Processo do Juízo Local Cível de Cascais

             

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              

            A intentou uma acção comum contra B pedindo a condenação desta a restituir-lhe 24.704€ e juros de mora vincendos a contar da interpelação para pagamento em 05/07/2017; subsidiariamente, pede que seja declarada a nulidade, por falta de forma do contrato de mútuo que diz estar em causa, e a ré seja condenada a devolver-lhe o montante emprestado.

          Alegou para o efeito, em síntese, que, durante uma relação de namoro que manteve com a ré entre 2005 e 2012 lhe emprestou, por diversas vezes, quantias monetárias, no montante total pedido, tendo sido acordado entre eles, sempre verbalmente, que a ré restituiria o dinheiro quando tivesse disponibilidade e que agora a ré não lho restitui apesar de ter sido para tal formalmente interpelada naquela data (05/07/2017).

              A ré contestou, começando por impugnar todos os factos base da pretensão do autor, mas a final diz que “da documentação junta apenas está demonstrado o montante global de 16.700€” uma vez que outras transferências foram feitas ou para uma conta não identificável ou para conta que não é sua.

             Depois de realizada a audiência final foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente e em consequência condenando a ré a pagar ao autor 18.700€ e absolvendo-a do resto do pedido.

              A ré recorre desta sentença – para que seja anulada/revogada e substituída por outra que a absolva do pedido -, dizendo, em síntese feita por este tribunal de recurso (mas mantendo a construção da ré), que:

         Na acção foi alegado um empréstimo, nos termos do artigo 1143 do CC e a ré apresentou a sua defesa, reconhecendo a transferência das quantias documentadas na PI, não a título de empréstimo, mas sim através de doação.

         A ré no depoimento de parte informou que os valores transferidos eram para fazer face a despesas comuns do casal na altura, não fazendo parte dos factos a que a ré teve de prestar o seu depoimento a que titulo eram essas despesas, motivo pelo qual a mesma não as descreveu ou mencionou, porque nem sequer foi questionada para esse efeito; nem o teria de fazer, uma vez que cabia ao autor fazer prova do alegado por si na PI.

         O autor fez o pedido com base no mútuo e subsidiariamente com base na nulidade do mútuo e a sentença, considerando não provados o mútuo ou a sua nulidade, condenou a ré com base no enriquecimento sem causa.   

        O tribunal recorrido interpretou e aplicou de forma errada o conceito de causa de pedir, colocando em causa a margem ampla que assiste ao julgador em interpretar e aplicar as regras de direito.

          Não há duvidas que estamos perante uma decisão surpresa prevista no artigo 3/3 do CPC, com violação do princípio do contraditório, na medida em que o autor não logrou provar a causa de pedir e o tribunal julgou para além do pedido formulado pelo autor, porque o enriquecimento sem causa não foi peticionado, nem a titulo subsidiário, não tendo a ré apresentado defensa quanto a esta matéria. Deve, assim, a sentença ser revogada.

         Estão em equação os próprios limites objectivos da acção definidos mediante a causa de pedir e o pedido, perímetro que ao tribunal não é lícito ultrapassar no exercício dos seus poderes jurisdicionais; causa de pedir essa que não foi estruturada mediante a alegação de factos integradores de enriquecimento injustificado, e muito menos a título subsidiário; e não ocorreram ao longo dos articulados qualquer alteração da causa de pedir.

         A sentença violou assim, os artigos 5/1-3, 260, 581/4, 607/4-5, 608/2 e 609/1 do CPC e os artigos 342, 473/1-2 e 474 do CC.

         Acresce que, mesmo que tivesse sido peticionado, cabia ao autor o ónus da prova de que ocorreu tal enriquecimento a alguém e à sua custa e que não havia causa justificativa para esse enriquecimento, o que é entendimento unânime da nossa jurisprudência.

        Mais, o autor invoca uma causa para a deslocação patrimonial ocorrida, um contrato de mútuo; assim, é notório que nunca o autor alegou ou invocou falta de causa para a deslocação patrimonial, requisito essencial para a aplicação do art. 473 do CC.

         E a mera falta de prova da existência de causa da atribuição não é suficiente para fundamentar a restituição, sendo necessário provar que efectivamente a causa falta.

         A sentença é nula nos termos do artigo 615/1-d-e do CPC.

              O autor contra-alegou, dizendo, em síntese, que:

           A ré não cumpriu o que lhe é imposto pelo artigo 639/2-b do CPC, isto é, o sentido com que, no seu ponto de vista, as normas que constituem o fundamento da decisão, deveriam ter sido interpretadas e aplicadas pelo tribunal a quo.

         Resulta claro da letra da lei – v.g. artigo 5/1-3 do CPC – que o ónus que impende sobre as partes numa acção é o de alegarem a matéria factual, apresentando aquele que consideram o correto enquadramento legal, cabendo, porém, inequivocamente ao tribunal a subsunção dos factos alegados às regras de direito aplicáveis, ainda que esteja, no entanto, limitado à causa de pedir invocada pelo autor, não a podendo alterar.

        É inequívoco que a alteração da qualificação jurídica dos factos operada pelo tribunal a quo não correspondeu, in casu, a uma qualquer alteração da causa de pedir, porque não se alteraram os factos sobre os quais assenta a pretensão deduzida e, em vez de os qualificar como mútuo, enquadrou-se a situação em apreço no instituto do enriquecimento sem causa, fazendo uma interpretação do Direito diversa daquela que havia sido empreendida pelo autor.

         Não se verifica uma qualquer decisão surpresa – proibida no artigo 3/3 do CPC -, porquanto a solução perfilhada é exactamente aquela que teria lugar se o tribunal tivesse enquadrado o caso de acordo com o peticionado pelo autor: a condenação da ré no pagamento das quantias recebidas.

         O autor fez prova dos factos constitutivos do direito que invoca (factos 6 a 16), sendo de salientar que das comunicações electrónicas efectuadas entre as partes em 06/03/2017, através do chat do facebook, juntas como doc.s 3 da PI a fls. 14 e seguintes, e que não foram impugnadas pela ré, extrai-se, inequivocamente, que aquela admitiu inequivocamente, ainda que de forma tácita, que o dinheiro que recebeu do autor não revestiu a forma de uma qualquer doação (referindo apenas a impossibilidade de, a essa data, não ter condições de devolver os montantes).

         No seu depoimento de parte a ré não só não conseguiu explicar, de forma cabal, o motivo do recebimento das ditas quantias, como, aliás, entrou em contradição, ao referir que os montantes recebidos eram para fazer face às despesas do dia-a-dia do próprio autor e, depois, em sede de alegações de recurso, que tais montantes foram recebidos a título de doação.

                                                                 *

              Questões que importa decidir: se a ré não cumpriu o ónus que lhe é imposto pelo art. 639/2-b do CPC; se se verifica a invocada nulidade da sentença; e, no caso de não se verificar, fica por saber se a sentença podia condenar a ré no pedido de restituição com base no enriquecimento sem causa.

Do art. 639/2-b do CPC

              Dizendo a ré tudo aquilo que disse sobre a violação pela sentença recorrida das regras que se referem aos poderes de conhecimento do tribunal, dependente da causa de pedir alegada, está a dizer que as normas em causa tinham o sentido contrário do que lhes foi dado pela sentença recorrida, não permitindo, por isso, ao juiz condenar a ré a restituir as quantias a título de enriquecimento sem causa, sem que os pressupostos deste tivessem sido invocados na petição. Com isso dando cumprimento suficiente ao disposto no art. 639/2-b do CPC.

                                                                 *

              Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão destas questões:

               1. O autor e a ré mantiveram uma relação de namoro entre 2005 e o ano de 2012.

              2. Em 2011, a ré adquiriu um apartamento sito no Beato em Lisboa.

             3. A relação pessoal entre o autor e a ré terminou em 2012.

             4. O autor contactou a ré, no início de 2017, solicitando a devolução de quantias.

          5. Por carta datada de 05/07/2017, recebida em 10/07/207, o autor interpelou a ré para proceder ao pagamento de 24.704,04€.

            6. Em 02/09/2009, o autor depositou 200€ na conta bancária da ré.

      7 a 16. O autor transferiu para a conta bancária da ré, nas seguintes datas as seguintes quantias:

02/04/2010 2000€
05/04/2010 2000€
07/04/2010 2000€
14/04/2010 2000€
31/12/2010 2000€
03/01/2011 1000€
28/03/2011 1800€
29/03/2011 1800€
30/03/2011 1900€
12/07/2011 2000€

                                                                 *

              O tribunal recorrido considerou a acção parcialmente procedente com base no seguinte:

            Pese embora tenha existido entrega de quantias, as partes nunca convencionaram de mútuo acordo qualquer obrigação de restituição, motivo pelo qual, não se poderá considerar que nos encontramos perante um contrato de mútuo (art. 1142 do Código Civil) e que o mesmo seja nulo por vício de forma.

          Contudo, não estando o julgador sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras do direito (art. 5/3 do CPC), afigura-se-nos que a situação é susceptível de, subsidiariamente, ser subsumida à figura do enriquecimento sem causa (art. 474 CC).

         Resultou demonstrado que o autor disponibilizou na conta bancária da ré 18.700€.

        Os requisitos do enriquecimento sem causa (art. 473 do CC) são, no dizer de Pires de Lima e Antunes Varela (CC Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 454): a) A existência de um enriquecimento […];  b) Sem causa justificativa […]; c) À custa de outrem […]; d) Subsidiariedade da obrigação de restituição […].

       No caso vertente, a disponibilização do montante de 18.700€ na esfera jurídica da ré constituiu uma vantagem de carácter patrimonial, na medida em que não era expectável que a ré conseguisse de sua livre iniciativa reunir tal quantia, e tal foi obtido à custa de outrem, na medida em que o autor deixou de beneficiar da disponibilidade de tal quantia na sua esfera jurídica.

         A recepção de tal quantia deu-se sem qualquer causa justificativa credível, na medida em que as meras despesas do dia-a-dia, ainda que somadas, não são susceptíveis de atingir o valor declarado, motivo pelo qual acreditamos que se mostram preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa.

       Atento o preenchimento dos requisitos do enriquecimento sem causa, sobre a ré incidirá a obrigação de restituição (art. 473/2 do CC) dos 18.700€.

         O autor apresentou prova parcial do direito alegado, ainda que com diferente enquadramento jurídico, motivo pelo qual deverá a acção ser julgada parcialmente procedente.

                                                                             *

Da nulidade da sentença

              Antes de mais, diga-se que a ré está errada quando diz que alegou que as quantias tinham sido entregues por doação. Ela não o fez, como decorre da síntese da contestação que consta do relatório deste acórdão. Nesta parte o autor tem razão (inclusive no argumento de que tal implica uma contradição nas alegações da ré durante o processo). Mas isto em nada beneficia o autor, como se verá.

                                                                 *

              Posto isto,

             Por força da conjugação dos arts. 608/2 e 615/1-d do CPC, o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes e, se for para além delas, a sentença é nula nessa parte.

              Para o que agora interessa, as questões suscitadas pelo autor correspondem ao objecto do processo, ou seja, um pedido delimitado por uma causa de pedir (art. 552/1, alíneas d, 1.ª metade, e e, do CPC).

              A causa de pedir é o conjunto dos factos essenciais (arts. 552/1-d e 5/1, do CPC), isto é, aqueles que, preenchendo uma previsão de direito conduzem à consequência pretendida pelo autor (dito de modo mais preciso, a causa de pedir “corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido.” – Lebre de Freitas, A acção declarativa, 2017, 4.ª ed., Gestlegal, pág. 50).

              O juiz é livre no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5/3 do CPC), mas isso a partir dos factos essenciais alegados pelas partes, inclusive no decurso do processo, se se puder entender que, em articulados supervenientes, ocorreu uma alteração, legalmente admitida, das causas de pedir (artigos 260, 264, 265 e 588, todos do CPC); ou seja, os factos alegados podem integrar várias previsões normativas e o juiz é livre de fazer a averiguação de quais são as causas de pedir que estão invocadas, mas está sempre limitado, como o próprio autor admite, a essas causas de pedir.

              Dito com Lebre de Freitas (obra citada, pág. 53): “A causa de pedir exerce função individualizadora do pedido para o efeito da conformação do objecto do processo. Por isso, o tribunal tem de a consi­derar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (art. 608-2), sob pena de nulidade da sentença (art. 615-1-d) […]”

                                                                 *

              O enriquecimento sem causa pressupunha, tendo em conta o que está em causa nos autos, a alegação, pelo autor, a título subsidiário sob pena de incompatibilidade lógica, de que não existia qualquer causa jurídica para a entrega das quantias à ré, ou que elas tinham sido entregues por uma causa que tinha deixado de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (art. 473/2 do CC).

              Ou seja, para o enriquecimento sem causa, vale, como não podia deixar de ser, a norma do art. 342/1 do CC, pelo que era ao autor que incumbia provar que não existia qualquer causa para o enriquecimento da ré:

              Neste exacto sentido, veja-se o acórdão do STJ de 24/04/1985 (de Américo Campos Costa – com um voto de vencido em 5) publicado no BMJ. 346/254 a 256:

         “entregue uma quantia a uma pessoa e não tendo esta efectuado a restituição dessa importância, não há lugar ao pedido de restituição com base no enriquecimento sem causa, por não se verificar, no caso, o requisito do enriquecimento carecer de causa justificativa. Nos termos do art. 342/1 do CC, incumbe ao autor o ónus da prova do requisito de que o enriquecimento carece de causa justificativa”.

              E a doutrina e jurisprudência aí citados, entre eles Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª edição, vol. I, pág. 369:

         “não bastará para esse efeito (…) que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa”.

              Com interesse, veja-se ainda o acórdão do STJ de 22/1/2004, publicado no sítio do ITIJ sob o nº. 03B1815:

         I – A falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume no tipo legal do artigo 473 do Código Civil a natureza de elemento constitutivo do direito, devendo os respectivos factos integradores ser, pois, qualificados como constitutivos do direito à restituição, mesmo em caso de dúvida, e cabendo por consequência ao autor deste pedido o concernente ónus probatório, cujo incumprimento se resolve em seu desfavor (artigo 342, n.ºs 1 e 3);

         II – No plano da interpretação e aplicação do direito envolvido na repartição do ónus da prova não relevam as dificuldades probatórias dos factos negativos;

         III – Competindo ao autor do pedido de restituição o ónus da prova da falta de causa do enriquecimento, à prova que neste sentido seja lograda pode o réu opor contraprova destinada a tornar essa falta duvidosa, de forma que, alcançando sucesso, a questão é decidida contra o autor (artigo 346);

         IV – No quadro das proposições antecedentes, a alegação pelo réu de factos integradores de uma causa justificativa do enriquecimento compreende-se unicamente como exercício de contraprova, e a falta de prova dos factos neste sentido alegados apenas surte consequentemente efeitos jurídico-processuais desfavoráveis ao réu caso seja cumprido pelo autor o correspectivo ónus probatório.

         […]

              Isto já tinha sido dito numa sentença de Anadia de 2007, em que o autor tinha alegado subsidiariamente a nulidade do mútuo e também o enriquecimento sem causa, para o caso de não se provar o mútuo (e com base na eventual falta de prova deste), confirmada por um extenso acórdão do TRC, de 04/12/2007, proc. 862/05.5TBAND.C1, com o seguinte sumário:

         I – O enriquecimento sem causa, enquanto fonte obrigacional específica, pressupõe a existência de uma “causa justificativa” da deslocação patrimonial, sendo que só por referência a esta se pode constatar a sua falta.

         II – No caso do chamado “enriquecimento por prestação” do empobrecido, a obrigação de restituir assenta na efectiva inexistência, não verificação ou posterior desaparecimento da “causa justificativa” que presidiu a essa prestação.

         III – A “causa justificativa”, sendo um dos elementos integradores da obrigação de restituir decorrente do art. 473 do CC, carece de alegação e prova dos respectivos factos constitutivos, especificamente dirigidas à produção desse efeito (restituição).

         IV – A falta de alegação ou prova da “causa justificativa” implica, relativamente ao enriquecimento sem causa, o accionar, por ausência dos pertinentes factos constitutivos, das “regras de decisão” previstas nos arts 342 do CC e 516 do CPC.

         V – Assim, o enriquecimento sem causa não traduz uma regra “residual” de decisão (não traduz sequer uma regra de decisão), que seja desencadeada, no que à obrigação de restituir respeita, pela indemonstração da causa de uma deslocação patrimonial, cuja invocação se dirigia a outro efeito (como seja a restituição de uma quantia mutuada).

              Sendo que este acórdão do TRC foi, por sua vez, confirmado pelo ac. do STJ de 16/9/2008, proc. 08B1644:

I. Tendo o autor estruturado a sua acção (também) com base no enriquecimento sem causa, compete-lhe alegar e provar os respectivos pressupostos, vertidos no art. 473/1 do CC. Sendo os mesmos: a) a existência de um enriquecimento; b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.

II. Tendo, assim, a falta de causa de ser não só alegada, como também provada, por quem pede a restituição. Não bastando, segundo as regras do onus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição, sendo preciso convencer o tribunal da falta de causa.

III. Assim sucedendo, mesmo que o réu, na sua defesa por impugnação (por negação indirecta ou motivada), tenha alegado causa para a comprovada deslocação patrimonial (in casu, uma doação), que, entretanto, também não provou. Pois, não é ele que necessita de demonstrar a inexactidão ou inexistência dos factos alegados pelo autor, o mesmo é dizer a existência de causa para a deslocação patrimonial verificada.

              Sendo que o ac. do TRC foi depois desenvolvido num outro, do TRC, de 17/09/2013, proc. 64/09.1TBTMR.C1, sempre no mesmo sentido:

       I – O enriquecimento sem causa, enquanto fonte obrigacional específica, pressupõe a existência de uma “causa justificativa” da deslocação patrimonial, sendo que só por referência à alegação desta causa se pode constatar a sua falta.

       II – No caso do chamado “enriquecimento por prestação” do empobrecido, a obrigação de restituir assenta na efectiva inexistência, não verificação ou posterior desaparecimento da concreta “causa justificativa” que presidiu a essa prestação.

       III – A “causa justificativa”, sendo um dos elementos integradores da obrigação de restituir decorrente do artigo 473 do CC, carece de alegação e prova dos respectivos factos constitutivos, especificamente dirigidas à produção desse efeito (restituição).

       IV – A falta de prova da “causa justificativa” alegada implica, relativamente ao enriquecimento sem causa, o accionar, por ausência dos pertinentes factos constitutivos, das “regras de decisão” previstas no artigo 342º do CC.

       V – Assim, o enriquecimento sem causa não traduz uma regra “residual” de decisão (não traduz sequer uma regra de decisão), que seja desencadeada, no que à obrigação de restituir respeita, pela indemonstração da causa de uma deslocação patrimonial, cuja invocação se dirigia a outro efeito (como seja a restituição de uma quantia mutuada).

       VI – Nestes casos, invocação de ter existido um mútuo sem que se tenha logrado prová-lo, a acção improcede, sendo descabido determinar a restituição do que foi prestado aos alegados mutuários com base no suposto enriquecimento sem causa destes.

       Ainda no mesmo sentido, veja-se o ac. do STJ de 02/02/2010, proc. 1761/06. 97UPRT.S1:

4. São pressupostos do enriquecimento sem causa a deslocação patrimonial, o ter ocorrido à custa de outrem e a ausência de causa justificativa.

5. O enriquecimento sem causa só pode ser invocado a título subsidiário, sendo que a alegação e prova daqueles pressupostos cumpre ao demandante devendo, in dubio, considerar-se que a deslocação patrimonial teve justa causa.

[…]

7. O conceito de causa de pedir é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o demandante formula, cumprindo às partes a alegação desses factos, nos quais o juiz funda a sua decisão, embora possa atender, ainda que ex officio, aos instrumentais, que resultem da instrução e da discussão e aos que sejam complemento ou concretização de outros.

8. O juiz está limitado pelo princípio do dispositivo, mas a substanciação (ou consubstanciação) permite-lhe definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é lícito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas. Tal princípio pode mesmo implicar uma convolação da situação jurídica alegada pelas partes e a sua submissão a diferentes normas, desde que não altere a causa de pedir.

              Sendo que naquela sentença de Anadia – em que, recorde-se, o autor invocava subsidiariamente o enriquecimento sem causa – já se tinha dito:

         Ora, o autor não alegava a falta de qualquer causa justificativa das entregas feitas à ré. Concluía, apenas, que, não existindo o mútuo que alegava, então não existia causa. Ou seja, partia do princípio de que, não se provando a causa de atribuição que tinha invocado, então faltava causa, que é precisamente a posição que Antunes Varela refuta. Ou partia do princípio de que era à ré que cabia a prova da existência de uma causa, posição que o acórdão citado muito justamente rejeita. Assim, não se prova a inexistência de causa justificativa, um dos factos constitutivos do direito invocado, pelo que também o pedido subsidiário tem de improceder.

                                                                 *

              Bem como os inúmeros outros citados pela ré:

              Ac. do STJ de 12/07/2018, proc. 779/15.5T8PTM.E1.S1:

         Tendo sido alegado pelos autores um empréstimo feito ao réu (ou seja, um contrato de mútuo) e defendendo-se o réu dizendo que a quantia peticionada era a contrapartida de serviços prestados aos autores, não se provando o contrato de mútuo, não pode o juiz, na sentença, condenar com base no enriquecimento sem causa, dado que a ausência de causa justificativa da deslocação patrimonial tem de ser alegada e provada pelo requerente da restituição do enriquecimento (arts. 342.º, n.º 1, 473.º e 474.º do CC) e a causa de pedir da acção não é o enriquecimento sem causa, mas o alegado contrato de mútuo.

         E no seu texto: “Como se afirma no acórdão do STJ de 17/10/2006 «a matéria do ónus da prova constitui um dos “raros oásis de consenso” no âmbito do enriquecimento sem causa: na verdade, é doutrina praticamente pacífica e jurisprudência largamente dominante a tese de que cabe ao autor demonstrar a ausência de causa da sua prestação, não obstante tratar-se de um facto negativo».

              Ac. do STJ de 19/02/2013, proc. 2777/10.6TBPTM.E1.S1:

         A falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enriquecimento tem de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição dela decorrente, em conformidade com as exigências gerais sobre os ónus de alegação e prova.

         A mera falta de prova da existência de causa da atribuição não é suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar que efectivamente a causa falta.

              Ac. do STJ de 19/05/2011, proc. 2203/09.3 TBPVZ:

         I- Para que haja lugar à condenação judicial na restituição do indevido, por força do enriquecimento sem causa, é irrefragavelmente necessário que se demonstre – mediante alegação e prova da respectiva factualidade – que a quantia que constitui a massa patrimonial deslocada do património do empobrecido para o do enriquecido não teve causa justificativa, designadamente por não ser devida em função de qualquer título ou acto válido e eficaz.

         II- Como ensinaram Pires de Lima e Antunes Varela, «a obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de uma causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido». (CC, anotado, I, 4ª edição, pg. 454).

         III- Facto não provado equivale a facto não alegado e nunca que se tenha provado o contrário!

         IV- Já num vetusto aresto de 1968 deste STJ se havia sentenciado no sentido de que «a resposta negativa a um quesito revela apenas que o facto quesitado se não provou e não que se tenha demonstrado o contrário; é como se o facto não tivesse sido articulado» (de 28/05/1968 in BMJ, 177º-260), não tendo havido qualquer alteração nessa orientação jurisprudencial.

              Ac. STJ de 16/10/2008, proc. 08A2709:

         3) São pressupostos do enriquecimento sem causa a deslocação patrimonial, o ter ocorrido à custa de outrem e a ausência de causa justificativa.

         4) O enriquecimento sem causa só pode ser invocado a título subsidiário, sendo que a alegação e prova daqueles pressupostos cumpre ao demandante devendo in dubio considerar-se que a deslocação patrimonial teve justa causa.

              Ac. do STJ de 19/02/2009, processo 07B4794:

1. Não tendo sido oportunamente formulado nenhum pedido de restituição por enriquecimento sem causa, nem subsidiariamente, não pode conhecer-se de tal questão.

2. A falta de prova da celebração de um contrato de mútuo impede a condenação na restituição do capital com fundamento em nulidade por falta de forma, já que também tem de ser provado o título com que o dinheiro foi entregue ou passou a ser detido.

3. É ao autor que cabe o ónus de provar a celebração de um contrato de mútuo invocado para fundamentar o pedido de restituição do capital.

4. Não basta, para provar tal celebração, estar assente o recebimento da quantia peticionada e o assentimento prestado para que o réu a utilizasse.

              Ac. do STJ de 02/07/2009, proc. 123/07.5TJVNF.S1

         1 – Nada obsta que, em princípio, gorada a acção com base no mútuo nulo por falta de forma, venha o mesmo autor, agora com fundamento no enriquecimento indevido, pedir ao mesmo réu o reembolso da mesma quantia.

         2 – O instituto do enriquecimento sem causa surge-nos como fonte autónoma das obrigações, sendo certo que, de acordo com o princípio da subsidiariedade, o empobrecido só pode recorrer à acção de enriquecimento à custa de outrem, quando não tenha outro meio para cobrir os seus alegados prejuízos.

         3 – Tendo o autor estruturado a sua acção com base no enriquecimento sem causa, compete-lhe alegar e provar os seus respectivos pressupostos, ou seja: a) a existência de um enriquecimento; b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.

         4 – Tendo, assim, a falta de causa de ser não só alegada, como também provada por quem pede a restituição.

         5 – Traduzindo-se a falta de causa justificativa na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento.

         6 – E, se o onerado com o ónus em apreço não fizer a prova dos factos que lhe são impostos, a causa será julgada contra ele.

         7 – Mesmo que a ré não tenha logrado provar a matéria que concretamente alegou como causa justificativa do dinheiro que pelo autor lhe foi entregue e que não devolveu.

              Ac. STJ de 29/05/2007, proc. 07A1302:

         I – São requisitos do enriquecimento sem causa: o enriquecimento, o empobrecimento, o nexo causal entre um e outro e a falta de causa justificativa da deslocação, patrimonial verificada.

         2 – A falta de causa terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no art. 342, por quem pede a restituição.

         3 – Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus da prova, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa. 

              Ac. do STJ de 18/01/2007, proc. 06B4633:

1. A defesa por impugnação pode consistir tanto na simples negação como na negação motivada, como é o caso em que o ré reconhece a realidade dos factos mas dá-lhe versão diferente.

2. Alegando a autora que entregou o dinheiro ao réu a título de empréstimo, para este lho devolver, defende-se por impugnação o réu se, ao contestar, não nega a entrega do dinheiro, mas diz que o mesmo lhe foi doado pela autora.

3. Neste caso, cabe à autora o ónus da prova de que o dinheiro foi entregue ao réu com a obrigação deste o devolver.

4. Pedindo a autora a devolução do dinheiro, a título subsidiário, com base no enriquecimento sem causal, tem que alegar e demonstrar que essa deslocação patrimonial carece de causa justificativa.

5. Sendo a restituição do dinheiro pedida com base na nulidade do empréstimo por falta de forma, a respectiva restituição, nesse caso, seria sempre com base no disposto no art. 289 do CC, que não com base no enriquecimento sem causa que tem carácter subsidiário.

              Ac. STJ de 5/12/2006:

1. Incumbe ao autor que deduziu o pedido de restituição do que entregara sem causa, o ónus de prova da ausência de causa da transferência monetária ou da cessação da mesma causa.

[…]

                                                                 *  

            Posto isto,

           Da petição inicial dos autos nada consta quanto à falta de causa, nem podia constar (a não ser a título subsidiário), porque o autor – como diz a ré – até alegava uma causa para entrega – um mútuo -, sendo que a obrigação de restituição que dizia existir tinha a ver com esse mútuo ou com a nulidade do mesmo, não com a cessação da causa.

         Assim, não foram, como diz a ré, alegados factos que fossem subsumíveis à previsão normativa do enriquecimento sem causa.

        Pelo que a questão colocada pelo autor não era a do enriquecimento sem causa e, por isso, o juiz não podia conhecer deste.

       Pelo que se verifica a arguida nulidade da sentença (arts. 608/2 e 615/1-d do CPC), ficando prejudicada a outra questão que era objecto deste recurso, cuja solução, de qualquer modo, já decorre de tudo o que antecede.

                                                                 *

           Note-se que o autor, nas contra-alegações diz que fez prova dos factos constitutivos do direito [estando a referir-se ao enriquecimento sem causa], mas, bem consciente do contrário, logo a seguir o que faz é recorrer a outros factos, que não constam dos factos provados (e o mesmo faz a sentença que fundamenta a decisão em factos não dados como provados), nem tentou fazer como que constassem (impugnando a decisão da matéria de facto, nem que fosse ao abrigo do art. 636/2 do CPC), e sem se aperceber que se de facto tivesse alegado o enriquecimento sem causa (como pressuposto), como não o tinha feito a título subsidiário, tal estaria em manifesta contradição com a invocação do mútuo: uma entrega de dinheiro não pode ter uma causa (um mútuo) e ao mesmo tempo não ter causa.

                                                                 *

         A questão da nulidade da sentença resolveu-se do modo referido, sendo irrelevante, por isso, tudo o que a ré e o autor dizem sobre a questão da proibição das decisões-surpresa.

                                                                 *

              Sendo a sentença nula porque não podia conhecer da questão do enriquecimento sem causa, esta parte da sentença tem de ser anulada, ficando a subsistir a parte restante, que apreciou o pedido deduzido pelo autor, com base nas causas de pedir invocadas – mútuo e nulidade do mútuo -, e concluiu no sentido de que não se provavam, o que não foi posto em causa pelo autor.

              Assim sendo, a acção tem de ser julgada improcedente, por não provada.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, anulando-se a sentença recorrida na parte da condenação da ré e substituindo-se a mesma por este acórdão que julga a acção improcedente por não provada, absolvendo a ré do pedido.

              Custas da acção e do recurso, na vertente de custas de parte, pelo autor (que foi quem decaiu na acção e no recurso).

              Lisboa, 07/11/2019

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto