Processo 2061/18.7T8FNC – Juízo Local Cível do Funchal

                   Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              Em 17/04/2018, V, na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de A, intentou uma acção de processo comum contra F, pedindo que o réu fosse condenado a reconhecer a sua responsabilidade, como adquirente, pelo pagamento do imposto de selo devido pelo contrato de cedência de posição contratual junto como doc 1 e, [por isso] a reembolsar, de imediato, o autor, na referida qualidade, d[os] 7500€ [pagos de imposto de selo por tal contrato], acrescidos de juros moratórios à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

              Alega para o efeito que em 07/10/2016, o autor celebrou com o réu um acordo de cedência de posição contratual, de inquilino num contrato de arrendamento comercial relativo a um prédio arrendado, com a contrapartida de 150.000€; o autor, através da sua contabilidade, procedeu à entrega de declaração do imposto de selo devido pelo supra referido contrato de cedência de posição contratual, conforme cópia de declaração junta (doc.2 – transferências onerosas de actividade ou de ex[…]); em consequência, em 18/11/2016, procedeu à liquidação e pagamento de 7500€ (doc.3); nos termos do art. 3/3v do Código do Imposto de Selo, a responsabilidade de tal pagamento incumbia exclusivamente ao adquirente, ou seja, ao réu, pelo que o autor, ao constatar que tal pagamento não lhe competia, notificou e interpelou o réu a 17/11/207, através de carta registada com aviso de recepção (doc.4) para o reembolsar da referida quantia, o que o réu não faz.

              O réu contestou, excepcionando, pois que, diz, o autor não requereu, pelo menos não o comprova documentalmente, à Administração tributária e Aduaneira, o reembolso do pagamento daquele imposto por entender que não o devia fazer mas sim [a]o réu.”

           No despacho saneador foi dada procedência à acção, com a seguinte fundamentação, que se transcreve com alguma simplificação:

                 Perante os factos provados, cabia ao réu e não ao autor o pagamento do imposto de selo, à luz do art. 3 do CIS, o qual reza assim, sob a epígrafe de ‘encargo do imposto”: 1 – O imposto constitui encargo dos titulares do interesse económico nas situações referidas no artigo 1. […] 3 – Para efeitos do n.º 1, considera-se titular do interesse económico: […] v: Nos trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola e nas subconcessões e trespasses de concessões feitos pelo Estado, pelas regiões autónomas ou pelas autarquias locais, para exploração de empresas ou de serviços de qualquer natureza, tenha ou não principiado a exploração, os adquirentes dos referidos direitos.”

         O réu invoca que o autor não requereu à ATA o reembolso do IS (ou pelo menos não o comprova documentalmente). Todavia, tal facto não é impeditivo (nem extintivo ou modificativo) do direito invocado pelo autor (bem pelo contrário, se o tivesse feito, estaria a agir de má-fé). O que seria impeditivo do direito invocado seria o facto de ter o autor requerido à ATA o reembolso do IS e de lhe ter sido deferido tal pedido.

         Deve, pelo exposto, a acção proceder, pois, de outra forma, acabaria por existir um enriquecimento sem causa por parte do réu (artigo 473 do Código Civil), não obstante não ter sido o réu a provocar tal situação, tendo sido o autor a efectuar tal pagamento, só tendo tido conhecimento posteriormente que tal pagamento não lhe competia).

              O réu interpôs recurso de tal saneador-sentença no essencial repetindo o que já tinha dito na contestação.

              O autor não contra-alegou.

                                                                 *

              No mesmo dia em que o recurso foi remetido a este tribunal de recurso, o autor informou que o réu após a interposição do recurso, veio pagar a totalidade da quantia peticionada, e requerer, face a manifesta inutilidade superveniente da lide, a extinção dos presentes autos, com custas pelo réu.

          O réu, notificado para se pronunciar sobre o que antecede, veio dizer que a referida quantia foi paga pelo réu em virtude de um processo de execução movido pelo autor (processo n.º 718/19.4T8FNC – execução de sentença nos próprios autos – agente de execução e s/despacho limiar que correu termos pelo juízo de execução – Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira), o que fez só para levantar as penhoras às contas bancárias do mesmo, pelo que, apesar de já ter pago coercivamente a quantia peticionada pelo autor, mantem interesse no recurso.

              Assim sendo, visto que não se tratou de um pagamento voluntário, mas para evitar a execução, não se verifica uma desistência tácita do recurso ou uma aceitação tácita da sentença, nem, por isso, qualquer inutilidade superveniente no recurso.

                                                                 *

              Questão que importa decidir: se o réu não devia ter sido condenado no pedido, ou seja, grosso modo, a reembolsar o autor do IS pago por este.

                                                                 *

              Os factos provados (foi dito que por confissão) que interessam à decisão desta questão são os seguintes:

  1. Foi celebrado no dia 07/10/2016 um contrato intitulado de “acordo de cedência de posição contratual”, entre o autor e o réu [é o contrato junto como doc.1, do qual consta, entre o mais, que o 1º outorgante é titular na referida qualidade de inquilino no contrato de arrendamento comercial celebrado com a senhoria; […] as partes outorgantes acordam nas seguintes disposições com vista à cedência da posição contratual de arrendatária do inquilino para o novo inquilino; […] o 1.º outorgante acorda em ceder ao 2º, com todos os direitos e deveres inerente e sem exclusão de direitos, a posição contratual de arrendatária, supra referenciado; […] com vista a possibilitar a entrega devoluta de mercadoria do espaço ocupado e, bem assim, efectivar a remoção das estantes […]; a 3ª outorgante, na dita qualidade de senhoria, autoriza a agora efectuada cedência da posição contratual para o novo inquilino, no âmbito do contrato de arrendamento supra identificado; […] constitui condição essencial de validade do presente contrato, a outorga sucessiva e imediata de aditamento ao referido contrato de arrendamento, entre o novo inquilino e o senhorio, em que acertam novos prazos, objecto, renda e ramo de comércio autorizado, dos espaços locados; nada mais tendo a declarar […]].
  2. No âmbito desse contrato, foi acordado que o valor a ser pago pelo réu, ao autor, seria de 150.000€.
  3. Esse valor foi pago efectivamente pelo réu ao autor.
  4. Foi o autor que, voluntariamente e sem o conhecimento do réu, apresentou a respectiva declaração do IS diante da ATA [donde consta: Madeira 327 – IS – transferências onerosas de actividade ou de ex(…) 7500€]

                                                                 *

              Decidindo:

              É certo que o art. 3/1 do CIS diz que o imposto constitui encargo dos titulares do interesse económico, o que, no caso de trespasse, são os adquirentes do direito (art. 3/3v do CIS). Mas o artigo 2/1q do CIS diz que o sujeito passivo do imposto é o trespassante nos trespasses de estabelecimento comercial.

           Ora, o art. 18/3 da Lei geral tributária diz que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.” E o art. 23/1 do CIS diz que “a liquidação do imposto compete aos sujeitos passivos referidos nos n.ºs 1 e 3 do artigo 2”.

            Assim, ao contrário do que o saneador-sentença recorrido e as partes pressupõem, não se verificou, nos termos como a acção foi colocada e entendida, um cumprimento de obrigação alheia, quer na previsão do art. 477, quer na previsão do art. 478, ambos do CC. 

         A obrigação que teria sido cumprida, do pagamento do imposto de selo pelo trespasse, era do autor, trespassante, como sujeito passivo do imposto, embora o contribuinte (o titular do interesse económico) seja outro [o autor declarou um trespasse, como se vê no ponto 4 dos factos provados, correspondendo o imposto de selo de 5% previsto no ponto 27.1 da tabela do IS, ou seja, os tais 7500€].

           Pelo que, sendo a obrigação do autor, ele ao cumpri-la não cumpriu uma obrigação alheia, mas uma obrigação própria.

           Ora, se é assim, o autor, quando quer que o réu – aquele que, segundo a lei, deve suportar o encargo decorrente do imposto – lhe reembolse o imposto, não está a pedir a restituição do indevidamente pago, por engano, sem causa justificativa (art. 473 do CC), mas a pedir, simplesmente, aquilo a que tem direito, ou seja, que o réu lhe pague o imposto que o autor teve de pagar em sua substituição, mas que é o réu que tem de suportar a final.

           Assim sendo, o saneador-sentença não tem razão em falar em enriquecimento sem causa decorrente do cumprimento de uma obrigação alheia e o réu não tem razão em dizer que o autor tinha que pedir a restituição ao fisco e não a ele (em aplicação, embora o réu não o diga, da norma do art. 477 do CC que, realmente, imporia que a restituição fosse pedida ao fisco/credor e não ao réu/devedor).

                                                                 *

            Em face ao que antecede, o saneador-sentença sentença estaria certo, embora com uma fundamentação errada.

           A verdade, no entanto, é que dos factos provados, e alegados, não pode decorrer nunca o direito do autor.

        Pois que um contrato de cessão da posição contratual, do inquilino, não é um trespasse. A cessão da posição contratual respeita ao contrato de arrendamento, só transmite este, não o estabelecimento. Pelo que não há trespasse do estabelecimento (entre o mais, veja-se Pinto Furtado, Manual do arrendamento urbano, vol. II, 2011, 5.ª edição, Almedina, págs. 658 a 662; e, por exemplo, os arts. 1059, 1109 e 1112 do CC que demonstram que são duas coisas distintas que podem ou não cumular-se; ora, o contrato que consta dos factos provados é uma cessão de posição contratual, e decorre das passagens transcritas do contrato supra que não se está a transferir o estabelecimento, mas o locado sem o estabelecimento].

              Ora, a cessão da posição contratual não está sujeita ao pagamento do imposto de selo, excepto quando envolva aumento da renda, o que, como se vê, não foi o caso, nem foi isso o declarado pelo autor na liquidação.

              Neste sentido, veja-se a ficha doutrinária respeitante ao processo 2015001574 – IVE n.º 9100, com despacho concordante de 14/08/2015, da Directora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira:

         “A cessão da posição contratual encontra previsão nos artigos 424 e seguintes do CC e define-se como o contrato pelo qual um dos contratantes, num contrato com prestações recíprocas, transmite a terceiro a sua posição neste contrato, ou seja, o conjunto de direitos e obrigações derivados deste contrato, desde que o contraente consinta na transmissão.

         O efeito típico da cessão, nas relações entre os primeiros outorgantes, é a transmissão da posição do cedente no contrato inicial para o cessionário, assistindo-se, por isso, a uma modificação subjectiva da relação contratual, embora esta subsista.

         Isto significa que não há lugar à extinção da relação contratual existente e à subsequente criação de uma nova relação contratual, mas sim à alteração da inicial.

         […]

         Conclui-se, deste modo, que o acordo de cessão da posição contratual […] consubstancia uma alteração ao contrato de arrendamento inicialmente celebrado […]. Ora, tratando-se de uma alteração a um contrato de arrendamento, só estará sujeita a IS se desta alteração resultar um aumento de renda e apenas sobre o valor do aumento, nos termos do disposto na verba 2 da TGIS, o que na situação vertente não se verifica.”

              Assim sendo, os factos alegados e provados não permitem a conclusão de direito de que tivesse que ser pago imposto de selo pelo acordo de cessão da posição contratual do autor no arrendamento, pelo que o réu não pode ser condenado a reembolsar ao autor o imposto pago por este.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o saneador-sentença e em sua substituição julga-se a acção improcedente.

              Custas, na vertente de custas de parte (não há outras), quer do recurso quer da acção, pelo autor (que perde a acção e o recurso).

              Lisboa, 12/09/2019

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto