Processo do Juízo Local Cível do Funchal – Juiz 3

              Sumário:

I. Justifica-se a determinação do regime da representação genérica (art. 145/2-b do CC) relativamente a uma pessoa portadora de deficiência profunda da sua capacidade intelectual desde os seis meses de idade, que lhe retira a capacidade de lidar com as diversas situações do quotidiano, não tendo qualquer sentido crítico no tocante à orientação da sua vida nem à administração dos seus bens; que não aprendeu a ler nem a escrever; não conhece o dinheiro; não sabe o dia dos seus anos, nem a sua idade; sabe que hoje é segunda, mas não sabe de que mês; não é capaz de realizar qualquer tarefa, por mais simples que seja, designadamente as tarefas associadas à sua própria subsistência; carece de auxílio permanente de terceira pessoa para se alimentar, vestir e tratar da sua higiene.

II. E, por isso, justifica-se que se decida, para os efeitos dos artigos 5/3 e 13/1 da Lei 36/98, de 24/07 (Lei de Saúde Mental), que a situação de acompanhamento de maior, declarada pela sentença, não faculta o exercício directo de direitos pessoais.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

         A 06/09/2018, o Magistrado do Ministério Público instaurou, ao abrigo do disposto nos artigos 138, n.º 1, e 141, do Código Civil, e 891 e seguintes do Código do Processo Civil, acção especial, pedindo que se declarasse T interdita por anomalia psíquica e se lhe nomeasse como tutora a sua irmã, com quem reside, para que esta cuide dos bens daquela e legalmente a represente.

              Alegava, para tanto e em síntese, que a requerida é, desde os primeiros meses de infância, portadora de deficiência mental profunda; é parcialmente dependente para os cuidados diários de alimentação, higiene e vestuário, carecendo de supervisão de outra pessoa para a orientar fora do espaço habitacional; é incapaz de se orientar no tempo, não identifica o ano, mês e dia em que se encontra, nem conhece as horas. Juntou, entre o mais, declaração médica comprovativa da deficiência alegada e de que a requeri-da não estava capaz de reger a sua pessoa e os seus bens.

              Foi anunciada a propositura da acção, nos termos do art. 892 do CPC. Em virtude de a requerida se encontrar impossibilitada de receber a citação, foi citada na pessoa do curador provisório, que não deduziu contestação e, uma vez que o Ministério Público é o requerente, solicitou-se à delegação da Ordem dos Advogados a indicação de defensor oficioso, nos termos do art. 894/1 e 21/2 do CPC, que também não deduziu contestação.

              A 11/02/2019 entrou em vigor a Lei 49/2018, de 14/08 (Lei que criou o regime jurídico do maior acompanhado e eliminou os institutos de interdição e da inabilitação), de aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes, conforme dispõe o art. 26/1 da referida lei; ao abrigo do n.º 2 do mesmo artigo procedeu-se às adaptações necessárias no processo e na sequência o MP veio dizer que “em relação à medida de acompanhamento e sem que ainda se tenha procedido à audição da beneficiária, requer-se, por ora, que seja o regime de representação geral, com incapacidade para testar.”

              Procedeu-se à audição pessoal e directa da requerida, tendo sido tomadas declarações à pessoa indicada para tutora, irmã da requerida, e depois foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência decidiu:

         1.1 – Declarar T, beneficiária de medida de acompanhamento, sujeita ao regime da representação geral (cfr. artigos 138 e 145/2-b, 1.ª parte, do CC).

         1.2 – Designar R acompanhante da beneficiária (cfr. art.143/2-i do CC);

         1.3 – Atribuir à acompanhante designada em 1.2, poderes de representação geral do beneficiário, que segue o regime da tutela, com as necessárias adaptações por força da entrada em vigor da Lei 49/2018, de 14/8, designadamente os poderes para receber pensões e/ou subsídios e geri-los em benefício e de acordo com as necessidades da beneficiária.

         1.4 – Consignar que a acompanhante designada em 1.2, no exercício da sua função, deverá privilegiar o bem-estar e a recuperação do acompanhante com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação, devendo manter um contacto permanente com aquela, não se designando regime de visitas porquanto a requerida vive consigo (cfr. art. 146 do CC).

         1.5 – Dispensar a nomeação de Conselho de Família (cfr. art. 900/2 do CPC).

         1.6 – Consignar que, para os efeitos do disposto no art. 2189/-b do CC, a beneficiária é incapaz de testar.

         1.7 – Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 5/3 da Lei 36/98, de 24/07 (Lei de Saúde Mental), a situação de acompanhamento de maior, declarada pela presente sentença, não faculta o exercício directo de direitos pessoais para efeito do art. 13/1 da referida Lei.

         1.8 – Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 4/1 do DL 272/2001, de 13/10, o acompanhado não pode aceitar ou rejeitar pessoalmente liberalidades a seu favor.

         1.9 – Consignar que não existe notícia de que a beneficiária tenha outorgado testamento vital e/ou procuração para cuidados de saúde (cfr. art. 900/3 do CPC e artigos 4/-b, 14/3 e 16 da Lei 25/2012, de 16/07).

         1.10 – Consignar que a incapacidade da requerida se verifica desde os seis meses de idade (cfr. art. 900/1 do CPC).

         1.11 – Fixar em cinco anos o prazo de revisão da medida aplicada, nos termos e para os efeitos previstos no art. 155 do CC.  

         1.12 – Determinar a publicação da presente sentença em sítio oficial (cfr. art. 893, n.ºs 1 e 2 do CPC e art. 153/1 do CC).

              O Ministério Público recorre desta sentença – para que se declare a nulidade dela quanto ao decidido no ponto 1.7, por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 615/1-b do CPC, substituindo-se por outra que não restrinja os direitos pessoais da requerida -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem na parte útil:

I. O RJMA tem como objectivo, plasmado no artigo 140/1 do CC, o bem-estar do acompanhado e a sua recuperação, em pleno exercício de todos os seus direitos, constituindo a restrição de tais direitos um regime excepcional, cuja imposição, por sentença, deverá justificar-se mediante cada situação concreta.

II. Por isso, o art. 145/1 do CC limita o acompanhamento ao estritamente necessário e o art. 147/1 do CC estatui, como princípio geral, a liberdade no exercício dos direitos pessoais dos acompanhados, tais como os de casar, de estabelecerem relações de união de facto, de procriarem, perfilharem ou de adoptarem, o de cuidarem e educarem os filhos, o de escolherem profissão, deslocarem-se no país ou estrangeiro, fixarem residência ou domicílio, de testar e de estabelecerem relações com quem entenderem.

III. O direito de os maiores acompanhados constituírem família e de contraírem casamento, em condições de plena igualdade não se encontra unicamente protegido pelo CC, merecendo, ainda, protecção nos artigos 67 e 36/1 da Constituição da República Portuguesa.

IV. A liberdade de deslocação e de escolha de domicílio, a que o art. 147/2 do CC também faz alusão, encontra-se protegida, expressamente, no artigo 44 da CRP, que, garante a “todos os cidadãos”, “o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte”.

V. O direito à integridade física e moral encontra-se previsto no artigo 25/1 da CRP e o direito de o portador de doença mental poder decidir sobre a prática, no seu corpo, de actos de saúde decorre do artigo 5.º da Lei de Saúde Mental.

VI. Não obstante, a sentença que determinou a aplicação de medida de acompanhamento à requerida, impede-a de exercer esses, e outros, direitos pessoais.

VII. E tal decisão, restritiva dos direitos pessoais fundamentais da requerida, foi adoptada sem se alicerçar em qualquer facto, ou razão de direito, que se encontre descrito na sentença, ou tenha sido alegado na petição inicial que deu origem ao presente processo.

VIII. Pois que, dos factos dados tidos como relevantes “para a decisão a proferir”, não resulta, de forma indubitável, e nem se retira essa dedução da sentença, que a requerida se encontre incapaz de compreender e de exercer os direitos e deveres inerentes ao casamento, a uma relação de união de facto, ou, ainda, que não tenha maturidade para reproduzir ou assumir responsabilidades parentais, escolher a sua profissão ou residência ou para decidir sobre a prática, no seu corpo, dos actos de saúde descritos na LSM.

IX. Desconhece-se, de todo, em que factos, ou razões de direito, se baseou a decisão que determina, no seu ponto 1.7, que “a situação de acompanhamento de maior, declarada pela presente sentença, não faculta o exercício directo de direitos pessoais”.

X. Ora, para fundamentar a restrição de direitos, legal e constitucionalmente protegidos, é imperioso demonstrar-se a existência de circunstâncias concretas que impeçam que cada um desses direitos possa ser exercido de forma consciente, pelo beneficiário de uma medida de acompanhamento.

              Não foram apresentadas contra-alegações.

              Ao determinar a remessa do recurso para este tribunal, o tribunal recorrido disse, quanto à nulidade, que “cotejado o teor da decisão proferida, afigura-se-nos verificar-se que o tribunal especificou os fundamentos fácticos e jurídicos que justificam a decisão, inexistindo qualquer nulidade.”

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              Questão que importa decidir: se se verifica a nulidade invocada; se não devia ter sido decidido o que consta do ponto 1.7 da sentença recorrida, ou, mais genericamente, se não devia ter sido determinada a medida da representação geral do art. 145/2-b do CC.

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              Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão daquelas questões:

        1. A requerida nasceu em 11/04/1971, é solteira, natural da freguesia do M e concelho do F.
        2. É filha de J e de L.
        3. A requerida é portadora de deficiência profunda da sua capacidade intelectual, desde os seis meses de idade.
        4. A doença de que padece retira-lhe a capacidade de lidar com as diversas situações do quotidiano, não tendo qualquer sentido crítico no tocante à orientação da sua vida nem à administração dos seus bens.
        5. A requerida não aprendeu a ler nem a escrever; não conhece o dinheiro.
        6. Não sabe o dia dos seus anos, nem a sua idade;
        7. Sabe que hoje é segunda, mas não sabe de que mês.
        8. A requerida não é capaz de realizar qualquer tarefa, por mais simples que seja, designadamente as tarefas associadas à sua própria subsistência.
        9. Carece de auxílio permanente de terceira pessoa para se alimentar, vestir, tratar da sua higiene.
        10. A requerida vive com a irmã R há cerca de três anos face ao falecimento dos progenitores, e é esta que dá todo o apoio à requerida e que dela cuida permanentemente.
        11. A requerida recebe do Estado uma pensão mensal.
        12. Não existe notícia de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde.

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Quanto à nulidade

              O recurso põe em causa a decisão 1.7 da sentença recorrida, mas esta limita-se a ser a manifestação da restrição estabelecida pela decisão 1.1 da sentença.

              É porque foi aplicada, no ponto 1.1 a medida da representação geral do art. 145/2-b do CC que todos os direitos pessoais, cujo exercício seja susceptível de representação, deixaram de poder ser exercidos de forma directa, como se diz na decisão 1.7, tendo de passar a ser exercidos através de representação pela acompanhante instituída.

              Ora, a fundamentação da decisão de restrição da capacidade de exercício livre e pessoal pela requerida dos seus direitos pessoais é suficiente: ela demonstra a necessidade de representação geral (contra a decisão da qual o MP, aliás, não recorreu; antes pelo contrário, tinha-a requerido expressamente) pela afectação da requerida por uma deficiência profunda da sua capacidade intelectual, baseada nos factos provados (contra a decisão dos quais o MP também não recorreu).

              Pelo que não se verifica a nulidade da sentença.

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              Face ao que foi dito para a solução da questão da nulidade da sentença, e tendo em conta as conclusões do recurso, fica a dúvida se o MP está a recorrer apenas da decisão 1.7 da sentença recorrida (como diz expressamente), ou também da decisão 1.1 (o que seria contraditório com a posição assumida no decurso do processo).

              No entanto, vai-se ver a questão em termos genéricos e depois ver-se-á também a questão da decisão 1.7.

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                                          Quanto à questão de fundo

              A fundamentação da sentença recorrida [transcreve-se, em síntese e com simplificações]:

              Dispõe o art. 138 do CC, na redacção dada pela Lei 49/2018:

         “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.”

              Por sua vez, dispõe o art. 140 do CC:

         “1 – O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as excepções legais ou determinadas por sentença. 2- A medida não tem lugar sempre que o seu objectivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.”

              Refere o Professor António Pinto Monteiro, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 148, n.º 4013, Das incapacidades ao maior acompanhado, págs. 72 a 84, que:

         “[…] a Lei 49/2018 […] acolheu a mudança de paradigma já há muito anunciada, afastando-se do modelo de tomada de decisões por substituição e abraçando o modelo do acompanhamento, pela tomada de decisões com recurso à assistência e apoio. […]. Mas fê-lo com realismo, permitindo o recurso à representação legal quando, excepcionalmente, não houver alternativa credível, no interesse do necessitado e por decisão judicial. […]

         É claro que o sucesso, na prática, deste novo modelo vai depender, em grande medida, dos tribunais, pela responsabilidade acrescida que o novo regime lhes atribui, na definição – e revisão – das medidas adequadas a cada deficiente, a cada situação!

         […].”

              Miguel Teixeira de Sousa, em texto que corresponde à apresentação realizada no CEJ, em 11/12/2018, no âmbito da acção de formação O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado – O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais, a pág. 51, refere que:

         “A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:

         – uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no art. 145/2 do CC; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;

         – uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (art. 140/2 do CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.”

              Em suma – continua a sentença recorrida -,

         A medida de acompanhamento apenas deverá ser decretada em caso de necessidade, devendo ser escolhida a que se mostrar adequada à condição do beneficiário e a que mais promova a sua autonomia e liberdade.

         Casos existem em que a incapacidade é tal que o visado não consegue exprimir as suas opiniões e preferências. Nesses casos, que deverão ser excepcionais, a medida mais adequada será a de representação geral ou especial […]

         Ora, verificados os requisitos do art.138 do CC e não sendo garantidas, através dos deveres gerais de cooperação e de assistência, [as necessidades do maior] deverão, assim, ser aplicadas, ao sujeito, ora beneficiário, as medidas de acompanhamento que se afigurem necessárias no caso concreto.

         Revertendo ao caso em apreciação, resultou apurado que a requerida sofre de deficiência profunda da sua capacidade intelectual, desde os seis meses de idade; a doença de que padece retira-lhe a capacidade de lidar com as diversas situações do quotidiano, não tendo qualquer sentido crítico no tocante à orientação da sua vida nem à administração dos seus bens; não aprendeu a ler nem a escrever; não conhece o dinheiro; não sabe o dia dos seus anos, nem a sua idade; sabe que hoje é segunda, mas não sabe de que mês; não é capaz de realizar qualquer tarefa, por mais simples que seja, designadamente as tarefas associadas à sua própria subsistência; carece de auxílio permanente de terceira pessoa para se alimentar, vestir, tratar da sua higiene.

         […]

         Tomando como premissa o quadro de factos que caracterizam a situação da requerida, entendemos que será de aplicar o regime de representação geral prevista no art. 145/2-b do CC.

                                                                 *

              Decidindo:

         No artigo do Professor António Pinto Monteiro citado pela sentença recorrida, escreve-se a dada altura:

         “Quid iuris, todavia, naquelas situações em que falte, de todo, a vontade ou a capacidade para entender e querer, ou ela está profundamente afectada, em termos tais que a deficiência de que a pessoa sofre a impossibilita de governar a sua pessoa e bens […]

           Em situações como estas, ainda que a título excepcional, deve continuar a recorrer-se ao instituto da representação, substituindo-se o incapaz, no interesse deste, pela actuação do tutor. […]

            […]

     […] excepcionalmente, nos chamados hard cases, pode vigorar o instituto da representação em situações de verdadeira incapacidade de exercício. […]

          […] o objectivo do acompanhamento do maior [é o de] assegurar o bem-estar deste, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres. Mas há situações em que isso, infelizmente, não será possível; daí as excepções a que a lei remete […]         

         […] sem cair na posição irrealista de ignorar os hard cases, ou seja, aquelas situações de absoluta incapacidade do necessitado, pelo que, sem deixar o acompanhamento de ser hoje um modelo de apoio e de assistência, não pode deixar de transigir — em casos-limite e excepcionalmente — com medidas de substituição: daí o recurso, entre as medidas que o tribunal pode escolher para melhor talhar o “fato à medida”, ao instituto da representação legal (art. 145). […]”

              O anteprojecto de reforma da situação jurídica do maior acompanhado, anotado, publicado na Revista de direito civil, 2018, 4, páginas 687-740, diz, na anotação 2 ao art. 145: “Mau grado a opção pelo regime do acompanhamento, não há como evitar a substituição, pelo poder paternal, pela tutela ou por representações selectivas: recordamos os deficientes profundos […]; insistir, aí, num ‘mero acompanhamento’ seria uma fachada dispensável.” (pág. 696).

              No estudo preparatório de tal anteprojecto, diz-se: “[…] não é possível um modelo de acompanhamento ‘puro’. O deficiente profundo, o doente de Alzheimer em estado avançado ou o paciente em coma dépassé não têm nem manifestam qualquer vontade: terão, mesmo, de ser representados […]. III. Com a limitação apontada, há que eleger, como preferível, o modelo do acompanhamento. […] O acompanhamento é o ponto de partida e é a base do sistema a estabelecer. No limite haverá representação.” (Menezes Cordeiro, Da situação jurídica do maior acompanhado. Estudo de política legislativa. RDC, 2018, 3, páginas 546-547).

                                                                 *

        O art. 1601/-b do CC dispõe que “São impedimentos dirimentes, obstando ao casamento da pessoa a quem respeitam com qualquer outra: […] A demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a decisão de acompanhamento, quando a sentença respectiva assim o determine […].

            “A demência abrange toda a anomalia psíquica que torne o indivíduo incapaz de governar a sua pessoa e bens […] e não apenas a doença mental que tem aquele nome técnico no domínio da psiquiatria. […] Se assim é para o comum dos negócios jurídicos, por maioria de razão o será para um contrato com os efeitos especialíssimos que tem o casamento […] (Antunes Varela e Pires de Lima, CC anotado, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 83).

            Estes autores acrescentam: “Se a excepção dos intervalos lúcidos não procede em relação à demência que é apenas notória, por maioria de razão não vingará em face da demência que, reconhecida judicialmente, tenha já servido de base à sentença de interdição ou inabilitação por anomalia psíquica.”

            Na anotação 11 de António Barroso Rodrigues ao art. 1601 do CC anotado, Livro IV, Direito da Família, coordenado por Clara Sottomayor, Almedina, 2020, pág. 81, diz-se que “A demência notória reporta-se aos casos de incapacidade manifesta […], sendo notória quando objectivamente reconhecível ou reconhecida no meio (v. Lima/Varela, 2009:81 e o ac. do STJ de 27/01/2005). Não se confunde com a incapacidade temporária, neste âmbito reportada a uma anomalia psíquica, de características transitórias […]”

            Assim, uma anomalia psíquica profunda, não transitória, que afecte uma pessoa, tornando-a incapaz de reger a sua pessoa e bens, correspondendo a uma demência notória [demência de facto (expressão que aquele anotador utiliza de “Coelho/Oliveira, 2003: 299, e Pinho, 2016: 334”)], é um impedimento dirimente absoluto ao casamento.

              Na anotação ao art. 1601 do CC, no projecto de reforma citado acima, diz-se: “1. O CC, versão original, impedia o casamento dos interditos e dos inabilitados por anomalia psíquica. Essa orientação, contrária à Convenção das Nações Unidas, não pode subsistir. 2. Todavia, em certos casos graves, o casamento de maiores acompanhados não faria sentido; cabe à sentença decidi-lo […]” (pág. 704).

                                                                 *

              O mesmo vale para a união de facto.

              Como decorre do art. 2/-b da Lei 7/2001, de 11/05, na redacção da Lei 49/2018, que diz: “Impedem a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto: […] Demência notória, mesmo com intervalos lúcidos e situação de acompanhamento de maior, se assim se estabelecer na sentença que a haja decretado, salvo se posteriores ao início da união.”

         É que, como diz Rossana Martingo Cruz, União de facto versus Casamento, GestLegal, Janeiro 2019, pág. 238: “O requisito da capacidade é, como bem se compreende, essencial para a assunção de uma convivência com efeitos jurídicos. Exige-se uma habilidade mínima para entender os contornos daquela união. […]”. E mais à frente, pág. 239: “Não se trata de não ter capacidade para agir juridicamente (que seria ultrapassado pelo instituto da representação ou assistência) mas sim de faltar a aptidão para ser titular de determinadas relações jurídicas. No caso, não existindo esta capacidade natural de entender os contornos de uma convivência “more uxório” não pode o indivíduo ser considerado parte nela. […] Não estando reunida a capacidade natural de discernimento associada a esta convivência, não poderá constituir-se uma união de facto válida.”

                                                                 *

              Pegando noutro exemplo veja-se que o art. 1850/1 do CC relativo à perfilhação, o qual dispõe que: “têm capacidade para perfilhar os indivíduos com mais de 16 anos, se não forem maiores acompanhados com restrições ao exercício de direitos pessoais nem forem afectados por perturbação mental notória no momento da perfilhação.”

           Assim, também aqui, uma anomalia psíquica profunda, não transitória, que afecte uma pessoa, tornando-a incapaz de reger a sua pessoa e bens, também lhe tira a capacidade para perfilhar. Ou seja, um demente de facto, profundo, não transitório, mesmo que não de direito, não pode perfilhar.

                                                                 *

              Isto tudo não é afastado pelo regime do maior acompanhado que incluiu no seu âmbito, por força do art. 138 do CC (quando se refere ao maior que ‘por razões de saúde’), entre outros, também o demente notório, mas de direito.

              E o art. 147/1 do CC, que dispõe que “O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário”, não contraria isto, pelo contrário, já que excepciona os casos previstos na lei. Pelo que, o maior acompanhado, demente notório profundo, mesmo que na sentença nada conste quanto a isso, não goza, por lei, da capacidade de gozo tais direitos, por falta de capacidade natural para o efeito. Sendo que o n.º 2 de tal artigo -: “São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adoptar, de cuidar e de educar os filhos ou os adoptados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar” – porque apenas se limita a exemplificar o tipo de direitos em causa, não contraria a conclusão que antecede.

              Ora, tudo o que foi dito até aqui já é o bastante para justificar, no caso, o regime determinado, ou seja, a medida de representação geral ou genérica, do art. 145/2-b do CC, pois que a incapacidade natural da requerida, para entender as coisas, decorrente da deficiência profunda da sua capacidade intelectual, não vale, naturalmente só para o exercício dos direitos pessoais já referidos, mas todos os outros “direitos pessoais” [as aspas são para invocar a análise que destes “direitos” é feita por Pedro Pais Leitão de Vasconcelos, sobre o Exercício de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente pelo maior acompanhado, publicado no ebook do CEJ de 2019, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência à luz do novo regime do maior acompanhado, aprovado pela Lei 49/2018, de 14/08, págs. 121 a 141, especialmente págs. 136 a 141] que estão em causa no art. 147/2 do CC e noutros que se pudessem invocar. E o art. 145/2 do CC não exige, naturalmente, em relação à medida de representação genérica que se esteja a indicar todos e cada um dos direitos que por ela estão abrangidos.                       

                                                                 *

              Note-se que, perante os factos provados – que, repete-se, não foram postos em causa pelo MP -, se está perante uma situação (de deficiência profunda da capacidade intelectual que, manifestamente, impede a requerida de reger a sua pessoa e bens) muito diferente (muito mais grave) da que estava em causa no acórdão deste TRL de 11/12/2019, proc. 5539/18.9T8FNC.L1-2, o qual pode servir de exemplo para anomalia psíquica não profunda (debilidade mental ligeira/moderada) que não deve dar (nem deu) origem ao tipo de restrições que estavam em causa nestes autos; são diferentes, também, os factos e/ou o tipo de decisões e/ou o âmbito dos recursos decididos nos casos dos acs. do TRL de 04/02/2020, proc. 3974/17.9T8FNC.L1-7; de 21/01/2020, proc. 3570/18.3T8FNC.L1-7 ; de 11/12/2019, proc. 2990/18.8T8FNC.L1-2; e do TRG de 16/01/2020, proc. 4046/17.1T8GMR.G1.

                                                                 *

              Tendo em conta aqueles três exemplos, veja-se agora o que está em causa nos dois grupos de casos em causa na decisão 1.7 da sentença recorrida.  

               O que, por um lado, serve para conhecer da questão expressamente colocada pelo MP no recurso e, por outro lado, demonstrar que também quanto a estes direitos pessoais se justifica a restrição aplicada.

              Comece-se pelo art. 13/1 da LSM que dispõe: Tem legitimidade para requerer o internamento compulsivo o representante legal do menor, o acompanhante de maior quando o próprio não possa, pela sentença, exercer direitos pessoais, qualquer pessoa com legitimidade para requerer a instauração do acompanhamento, as autoridades de saúde pública e o Ministério Público.

              Tendo em conta esta norma, vê-se que a sentença entendeu que a requerida não devia ter legitimidade para requerer o seu próprio internamento compulsivo.

            Ora, tendo em conta os factos provados sob 3 a 10, cuja decisão não foi impugnada pelo MP no seu recurso, vê-se que a decisão recorrida está certa: não tem sentido pensar que a requerida, afectada de uma deficiência profunda da sua capacidade intelectual, demente de facto, estará em condições, num dias destes, de entender que está numa situação em que se impõe o seu próprio internamento compulsivo, ou que conseguisse formar uma vontade esclarecida sobre a questão, mesmo que tivesse o apoio da sua acompanhante.

              E, tão certo é isto, que as várias normas do art. 12 da LSM, para as quais de seguida o art. 13/2 remete, são um caso paralelo dos três casos referidos acima, ou seja, de uma demência de facto que representa uma incapacidade natural para decidir, por si, o internamento. Veja-se:

              Art. 13/2 – Sempre que algum médico verifique no exercício das suas funções uma anomalia psíquica com os efeitos previstos no artigo 12.º pode comunicá-la à autoridade de saúde pública competente para os efeitos do disposto no número anterior.

              Art. 12/1 – O portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento adequado. 2 – Pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado.

              A decisão recorrida limitou-se, pois, a tirar as devidas consequências de uma situação de evidente incapacidade natural para se ter legitimidade para requerer o próprio internamento compulsivo.

            De resto, a norma genérica do art. 148 do CC dispõe que “1 – O internamento do maior acompanhado depende de autorização expressa do tribunal. 2 – Em caso de urgência, o internamento pode ser imediatamente solicitado pelo acompanhante, sujeitando-se à ratificação do juiz.”

            Como explicam Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, A parte geral do CC português, 2.ª edição, Almedina, 2019, pág. 384: “Quando se trate do internamento do beneficiário, a lei já não parte do princípio de que o maior é capaz de medir o alcance da sua decisão. Daí que o artigo 148.º preveja que o internamento de maior acompanhado dependa de autorização expressa do tribunal e que, em caso de urgência, este pode ser requerido pelo acompanhante, sendo mais tarde ratificado pelo juiz. Além disso, como se trata de uma decisão de foro pessoal, cabe ao juiz decidir (e não ao acompanhante). Esta norma deverá ser aplicada, por analogia, pelo menos nas situações graves relativas à saúde do beneficiário quando este, de facto, não possua capacidade.”

                                                                 *

              Por fim, veja-se o outro grupo de casos que está em causa na decisão 1.7 da sentença recorrida.

              O art. 5/3 da LSM dispõe que “Os direitos referidos nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 são exercidos pelos representantes legais quando os doentes sejam menores de 14 anos ou maiores acompanhados e a sentença de acompanhamento não faculte o exercício directo de direitos pessoais.”

              Essas três alíneas têm o seguinte teor:

              Art. 5/1 da LSM dispõe: “ Sem prejuízo do previsto na Lei de Bases da Saúde, o utente dos serviços de saúde mental tem ainda o direito de: […] c) Decidir receber ou recusar as intervenções diagnósticas e terapêuticas propostas, salvo quando for caso de internamento compulsivo ou em situações de urgência em que a não intervenção criaria riscos comprovados para o próprio ou para terceiros; d) Não ser submetido a electroconvulsivo-terapia sem o seu prévio consentimento escrito; e) Aceitar ou recusar, nos termos da legislação em vigor, a participação em investigações, ensaios clínicos ou actividades de formação […].”

              Tendo em conta tudo o que já foi dito acima e as características da anomalia psíquica da requerida e as suas consequências para ela, nada tem de estranho que a sentença recorrida tenha considerado que a requerida, por falta de capacidade intelectual para o efeito, não estará em condições de formar uma vontade esclarecida, mesmo que com o apoio da sua acompanhante, para decidir sobre se deve ou não sofrer intervenções diagnósticas e terapêuticas, ou a electroconvulsivo-terapia ou se deve ou não participar em investigações, ensaios clínicos ou actividades de formação. Era deixá-la desprotegida, permitir que ela pudesse vir a decidir sobre isto, apesar do assinalado quanto à sua anomalia profunda.

              Como lembram Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, obra e local citados: “Todavia, do princípio de que os actos pessoais são livres e ao alcance da capacidade do maior, podem resultar prejuízos para ele. Pensemos no exemplo de o beneficiário ser chamado a decidir sobre intervenções cirúrgicas (suas ou dos filhos menores), quando a sentença não tenha previsto restrições ao exercício deste direito, não obstante o beneficiário não ser, efectivamente, capaz de ponderar todos os riscos, efeitos secundários, alternativas médicas, etc. Isto significa que o beneficiário (ou os seus filhos menores) poderá ficar desprotegido, por ser tratado pela lei como capaz, quando, efectivamente não o é.”

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              Em suma, considera-se que a deficiência profunda da capacidade intelectual que afecta a requerida, a torna naturalmente incapaz do exercício directo de direitos pessoais. Pelo que a sentença está certa.

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              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Sem custas (porque o MP está dela isento: art. 4/1-a do RCP).

              Lisboa, 16/04/2020

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto