Processo do Juízo Local Cível de Vila Franca de Xira

             

              Sumário:

          Não tendo a autora alegado nada que pudesse sugerir que os advogados que arrolou como testemunhas pudessem saber directamente algo sobre os factos relativos ao objecto da acção e dizendo elas, depois, que a razão da sua ciência é apenas o que lhes foi contado pela autora, não está minimamente indiciado que o depoimento dessas testemunhas seja imprescindível para a descoberta da verdade, o que basta para impedir que se decida pela quebra do sigilo profissional para prestação desse depoimento.           

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              Em Março de 2013, M, advogada, com domicílio profissional na Estrada Nacional, em P, intentou uma acção comum contra N e O, pedindo a condenação deles a pagar-lhe 18.310,70€, já com IVA, a título de honorários e de despesas, bem como os respectivos juros moratórios.

          Arrolou como prova testemunhal, para além de P, gestor de sinistro, três advogados, todos a notificar no respectivo domicílio profissional: V, na Rua de S, Lisboa, J, na Pct. A, em P, e C, na Rua C, em A.

              Nada disse sobre a razão de ciência das testemunhas advogados, nem sobre os factos sobre que iriam depor. O nome deles nunca é mencionado na petição inicial nem aparece em qualquer documento apresentado pela autora quer então quer mais tarde. Na petição não consta, aparentemente, nenhum facto do qual decorra, minimamente, que algum daqueles três advogados tenha participado nos factos ou os tenha presenciado. O domicílio profissional deles não coincide com o da autora.

              Na contestação não é referido o nome de nenhum dos três advogados arrolados como testemunhas, nem qualquer facto do qual possa resultar que eles poderão ter participado em algo ou presenciado algo.

              Em Nov2018, mais de 5,5 anos depois de ter intentado a acção, a autora faz um requerimento de substituição da testemunha V por outra advogada: A, com domicílio profissional na Rua D, em B. A substituição foi admitida.

             Com julgamento marcado para 18/12/2018, as testemunhas advogados fizeram um requerimento ao processo, a 17/12/2018, todos nos seguintes termos, na parte que importa:

           A signatária, na qualidade de advogada, teve conhecimento dos factos referentes ao presente processo no âmbito do exercício das suas funções, encontrando-se como tal abrangida pelo artigo 92/1 do Estatuto da Ordem dos Advogados.

         A revelação dos factos sobre os quais o depoimento é pretendido constituiria violação do dever profissional de sigilo e, como tal, uma vez chamada como testemunha tem a signatária o dever de recusar prestar o seu depoimento no cumprimento do dever que lhe é imposto pelo artigo 98/2 do EOA.

              No julgamento, segundo consta da respectiva acta, as testemunhas, depois de prestarem juramento, pediram escusa em depor dizendo, para o efeito, o seguinte: a 1ª: em virtude de ter tido conhecimento dos factos, enquanto advogada, por lhe terem sido transmitidos pela autora enquanto sua colega, tendo a mesma colocado questões quanto ao valor da indemnização; a 2.ª: em virtude de ter tido conhecimento da situação em apreço através da autora, enquanto advogado e em virtude de lhe ter sido comunicado pela mesma as diligências que encetou junto da seguradora e por terem trocado impressões jurídicas acerca da situação em causa, no âmbito do exercício da advocacia; a 3.ª, em virtude de ter tomado conhecimento da situação em apreço por ter sido procurada pela autora, enquanto advogada, para dilucidação de dúvidas jurídicas.

          Em todos estes casos, pela mandatária da autora foi dito não prescindir do depoimento das testemunhas.

              E em relação a todos eles, à Srª Juíza afigurou-se-lhe, face aos artigos 92/1-c do EOA e 497/3 do CPC, ser legítima a escusa da testemunha em depor, pelo que, de acordo com o art. 417/4 do CPC, para o qual o art. 497/3 remete, e o disposto no art. 135/3 do Código de Processo Penal, determinou que os autos viessem ao Tribunal da Relação de Lisboa, a fim de ser devidamente decidida a quebra ou não do sigilo profissional invocado.

              Dizendo, de concreto, em relação a cada testemunha, o seguinte: quanto à 1.ª: “considerando o invocado pela testemunha, verifica-se que a sua razão de ciência prende-se com a circunstância de a mesma ter sido, enquanto advogada, abordada pela autora, sua colega, com vista à troca de ideias e esclarecimentos de dúvidas atinentes à questão objecto dos autos”; em relação à 2.ª, “atento o invocado pela testemunha arrolada verifica-se que o mesmo tem conhecimento da factualidade em causa nos autos, ou pelo menos de parte da mesma, em virtude do que lhe foi comunicado pela autora no exercício de advocacia e enquanto advogado”; e em relação à 3.ª: “considerando o invocado pela testemunha para fundamentar a sua escusa a depor verifica-se que a factualidade sobre a qual incidiria o seu depoimento seria sobre matéria sujeita a sigilo profissional.”

               O Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados foi ouvido (por força do art. 135/4 do CPP), tendo-lhe sido fornecidos para o efeito, a 11/03/2019, na íntegra e por fotocópia, todos os elementos que são referidos acima [petição inicial (fl. 3 a 42, 57 a 63, 66, 67 e 70 a 74), contestação (fls. 102 a 133), despacho saneador (fls. 150 a 152), articulado de fls. 156 a 178, relatório e parecer de fls. 188 a 192, requerimento de fls 249 e 250, requerimentos das testemunhas/advogados de fls. 253, 255 e 257 e acta de fls. 260 a 263, com os respectivos versos]; nesse parecer diz-se, depois de inúmeras considerações genéricas sobre o segredo e o incidente, de concreto, o seguinte, a 19/07/2019, dado a conhecer a este TRL por e-mail de 09/08/2019:

         “[…] só concatenando a factualidade pretendida ver provada com os demais meios de prova existentes no processo, no contexto daquele que é o objecto do litígio e são os temas da prova (quando enunciados), é possível sustentar, factual e juridicamente, essa mesma pronúncia.

         Sucede que os elementos que foram colocados à nossa disposição não nos permitem aferir a factualidade que constituirá o âmbito dos depoimentos a prestar pelos Srs. Advogados com quebra do segredo profissional, o que, de per si, inquina a possibilidade de emitir pronúncia nos termos e para o efeito previsto no artigo 135 do CPP, aplicável ex vi artigo 417/4 do CPC.

              Sobre este parecer disse, naquele mesmo dia 19, o Sr. Presidente do CRL da OA que:

         “Concordo e homologo-o, nos precisos termos e limites aí fundamentados. Nestes termos, entendo que, tal como se encontra recortado o pedido de audição deste CR, os elementos de que dispomos não nos permitem aferir da existência, ou não, de um interesse preponderante ao sigilo que leve ao sacrifício deste dever.”

                                                                 *

              Questão a decidir: se deve ser quebrado o sigilo profissional das testemunhas.

         Os factos que interessam a esta decisão são os que resultam do relatório que antecede.

                                                                 *

              Decidindo:

            Em termos gerais, há duas situações distintas relativamente ao advogado que está a obrigado a sigilo profissional relativamente aos factos previstos no art. 92 do estatuto da ordem dos advogados (anexo à Lei 145/2015, de 09/09).

         Aquela em que ele, apesar disso, quer prestar depoimento, revelando factos abrangidos pelo segredo profissional, mas para tal é necessário que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, tendo que ser pedido previamente autorização para tal ao presidente do conselho regional respectivo, com recurso para o bastonário (art. 92/4 do EOA). E, ainda que dispensado, o advogado pode manter o segredo profissional (art. 92/6 do EAO).

              E aquela em que ele não quer prestar depoimento e por isso se recusa a fazê-lo ao abrigo do segredo, caso em que poderá haver dispensa do segredo nos termos dos arts. 417 do CPC e 135 do CPP, em incidente de quebra de sigilo profissional, “tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária” como se diz no parecer supra referido.

          Estes artigos estabelecem, em linhas gerais, o seguinte regime, na parte que importa ao caso e com as devidas adaptações ao processo civil: os advogados, como qualquer outra pessoa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado. Se se recusarem à colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis. A recusa é, porém, legítima se a obediência importar violação do sigilo profissional (ou seja, neste caso eles podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos pelo segredo). Neste caso, havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, o juiz procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa (porque os factos a que o advogado se recusa a depor não estão abrangidos pelo segredo), ordena a prestação do depoimento. Se concluir pela legitimidade, suscita então ao tribunal superior que decida pela prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade. A decisão do tribunal superior é tomada ouvida a OA, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável. 

              O parecer supra referido lembra que:

           “No que à absoluta necessidade do depoimento diz respeito, haverá, nos termos do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional – Regulamento 94/2006, de 12/06, Diário da República, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3/7 da lei preambular do Estatuto -, que verificar se o depoimento do advogado com quebra do sigilo se reveste, nomeadamente, de:

              – Imprescindibilidade: o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objectivo de prova visado;

        – Essencialidade: o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante;

        – Exclusividade: pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova para além do meio de prova sujeito a sigilo.”

              Posto isto,

              Nada nos autos permite dizer que o depoimento das três testemunhas arroladas é imprescindível para a descoberta da verdade o que só por si seria suficiente para impedir que se decidisse pela prestação do depoimento com quebra do sigilo. Sendo que era à autora que cabia alegar os factos necessários para se decidir por essa quebra, por ser ela a interessada nisso (art. 342/1 do CC).

              Como se diz no ac. do TRL de 25/03/2014, proc. 602/08.7TBBNV-A.L1-7: “A quebra do segredo profissional do Advogado em favor do interesse da descoberta da verdade dos factos e da administração da justiça tem carácter verdadeiramente excepcional e só deve ser determinada por razões imperiosas, doutro modo inultrapassáveis, como seja estar a parte impedida de produzir a prova que lhe compete sem o depoimento desse Advogado.”

              Mas mais do que isso, pode-se mesmo dizer que está suficientemente indiciado que o depoimento daquelas três testemunhas seria praticamente inócuo.

              As partes têm hoje a possibilidade de prestar declarações de parte (art. 466/1 do CPC), sendo que aí podem contar os factos favoráveis às suas pretensões. Assim, o depoimento das testemunhas, na parte em que se limitem a contar o que as partes lhes contaram e que seja favorável à versão delas, é inócuo, por ser uma mera repetição, em deferido, do que pode ser dito, de viva voz e em primeira mão, pelas próprias partes.

              Dito de outro, o que elas dissessem não poderia servir de corroboração com valor relevante das declarações de parte da autora, pois que, de outro modo, a autora estaria a corroborar, indirectamente, através de interpostas pessoas, as suas próprias prestações de parte.

          Ora, no caso dos autos, como se vê pelo que é dito pelas testemunhas para fundamentar a escusa em depor e pelo que não era dito pela autora na petição inicial, tudo o que elas poderão saber é o que lhes foi contado pela própria autora, sendo evidente que não foram arroladas como testemunhas, pela autora, para virem contar factos desfavoráveis à versão da autora.

        Em suma: não só nada se alegava que minimamente indiciasse a imprescindibilidade do depoimento das testemunhas para a descoberta da verdade, como está indiciado suficientemente que ele não é minimamente necessário, ou, de modo sintético, e utilizando os termos que se seguem no sentido que acima lhes foi dado: não é imprescindível, nem essencial, nem exclusivo.

                                                                 *

       Pelo que não se determina a prestação de testemunho com quebra do segredo profissional.

              Custas do incidente pela autora (já que seria ela a tirar proveito da quebra pedida), fixando-se a taxa de justiça em 1UC (art. 7/4 do RCP e tabela II, outros incidentes).

              Lisboa, 12/09/2019

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto