Acção 3089/07.8TBPNF do J1 da secção cível de Penafiel

            Sumário:

               I. A posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar (art. 1257/1 do CC).

              II. Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou (art. 1257/2 do CC).

               III. Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa (art. 1255 do CC).

          IV. O facto de o autor ter perdido a posse, não o impede de exercer o direito potestativo de adquirir por usucapião com base na posse anterior, desde que esse direito não esteja prescrito.

             V. Não é posse adquirida por violência a que resulta da ocupação de uma faixa de terreno e vedação do mesmo. A violência respeita tanto à pessoa como à coisa objecto da posse, mas a violência tem de ter o possuidor por destinatário e não a coisa. Uma “actuação sobre esta, ainda que com recurso a meios violentos, só pode significar coacção física ou psicológica, se dirigida ao possuidor.”

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            A, a que se juntou depois a mulher (com quem é casado no regime de comunhão de adquiridos), intentou contra R e mulher a presente acção pedindo [depois de corrigida a petição] a condenação dos réus a reconhecerem que o autor é dono e legítimo possuidor do prédio que identificam, incluindo uma identificada faixa triangular com 375 metros quadrados, e a reconhecerem que esse prédio confronta, a nascente, com o dos réus, no alinhamento definido pelos antigos marcos “HEL” que ficavam no alinhamento do velho muro que separa, do lado norte de um caminho que identificam, o prédio do autor de X (depois remetem para uma planta que juntaram), marcos aqueles dali retirados pelos réus; consequentemente, tendo os réus colocado uma rede 15m a poente do marco H, no referido alinhamento “LN”, devem retirar imediatamente tal rede e não mais interferir na dita zona triangular “GLN”; pedem também que os réus sejam condenados a pagar a título de indemnização o que se vier a liquidar em execução de sentença.

            Alega para o efeito que é proprietário e possuidor de um prédio com umas dadas confrontações (que o autor desenhou num papel anexo), tendo-o adquirido por lho ter sido adjudicado num inventário por morte dos seus pais (que morreram, a mãe em 1979 e o pai em 1993); a aquisição desse prédio foi registada a seu favor no registo predial; há uma década [o autor intentou a acção em 12/12/2007] os réus, que são proprietários confinantes, invadiram o prédio do autor e colocaram uma rede plastificada numa linha mais a poente, passando a ocupar uma faixa de terreno do prédio do autor, alegando que o prédio dos réus se estende até àquela linha, dela cortando mata e lenha; o autor e seus ante possuidores sempre (há mais de 20 e 30 anos) praticaram actos de posse como proprietários sobre todo o prédio, incluindo sobre tal faixa de terreno até à invasão dos réus e sempre consideraram que o seu prédio ia até uma outra linha mais a nascente daquela onde os réus colocaram a rede, por onde existiam marcos retirados pelos réus; o que sempre haveria de conduzir à usucapião para os autores.

            Os réus contestaram, impugnando; dizem que o seu prédio sempre possuiu marcos divisórios no local onde há mais de 10 anos colocaram a rede e esteios, sendo, portanto, falso que o autor ou os seus ante possuidores cortassem lenha ou mato na faixa em causa ou nele praticassem quaisquer actos de posse, pois que eram eles que o faziam.

          Depois do julgamento, a acção foi julgada parcialmente procedente, reconhecendo-se que os autores eram proprietários do prédio e condenando-se os réus a reconhecerem esse facto, mas absolvendo-os dos demais pedidos.

            Os autores interpuseram recurso desta sentença, na sequência do qual a sentença foi anulada para que, na parte que agora continua a importar, o tribunal repetisse o julgamento para decisão da questão de saber se os factos provados sob 3 a 5 (estão transcritos abaixo) foram praticados durante pelo menos 20 anos, reportados a Dez1998, ou seja, pelo menos desde Dez78.

            A 06/02/2016 procedeu-se a julgamento para decisão de tal questão, tendo depois disso sido proferida nova sentença, reconhecendo que o autor é proprietário do prédio denominado S, sito no lugar de S, freguesia de S, concelho de S, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº 714/30102000, que confronta a nascente com o dos réus no alinhamento “LEH” da planta junta com a petição inicial, e condenando os réus a retirarem imediatamente a rede que colocaram no dito alinhamento “L-N” e a não mais interferirem na zona triangular delimitada pelas letras “GLN” da mesma planta, absolvendo-os do demais peticionado.

            Os réus recorrem desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que os absolva do pedido -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões sobre matéria de direito (perante aqueles factos que consideram provados, depois de porem em causa os novos factos dados como provados depois do 2º julgamento, em conclusões sobre a decisão de matéria de facto que serão transcritas mais à frente):

        XXII. Como consta dos factos provados, os réus estão na posse efectiva da referida faixa há pelo menos 10 anos e nela cortam mato e lenha.

         XXIII. Continua a desconhecer-se, porque não ficou provado, como é que a posse dos antecessores dos autores foi adquirida, pelo que não se pode dizer que seja titulada (art. 1259/1 do Código Civil); nem se sabe como é que ela se iniciou, pelo que não se pode dizer de boa-fé (art. 1260 do CC).

         XXIV. Pelo exposto, não ficou provado que tais actos foram praticados há mais de 30 anos e, pelo menos desde Dez78 a Dez98, de forma contínua, perante toda a gente, sem oposição de ninguém, convictos de que, como seus donos, exerciam um direito próprio e de que a ninguém lesavam, não beneficiando, os autores, da usucapião como forma de aquisição da faixa triangular que reivindicam dos réus.

         XXV. Face a estes factos, tem que concluir-se que os autores, quer por si, quer pelos seus ante possuidores, não exercem uma posse quer contínua, quer pacífica ou pública, sobre a faixa de terreno dos réus.

        XXVI. Aludindo às disposições legais que, no caso em apreço, assumem relevância: dispõem os arts 1287 e 1297 do CC, que a usucapião consiste em uma forma originária de aquisição do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, baseada numa posse duradoura sobre ela exercida, que se identifica com os actos materiais praticados sobre a mesma (corpus), com intenção do agente se comportar como titular do direito correspondente (animus), em nome próprio, de boa-fé, sem violência, com publicidade e, ininterruptamente, desde o seu início e por um lapso temporal suficiente, que na falta de registo e de boa-fé, é de 20 anos, cfr. disposto no art. 1296 do CC.

         XXVIII. Assim, ante as normas supra concitadas, resulta manifesto que o litígio em crise depende, desde logo, da possibilidade de face aos factos provados, ser, ou não, possível afirmar que existem sinais reveladores, passíveis da aquisição da referida faixa por usucapião.

         XXIX. Somos a concluir pela negativa, pois da subsunção dos factos apurados e o entrosamento dos mesmos com as regras da experiência comum, resulta manifesto que não ficou provada a posse e a prática de actos na faixa de terreno durante aquele período.

         XXX. Resulta da análise da prova gravada que não é possível afirmar, com veemência, que os autores tivessem praticado actos na faixa de terreno em questão no período de 1978 a 1998, não se logrou provar a posse pelos autores exercida nos últimos 20 anos.

         XXXI. A ter havido posse alguma vez, esta não é exercida há mais de 20, perdendo-se a favor dos réus – art. 1267/1d do CC.

            O autor não contra-alegou.

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            Questões que importa decidir: se não se deviam ter dado como provados os factos aditados e se, em consequência, a acção não devia ter sido julgada procedente.

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            Foram dados como provados os seguintes factos:

           1. Encontra-se registada a favor do autor, desde 30/01/2000, a aquisição, por partilha de herança dos seus pais, do prédio denominado S, sito no lugar de S, freguesia de S, concelho de S, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o número 714/30102000.

           2. Tal prédio é atravessado por um caminho público, alargado há uma década, ligando os lugares de S e F.

          3. Os ante possuidores do autor, por si e seus caseiros, sempre cortaram mato, árvores e lenha no prédio referido em 1 e aproveitaram essa madeira e autorizaram que outros o fizessem.

      4 e 5. Dando eucaliptos ali nascidos para obras da Igreja de S, bem como para a Comissão de Festas de S.

         6 a 9. Tais actos foram praticados há mais de 30 anos, e, pelo menos, desde Dezembro de 1978 a Dezembro de 1998, de forma contínua; perante toda a gente; sem oposição de ninguém; convictos de que, como seus donos, exerciam um direito próprio e de que a ninguém lesavam [a parte sublinhada será substituída, em consequência da decisão da impugnação, por: entre 1965 e 1980 – parenteses introduzido por este acórdão do TRP]

          10. Tais actos foram praticados, inclusivamente, numa faixa de terreno com 375m2, que confronta, a norte, com o caminho referido em 2, e, de poente, com a parte restante do prédio referido em 1.

      11. Tais actos foram praticados, nessa confrontação poente, até uma linha que se prolongava no enfiamento do muro de pedra ali existente que separa, do lado oposto do dito caminho, o prédio referido em 1 de X.

          12. Os réus, há pelo menos 10 anos, colocaram uma rede metálica plastificada, com 2 metros de altura e 50 metros de comprimento, no enfiamento da berma nascente do caminho da capela, a cerca de 15 metros para poente da linha referida em 11, e cortam mato e lenha nessa faixa, que consideram parte do seu prédio.

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        Da impugnação da decisão da matéria de facto

            O tribunal recorrido disse o seguinte com interesse sobre a questão (englobando o que já tinha dito na primeira decisão da matéria de facto; o que foi acrescentado, foi colocado no 2º § que se segue, de modo a distinguir-se):

         Ao dar como provados os factos supra referidos, o tribunal fundou a sua convicção na ponderação dos depoimentos testemunhais que, diga-se, não se revelaram, cada um de per si, integralmente convincentes, mesmo quanto aos factos de que alegam ter conhecimento directo. O cerne do litígio prende-se com uma pequena (se comparada com a área total do prédio dos autores) faixa de terreno que, após ter sido vedada, está perfeitamente identificável, mas, antes dessa vedação, entende o tribunal que não teria qualquer especificidade quanto ao demais terreno e, nessa medida, o tribunal não reputou de convincentes os depoimentos testemunhais que pretendem situar precisamente nessa faixa de terreno reivindicada a prática de actos de posse quer pelos autores, quer pelos réus ou pelos ante possuidores de uns e outros, mas teve por credíveis esses depoimentos considerando que eles apontam a prática de actos de posse sobre todo o terreno dos antepassados dos autores, no qual se incluiria a dita faixa de terreno, tendo em conta que, como melhor se explicará de seguida, a delimitação dos terrenos não suscitava dúvidas. A testemunha SJ até afirmou que sabe que os eucaliptos que terão sido cortados para oferta às festas saíram desta faixa de terreno, o que o tribunal não reputou de credível que a testemunha soubesse, até porque esta testemunha prestou um depoimento hesitante, e as suas respostas limitavam-se a confirmar afirmações feitas pelo mandatário dos autores, sendo que a testemunha tanto dizia como se desdizia quando era confrontado com a necessidade de uma explicação para essas afirmações peremptórias.

        Todavia, as testemunhas ora inquiridas, na sequência de determinação do tribunal da relação do Porto, afirmaram de forma que nos pareceu credível que o pai do autor MS, por si ou por interpostas pessoas ou seja pelos seus caseiros, cortavam mato no prédio referido em 1, incluindo na dita faixa de terreno que, à data, porque não estava vedada não tinha qualquer autonomia relativamente ao demais terreno. Os depoimentos das testemunhas oferecidas pelos réus, quanto ao período em que os ante possuidores do autor praticaram os actos já dados como provados, não foram de molde a infirmar os depoimentos das testemunhas indicadas pelos autores, pois limitam-se a negar a prática de tais actos, sendo que esses factos já foram dados como provados, acrescentando as ditas testemunhas que sempre foi o dito MS quem cuidou de tal Sorte e dizendo a testemunha CB que o pai do Autor comprou a Sorte em 1930 à Junta de Freguesia, tendo em seu poder cópia da escritura porque foi Presidente da Junta, o que nos permite concluir que tais actos foram praticados há mais de 30 anos, o que havia resultado não provado em virtude de nenhuma testemunha ter indicado datas tão longínquas.

         […]

              Dizem os réus (transcrevem-se as conclusões respectivas na parte útil]:

     II. Refere o tribunal [que] fundou a sua convicção na ponderação dos depoimentos de testemunhas que, diga-se, não se revelaram, cada um de per si, integralmente convincentes, mesmo quanto aos factos de que alegaram conhecimento directo.

         III. O tribunal teve por credíveis esses depoimentos considerando que eles apontam a prática de actos de posse sobre todo o terreno dos antepassados dos autores, no qual se incluiria a dita faixa do terreno.

         […]

       VI. Durante esses depoimentos, algumas testemunhas retractam várias situações, sem fazerem delimitações temporais objectivas, dificultando o apuramento da sua ocorrência.

     VII. Pelo exposto, era imperioso que, à data da produção da prova testemunhal, o tribunal a quo tivesse conseguido suportar os factos provados sob 3 a 5, praticados durante pelo menos 20 anos, reportados a Dez98, ou seja, praticados no período que medeia entre Dez78 e Dez98 em depoimentos objectivos.

         […]

        X. A fundamentação que se pedia quanto à prática dos factos há mais de 30 anos seria uma fundamentação sólida, séria e não apenas uma simples declaração testemunhal, que refere ter um documento em casa, onde consta a venda de S ao Sr. MS, fotocopiado no tempo em que essa testemunha pertenceu à junta de freguesia.

         XI. O mesmo rigor de razão da ciência se exigia às testemunhas sobre o que se pedia quanto ao período balizado entre Dez78 e Dez98. Nada do que é referido ficou provado, pelo menos para os réus.

         XII. Ora, com base na declaração testemunhal de CB, a Srª juíza diz: […] e dizendo a testemunha CB que o pai do autor comprou a sorte em 1930 à junta de freguesia, tendo em seu poder cópia da escritura porque foi presidente da junta, o que nos permite concluir que tais actos foram praticados há mais de 30 anos, o que havia resultado não provado em virtude de nenhuma testemunha ter indicado datas tão longínquas.

         XIII. Existe actualmente no CPC um verdadeiro sistema misto de valoração probatória, ou seja, recusa, expressamente, a aplicação da prova livre a factos sobre os quais haja outros meios probatórios, distinguindo assim claramente o que é prova legal e o que é prova de livre apreciação (art. 607/5 do CPC).

         XIV. A livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial.

        XV. E por força do art. 7 do CRP, só constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define e tem que ser registo definitivo. A lei também exige para prova deste facto, documento autêntico exarado com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência. Quando a lei exigir documento autêntico, autenticado ou particular, não pode ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior (artigos 363 e 364 do CC).

       XVI. Consequentemente, não gozam os autores de nenhum registo anterior ao início da posse dos réus que lhe dê essa presunção.

         XVII. Só por bondade se pode interpretar as palavras da testemunha CB, de forma a concluir que tais actos foram praticados há mais de 30 anos e mais concretamente na faixa triangular. Mesmo a haver registo, ou outra prova documental objectiva de titularidade, a faixa de terreno, em si, não estaria identificada.

         XVIII. Desta forma, a valoração deste meio de prova não é válido para fundamentar que “tais actos foram praticados há mais de 30 anos (…)”.

        XIX/XX. Quanto a terem-no sido “pelo menos desde Dez78 a Dez98, o tribunal não apreciou nem interpretou, devidamente, os vários depoimentos, das quatro testemunhas dos autores, pois nenhuma testemunha respondeu de forma a concluir isso.

         Acrescente-se que os réus, no corpo das alegações, transcrevem grande parte do depoimento das testemunhas do autor prestado a instâncias do mandatário dos réus.

            Decidindo:

            A 1ª testemunha dos autores (considerando a ordem da audiência de 06/01/2016), CB, em passagens do seu depoimento não invocadas pelos réus (isto é, de 0:01 a 8:28 e de 18:41 a 21:28) não deixa dúvidas de que prestou serviços com tractores aos pais dos autores desde 1965 incluindo no bocado em causa nos autos {foi ali também… […] também naquela sorte (de 4:14 a 5:18); disse-lhe, quando eles andaram a meter a rede, que não era por ali, que era mais abaixo (até 10:50 a 10:57 já a instâncias do mandatário aos réus, que começaram a 8:28) e a perguntas da Srª juíza reafirma que também carregou madeira naquele bocado que está em causa (11:02 a 11:12 e até 11:41)}. Mas diz que acabou de prestar esses serviços em 1980 e tal.

            A instância do mandatário dos réus (de 8:28 a 18:41 e de 21:28 ao fim), com uma enorme imprecisão das perguntas, não consegue pôr em dúvida a prática daqueles actos naquele triângulo, mas acabou por revelar que a testemunha não pode precisar se praticou aqueles actos depois de 1978.

              (quanto à imprecisão das perguntas: referem-se insistentemente a acima e abaixo da presa sem precisar que pontos cardiais estão em causa e de forma particularmente confusa: por exemplo, a dada altura, o mandatário dos réus pergunta “era da parte de cima da sorte ou da parte de baixo da sorte junto ao caminho que o Sr. carregava” (11:45 a 11:50), sendo que antes tinha referido, numa curta frase, a 12:35 a 12:40, “lá em cima, na parte sul do prédio”; ora, isto está em contradição com a pergunta de 17:30 a 17:48: “Ouça, para cima da presa, para norte da presa, e não pra e não pra nascente, para norte da presa, está a perceber – norte é práli pró Minho, nascente é prá li, e o sul é lá pra baixo – temos aqui a presa, e o Senhor já nos disse que esteve aqui a carregar para norte da presa […]”)

            A testemunha invoca ainda a prestação de serviços por um seu empregado, aos pais dos autores, depois de 1980, mas sem dizer algo que aquele empregado tenha feito naquela faixa.

            Assim, do que esta testemunha diz, pode apenas retirar-se que os pais dos autores praticaram os actos dos pontos 3 a 5 de 1965 até por volta de 1978 e não mais.

            Quanto às outras três testemunhas dos autores, na audiência de 06/01/2016:

            – a 2ª (CA) tem um depoimento genérico (tenho 77 anos e desde sempre que ele [pai dos autores] explorou aquela área toda), não permitindo concluir até quando é que o pai do autor, que aliás morreu em 1993 (a mãe morreu em 1979), fez alguma coisa no triângulo em causa; aliás, a instâncias do mandatário do réu, a testemunha responde que não tem conhecimento que o pai do autor tenha cortado algum pé de árvore ou mato desde 1978 em diante, até porque já não se cortava mato.

            – a 3ª (RF), foi para lá em 1964 e esteve lá até 1991; já nessa data era muito difícil ver lá o pai do autor; fala em relação a todo o prédio, não especificamente do bocado em causa; em 1991 já não se cortava mato (mais à frente precisa que só se cortou mato até 1970/72) e árvores só se cortavam para as festas; o pai do autor, depois de 1991 ainda terá dado uma árvore para as festas, mas não diz que a árvore tenha saído daquele bocado; fala no corte de um eucalipto para cima da presa (pelo que não se pode dizer que tenha saído do bocado em causa), mas não sabe em que ano.

            – a 4ª (AM) conhece o prédio (de que foi caseira) desde pequena e cortou mato desde os 12 ou 13 anos até cerca dos 25 anos; tendo a testemunha 61 anos, tal implica que deixou de cortar mato há 36 anos; estando ela a depor em 2016, deixou de o fazer em 1980; pelo que cortou mato desde 1967/68 a 1980; diz que o pai do autor deu um eucalipto, mas não diz de onde é que saiu o eucalipto e em que ano é que isso foi; o interrogatório do mandatário do autor versou genericamente sobre todo o prédio, não especificamente sobre o bocado em causa, à excepção do período final, de 7:30 a 8:03, em que perguntou à testemunha se os caseiros até 1998 tiravam lenha daquele bocado e a testemunha respondeu que sim, mas sem que isto convença já que a testemunha não deu (nem lhe foi pedida) nenhuma razão de ciência para o saber – ela tinha dito que pensava (não tinha a certeza) que os pais tinham sido caseiros do pai do autor até à morte dele (1993), que ela tinha deixado de cortar mato em 1980 e as duas testemunhas anteriores diziam que já não se cortava mato desde 1970/72 ou 78, e de árvores a testemunha só sabe que se falava no corte de uma em data que não sabe precisar. Em suma, embora depois, em resposta à instância do mandatário dos réus, a testemunha não tenha deixado dúvidas de que, quando cortava mato, era também no bocado em causa, a verdade é que ela só demonstra que o tenha feito, sem dúvida, até 1980, não depois.

            Quer isto dizer que se pode ter como certo que os pais do autor – só eles, a fundamentação da matéria de facto não deixa dúvidas nenhumas de que o autor nunca lá foi visto a fazer fosse o que fosse -, por si ou através de caseiros ou pessoas contratadas para o efeito, praticaram os actos referidos de 3 a 5 durante o período de 1965 até cerca de 1980, não mais.

            Daí que a parte acrescentada ao ponto 6 dos factos provados tenha de ser alterada neste sentido (esclarecendo-se que para tal em nada contribuiu o conteúdo das conclusões XIII a XV do recurso, com que não se concorda porque é evidente que as testemunhas podiam ter provado o que foi dado como tal, não havendo qualquer prova legal em contrário).

                                                      *

Do registo e da prova do direito de propriedade

            Numa acção de reivindicação, os autores têm de alegar e provar que são proprietários da coisa em causa e que os réus estão na posse ou detenção da mesma (arts. 1311 e 342/1, ambos do Código Civil).

            No caso, os autores estão, no que realmente importa, a reivindicar uma faixa de terreno.

            Essa faixa de terreno, em si, não está registada e por isso os autores não podem invocar o registo como prova de que são proprietários do prédio. O facto de o prédio, do qual eles dizem que a faixa faz parte, estar registado a seu favor não tem relevo para a faixa, já que o registo não faz prova das confrontações nem da área dos prédios, nem do registo consta a referência autónoma à faixa em causa (suporte jurisprudencial para isto já foi feito constar do anterior acórdão, em poder das partes e constante do processo, e por isso não se repete).

            Por isso, o autor não tem razão em dizer que o registo do prédio e a presunção dele decorrente, não ilidida, bastavam para a procedência da acção.

            De qualquer modo, o autor, no caso dos autos, diz que é dono da faixa de terreno de que pede a restituição porque a adquiriu por sucessão por morte dos seus pais; e também diz que sempre a teria adquirido por usucapião (e é para este efeito que alega a posse da mesma, durante mais de 30 anos, até à invasão e ocupação pelos réus há cerca de 10 anos… reportados a Dez2007).

            A primeira causa de pedir (sucessão por morte – arts. 581/4 do CPC e 1316, ambos do CC) é uma aquisição derivada; ora, como só se pode adquirir de outrem se outrem for proprietário da coisa transmitida, o autor teria de ter alegado e provado que os seus pais eram proprietários da faixa de terreno e como é que a tinham adquirido (pois que se essa aquisição também fosse derivada, voltaria a pôr-se a questão da necessidade da prova de que aqueles de quem tinham adquirido eram proprietários, e assim por diante), o que não fez.

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                Da aquisição por usucapião e da sucessão na posse

            A segunda causa de pedir (usucapião – arts. 581/4 do CPC e 1316 e 1287 a 1297, todos do CC) importa a alegação e prova do exercício de poderes de facto sobre a coisa (art. 1251 do CC), como proprietário, sobre a faixa de terreno em causa, por um dado período de tempo, de forma pública e pacífica. 

            Os factos provados não permitem dizer que alguma vez o autor tenha estado em poder da faixa de terreno em causa, mas tal não importa se se puder concluir que os pais do autor tinham estado na posse de tal faixa de terreno, porque, por força do art. 1255 do CC, por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa (e o autor é sucessor do seu pai e adquiriu, por sucessão por morte, o prédio a que diria respeito tal faixa). Tudo como também já foi fundamentado no anterior acórdão e por isso não se repete aqui.

            Os factos provados só permitem dizer que os pais do autor actuaram, efectivamente, de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, sobre tal faixa entre 1965 e 1980 (factos 6 a 9), não que o tenham estado a fazer desde sempre e até à ocupação efectiva da faixa pelos réus por volta de 1998 (como decorre do facto 12).

            No entanto, nem por isso perderam a posse: é que a posse se mantém enquanto durar a possibilidade de continuar a actuação correspondente ao exercício do direito (art. 1257/1 do CC).

            Como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, 1984, pág. 15, “[…] para que a posse se conserve, não é necessária a continuidade do seu exercício; basta que, uma vez principiada a actuação correspondente ao exercício do direito, haja a possibilidade de a continuar. Conserva-se, por exemplo, a posse de uma servidão de passagem, embora não se passe, se não houver impedimento a que o respectivo titular atravesse o terreno vizinho” (No mesmo sentido, José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, págs. 549 e 609/610; Oliveira Ascensão, Reais, 5ª edição, Coimbra Editora, 1993, págs. 83/84 e 123, não aceita que a falta de exercício não tenha consequências em geral, mas esta posição não é aplicável ao direito de propriedade; para além disso faltaria provar o não exercício, já que o facto de não se ter provado o exercício não equivale à prova do não exercício).

            Assim, os pais do autor não perderam a posse apenas pelo facto de não se ter provado que continuaram a exercer o poder de facto. Só a perderiam se se tivesse verificado algum impedimento ao exercício da mesma, o que nem sequer se alegou (e teria de ser alegado e provado réus, como facto impeditivo: art. 342/2 do CC).

            Aliás, “presume-se que a posse continua em nome de quem a começou” (art. 1257/2 do CC). Como dizem Pires de Lima e Antunes Varela (ob. citada, pág. 16), “desde que se prescindiu, para a manutenção da posse, de actos efectivos de actuação sobre a coisa, correspondentes ao corpus da posse, por se entender que a prática pode não os exigir do possuidor […] não podia o legislador deixar de admitir, em qualquer caso, a presunção de continuidade da posse por parte de quem a começou. Foi por esta razão mantida a doutrina tradicional, que tem importantes reflexos de ordem prática. Uma acção possessória, por exemplo, não havendo prova em contrário, não precisa de fundar-se senão no acto de constituição da posse. A posse futura presume-se.”

            Assim, presume-se que os pais dos autores continuaram na posse da faixa, que tinham tido pelo menos desde 1965 a 1980, até à morte do pai, 1993. E nela sucedeu o autor por força do art. 1255 do CC. “A posse continua sempre no chamado à sucessão dos bens” (Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 12).

            E o autor só perde a posse depois de 1998 (ou melhor, um ano e um dia depois da ocupação da faixa pelos réus: art. 1267/1-d do CC). Pelo que, a posse dele (que é igual à dos seus pais) durou, pelo menos, de 1965 a 1998, ou seja, mais do que 33 anos, tempo mais do que suficiente para a usucapião do direito de propriedade.

            Tendo o autor estado na posse da faixa de terreno até 1998, na continuação da mesma posse dos seus antecessores (que tinha durado pelo menos de 1965 a 1993) e por isso com os mesmos caracteres desta – exercida pública e pacificamente (embora sem se saber se adquirida como tal) – adquiriu a faixa de terreno em causa, por usucapião (que invocou, como tinha de fazer, art. 1288 do CC), por se ter provado que essa posse (pública e pacífica) durou bem mais de 20 anos (arts. 1296 e 1297, ambos do CC).

            Repare-se que não se sabe como é que a posse dos antecessores do autor foi adquirida, pelo que não se pode dizer que seja titulada (art. 1259/1 do CC); nem se sabe como é que ela se iniciou, pelo que não se pode dizer de boa fé (art. 1260 do CC).

            Mas durante o tempo em que ela foi exercida, foi-o pública e pacificamente.

            Estamos a referir-nos à posse dos antecessores porque, como diz José Alberto C. Vieira, obra citada, pág. 603, “a posse do sucessor é a posse do de cuius. Por isso, a lei dispõe que a posse “continua” nos sucessores. Muitas vezes, há a tendência para se fazer uma nova caracterização da posse do sucessor, mas tal operação é incorrecta. Havendo sucessão na posse, os caracteres da posse dos sucessores são os mesmos da posse do falecido, o que se compreende, tratando-se da mesma posse.” (no mesmo sentido, M. Henrique Mesquita, Direitos Reais, sumários das lições, pág. 91, nota, diz: “Saliente-se desde já que, para averiguar se a posse adquirida por sucessão mortis causa é titulada ou não, só pode atender-se ao modo por que o de cujus a obteve. O sucessor mortis causa não dispõe de um título novo: apenas continua a posse do autor da herança (v. infra [págs. 103/104]).

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A perda da posse e a usucapião

            Note-se que a sentença, para considerar a acção procedente, considera que o autor não chegou a perder a posse, visto que considera que a ocupação do triângulo de terra pelos réus foi violenta (violência sobre as coisas) e, portanto, a posse dos réus não se chegou a iniciar (art. 1267/2 do CC). 

            Compreende-se a construção: se não se tem a posse, não se pode invocar um dos efeitos dela.

            Mas não é correcta: tal perda da posse só aconteceu depois de 1998, ou seja, depois da constituição, na esfera jurídico-patrimonial do autor, do direito (potestativo) de adquirir, por usucapião, a faixa de terreno em causa (por exemplo, Oliveira Ascensão, obra citada, n.º 285II, págs. 557/558, refere-se ao direito de aquisição em consequência da situação de facto base da usucapião e, dado o contexto em que o faz, vê-se que o considera um direito potestativo).

            Por isso, apesar de neste acórdão se considerar que o autor perdeu a posse – o que implicitamente corresponde a entender que a actuação dos réus não foi violenta. Não corresponde a violência colocar-se uma rede num prédio. A violência, como diz a sentença recorrida, respeita tanto à pessoa como à coisa objecto da posse, mas a violência tem de ter o possuidor por destinatário e não a coisa. “[U]ma actuação sobre esta, ainda que com recurso a meios violentos, só pode significar coacção física ou psicológica, se dirigida ao possuidor” (José Alberto C. Vieira, obra citada, págs. 572/573; não é diferente a posição, citada na sentença recorrida, de Orlando de Carvalho, RLJ 122, págs. 292 a 294: “A violência contra as coisas só é relevante se com ela se pretende intimidar, directa ou indirectamente, a vítima da mesma, não devendo, por isso, qualificar-se como  tal os meros actos de destruição ou danificação desprovidos de qualquer intuito de influenciar psicologicamente o possuidor”) -, o autor não perdeu ao mesmo tempo aquele direito potestativo de aquisição. Esse direito apenas deixa de poder ser exercido com o decurso do prazo geral de prescrição (20 anos –  dos arts. 298/1 e 309, ambos do CC).

            Ou seja, o autor não perde, com a perda da posse, ao mesmo tempo, a perda do direito de usucapir a faixa. Ou seja, não fica impedido de invocar, em 2007, depois da perda da posse após 1998, a posse que existiu de 1965 até 1998 por tempo suficiente para a usucapião (neste sentido, intuitivamente, o ac. do TRC de 28/09/2010, 239/08.0TBALB.C1: “a legitimidade para invocar a usucapião não depende da titularidade da posse no momento da invocação”, e o ac. do TRL de 09/03/2010, 28/05.4TBVLS.L1-1).

            A perda da posse implica apenas que ele já não pudesse exigir a restituição da posse (art. 1282 do CC), nem pudesse invocar qualquer período de tempo posterior a essa perda para efeitos de usucapião.

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

            Custas pelos réus.

            Porto, 02/06/2016.

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto