Processo do Juízo Local Cível de Cascais – J3

              Sumário:

          I – A nova acção de indemnização contra o anterior réu, o seu advogado, uma testemunha e o Estado, com base em factos com os quais o autor tenta pôr em causa o decidido na anterior acção, não deixa de ter o mesmo núcleo essencial de factos que o autor alegou na anterior, pelo que diz respeito ao mesmo pedido com a mesma causa de pedir.

            II – Sendo os réus desta nova acção, tal como configurada pelo autor, sujeitos de uma obrigação solidária, eles beneficiam da excepção de caso julgado favorável ao primitivo réu, pelo que também há identidade de sujeitos entre as duas acções.

       III – Esta nova acção só seria admissível se o autor, com base nos factos que acrescentou à causa de pedir da anterior, tivesse conseguido fazer revogar a sentença proferida nessa acção, através de recurso ordinário ou de recurso extraordinário de revisão, com o que não existiria ou desapareceria o caso julgado.

                 Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

              A intentou uma acção contra B, C, D e Estado Português, pedindo que os réus fossem condenados a pagar-lhe 15.000€, acrescidos de juros legais de mora, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados com as mentiras produzidas no tribunal.

              Alega para o efeito, em síntese, que os dois primeiros réus infligiram ao autor, em Agosto de 2007, um sórdido, selvático e humilhante tratamento (que descrevem transcrevendo o essencial dos factos alegados na primeira acção), pelo qual o autor tinha um direito de indemnização contra eles, para reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais (não inferior a 6500€) que lhe causaram; os três réus tinham perfeito conhecimento deste direito; os dois primeiros réus congeminaram/maquinaram uma urdidura audaciosa, a que o 3.º réu aderiu, que fosse capaz de convencer o juiz – do processo 3124/13.0TBCSC que estava a julgar o pedido de indemnização formulado pelo autor apenas contra o 1.º réu -, mesmo sem qualquer prova, a defraudar o legítimo direito do autor a ser ressarcido de tais danos (que os dois primeiros réus lhe causaram); os dois primeiros réus mentiram em juízo naquele processo, o 3.º réu defendeu e alegou no sentido dessa mentira e o tribunal daquele processo declarou uma mentira aberrante, contra a lógica e correcto pensamento e sem qualquer prova aderiu à mentira do 1.º réu, ou antes, deixou-se convencer por inverdades abomináveis, apesar de ter a obrigação de não se deixar convencer, e o tribunal da relação, sem ouvir, como devia, toda a prova, confirmou a sentença da 1.ª instância, quando, se tivesse ouvido toda a prova, a teria revogado; em 30/03/2007, com a notificação da decisão singular do Tribunal Constitucional, o autor soube que, por causa daquelas mentiras, não seria indemnizado.

              O 1.º réu contestou, excepcionando o caso julgado (os factos alegados pelo autor já teriam sido julgados no processo 3124) e impugnou quase todos os artigos da petição, contando uma versão diferente dos factos ocorridos em Agosto de 2007; e, com base nesta, reconveio, pedindo que o autor seja condenado a pagar-lhe uma indemnização de 15.000€, requerendo ainda a condenação do autor como litigante de má-fé. O 2.º réu contestou, excepcionando o caso julgado (os factos alegados pelo autor já teriam sido julgados no processo 3124) e impugnou quase todos os artigos da petição. O 3.º réu contestou, impugnando os factos alegados e requerendo a condenação do autor como litigante de má-fé. O 4.º réu não contestou.

              O autor, no que importa agora, replicou às excepções de caso julgado (dizendo quanto ao 1.º réu que ele tem, na acção anterior, uma qualidade jurídica diferente, por ser diferente o interesse) e à reconvenção, requerendo a sua improcedência e a condenação dos três réus como litigantes de má-fé.

          No despacho saneador foi proferida decisão final julgando verificada a excepção de caso julgado quanto ao pedido do autor e, em consequência, absolvendo os réus da instância; julgou-se também procedente, oficiosamente, a excepção de caso julgado quanto ao pedido do primeiro réu/reconvinte e, em consequência, o autor foi absolvido da instância. Autor e réus foram absolvidos dos pedidos de condenação como litigantes de má-fé.

              O autor recorre deste saneador-sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (em síntese feita por este TRL):

         Foram violadas as seguintes normas jurídicas: artigos 580, 581, 615/1-d, primeira parte (em repetição), 562, 574/1 e 568 do CPC, 496/1 do Código Civil e 20 e 22 da Constituição.

         Sendo o Estado o principal visado nesta acção e tendo o Sr/a Juiz/a omitido o conhecimento do respectivo fundamento nuclear integrante da causa de pedir contra o Estado, do qual se escapou para só se falar da causa de pedir em relação aos primeiros réus, foi cometida a nulidade da sentença do art. 615/1-d do CPC, com dolo do julgador, com a intenção de negar ao autor o que Constituição lhe assegura.

         Tendo a sentença declarado que “no caso concreto é indiscutível não haver identidade de partes, do pedido e da causa de pedir entre a presente acção e a acção 3124/13.0TBCSC”, logo, na presente acção não há caso julgado, pelo que não é lícito ao julgador contradizer-se concluindo pela verificação da excepção do caso julgado.

         A sentença insinua que o autor “pretende obter por meio desta acção o que não obteve naquela, dando origem a decisões contraditórias”, o que é muito grave visto que o autor está a exercer nesta acção o direito à indemnização, que a Constituição lhe confere no artigo 22.

         É falaciosa a invocação de [uma passagem da obra de] Teixeira de Sousa sobre o objecto da decisão transitada e o objecto dependente pois que na primeira acção pede-se indemnização pela conduta selvática do 1.º réu e aqui pede-se indemnização pela conduta da Srª juíza pela qual é responsável o réu Estado.

         Mais labora em falácia a sentença que indica factos da causa de pedir na acção 3124/13, e na presente fundamenta-se numa actuação ardilosa dos réus naquela acção, concretizada na afirmação de factos não verídicos (na mentira) dessa acção, sabendo que a realidade da causa de pedir da nova acção está em alegação de afirmações, bárbaras e comprovadoras de que a Srª juízo não prestou atenção à prova, feitas na sentença proferida naquela acção.

         Mas o Sr. Juiz vai mais longe para cometer a nulidade da primeira parte do art. 615/1-d do CPC pois que diz que “o tribunal, nesta segunda acção, não pode apreciar e decidir se os três primeiros réus actuaram da forma descrita naquela acção 3124/13, quando é claro que tal aferição não podia ali ser feita pelo julgador porque o 1.º réu, enquanto réu naquela acção, não produziu prova; o 2.º réu era testemunha e, como tal, disse o que é, no essencial, causa desta acção, e o 3.º réu, como mandatário do 1.º réu, não produziu prova.

         Esquiva-se, ainda, a sentença dizendo que um dos fundamentos do recurso da primeira acção foi a falta de credibilidade dos meios de prova produzidos – furtando-se sempre ao verdadeiro fundamento que é a falta de atenção à produção da prova, concluindo pela afirmação de factos sem qualquer prova deles, e ignorando a prova do contrário e dolo da conduta da Srª Juíza que quis fazer mal ao autor.

         O réu Estado não contestou, nem os outros réus impugnaram eficazmente os factos da causa de pedir que sustentam a nova acção, tal como não o fez o 3.º réu, pelo que se deviam considerar provados esses factos articulados pelo autor, pelo que o réu Estado devia ser condenado no pedido, o que nada obstava à condenação de todos os réus.

              Apenas o 2.º réu contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.

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              Questões que importa decidir: se a sentença incorreu na nulidade invocada; e se não se verifica a excepção do caso julgado.

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              Foram dados como provados os seguintes factos:

        1. Correu termos no então 4º Juízo Cível de Cascais, sob o n.º 3124/13.0TBCSC, a acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário, em que o aqui autor requereu a condenação do aqui 1.º réu no pagamento de 7917,30€, acrescida de juros legais de mora, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais [, com base nos danos que os dois primeiros réus lhe teriam provocado com a sua conduta em Agosto de 2007 – esta parte entre parenteses rectos foi colocada por este TRL, com base no mesmo elemento de prova usado pelo tribunal recorrido para dar o facto como provado].
        2. Na identificada acção, o aqui 1.º réu deduziu pedido reconvencional contra o autor, peticionando a condenação deste no pagamento de 15.000€, igualmente a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.
        3. No dia 11/06/2014 foi proferida sentença na acção identificada em 1, na qual se decidiu julgar improcedente a acção e o pedido reconvencional, absolvendo, respectivamente, o aqui 1.º réu e o aqui autor dos pedidos formulados reciprocamente.
        4. O aqui autor interpôs recurso da sentença referida em 3.
        5. No dia 27/09/2016, o TRL proferiu acórdão do recurso referido em 4, julgando improcedente o mesmo e mantendo a decisão recorrida.
        6. Do acórdão referido em 5 recorreu o aqui autor para o Tribunal Constitucional, o qual, por decisão sumária n.º 161/2017, datada de 24/03/2017, decidiu “não tomar conhecimento do objecto do presente recurso, nos termos previstos no artigo 78º-A/1 da LTC”.
        7. A sentença referida em 3 transitou em julgado no dia 24/04/2017.
        8. A presente acção foi instaurada em 18/06/2017.

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              A sentença recorrida tem, muito em síntese, a seguinte fundamentação:

          Depois de tecer considerações sobre o caso julgado, com base no artigos 577/-i, 580/1 e 581, do CPC, e de alguma doutrina, considera que, apesar de não haver identidade de partes, do pedido e da causa de pedir entre a presente acção e a acção 3124/13, a acção destes autos está dependente da decisão da acção 3124/13, valendo a sentença aí proferida com a autoridade de caso julgado aqui, isto é, o tribunal está agora vinculado à decisão proferida naquela acção e o fundamento da decisão transitada condicionaria a apreciação do objecto de uma acção posterior.

         O autor, naquela acção, fundamenta o seu pedido na ocorrência de factos voluntários, ilícitos, culposos e danosos, provocados pelo réu numa dada viagem a M, enquanto nesta fundamenta o pedido numa actuação ardilosa dos réus na acção 3124/13, concretizada na afirmação de factos não verídicos (na mentira) com vista à improcedência (conseguida) dessa acção.

         Ora, o tribunal não poderia, nesta segunda acção, apreciar e decidir se os três primeiros réus actuaram da forma descrita (ou seja, com ardil, recorrendo a mentira consciente) naquela acção 3124, pois que essa aferição foi efectuada pelo julgador da acção 3124 ao formar a sua convicção sobre a matéria de facto aí alegada. Se a decisão aí proferida não tivesse o efeito de autoridade de caso julgado nesta acção, o autor poderia vir a obter, por via dela, o que não obteve naquela, dando origem a decisões contraditórias.

         Recorde-se que um dos fundamentos do recurso interposto pelo autor da sentença proferida na acção 3124 foi, precisamente, a falta de credibilidade dos meios de prova aí produzidos. Precisamente a mesma falta de credibilidade/mentira que pretende ver reconhecida/declarada nesta acção, quando não o conseguiu em sede de recurso. Esgotadas, assim, as possibilidades de reapreciar a matéria de facto e de recorrer da decisão da 1ª instância, esta tornou-se definitiva e assume carácter prejudicial, condicionado o objecto da presente acção.

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                                                     O caso julgado

              Quando existe uma acção que é idêntica a outra – por as partes, a causa de pedir e o pedido serem os mesmos -, que já foi decidida e o juiz invoca esta decisão para dizer que não pode voltar a decidir o que está decidido, está a invocar a excepção do caso julgado e com base nele absolve o réu da instância (arts. 577/-i, 580 e 581, todos do CPC).

        Se o juiz tem para decidir uma acção cuja decisão de mérito tem como um pressuposto uma questão que já está decidida numa outra acção, deve limitar-se utilizar o resultado desta última, como decisão daquela questão, pressuposto da nova, que assim depende parcialmente daquela. Neste caso o juiz limita-se a invocar a autoridade do caso julgado como solução da questão prejudicial que é pressuposto da nova acção. Trata-se pois de dizer que uma questão prejudicial, que é pressuposto da nova acção, já está resolvida pela antiga e que se tem de aproveitar o resultado dessa antiga acção na decisão dessa questão prejudicial.

            Assim sendo, a autoridade do caso julgado em sentido próprio, invocável para a decisão de questões prejudiciais, nunca pode conduzir à absolvição da instância pela excepção do caso julgado. São afirmações e fundamentações contraditórias.

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               Dito de outro modo:

             A excepção do caso julgado e a autoridade do caso julgado distinguem-se, grosso modo, pelo seguinte: enquanto a excepção é invocada para impedir que seja proferida uma nova decisão (art. 580 do CPC), a autoridade do caso julgado é invocada como decisão de um pressuposto de uma nova decisão.

     Como diz Lebre de Freitas: “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida” (CPC Anotado, com Isabel Alexandra, vol. 2º, 3ª ed., páginas 599 e 749, e A acção declarativa, 4.ª edição, 2017, Gestlegal, pág. 132, nota 75).

            No mesmo sentido, em anotação ao ac. do TRC de 06/03/2018 (10324/15.7T8CBR.C1) num post publicado a 06/07/2018, sob o título Jurisprudência 2018 (54), no blog do IPPC, diz Miguel Teixeira de Sousa: “Estranhamente, o acórdão da RC, ao analisar o caso sub iudice, coloca o problema no domínio da autoridade de caso julgado. Não era certamente isso que estava em causa na acção. O que se discute nesta acção não é se o demandante está vinculado a aceitar o resultado da primeira acção (é claro que está), mas se os demandados podem obstar à propositura de uma nova acção de demarcação pelo mesmo demandante. O problema não é, pois, de autoridade de caso julgado, mas de excepção de caso julgado (cf. art. 580.º e 581.º CPC). No mesmo sentido, vai uma outra anotação de Miguel Teixeira de Sousa, de 02/09/2015, a um outro acórdão, Jurisprudência (186).

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            Apesar disto, é evidente que a sentença tem razão e que o caso julgado se verifica, na sua vertente negativa, como excepção de caso julgado, a conduzir, como conduziu, à absolvição da instância, podendo ser aproveitada muita da fundamentação da sentença, apesar da mistura de argumentos, fruto da dificuldade da matéria.

              Antes de avançar, diga-se que a sentença invocou a excepção do caso do julgado com mistura da autoridade do caso julgado, considerando que assim se afastava a necessidade da identidade dos sujeitos, entre eles o do Estado, e de causas de pedir. Pelo que já se disse, não se considera que esta argumentação seja formalmente correcta, mas dela não decorre a, pelo autor, arguida nulidade da sentença por desconsideração da causa de pedir do pedido contra o Estado. A questão foi apreciada, de outra perspectiva.

              Posto isto,

              As três identidades de que fala o art. 581/1 do CPC, como pressuposto da excepção do caso julgado, têm de ser interpretadas de modo extensivo.

             Explica Lebre de Freitas, que “para bem entender a tripla identidade do art. 581/1, CPC, tem que se ir além da mera verificação de que a segunda acção é proposta pela mesma pessoa que foi uma das partes na primeira contra a mesma pessoa que nela foi a respectiva contraparte, de que o pedido é exactamente o mesmo e de que ele se funda (ou é negado que se funde) na mesma narração de factos constitutivos que, na acção anterior, se pretendeu ter integrado a previsão das normas jurídicas invocadas.” (Um polvo chamado autoridade do caso julgado, ROA 2019, III/IV, págs. 691 a 722, aqui na pág. 694).

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         Assim, quando à “identidade das partes há que atender, […] à extensão subjectiva da eficácia da sentença, pois a identidade de sujeitos estende-se, além das partes: [estende-se, entre outros…] aos titulares de situação jurídica concorrente com a que a sentença reconheceu ([como, por exemplo, o] credor ou devedor solidário […]). [Em suma, t]odos os casos de extensão a terceiros da eficácia da sentença são equiparados aos da estrita identidade de partes, para o efeito dos arts. 577/-e e 581 do CPC. (Um polvo…, págs. 694-695).”

              Como diz Antunes Varela (com Miguel Bezerra e Sampaio e Nora), invocado por Lebre de Freitas: “Quanto à identidade de sujeitos, ela existirá não só em relação às pessoas que são partes, mas também relativamente àquelas que serão abrangidas pela força de caso julgado da decisão que vier a ser proferida no primeiro processo. […]” (Manual de processo civil, 2.ª edição, revista, Coimbra Editora, 1985, pág. 302, nota 3).

              Dito de outro modo, “a identidade de sujeitos estende-se àqueles que não sendo partes, são – ou hão-de ser – abrangidos pela força de caso julgado formado na primeira acção: não é repetível […] perante o devedor solidário que não foi demandado […] a acção em que tenha sido obtido caso julgado favorável […] ao devedor solidário […] demandado (arts. 522 […].” (Lebre de Freitas, CPC vol. 2.º, pág. 593).

             O que é desenvolvido assim: Na “delimitação subjectiva do âmbito do caso julgado […] é usual distinguir os terceiros juridicamente indiferentes dos terceiros juridicamente interessados: […]; juridicamente interessados são os titulares, ou pretensos titulares, de situações jurídicas que, a ser-lhes oposto o caso julgado, por ele podem ser, em si, afectadas, quer por resultarem suprimidas, quer por terem o seu conteúdo modificado. Entre os terceiros juridicamente interessados distinguem-se ainda os titulares, ou pretensos titulares, […] de situação jurídica […] concorrente [da que é feita valer na causa] (as duas situações têm conteúdo único: é o caso da obrigação solidária […]). [Neste caso…] a lei civil perfilha […] a solução do caso julgado secundum eventum litis, expressamente determinada para as obrigações solidárias (arts. 522 CC […]” (Lebre de Freitas, CPC, vol.º 2, págs. 758-760).

            Registe-se pois, para já, que, por força, deste artigo 522 do CC, “o caso julgado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores, mas pode ser oposto por estes, desde que não se baseie em fundamento que respeite pessoalmente àquele devedor.”

         Ou seja, o devedor solidário é um dos terceiros juridicamente interessados e que pode opor ao credor a absolvição do pedido obtido na primeira acção.

          Pelo que, perante uma sentença de absolvição do pedido de um alegado devedor solidário, os outros devedores solidários são, com ele, sujeitos idênticos.

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           Quanto à identidade do pedido, ela verifica-se quando numa e noutra causa se pretenda obter o mesmo efeito jurídico (art. 581/3 do CPC), sendo indiferente para este efeito que o autor, na segunda acção, peça um valor indemnizatório superior ao da primeira.

              Assim, no ac. do TRL de 20/09/2018, proc. 13111/17.4T8LSB, diz-se que o pedido é o mesmo, apesar do valor concreto do capital ser diferente. No caso, ambos os pedidos correspondem ao valor do capital em vigor às datas em que foram formulados. Pedir-se 162.000€ ou 64.500€ é, para estes efeitos, o mesmo por ambos os pedidos se referirem ao mesmo capital total do contrato de seguro, embora reportado a datas diferentes.

              Como lembra o ac. do STJ de 11/07/2019, proc. 13111/17.4T8LSB.L1.S1: “A questão da identidade de pedidos e das causas de pedir para efeitos de determinação da excepção de caso julgado, nem sempre é clara e linear, porquanto as partes, conhecendo os efeitos da excepção, tendem a camuflar ou a dissimular os elementos que a possam revelar.” 

          Ou, se se visse na identidade de pedido uma igualdade de valores, então, como dizia, embora a outro propósito, Castro Mendes, Limites objectivos do caso julgado em processo civil, Edições Ática, s/d?, pág. 264, nota 45, “absolvido R de uma acção movido por A pedindo a condenação em 100, A tinha um remédio simples: pediria 101.”

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              Quanto à identidade de causa de pedir, ela existe quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico (art. 581/4 do CPC) e existe mesmo “quando os factos que a constituem na segunda acção integrem, embora excedendo-os, os alegados, ao mesmo título, na primeira, desde que seja idêntico o seu núcleo essencial.” (Lebre de Freitas, O polvo…, pág. 700).

              Ou como diz o acórdão do STJ de 14/12/2016, proc. 219/14.7TVPRT-C.P1.S1 (a que o acórdão de 11/07/2019 adere): “A essencial identidade e individualidade da causa de pedir tem de aferir-se em função de uma comparação entre o núcleo essencial das causas petendi invocadas numa e noutra das acções em confronto, não sendo afectada tal identidade, nem por via da alteração da qualificação jurídica dos factos concretos em que se fundamenta a pretensão, nem por qualquer alteração ou ampliação factual que não afecte o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as acções, nem pela invocação na primeira acção de determinada factualidade, perspectivada como meramente instrumental ou concretizadora dos factos essenciais.”

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          Não se fez a análise separada da verificação das duas identidades, acabadas de referir – pedido e causa de pedir – porque, como diz Antunes Varela, obra citada, págs. 712 e 714, “é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado. É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e da autoridade do caso julgado. […Constituirá caso julgado a resposta final dada à pretensão concretizada através da causa de pedir.”    

              Ou como se diz no ac. do STJ de 14/12/2016: “a figura da excepção de caso julgado – que a reforma de 1995/96 qualificou expressamente como dilatória – tem que ver com um fenómeno de identidade entre relações jurídicas, sendo a mesma relação submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, ignorando-se ou desvalorizando-se o facto de esse mesma relação já ter sido, enquanto objecto processual perfeitamente individualizado nos seus aspectos subjectivos e objectivos, anteriormente apreciada jurisdicionalmente, mediante decisão que transitou em julgado.”

              Ora, nesta segunda acção o autor pretende obter uma indemnização para reparar o dano de não ter obtido uma indemnização pelos danos cuja reparação pedia na primeira acção, derivados da conduta dos dois primeiros réus (embora nela só tenha demandado um deles), conduta e danos que o autor voltou a descrever, com reprodução da petição inicial anterior.

          Assim, o pedido e a causa de pedir são os mesmos, no essencial, apenas modificados pela descrição de circunstâncias ocorridas no decurso do processo em que eles estiveram a ser apreciados, com as quais o autor discute o resultado a que na anterior acção se chegou.

           Com esses novos factos o autor limita-se a pôr em apreciação a mesma relação jurídica, já julgada uma vez, pretendendo que desta nova apreciação se decida por um resultado diferente do que a primeira produziu e com isso se conceda ao autor a indemnização por ele pedida, que agora o autor, no essencial, se limitou a valorizar em montante superior.

              Parafraseando a passagem já citada de Lebre de Freitas, os factos que constituem a causa de pedir nesta segunda acção integram, embora excedendo-os, os alegados, ao mesmo título, na primeira, mas é idêntico o seu núcleo essencial.

            Pelo que também se verificam as identidades do pedido e da causa de pedir, numa e noutra acção, e os réus, dados como condevedores de uma obrigação solidária (art. 497 do CC), beneficiavam do caso julgado produzido a favor do condevedor solidário demandado na primeira.

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         A demonstração que é assim, pode-se fazer aproveitando, com adaptação, a argumentação do tribunal recorrido. Os novos factos que o autor acrescenta à anterior causa de pedir, dizem respeito ao que se passou no primeiro processo e com eles o autor já tentou, sem êxito, revogar a sentença proferida na primeira acção. Se o autor tivesse tido êxito no recurso de apelação, desaparecia a sentença, ou seja, o caso julgado já não podia ser invocado.

              Ou seja, com esta nova acção, o que o autor quer, na prática, é obter uma nova decisão contrária à que não deu procedência à sua anterior pretensão, sendo que a anterior decisão continuaria a existir. Pelo que passavam a existir duas decisões contraditórias: uma a negar o direito do autor à indemnização e outra a concedê-lo.

              E isto chama a atenção para que o que daqui resultaria seria uma revogação prática de uma decisão anterior por uma nova decisão, embora formalmente aquela continuasse a existir. Ou seja, o autor conseguiria, com uma acção, aquilo que só devia poder conseguir através de um recurso (recurso que aliás intentou, sem êxito). Isto é, o autor está de novo a tentar com esta acção a revogação de uma anterior decisão que não conseguiu obter com um recurso já interposto.

              Ora, tudo isto torna evidente que havia uma anterior decisão que já se tinha pronunciado sobre o caso. O tal caso julgado, que deve actuar como excepção do caso julgado, como actuou.

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              E tudo isto leva ainda a lembrar um pressuposto essencial de um pedido de indemnização contra o Estado pelo exercício da função jurisdicional que, obviamente, o autor não observou e que tinha que levar, necessariamente, à inviabilidade da acção (sendo, por tudo o que antecede, totalmente irrelevante que o Estado não tenha contestado a acção).

           É o que resulta do art. 13/2 da Lei 67/2007, de 31/12, que diz: O pedido de indemnização [contra o Estado pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto] deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

              Assim, condição de uma condenação do Estado, era uma prévia revogação da decisão danosa, revogação que, à data em que a acção foi proposta (isto é, antes de Lei 117/2019, de 13/09, ter alterado a matéria respectiva, com um regime que, no que importa ao caso, é igual: arts. 696/-h, 696-A e 701/1-e do CPC), podia ocorrer no próprio processo em que a decisão tinha sido proferida, por meio de recurso ordinário, ou por apenso, por recurso extraordinário de revisão dos artigos 696 e seguintes do CPC (como explica o ac. do TRC de 13/11/2019, proc. 2519/18.8T8LRA.C1), se e quando se verificassem os respectivos pressupostos.

               Ou seja, o autor podia pedir uma indemnização contra outros réus, para além do réu primitivo, incluindo o Estado, com base nos factos alegados acrescentados à anterior causa de pedir, mas isso apenas depois de obter a revogação da decisão anterior, com o que faria desaparecer o caso julgado que, até lá, se opõe à admissibilidade de uma nova acção.

              O que, de novo, serve para demonstrar a existência de um caso julgado que o autor quis contornar através desta nova acção.

                                                                       *

              Precisamente no sentido da verificação da excepção de caso julgado, num caso paralelo ao dos autos, embora também com a imprecisão de invocarem a autoridade de caso julgado, vejam-se os acórdãos do TRC de 06/09/2011, proc. 816/09.2TBAGD.C1, e do STJ de 15/01/2013, proc. 816/09.2TBAGD.C1.S1.

              E a análise que o Professor Lebre de Freitas faz do caso, no artigo já citado (O polvo…, páginas 704-705; os negritos são de Lebre de Freitas):

         “Na primeira acção o réu B foi condenado a indemnizar por prejuízo causado em prédio de A, no qual abriu duas valas, lavrou e plantou eucaliptos. Na segunda, proposta por B, este pretende, obter a condenação de A e outros réus, ligados, segundo o autor, por solidariedade passiva, a indemnizá-lo pelos custos suportados com a primeira acção e por tudo aquilo que viesse a despender a título de pagamento da indemnização que nela foi fixada. Baseia-se para tanto na falsidade dos meios de prova (documentos e testemunhos) que haviam sido produzidos e haviam levado à condenação.

         O objecto das duas acções era, pois, idêntico e, quanto à identidade de partes, não era beliscada com o facto de a segunda acção ter sido proposta também contra outras pessoas, tendo nomeadamente em conta que estas seriam condevedores solidários e, por isso, beneficiavam do resultado da primeira acção (art. 522 do Código Civil). A tripla identidade verificava-se e o que B pretendia era, à margem dum recurso de revisão, obter a revogação da decisão proferida na primeira acção, destruindo a prova dos factos que nela haviam constituído causa de pedir. A questão que se punha não era de invocabilidade da decisão sobre os factos em outra causa, mas sim de invocação dessa decisão na mesma causa. Era nítida a ocorrência da excepção do caso julgado.”

                                                                      *

            Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

            Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelo autor (por perder o recurso).

            Lisboa, 04/06/2020

            Pedro Martins

            1.º Adjunto   

            2.º Adjunto