Despejo – Juízo Central Cível de Almada – J1

              Sumário:

            I – Se a mora superior a oito dias se verificou desde Maio 2017 a Março de 2018, então necessariamente que ocorreu num período de 12 meses, pelo que se verifica o fundamento resolutivo do art. 1083/4 do CC.

              II – A norma do n.º 6 do art. 1083 do CC, acrescentado pela Lei 13/2019, de 12/02, impõe uma condição para que o direito de resolução com aquele fundamento possa ser exercido validamente, pelo que só visa os factos novos (art. 12/2 do CC), não se aplicando aos pedidos que já estivessem pendentes nos tribunais.

              III – A acção declarativa de despejo tem natureza comum (art. 14 do NRAU) e a sentença é executada nos termos dos arts. 862 a 865 do CPC.

 

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

 

              A 26/03/2018, A e B instauraram uma acção contra C-Lda, e D, pedindo que (i) o tribunal julgue resolvido o contrato de arrendamento celebrado com a sociedade, nos termos do art. 14/1 da Lei 6/2006, de 27/02, na redacção da Lei 31/2012, de 14/08, e da Lei 79/2014, de 19/12, condenando-a a entregar o locado livre e devoluto, e (ii) a condenação dos réus a pagar aos autores as rendas parcialmente em dívida e as rendas vencidas e vincendas até efectiva entrega do locado.

              Alegam para tanto, em síntese, que arrendaram um seu imóvel à sociedade (ficando o réu como fiador), mediante renda mensal que devia ser paga no 1º dia útil [sic – no contrato consta: vencível no dia 1 do mês anterior ao que respeitar] do mês anterior àquele a que dissesse respeito; renda que, por acordo de 18/06/2012, foi reduzida para 3000€; a sociedade apenas entregou, desde Maio de 2017 até ao presente (26/03/2018), 2250€ mensais e sempre “para além do dia 8 de cada mês a que a renda dissesse respeito”; deve assim a sociedade, “a título de rendas vencidas e não pagas parcialmente” [sic], 9000€; tal como o réu, este a título de fiador; na 1.ª página da acção deram-lhe o valor de 45.000€; na última página deram-lhe o valor de 49.500€.

              Apenas a sociedade contestou, excepcionando: paga 3000€ mas retinha 25% a título de IRS que entrega nas Finanças (art. 101/1e do CIRS – daí que só entregasse 2250€ aos autores), conforme recibos que junta; aceita que as rendas não foram pagas mensalmente em data certa e que foram pagas para além do dia 8, mas diz que os autores concordaram com que a renda fosse sendo paga sem se preocuparem com o dia 8 e sem penalização, o que foi sendo feito desde muito antes de Maio de 2017; quando a acção foi proposta, as rendas encontravam-se pagas; concluem que não há fundamento para a resolução do contrato, nem para o pedido de pagamento de rendas.

              A 06/06/2018, os autores fizeram um requerimento para que fosse corrigido um “erro material por lapso de escrita”: onde tinham escrito, na petição inicial, “sempre para além do dia 8 de cada mês a que a renda dissesse respeito” devia ser acrescentado “desde o mês de Junho de 2017 (inclusive) até ao mês de Janeiro de 2018”.

              Por despacho 10/09/2018 foi fixado à acção o valor de 99.000€ (= 3000€ x 2 anos e meio de rendas + 9000€ de rendas vencidas – art. 298/1 do CPC), em vez dos valores errados dados pelos autores: 45.000€ ou 49.500€, e em consequência o processo foi remetido do juízo local do Seixal, onde os autores tinham erradamente intentado a acção, para o juízo central cível de Almada, por ser o competente.

              Por despacho de 18/12/2018, foi indeferido o requerimento de correcção do erro de escrita, porque o alegado erro não era revelado pela leitura do documento.

              Por despacho de 06/03/2019, foram fixados três temas de prova:

      1. A primeira ré, desde Maio de 2017, passou a entregar aos autores a renda relativa ao prédio, valor de 2250€, para além do dia estabelecido no acordo descrito em (a).
      2. Os autores e o representante da 1ª ré acordaram que esta poderia pagar as rendas, mesmo que para além do dia 8 do mês anterior a que respeitava, sem qualquer penalização.
      3. Encontrando-se, à data da instauração da acção, liquidadas as rendas.

           Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando a acção improcedente.

               Os autores recorrem desta sentença, para que seja alterada a decisão do ponto 5 dos factos provados e para que a acção seja julgada totalmente procedente, decretando-se o despejo, porque a ré, entre Maio de 2017 e Março de 2018, sempre pagou a renda para além do dia 8 de cada mês e sem pagar a indemnização que purgaria a mora.

          A ré contra-alegou defendendo a improcedência do recurso, chamando a atenção para o facto de o recurso não pôr em causa a improcedência do pedido de rendas.

                                                                 *

            Questões que importa decidir: se o ponto 5 dos factos provados deve ser alterado e se deve ser decretado o despejo, por falta do pagamento atempado das rendas (já que a ré tem razão quanto à limitação do recurso pelas conclusões – arts. 635/4 e 639/1 do CPC -; ora, os autores não têm uma única conclusão quanto à decisão relativa às rendas).

                                                                 *

       Foram dados como provados os seguintes factos que importa à decisão daquelas questões:

      1. Encontra-se inscrito a favor dos autores, por aquisição, o direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua de x, correspondente a edifício de rés-do-chão para industria, a confrontar do norte, sul e nascente com arruamento e poente com lote y, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número 000, da freguesia de C e inscrito na matriz sob o artigo 111.
      2. Os autores e os réus subscreveram o documento escrito junto a fls. 5v e 6, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, datado de 29/04/2009, intitulado Contrato de Arrendamento Comercial, no qual os primeiros declararam ceder o gozo do imóvel à ré, pelo prazo de 5 anos, renovável anualmente, por sucessivos e iguais períodos, obrigando-se esta a pagar a renda mensal de 5295, exigível no primeiro dia do mês anterior a que respeitar.
      3. Por acordo reduzido a escrito, em 28/04/2011, o valor da renda foi fixado em 4200€, com início em 01/05/2011.
      4. Por acordo reduzido a escrito em 18/06/2012, o valor da renda foi fixado em 3000€, com efeitos a partir de Março de 2012, a qual vigoraria durante um ano devendo as partes acordar nova renda.
      5. A primeira ré, desde Maio de 2017, passou a entregar aos autores a renda relativa ao prédio mencionada no ponto 4, para além do dia estabelecido no acordo descrito em (a) 8 do mês anterior a que respeitava [A parte rasurada e a parte sublinhada foram agora acrescentadas tendo em conta o que se irá decidir à frente quanto à impugnação da decisão da matéria de facto].
      6. Encontrando-se, à data da instauração da acção, liquidadas as rendas.

         E foram dados como não provados os factos do seguinte tema de prova: “Os autores e o representante da 1ª ré acordaram que esta poderia pagar as rendas, mesmo que para além do dia 8 do mês anterior a que respeitava sem qualquer penalização.

           Na fundamentação destas decisões da matéria de facto diz-se:

          Os factos provados estearam-se na apreciação crítica da prova produzida de acordo com o princípio da livre apreciação.

         Quanto ao ponto 5 a documentação junta pelos autores de fls. 25 a 35 constituída por recibos das rendas pagas pela ré, respeitantes aos meses de Maio de 2017 a Janeiro de 2018, e extracto de conta junto a fl. 48, não subsistem dúvidas de que a ré entregou a contrapartida devida aos autores a título de renda para além do dia 1 mês anterior a que a mesma respeita. Não tendo, no entanto, resultado demonstrado que a quantia entregue foi de 2250€, mas sim de 3000, sendo o primeiro valor resultado da retenção na fonte.

         No que tange ao ponto 6, o recibo respeitante ao mês de Março de 2018 assim como aos anteriores meses, elucidaram o tribunal por forma a obter confirmação estarem pagas as rendas no mês de Março de 2018 (mês da instauração da acção).

        O facto não provado foi como tal considerado por não se ter feito prova que tornasse credível esta asserção dos réus. Na verdade, a testemunha dos réus, esposa do 2º réu, para além da postura revelada em audiência evidenciadora do seu interesse na causa, ainda assim não confirmou este facto, adiantando, aliás, que as conversações sobre as alterações ao contrato de arrendamento não era assunto que estivesse ao seu cuidado, estando entregue ao seu marido. Acresce mencionar que se é certo que as partes convencionaram alterações de montantes da renda, sempre mantiveram o dia constante do acordo inicial descrito em 2.

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Da impugnação da decisão da matéria de facto

           Em 31 extensas páginas das alegações de recurso, correspondentes a 23 conclusões do recurso, os autores põe em causa o decidido no ponto 5 dos factos provados.

              Segundo eles, em vez da parte sublinhada que consta do ponto 5: A primeira ré, desde Maio de 2017, passou a entregar aos autores a renda relativa ao prédio mencionada no ponto 4, para além do dia estabelecido no acordo descrito em (a)”, devia constar: 8 de cada mês a que as rendas dissessem respeito em singelo.”

            Para isso, os autores, entre o muito mais, fazem extensas críticas à fundamentação da prova – como se o tribunal, para além de outros erros, tivesse desvalorizado o depoimento de 2 testemunhas dos autores – e dizem que as suas duas testemunhas comprovam aquilo que pretendem, sem que o depoimento da mulher/testemunha do réu tivesse conseguido criar qualquer dúvida sobre a credibilidade daquelas.

              A ré não contra-alega nesta parte, coerentemente com a posição que tinha assumido na contestação.

              Decidindo

           Como se pode ver da decisão dos factos não provados e da fundamentação das decisões da matéria de facto, que acima se transcreveram apenas para este efeito, a decisão da matéria de facto vai no sentido apontado pelos autores e não há nenhuma razão para considerar que desvalorizou a prova destes. Daí que não tenha dado como provados os factos constantes do segundo tema de prova, com matéria alegada pela ré, que justificariam o facto de as rendas terem sido entregues para além do dia 8 do mês a que diziam respeito.

              O que se passa é que a decisão de facto não atentou que com a redacção que deu ao ponto 5, de acordo aliás com o que constava do tema de prova respectivo, contra o qual os autores nada tinham dito, não estava a decidir a questão de facto que realmente importava do ponto de vista dos autores, isto é, se a renda tinha ou não sido paga 8 dias depois do dia em que devia ter sido paga (e com isto também se está a corrigir várias outras imprecisões dos autores, que se referiam, mal, ao 1º dia ‘útil’ em vez do dia 1 de cada mês e ‘ao mês a que dissessem respeito’ em vez de ao mês anterior ao que respeitassem; para além do erro de as testemunhas, em resposta ao advogado dos autores, se referirem como sendo o dia 8 o prazo estipulado pelo contrato, quando o prazo estipulado era o dia 1).

              E tudo isto pode ser corrigido, porque a lógica da petição, apesar de todos estes erros, era perceptível – tanto que a ré percebeu (e o tribunal também como se vê da redacção dos factos correspondente ao tema de prova 2 – temas de prova que para este efeito se deixaram transcritos no relatório deste acórdão) -, ir no sentido de que aquilo de que os autores se queixavam era que as rendas eram sempre pagas para além do dia 8 do mês anterior àquele a que respeitavam.

              Quanto ao acrescento ‘em singelo’, ele não tem qualquer razão de ser: falando-se das rendas estava-se a falar das rendas e de mais nada, pelo que não há que acrescentar a referência a singelo.

              Em suma, no ponto 5 dos factos provados, substitui-se a frase ‘estabelecido no acordo descrito em (a)’ por ‘8 do mês anterior a que respeitava.’

                                                                 *

              Nas conclusões do recurso, os autores têm uma linha de texto em que transcrevem o ponto 6 dos factos provados. Mas, quer nas restantes conclusões do recurso quer no corpo das alegações não consta mais uma palavra que seja sobre o assunto, pelo que esta decisão da matéria de facto não foi impugnada.

                                                                 *

                                 Do recurso sobre matéria de Direito

              A sentença recorrida julga a acção improcedente com base na seguinte fundamentação, em síntese e com simplificações:

              Depois de enquadrar os factos provados num contrato de arrendamento celebrado durante a vigência do NRAU (aprovado pela Lei 6/2006, de 27/02) escreve:

         Segundo o art. 1083 do CC:

             […]

       2 – É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio: […]

          3 – É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda […], sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo seguinte.

             4 – É ainda inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo seguinte.

             […]

         Flui do facto 5 que a ré, desde Maio de 2017, passou a entregar aos autores a renda para além do dia estabelecido no contrato. Não demonstrando, no entanto, que a mora se prolongue para além de três meses, ou que a mora superior a oito dias, tenha ocorrido durante o período de 12 meses.

         Daí que não possa deixar de concluir não se mostrarem preenchidos os pressupostos de resolução contemplados pelos nºs 3 ou 4 do art. 1083 do CC, sendo certo que sempre faltaria no caso do nº4 a comprovação de que o senhorio, após o terceiro atraso no pagamento, comunicara à arrendatária, por carta registada com aviso de recepção, de que era sua intenção pôr fim ao arrendamento.

         Sustentam os autores, por outro lado, ser inferior à renda estipulada a quantia que vem sendo paga pela ré, por inferior aos 3000€, no que não lhe assiste razão, já que a diferença entre este e o valor de 2250€ corresponde à retenção a título de IRS.

              Nas restantes 24 conclusões do recurso, os autores dizem (transcreve-se no essencial, com simplificações e evitando apenas algumas das muitas repetições) o seguinte:

        1. O meio extrajudicial de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, previsto no NRAU, é optativo.
        2. O senhorio pode resolver o contrato com fundamento indicado na conclusão 25, utilizando o meio processual comum de despejo logo que o arrendatário esteja em mora relevante.
        3. Os aqui recorrentes têm direito de acção conforme dispõe o artigo 1048, n.ºs 1 e 2 do CC, e o artigo 20 da CRP.

         […]

    29 O direito a aplicar não é o do artigo 1083, n.ºs 3 e 4 do CC.

        1. O tribunal entendeu decidir e aplicar o Direito de acordo com o meio impositivo previsto na lei para o efeito que é o da resolução extrajudicial (comunicação ao arrendatário do incumprimento contratual por falta de pagamento de rendas em dívida há mais de três meses, o que serve de título executivo para a resolução).
        2. Mas o tribunal errou ao decidir-se pela aplicação do Direito relativo ao meio extrajudicial previsto na lei, quando este é optativo, podendo os autores recorrer à acção de despejo para o efeito, o que fizeram, pese embora o artigo 1080 CC estabeleça que o disposto nessa subsecção é imperativo.
        3. Assim, prevendo a acção de despejo como meio processual adequado para a resolução do contrato de arrendamento, particularmente, por falta de pagamento da renda nos termos dos artigos 1047 e 1048/1 do CC, a ré só podia obstar ao despejo se até à contestação depositasse as rendas em dívida e a indemnização devida, faculdade que apenas podia utilizar uma única vez de acordo com o artigo 1048 do CC.
        4. Contudo a ré pagou as rendas em atraso em singelo, facto este que está provado, mas nunca purgou a mora.
        5. Não foi feita prova de que a ré tivesse procedido ao depósito condicional ou à entrega da indemnização de 50%, sobre todas as rendas vencidas e pagas para além do dia 8 de cada mês a que dissessem respeito (entre Maio 2017 a Março de 2018), o que devia ter feito até ao momento da contestação.
        6. Neste contexto, é evidente que se deve considerar como não operada a caducidade do direito à resolução do contrato ao abrigo do artigo 1048 do CC.

         […]

        1. A ré pagou as rendas mas constituiu-se em mora, por motivo que lhe é imputável, por não ter feito esse pagamento (art. 804/2 do CC).
        2. Nunca houve recusa do seu recebimento da parte dos autores (cfr. artigo 1042/1 do CC).

          […]

        1. Do que fica dito a apelada apenas pagou o valor das rendas em atraso aos apelantes, mas encontra-se em mora por não ter pago o valor da indemnização correspondente aos valores das rendas pagas para além do dia 8 do mês a que dissesse respeito, sendo que por esta via deve ser decretado o despejo.

              Decidindo:

            Os artigos 1047 e 1048 do CC estão inseridos num capítulo que se refere ao contrato de locação (que respeita ao aluguer e ao arrendamento). Para a situação específica dos autos, resolução de um contrato de arrendamento de prédio urbano, vigoram os artigos 1083 e 1084 do CC, pelo que são estes que, neste momento, se devem aplicar.

              Estes artigos tinham, à data da propositura da acção, a redacção que lhes foi dada pela Lei de 43/2017, de 14/06 (a redacção dos 3 números do art. 1083 transcritos pela sentença recorrida é idêntica na redacção de 2017 e na de 2019).

              Quanto aos fundamentos resolutivos, a lei distingue entre (i) aqueles que estão previstos no nº 2 do art. 1083; (ii) a mora no pagamento da renda, superior igual ou superior a 3 meses, ou oposição a obras, previstas no art. 1083/3 do CC; e (iii) a mora superior a 8 dias no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, prevista no art. 1083/4 do CC.

              O caso dos autos tem só a ver com esta última situação (1083/4). Os autores tentaram enquadrá-la no art. 1083/3 mas sem razão, já que a renda nunca deixou de ser paga, no todo, em cada mês. Era paga na totalidade, embora com retenção de 25% de IRS, como devido, em cada mês. Mas reiteradamente, todos os meses, era paga com atraso, ou seja, sempre para além do dia 8 de cada mês.

              A sentença não tem razão em considerar que não se demonstrou “que a mora superior a oito dias, tenha ocorrido durante o período de 12 meses” e que, por isso, não se mostravam preenchidos os pressupostos de resolução contemplados pelo art. 1083/4 do CC. 

                 Veja-se.

            Embora o facto sob 5 seja impreciso (diz-se que desde Maio de 2017 passou a entregar para além do dia 8 do mês anterior a que respeitava) é suficiente para se ter a certeza de que a renda era sempre paga ou no dia 9 ou depois, pois que era sempre paga para além do dia 8. Se se verificava todos os meses e assim continuou até à propositura da acção (é também o que resulta do ponto 5, já que não se diz que tal só tenha ocorrido num período de tempo certo, ou que não tenha acontecido até à data da PI: Março de 2018), então necessariamente foram 11 as rendas assim pagas.

              Ora, no caso, basta que ela fosse paga sempre no dia 9, pelo menos, para se poder dizer que se verificou, durante pelo menos 9 meses, um atraso superior a 8 dias.

              Veja-se:

              A renda devia ser paga no dia 1 de cada mês (no facto 2 diz-se que era exigível no dia 1; no contrato diz-se que ela se vencia no dia 1; as frases equivalem-se: ela devia ser paga no dia 1).

              Se a renda devia ser paga no dia 1, a mora iniciava-se no dia 2 de cada mês. E havia o prazo de 8 dias, a contar do começo da mora, para a fazer cessar (art. 1041/2 do CC). Oito dias correspondem a uma semana (art. 279/1-d do CC: é havido como prazo de 1 semana o designado por 8 dias). Assim, a contar do dia 2 de cada mês, havia uma semana para fazer cessar a mora. Pelo que, normalmente, a mora teria que ser feita cessar até às 24h do dia 8 de cada mês. Mas se o último dia dessa semana terminar em domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil, diz o art. 279/-e do CC, sendo que, quando a lei fala em domingo, quer-se referir a um dia não útil, pelo que actualmente também abrange o sábado. Pelo que o fim do prazo de 1 semana, calhando o dia 1 num sábado, ocorria no dia 8, que era um sábado, pelo que se transferia para o dia 10 (segunda-feira). E calhando num domingo, ocorria no domingo seguinte, pelo que se transferia para 9.

              (para o que antecede, teve-se em conta as anotações de Elsa Sequeira Santos aos artigos 1084 e 1041 do CC, págs. 1324 e 1268 do CC anotado coordenado por Ana Prata, vol. I, Almedina, 2017; as de Catarina de Oliveira Carvalho ao art. 279 do Comentário ao CC, Parte Geral, UCP/FD, 2014, págs. 684 a 690; e a posição de Marco Carvalho Gonçalves, Prazos processuais, Almedina, 2019, pág.114 nota 333 também quanto à questão dos sábados; dando conta da discussão sobre se aos 8 dias ainda há que somar outros 8, veja-se, ainda, com as necessárias referências doutrinárias e jurisprudenciais, por exemplo, o ac. do TRL de 24/04/2019, proc. 1901/18.5YLPRT.L1-2).

              Mas a hipótese do dia 1 calhar a um sábado só ocorreu, nos 11 meses que estão em causa (de Maio 2017 a Março de 2018), uma única vez, qual seja, a 01/07/2017. E a de calhar num domingo também só ocorreu uma única vez, ou seja, a 01/10/2017.

              Assim, pelo menos quanto a 9 das rendas vencidas (e pagas) no período de 12 meses do art. 1083/4 do CC, a mora foi superior a 8 dias. Ou seja, a mora no pagamento da renda aconteceu 9 vezes num período não superior a 12 meses e bastava que tal tivesse acontecido 5 vezes ao longo desse período.

              Como explica Elsa Sequeira Santos, obra citada, pág. 1324: “É relevante a mora que ocorra mais de quatro vezes em doze meses, marcando cada situação de mora o início do período de um ano, no decurso do qual se averigua se há mais quatro situações análogas. […]” Ou como diz Maria Olinda Garcia Arrendamento Urbano anotado, 3.ª edição, 2014, Coimbra Editora, pág. 37, o período de 12 meses: “[…] inicia[-se] com o primeiro incumprimento […] Iniciada essa contagem, o fundamento resolutivo verificar-se-á quando forem contabilizados 5 atrasos, desde que não tenham passado mais de 12 meses sobre o primeiro atraso no pagamento das rendas.”

              Note-se que, actualmente se discute se bastam 4 atrasos ou se se têm de verificar mais de 4, ou seja, pelo menos 5 atrasos.

              Elsa Sequeira Santos, à passagem citada mais acima, na edição da obra citada, acrescentava: “A lei diz expressamente ‘mais de quatro vezes’ pelo que só um atraso ocorrido pelo menos 5 vezes terá esta consequência. Não é certo que o legislador tenha exprimido, neste ponto, correctamente o seu pensamento, pois na exposição de motivos da proposta de lei que deu origem à Lei 31/2012, de 14/08, diz-se: ‘O fundamento de resolução do contrato de arrendamento no caso de mora é ainda alargado às situações de atraso reiterados no pagamento da renda, superiores a 8 dias, quando ocorram por 4 vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses.’ Contudo, perante o teor explícito do preceito e o disposto no art. 9.º, n.º 3, não poderemos afastar a interpretação literal da lei.”

              Esta autora, agora, na 2.ª edição da obra citada, perante o aditamento do n.º 6 ao art. 1083 do CC pela Lei 13/2019, de 12/02, diz que: “A lei diz expressamente ‘mais de quatro vezes’ pelo que, em interpretação literal, só um atraso ocorrido pelo menos 5 vezes terá esta consequência. Pensamos que o legislador não exprimiu, neste ponto, correctamente o seu pensamento, pois na exposição de motivos da proposta de lei que deu origem à Lei 31/2012, de 14/08, diz-se: [transcreve o que já está transcrito acima].” O aditamento do n.º 6 (ver infra) é um argumento a favor da interpretação correctiva da norma, devendo entender-se que bastam 4 situações de mora.” (págs. 1364-1365). E mais à frente: “ao prever que o aviso seja emitido ao fim de três atrasos, parece que a Lei quer dar ao arrendatário apenas mais uma oportunidade. Estranho seria um sistema em que, à terceira situação de mora, o senhorio ainda permitisse mais uma, sem sanção, só à quinta vez podendo efectivar a resolução.” (págs. 1365-1366).

          Já Edgar Alexandre Martins Valente, Manual de arrendamento e despejo, Almedina, Março de 2020, mantém, já depois da alteração da Lei 13/2019, que têm de ser 5 vezes. E em relação ao n.º 6 do art. 1083 diz que têm de ser “mais duas situações semelhantes às três anteriores que determinaram o envio da comunicação.” (págs. 357-358).         

              No caso, não há que tomar posição sobre a questão, pois que esse atraso verifica-se mais do que 5 vezes.

              Portanto, o fundamento resolutivo do art. 1083/4 do CC está preenchido, ao contrário do que diz a sentença.

              E não vale a pena fazer o esforço de tentar aproveitar a “confissão” dos autores, feita no requerimento de correcção de erro, indeferido, referido no relatório deste acórdão, porque, mesmo que ela fosse considerada, a mora ainda continuaria a ter ocorrido 6 vezes entre Junho (inclusive) de 2017 a Janeiro de 2018 (retirando Julho e Outubro).

                                                                 *

              Mas a sentença acrescenta “sempre faltaria no caso do n.º 4 a comprovação de que o senhorio, após o terceiro atraso no pagamento, comunicara à arrendatária, por carta registada com aviso de recepção, de que era sua intenção pôr fim ao arrendamento.”

              A sentença está-se a referir, sem o dizer expressamente, ao n.º 6 do art. 1083 do CC, acrescentado pela Lei de 13/2019, de 12/02, e que tem o seguinte teor: “No caso previsto no n.º 4, o senhorio apenas pode resolver o contrato se tiver informado o arrendatário, por carta registada com aviso de recepção, após o terceiro atraso no pagamento da renda, de que é sua intenção pôr fim ao arrendamento naqueles termos.”

              Esta Lei teve o fim de proteger o arrendatário: entendeu que não se justificava que este fosse apanhado de surpresa pelo senhorio que vai aceitando que a renda seja paga depois do dia 1 do mês anterior ao que diga respeito e cinco meses depois, sem aviso, quer accionar este fundamento resolutivo. A lei impôs, por isso, uma condição para que este direito de resolução pudesse ser exercido validamente: aviso por carta registada com a/r.

              Só que, sendo assim, esta lei só visa os factos novos: primeira parte do art. 12/2 do CC; ela só tem em vista a resolução dos contratos que fosse efectuada ou pedida pelos autores a partir da entrada em vigor da lei nova.

              Em relação à resolução já pedida ao tribunal, o tribunal vai ver se os autores tinham o direito de resolução à data em que pediram que o tribunal a decretasse, isto é, na data da petição inicial. O direito exercido tem que ter a previsão da sua outorga preenchida à data em que é pedido ao tribunal que decrete a resolução, dela não fazendo parte uma condição que à data não existia e que só vem a ser imposta pela lei nova. Não interessa, por isso, que surja, no decurso da acção, uma nova lei, a impor novas condições de validade substancial da resolução do contrato.

              Assim, embora se compreenda a preocupação da sentença em aplicar a lei nova – no momento em que o tribunal vai ver se o contrato podia ser resolvido, está já em vigor uma norma legal que impõe que o arrendatário não possa ser apanhado de surpresa pela resolução com o fundamento invocado – a verdade é que não o podia ter feito: a lei que vigora antes não previa tal condição e a nova lei não previu, numa norma de direito transitório, a sua aplicação aos pedidos de resolução que já tivessem sido formulados.

              Pelo que, ao contrário da sentença, considera-se que o fundamento resolutivo do art. 1083/4 do CC estava preenchido e que não se tinha que verificar a condição de validade da resolução posta pelo art. 1083/6 do CC, pois que esta só passou a existir muito depois de a acção ter sido intentada.

                                                                 *

              Por fim, podia-se discutir se os autores podiam ou não ter pretendido que fosse o tribunal a decretar a resolução.

              Com efeito, o art. 1084 do CC diz: “1 – A resolução pelo senhorio com fundamento numa das causas previstas no n.º 2 do artigo anterior é decretada nos termos da lei de processo. 2 – A resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista nos n.ºs 3 e 4 do artigo anterior bem como a resolução pelo arrendatário operam por comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida. […]”

              Ora, como no caso dos autos se está perante a causa prevista no n.º 4 do artigo anterior, a resolução, dir-se-ia, teria que ser operada por comunicação.

              É o que entende Pinto Furtado, no Comentário ao regime do arrendamento urbano, Almedina, 2019: Tendo a resolução que ser operada por comunicação e não o tendo sido, a sentença que fosse obtida neste processo não poderia ser executada pelo único meio que seria possível, qual seja, o do procedimento especial de despejo, pois que o requerimento deste pressupõe que seja apresentado comprovativo de tal comunicação.

              É o que resulta do que este autor diz na página 485 daquele comentário, ou seja, que a acção de despejo é disciplinada pelos arts. 14 a 15-S do NRAU, 862-866 do CPC, DL 1/2013, de 07/01 (que criou o Balcão Nacional de Arrendamento) e Portaria 9/2013, de 10/01) e nas páginas 488 a 490: “[…] após 2012, deixou […] claramente de poder substituir-se a comunicação pela acção de despejo. Com efeito, de acordo com o art. 15/2-e do NRAU […], apenas pode servir de base ao procedimento especial de despejo, “em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.º2 do art. 1084” (v. infra, anexo, art. 15 NRAU). Sem, portanto, se juntar comprovativo da comunicação, não poderá a acção de despejo, que se pretenda intentar, ter seguimento: é uma condição da acção. E será com esta acção – e só com ela – que o senhorio conseguirá obter a evicção do arrendatário que não tenha desocupado voluntariamente o espaço arrendado (conf. art. 15-J NRAU).” Posição que é desenvolvida mais à frente, nas páginas 755-756, em que diz, entre o mais, que: “Na epígrafe da subsecção [que engloba os arts. 14 e 14-A do NRAU] […] usa-se a expressão: “acções judiciais” que não parece obedecer a grande rigor técnico, pois o articulado que se segue não regula especificamente uma acção judicial, dita de despejo, mas, pormenorizadamente, o procedimento especial de despejo […]. […] No n.º 1 [do art. 14 do NRAU] define-se a acção de despejo, como aquela que se destina a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento ‘sempre que a lei imponha o recurso à acção judicial.’ Esta expressão final relaciona-se com a exigência estabelecida no art. 1084-1 de que a resolução do contrato pelo senhorio, com fundamento nalguma das causas previstas no n.º 2 do art. 1083, é decretada não, ipsis verbis, com ‘recurso à via judicial’, mas nos termos da lei de processo. Tem-se pois aqui em vista determinar o princípio geral de que, quando a lei exigir que a cessação coativa do contrato de arrendamento, se faça nos termos da lei de processo, é a acção declarativa, com processo comum, que deve ser usada, com início no Balcão do Arrendamento Urbano (BNA)”.

              Se tudo isto fosse assim, esta acção teria seguido uma forma de processo errada e pelo local errado e conduziria a uma inutilidade processual por não poder ser executada.

              Mas a posição deste autor está errada, porque uma sentença que dê procedência a um pedido de que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento, proferida numa acção declarativa comum (que não é um procedimento especial de despejo nem uma acção iniciada no BNA), é executada, não nos termos do art. 15 do NRAU, mas sim pela via da execução comum para entrega de coisa certa. Dito de outro modo, a acção de despejo não é disciplinada, entre outros, pelos artigos 14 a 15-S do NRAU, mas sim pelo art. 14 do NRAU e pelas regras gerais e comuns do processo declarativo. Neste sentido, por exemplo, Lebre de Freitas, ao tratar das regras que disciplinam a execução de uma sentença de uma acção de despejo (A acção executiva, 2017, 7.ª edição, Gestlegal, págs. 471 a 473), Menezes Leitão, ao tratar em dois lugares distintos da acção de despejo e do procedimento especial de despejo (Arrendamento urbano, 8.ª edição, Almedina, 2017, págs. 203 a 215, e 215 a 220), Maria Olinda Garcia, obra citada, pág. 41, onde também só remete, os termos da acção declarativa, para o art. 14 da NRAU, e Elsa Sequeira Santos, obra citada, pág. 1326, que nas duas últimas linhas da anotação 2 ao art. 1084 também só remete a acção de despejo para o art. 14 do NRAU.

              Com outros argumentos contra a possibilidade de opção pela via judicial, mas admitindo que a posição contrária é a dominante, veja-se também Maria Olinda Garcia, obra citada, págs. 18 a 21, 36 e 189 a 191 (aqui já em anotação ao art. 14 do NRAU). Mas a posição desta Professora não poria em causa a utilidade da acção dos autos.

              No sentido de o senhorio ter a possibilidade de recorrer à acção de despejo, mesmo no caso de o fundamento resolutivo ser o previsto no art. 1083/4 do CC, vai, como já se sugeriu, quase toda a doutrina e jurisprudência: apenas como últimos exemplos, vejam-se, os acs. do TRL de 11/12/2018, proc. 10901/17.1T8LSB.L1-2, e de 02/07/2019, proc. 3707/18.2T8LSB.L1-7, ambos com vasta citação de doutrina e jurisprudência neste sentido, e Elsa Sequeira Santos, obra citada, pág. 1326, falando de posição largamente maioritária, e Menezes Leitão, obra citada, pág. 206, nota 212.

              Posto isto tudo, por um lado, tendo em conta a discussão que antecede, vê-se que a sentença não se baseou na necessidade da comunicação do art. 1084/2 do CC para julgar a acção improcedente, sendo pois infundados os argumentos dos recorrentes para a porem em causa por esta via.

              Por outro lado, serve para demonstrar que, de acordo com a quase unanimidade da jurisprudência e da doutrina, tem sido admitida a opção do senhorio pela acção de despejo em vez da comunicação extrajudicial (faltaria ver se, actualmente, tal opção tem vantagens para alguém, mas a questão não tem interesse para o caso), pelo que não haveria razões, agora, neste processo e nesta fase, para estar a pôr em causa a utilidade deste processo.

                                                                 *  

              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando a sentença recorrida no que se refere ao pedido de resolução, que se julga procedente, decretando-se resolução do contrato de arrendamento referido no ponto 1 dos factos provados, com base na reiterada mora superior a 8 dias no pagamento das rendas, condenando a ré a entregar aos autores o prédio arrendado livre e devoluto.

              Custas da acção, na vertente de custas de parte, pelos autores em 9,09% e pelos réus em 90,91% (ou seja, na proporção do decaimento na acção).

              Custas do recurso, na vertente de custas de parte (não existem outras) pelos réus (que perdem o recurso).

              Lisboa, 04/06/2020

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

             2-º Adjunto