         Com efeito, […] os pedidos [(a) e b)] apenas podem ser apreciados no âmbito do processo de insolvência do réu, no confronto com todos os seus credores, e de acordo com as regras aí previstas para o efeito.

         De igual modo os pedidos [c) e d)] também têm que ser discutidos no processo de insolvência, porque pressuposto da procedência dos dois primeiros pedidos deduzidos.

         Finalmente os pedidos subsidiários (e) e f)), também têm que ser discutidbos no âmbito do processo de insolvência, no confronto com todos os credores.

         Tal resulta nomeadamente do disposto pelos arts. 141/1b) e 146/1, ambos do CIRE.

         Deste modo, e a ser assim, e considerando ainda o teor do acórdão do STJ nº 1/2014, de 25/02/2014, não poderão estes autos prosseguir […], pelo que, em conformidade com o estatuído no artigo 277/e) do CPC, por inutilidade superveniente da lide, julgo extinta a presente instância.

         […]”

                                                      *

            A autora vem recorrer deste despacho – para que seja revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões [que se transcrevem na parte útil]:

[…]

C) Diferentemente do pressuposto pela decisão recorrida, a presente acção não é uma acção comum para reconhecimento de um crédito pecuniário e condenação do devedor no respectivo pagamento, mas sim uma acção de impugnação pauliana.

D) E para as acções desta espécie que estejam pendentes à data da declaração de insolvência do devedor, o n° 2 do artigo 127 do CIRE prevê o respectivo prosseguimento, excepto se o administrador da insolvência do devedor resolver o acto impugnado, caso em que elas ficarão suspensas até à decisão definitiva da eventual impugnação dessa resolução.

E) A Sra. Administradora de Insolvência do réu não resolveu a venda posta em causa nestes autos, ou pelo menos não há notícia no processo de que tenha resolvido a referida venda que com esta acção a autora pretende impugnar, a mesma deverá prosseguir, no exclusivo interesse desta.

F) Salvo o devido respeito, a decisão recorrida violou, por omissão de aplicação, a norma da 1ª parte do nº 2 do art. 127 do CIRE, tendo ao invés feito indevida aplicação do disposto no art. 85/1 do mesmo código.

G) Com efeito: a presente acção pauliana deu entrada em juízo a 26/05/2011; o réu L foi declarado em estado de insolvência no âmbito do processo nº 2939/13.4TBSTS, do 3º Juízo Cível de Santo Tirso, em 10/09/2013, tendo a respectiva sentença já transitada em julgado; o bem imóvel em causa nos presentes autos não foi apreendido nem foi também resolvido o negócio de compra e venda aqui impugnado no âmbito do processo de insolvência, ou pelo menos deles não há conhecimento nestes autos; a Sra. AI não requereu nos autos de processo de insolvência a apensação dos presentes autos àquele.

[…]

Q) A presente acção enquadra-se no regime da impugnação pauliana e não no âmbito de uma acção comum declarativa em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente ou acções de natureza exclusivamente patrimonial.

[…]                         

U) Pelo que, resulta que a impugnação pauliana, não só não é apensada ao processo de insolvência, como pode prosseguir os seus termos, no interesse do credor impugnante, como o prevê o nº 3 do mesmo preceito.

[…]

Z) Nestes termos, a declaração de insolvência do réu não conduz à inutilidade superveniente da lide, continuando o processo a fazer e a ter sentido útil.

                                                      *

            Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                      *

            Questão a decidir: apenas e tão só saber se a lide não se tornou inútil.

                                                      *

            Os factos que interessam a esta decisão são os que constam do relatório supra.

                                                      *

            As normas invocadas pela decisão recorrida foram as seguintes:

            O art. 141/1b) do CIRE.

            Este artigo refere-se, na parte que importa, à reclamação do direito do cônjuge a separar da massa insolvente a sua meação nos bens comuns.

            Ora, não só não há notícia de que a meação da autora nos bens comuns esteja apreendida para a massa insolvente, como a pretensão da autora não é a de separar da massa insolvente a sua meação nos bens comuns.

            Pelo que a norma em causa não tem aplicação.

                                                      *

            O art. 146/1 do CIRE.

            Este artigo refere-se, na parte que importa, à verificação ulterior de créditos sobre a massa insolvente. 

            A autora não pretende a verificação de qualquer crédito sobre a massa insolvente.                                      

            Pelo que a norma em causa não tem aplicação,

                                                      *

            Quanto à jurisprudência invocada, que foi o ac. do STJ, “n.º 1/2014 de 25/02/2014”. O tribunal recorrido está-se a referir ao ac. do STJ, de 08/05/2013, de uniformização de jurisprudência com o nº. de processo 170/08.0TTALM.L1.S1, publicado na base de dados do IGFEJ, e no Diário da República de 25/02/2014, sob o título de ac. do STJ nº. 1/2014, que diz o seguinte: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287 do CPC”

            Mas este AUJ também não se aplica, pois que a autora não está a tentar obter o reconhecimento de qualquer crédito contra o réu.

                                                      *

            Em suma, nenhuma das normas ou jurisprudência invocadas pela decisão recorrida têm a ver com o caso e por isso não constituem suporte legal para a decisão recorrida.

                                                      *

            Quanto à única ideia invocada para a inutilidade, depois parafraseada nos três §§ subsequentes da decisão recorrida, qual seja, a de que: “todas as questões suscitadas nos presentes autos deverão ser dirimidas […] no confronto com os demais credores deste, e não apenas entre as partes que constam dos presentes autos”, diga-se que não se demonstra a razão de ser da mesma.

            Os credores do réu até poderão ter interesse na procedência desta acção, pois que tal poderia – mas não é certo que assim fosse – vir a aumentar a massa insolvente, mas isso conferir-lhes-ia apenas legitimidade para intervirem nesta acção como assistentes da autora (art. 326 do CPC).

            Só que isto não tem nada a ver com a preterição superveniente do litisconsórcio necessário passivo em que se traduz, implicitamente, o argumento da decisão recorrida. De resto, os credores do insolvente não são parte passiva na relação material controvertida em causa nestes autos, nem têm interesse igual ao dos réus nesta acção.

            Quanto à outra parte daquela ideia – as questões deveriam ser tratadas no âmbito do processo de insolvência do réu – ela não está fundamentada, à excepção das referências posteriores as normas legais, que já foram analisadas e não a suportam (sendo que, no processo também já tinha sido analisada a questão à luz do art. 85 do CIRE, com caso julgado formal, como resulta do relatório deste acórdão).

                                                      *

            Por fim, diga-se que, apesar de a autora não ter razão em invocar directamente o regime do art. 127 do CIRE, já que esta acção, ao contrário do que é por ela dito, não é uma acção de impugnação pauliana, mas antes uma acção em que também existe um pedido (subsidiário) de impugnação pauliana,  a verdade é que este regime demonstra que esta acção não é inútil: se já estando a correr termos uma acção de impugnação pauliana, em que se visa a ineficácia da venda relativamente apenas ao autor da acção (art. 616/4 do CC) a declaração de insolvência, só por si, não suspende a acção, por maioria de razão deverá ser aplicada tal regra quando está em causa um pedido de declaração de nulidade, nulidade que aproveita a todos os credores [como decorre, entre o mais, do art. 605/2 do CC – e tendo esta última norma em consideração, é evidente, por outro lado, que a autora não tem razão em dizer o que diz na parte final da sua conclusão E) ou na parte final de U)]. Ora, se não se suspende a acção é porque esta pode prosseguir, o que quer dizer que a própria lei esclarece que ela não se torna inútil.

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida, pelo que o processo deve seguir os seus trâmites normais.

            Custas do recurso pela parte que ficar vencida a final.

            Porto, 05/11/2015

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto