Processo do Juízo Local Cível de Sintra

           Sumário

           I – Os autores devem, entre o mais, alegar a forma como celebraram o contrato que é parte da causa de pedir; se os réus se aproveitam desses factos para dizer que o contrato é nulo e que os autores não podem, com base nele, terem os direitos que estão a exercer, não estão a excepcionar a nulidade do contrato, mas a impugnar os efeitos jurídicos que os autores pretendem extrair dos factos que alegaram.

           II – Não se pode converter um contrato nulo por falta de forma, no mesmo contrato válido mesmo sem forma.

       III – A Lei 13/2019, de 12/02, aditou um n.º 2 ao art. 1069 do CC, que permite ao arrendatário “na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário”, provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito. E essa lei tem uma norma de direito transitório, art. 14/2, que prevê que essa alteração aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma. É assim claro que a lei quis que o art. 1069/2 do CC fosse aplicável às próprias relações de arrendamento já constituídas, que subsistissem à data da sua entrada em vigor (art. 12/2 do CC), mesmo que estivessem pendentes num processo judicial. Assim sendo, no processo, haveria que dar, à ré, a possibilidade de provar a existência do contrato e isso para o fazer valer contra os autores e, a estes, a possibilidade de contraditarem os factos que a ré viesse a alegar, fazendo-se as necessárias adaptações processuais necessárias para o efeito, ao abrigo dos artigos 6 e 547 do CPC.

     IV – Excepto se isso fosse inútil, como no caso era, por estar verificado o preenchimento do fundamento resolutivo do contrato invocado pelos autores, qual seja, o da falta de pagamento de rendas.

         V – Quando há depósitos de valores de rendas, há, por regra, que dar destino aos mesmos (arts. 17 a 23 do NRAU).

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

         Herança indivisa, aberta por óbito de JC, representada por JPC na qualidade de cabeça-de-casal, SC, J e ST, intentaram uma acção comum contra B, pedindo que a ré seja condenada a reconhecer e ver declarado resolvido um contrato de arrendamento (que identificam), por sentença, com base na falta de pagamento das rendas e a restituir imediatamente aos autores o prédio arrendado, livre e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação, bem como a pagar-lhes 2542,55€ referente a rendas vencidas e não pagas e 250€ por cada mês de ocupação da fracção na pendência da acção e juros de mora vincendos desde a presente data até prolação de sentença, e ainda uma indemnização correspondente ao valor das rendas mensais vincendas, após sentença e, até efectiva entrega do locado, acrescido dos respectivos juros moratórios, até integral pagamento.

          Alegaram para tanto, em síntese, que os autores são donos de uma fracção autónoma; pelo falecido e pelos autores [sic] foi dado, verbalmente, de arrendamento à ré, essa fracção; após o falecimento, os autores adoptaram todas as diligências com vista à formalização do contrato, sem sucesso; a renda era de 250€ mensais; a ré não paga a renda desde Agosto de 2017; é-lhes inexigível a manutenção do contrato de arrendamento em virtude do não cumprimento por parte da ré; exerceram o direito à resolução do contrato por notificação judicial avulsa efectivada por agente de execução a 12/03/2018, mas a ré permanece na fracção arrendada. Os autores não dizem expressamente quando é que o contrato foi celebrado, mas invocam um recibo, doc.6 (fl.20v do processo em papel), que dão por reproduzido, donde consta que “recebi de B o valor de 500€ referentes ao mês de Janeiro e Fevereiro (caução) de 2014, relativos ao contrato de arrendamento de um 2.º frente na Rua F”; e invocam e apresentam uma carta escrita pela sua mandatária à ré (doc.5, fls. 18v-19), onde, entre o mais, se diz: “desde o mês de Outubro de 2014, que o mesmo [o imóvel acabado de identificar] é habitado por V.Exa contra o pagamento de uma renda no valor de 250€.”

              A ré contestou, em 01/10/2018, dizendo que o fazia “por excepção – a nulidade do contrato”, contrato que, acrescenta, foi celebrado em 01/01/2014, nulidade que decorreria da nova redacção, dada pela Lei 31/2012, de 14/08, ao artigo 1069 do Código Civil e que não poderia ser suprida através da apresentação dos recibos da renda, dado que foi revogada a norma do art. 7/2 do RAU; e continua “os autores fundamentam a causa de pedir e todos os seus pedidos na alegada existência de tal contrato de arrendamento verbal; não acautelaram a possibilidade de vir a ser invocada a nulidade do contrato em causa e, assim, necessariamente terão de improceder todos os seus pedidos, uma vez que estão sustentados num alegado contrato de arrendamento inválido. E nestes termos a ré invoca em sua defesa a nulidade de tal contrato de arrendamento com todas as consequências legais.” A seguir, sob a epígrafe de impugnação, diz: se a excepção da nulidade do contrato de arrendamento verbal vier a ser julgada procedente, como se crê, o contrato verbal deveria ser convertido, ao abrigo do artigo 293 do CC, num contrato de arrendamento; acrescenta que não recusou a formalização do contrato, o que os autores só quiseram fazer depois da queixa da ré às finanças, em 2017; nessa autora a ré não assinou a minuta do contrato que lhe foi enviado uma vez que não correspondia ao alegado; e a partir daí os autores passaram a exigir a restituição da fracção; quanto às rendas, excepciona o pagamento: diz que só deixou de as pagar quando os autores se recusaram a recebê-las, mas a partir daí começou a depositá-las na CGD.

             Os autores vieram responder à alegada excepção de nulidade do contrato, dizendo que, a ser declarada a nulidade, a ré, que está então a ocupar a fracção sem título que a legitime, deverá, à mesma, ser condenada a restitui-la e a pagar os valores pedidos a título de ocupação indevida da fracção; repetem que apenas a partir de 12/03/2018, data da notificação judicial avulsa, é que a ré começou a liquidar as rendas por depósito; impugnaram os factos base da excepção de pagamento.

              Realizada a audiência final – onde os autores reduziram o pedido relativamente à renda de Maio de 2018 que, face ao depósito junto da CGD, dão como recebida -, foi proferida sentença declarando a nulidade, por falta de forma, do contrato de arrendamento celebrado entre os autores e a ré e condenando a ré a restituir imediatamente aos autores a fracção arrendada livre e devoluta de pessoas e bens e a pagar aos autores, a título de indemnização pela ocupação do imóvel, 2250€, correspondente ao valor das rendas vencidas de Agosto de 2017 a Abril de 2018 (inclusive) e o valor das rendas vincendas desde 20/04/2018, à razão de 250€, bem como 42,03€ a título de juros de mora vencidos até à propositura da acção, todos calculados à taxa supletiva prevista para as relações civis, e no pagamento dos juros de mora vincendos, à mesma taxa, sobre cada uma das rendas vencidas e não pagas e até integral pagamento.

              A ré recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que declare a validade do contrato de arrendamento, bem como considere que todas as rendas estão devidamente pagas -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, com algumas simplificações feitas agora (apenas não se transcreve a primeira conclusão por ser mera descrição do processado):

         2 – O contrato de arrendamento não é nulo, porquanto, ainda que de forma incorrecta, sempre a única senhoria que a ré conheceu, lhe foi emitindo uns recibos manuais.

         3 – Competia aos senhorios redigirem o contrato de arrendamento e submeter o mesmo ao fisco, o que porém nunca aconteceu.

         4 – Sendo que o único contrato que foi enviado à ré, não continha as disposições acordadas entre as partes, pelo que a mesma diligenciou no sentido de responder à mandatária dos autores, pedindo que lhe fosse enviado um contrato com a duração de 5 anos, já que o que lhe fora enviado apenas tinha um prazo de 2 anos.

         5 – Não tendo nunca os autores dado qualquer resposta, sendo que não pode aproveitar à parte que causou a nulidade do contrato, essa mesma nulidade, sendo certo que o senhorio é a parte mais forte e, em todos os casos em que o senhorio não celebra por escrito o contrato de arrendamento, fica diminuído o direito do arrendatário à habitação.

         6 – A ré sempre pagou as rendas devidas pela locação, conforme aliás foi devidamente esclarecido pelo seu companheiro.

         7 – Os pagamentos eram feitos em dinheiro, na casa da senhoria que residia no mesmo imóvel do locado, a qual, umas vezes emitia uns recibos manuais, outras vezes recebia o dinheiro e dizia que depois emitia os recibos, não o tendo contudo feito, servindo-se da falta da emissão de tais recibos, para dizer que afinal a ré não pagou as rendas.

         8 – Não obstante tal situação, foram juntos aos autos documentos comprovativos de que as rendas solicitadas pelos autores afinal se encontravam pagas.

         9 – Por outro lado, e considerando que a prova do pagamento, a ser feita pela ré, dependia do facto de os autores lhe terem emitido os recibos de quitação, e uma vez que não o fizeram, temos que necessariamente aplicar o regime da inversão do ónus da prova, já que, apesar de a ré invocar o pagamento das rendas, não lhe foi possível juntar os documentos, dado que os autores maliciosamente, os não emitiram.

         10 – Na verdade, o facto de não terem declarado o contrato às finanças, impediu que a ré pudesse deduzir o pagamento das rendas no seu IRS, o que em muito a prejudicou.

         11 – Deveria a sentença recorrida, ter aplicado o regime da inversão do ónus da prova e, como tal, considerar que a ré nada devia, mantendo assim o contrato de arrendamento, assim como não condenando a mesma no pagamento das rendas, que, e considerando o diferendo judicial, a mesma passou a depositar a renda no banco, tendo depositados mais de 4000€ à ordem do tribunal, e só não depositou as rendas anteriores, porque sempre esteve de boa-fé e considerava que estava perante pessoas de igual boa-fé.

              Os autores não contra-alegaram.

                                                                 *

             Questões que importa decidir: se o contrato de arrendamento não devia ter sido declarado nulo por falta de forma; se a ré não devia ter sido condenada no pagamento das rendas; o relevo da existência de depósitos.

                                                                 *

              Deram-se como provados os seguintes factos:

a) Em 31/10/2016, faleceu JC, pai dos herdeiros, aqui representados pelo cabeça-de-casal, conforme assento de óbito.

b) Em 05/12/2016 foi celebrada escritura de habilitação de herdeiros tendo ficado nomeado como cabeça-de-casal JPC.

c) Os autores são donos e legítimos proprietários da divisão correspondente ao segundo andar frente, do prédio urbano sito na Rua F, em X, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 000 da União das Freguesias de X e Y, e descrito na Conservatória do Registo Predial de X sob o número 000/1990809.

d) Pelo falecido e pelos autores, na qualidade de senhorios, foi dado, verbalmente, de arrendamento, à ré aquela fracção para habitação, que a tomou de arrendamento.

e) Após o falecimento do de cujus os herdeiros, e restantes autores, adoptaram todas as diligências com vista à formalização do contrato de arrendamento, por escrito, porém, sempre sem sucesso.

f) Em data não concretamente apurada a mandatária dos autores remeteu à ré um contrato de arrendamento reduzido a escrito cuja redacção se desconhece.

g) Que não foi assinado pela ré, por não concordar com o respectivo teor.

h) Nos termos do referido contrato de arrendamento, verbalmente celebrado, ficou acordado que a renda mensal seria de 250€.

i) Mais acordaram as partes que a renda se venceria no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito.

j) A ré foi interpelada para proceder ao pagamento das rendas vencidas e não pagas.

k) Em 12/03/2018, os senhorios, através de notificação judicial avulsa comunicaram à ré que pretendiam resolver o contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas.

l) A partir da notificação judicial avulsa a ré passou a depositar as rendas na Caixa Geral de Depósitos.

m) O primeiro depósito da renda, com invocação de recusa de recebimento pelos senhorios, foi a 02/04/2018.

n) Os autores aceitam como paga a renda de Maio de 2018, vencida a 01/04/2018.

                                                                           *

Da impugnação da matéria de facto

          Ao longo das conclusões do recurso (praticamente idênticas ao corpo das alegações) a ré vai invocando factos como se eles estivessem provados, embora eles não constem da discriminação dos factos provados efectuada na sentença recorrida.

           Os recorrentes, quando pretendem impugnar a decisão da matéria de facto, devem cumprir determinados ónus impostos pela lei, entre eles o de indicarem os elementos de prova que imporiam decisão diversa e indicarem as passagens da gravação dos depoimentos que invocarem (art. 640/1b-2a do CPC).

           Em parte das conclusões 2, 4 e 5 a ré invoca factos que têm a ver com a existência e formalização do contrato, mas nem sequer indicou quaisquer elementos de prova deles.

           Na conclusão 6 diz que sempre pagou as rendas devidas pela locação e, sem sequer discutir a fundamentação da decisão contrária do tribunal recorrido, invoca, como elementos de prova, (i) o que foi dito pelo seu companheiro, (ii) documentos comprovativos de que as rendas solicitadas foram pagas e (iii) a regra da inversão do ónus da prova, com base no facto instrumental de que os pagamentos eram feitos em dinheiro, na casa da senhoria que residia no mesmo imóvel do locado, a qual, umas vezes emitia uns recibos manuais, outras vezes recebia o dinheiro e dizia que depois emitia os recibos, não o tendo contudo feito.

       Ora, quanto ao depoimento do seu companheiro não indicou as passagens do mesmo; quanto aos documentos, não diz quais eram; e não indicou elementos de prova para o facto instrumental invocado, sendo que não existem quaisquer outros factos, que a ré nem sequer alega, que permitam a inversão do ónus da prova.

              Assim, nada há a alterar aos factos dados como provados.

                                                                 *

                                 Do recurso sobre matéria de direito

              A fundamentação de direito da sentença foi a seguinte, muito em síntese e com simplificações:

         Resulta provado que as partes celebraram um contrato verbal de arrendamento urbano.

           De harmonia com o disposto no artigo 1069 do CC, na redacção em vigor na data da celebração do contrato (Lei 6/2006, de 27/02), o contrato de arrendamento deve ser celebrado por escrito.

         A actual redacção do artigo 1069 (com a entrada em vigor da Lei 13/2019, de 12/02), prevê que: 1 – O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito. 2 – Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.

         O legislador no artigo 16 da Lei 13/2019 estabeleceu a entrada em vigor desta lei no dia seguinte ao da sua publicação e no art. 14/2, norma transitória, determinou que o disposto no art. 1069/2 do CC, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma.

         Não nos vamos debruçar sobre a aplicação da lei no tempo, designadamente o mencionado no artigo 12 do CC, porquanto no caso em apreço não resultou provado que o contrato não foi reduzido a escrito por facto não imputável à arrendatária pelo que entendemos que o art. 1069/2 do CC, se aplicável, não teria aqui aplicação por falta de preenchimento de um dos seus pressupostos.

            Assim:

         Em caso de inobservância da forma legal prescrita, o contrato de arrendamento será nulo (art. 220 do CC).

         A declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (artigo 289 do CC).

      A restituição abrange tudo o que haja sido prestado, ainda que pelo valor correspondente, se não for possível a restituição em espécie, de modo a que as partes sejam colocadas na situação objectiva que tinham antes da celebração do contrato ou como se este não tivesse sido realizado.

          Assim, no caso de nulidade do contrato de arrendamento, a obrigação do locatário de restituir (art. 289/1 do CC) abrange não só a entrega do locado, como o pagamento do valor correspondente à sua utilização (rendas acordadas e não pagas) – cf., por ex., ac. do TRL de 28/11/1996, C.J. ano XXI, tomo V, pág.113.

         Ou seja, declarada a nulidade do contrato de arrendamento, por falta de forma, o arrendatário fica obrigado, não só a restituir ao senhorio o locado, como também a pagar-lhe uma compensação pela utilização do mesmo, correspondente, em regra, ao montante das rendas acordadas, enquanto tal utilização se mantiver.

         Também Vaz Serra, embora partindo do pressuposto de que a restituição de prestações feitas em execução de um contrato nulo é um caso de restituição do indevido, opina que o valor do uso obtido deve coincidir com as prestações convencionadas (RLJ ano 109, pág. 313).

         Alegou a ré que o contrato nulo deve ser convolado para o de arrendamento por aplicação do regime da conversão previsto no artigo 293 do CC.

         Nos termos do artigo 293 do CC face à prova produzida não vemos obstáculo à conversão do negócio nulo por falta de forma em contrato de arrendamento (pois que é inequívoco que é esse o contrato que as partes pretenderam celebrar).

     Contudo, no caso em apreço, para além de não ter sido deduzido pedido reconvencional, essa conversão acaba por ser um exercício inútil, dado que a final, o resultado prático será o mesmo, pois em virtude da falta de pagamento de rendas de mais de três meses consecutivos, aos autores assiste-lhes o direito de exigir a restituição do imóvel e o pagamento das rendas vencidas e não pagas e das vincendas até entrega efectiva do locado, seja por via da nulidade do contrato, seja por via da resolução do contrato de arrendamento por incumprimento do pagamento das rendas.

         No contrato de arrendamento a renda deve ser paga no tempo e lugar próprio, podendo, por vezes, ser depositada.

          A violação deste comando é fundamento da acção de resolução do contrato (acção declarativa de condenação com forma de processo comum) – artigos 1039/1, 1041/1, 1047, 1048 e 1083/1-3, todos do CC.

          Os autores alegaram que, à data da propositura da acção, a ré não pagava há mais de três meses consecutivos a renda devida pela fruição do locado.

        A ré, a quem competia a prova do pagamento da renda (artigo 762/1 do CC) não demonstrou o pagamento das rendas dos meses de Agosto de 2017 a Abril de 2018.

          Por isso, assiste aos autores, nos termos do artigo 1083/3 do CC, [o direito de] exigir a resolução do contrato de arrendamento e, em consequência, dessa resolução a restituição do imóvel e o pagamento das rendas até à restituição do locado (artigo 1038/-i, 1045, ambos do CC).

          Assim sendo, considerando que não foi deduzido pedido reconvencional com vista à conversão do negócio nulo, face à ausência do documento escrito de suporte ao contrato de arrendamento, impõe-se declarar nulo o contrato e condenar a ré a pagar aos autores, a título de compensação pela ocupação do imóvel, as rendas vencidas em dívida […].

                                                                 *

                                             O contrato não é nulo?

         Nos factos provados não consta a data da celebração do contrato e a sentença invoca um regime que não parece ser aquele que é aplicável. Por outro lado, no relatório da sentença, seguindo-se a posição da ré e dos autores, fala-se numa excepção de nulidade do contrato, o que também não parece certo, pelo que, antes de mais, importa apurar – se for possível – a data do contrato e em que é que se traduziu a posição assumida pelas partes.

              Lebre de Freitas (A acção declarativa, 4.ª edição, 2017, Gestlegal, pág. 193) explica que “[…] é normal que a declaração negocial se manifeste na forma que a lei exige (por exemplo, o documento autêntico ou autenticado para a compra e venda de bens imóveis ou o documento particular para o contrato-promessa de cessão ou para a cessão de quotas de sociedades comerciais) e, no entanto, não é o réu que tem o ónus de provar que a forma legal não foi observada, ocorrendo nulidade, mas sim o autor que deve provar que as partes observaram esse requisito de validade. É que, ao alegar que uma decla­ração negocial teve lugar, nas circunstâncias concretas em que foi produzida, o autor não pode deixar de dizer qual a forma que ela revestiu; a negação, pelo réu, do facto constitutivo alegado pelo autor (a emissão das declarações negociais) constitui uma impugnação. Se a forma exigida para a declaração resultar de convenção das partes (art. 223-1 CC) e não tiver sido observada, ao réu caberá alegar a celebração da convenção (facto impeditivo da validade da declaração, de outro modo válida), sem prejuízo de continuar a caber ao autor alegar a forma que a declaração efectivamente tomou.”

         No caso os autores alegaram que o contrato de arrendamento foi celebrado verbalmente. De forma expressa não alegaram a data em que o contrato foi celebrado, mas fizeram-no de forma implícita com remessa para os documentos, pelo que se sabe, pelo menos, que o contrato foi celebrado em 2014.

              Temos assim alegado pelos autores que o contrato de arrendamento urbano foi celebrado verbalmente e que o foi em 2014.

           Quando a ré vem invocar a nulidade do contrato, não faz mais do que tirar consequências legais diferentes das tiradas pelos autores dos factos que estes tinham alegado. Assim, não há defesa por excepção, mas por impugnação, não dos factos, mas dos efeitos jurídicos pretendidos pelos autores (art. 571/2 do CPC).

              Assim, pode-se acrescentar aos factos provados que o contrato foi celebrado em 2014.

              Ora, em 2014 estava em vigor o art. 1069 do Código Civil na redacção que, como diz a própria ré, lhe tinha sido dada pela lei 31/2012, de 14/08, que dizia que o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito. Não a redacção que lhe foi dada pela Lei 6/2006 (: O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito desde que tenha duração superior a seis meses.)

              Não havendo qualquer norma que preveja sanção diferente, tal contrato é nulo (art. 220 do CC).

              Não havendo qualquer norma que estabeleça regime diverso (art. 285 do CC), tal nulidade é de conhecimento oficioso pelo tribunal (art. 286 do CC).

             Assim, a conclusão tirada pela sentença recorrida, da nulidade do contrato, estava certa, mesmo que nenhuma das partes tivesse invocado a nulidade do contrato.

                                                                 *

          O facto de a nulidade não ter sido invocada pelos autores, não impedia que o pedido procedesse com base na nulidade e não na validade do contrato.

              Isto por força do teor do assento do STJ de 28/03/1995, n.º 4/95, processo 085202 (publicado na 1.ª série do DR de 17/05/1995): Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico, invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no n.º 1 do artigo 289 do Código Civil.

                                                                 *

          A ré defendia, na contestação, a posição de que o contrato verbal de arrendamento, nulo por falta de forma, devia ser convertido num contrato de arrendamento (válido). Mas a conversão do contrato, prevista no art. 293 do CC, não é a conversão de um contrato nulo, no mesmo contrato, agora válido. É, sim, como o próprio artigo diz, a conversão de um negócio num negócio de tipo ou conteúdo diferente do qual contenha os requisitos de substância e de forma. Não se pode converter um contrato nulo por falta de forma, no mesmo contrato, válido mesmo sem forma.

              Assim, a conclusão da nulidade do contrato mantém-se, sem se seguir o caminho que a sentença seguiu para afastar a conversão.

                                                                 *

              Estando o processo pendente, foi publicada a Lei 13/2019, de 12/02 (que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, por força do seu art. 16), que aditou um n.º 2 ao art. 1069 do CC, com a seguinte redacção: “Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.”

            E aquela mesma Lei tem a seguinte norma de direito transitório: art. 14/2: O disposto no art. 1069/2 do CC, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma.

              É assim claro que a Lei quis que o art. 1069/2 do CC fosse aplicável às próprias relações de arrendamento já constituídas, que subsistissem à data da sua entrada em vigor (art. 12/2 do CC) (neste sentido, Maria Olinda Garcia, Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019, Julgar online, Março de 2019, pág. 8). Portanto, também à relação jurídica em causa nestes autos, não obstante a pendência do processo.

              Haveria que dar então, à ré, a possibilidade de provar a existência do contrato e isso para o fazer valer contra os autores e, a estes, a possibilidade de contraditarem os factos que a ré viesse a alegar, fazendo-se as necessárias adaptações processuais para o efeito, ao abrigo dos artigos 6 e 547 do CPC. Não bastava, pois, dizer, como a sentença recorrida o faz, que não tinha ficado provado que a falta de redução a escrito não era imputável à ré. É que a ré não tinha tido oportunidade de alegar os factos necessários para essa conclusão. Aqueles que ela tinha alegado, de algum modo relacionados com isso, não tinham em conta, nem o podiam ter, a previsão legal de uma lei que só foi publicada depois disso.

              Mas, embora por outro via, a sentença tem, no essencial, razão quando fala na inutilidade da aplicação daquela lei, pois que está dado como verificado o preenchimento do fundamento resolutivo do contrato invocado pelos autores, qual seja, o da falta de pagamento de rendas. Pelo que, mesmo que se desse à ré a possibilidade de se prevalecer da possibilidade aberta pela nova redacção do art. 1069/2 do CC dada pela Lei 13/2019, a ré não evitaria a procedência da acção, com a obrigação de restituir a fracção arrendada, nem a condenação no pagamento das rendas.

              Ora, neste caso, e da forma como a jurisprudência tem aplicado – e é de aplicar neste tipo de casos – a norma (art. 289/1 do CC) que prevê as consequências da nulidade, o resultado é praticamente igual ao que decorreria da validade do contrato (como pressuposto no assento 4/95 já referido). É diferente na questão dos juros, como se verá, mas em sentido favorável à ré, pelo que o resultado final da eventual aplicação da Lei 13/2019 acabaria por ser desfavorável à ré, a única recorrente que, por isso não pode ter, nisso, interesse.

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            Tendo a sentença concluído, bem, pela nulidade do contrato, as consequências que tirou estão correctas excepto quanto aos juros e a algumas expressões utilizadas na decisão recorrida (ao falar em fracção arrendada e de rendas vincendas desde 20/04/2018).

            Se o contrato é nulo e a ré tem que pagar o valor correspondente ao das rendas, a título de indemnização e não por força do contrato, como rendas, então esse valor não pode vencer juros de mora desde a data em que cada uma delas devia ter sido paga, mas apenas a partir da data da sentença recorrida, pois que só a partir de então é que está liquidada a dívida (art. 805/3 do CC – sendo que, no caso, não se está perante um pedido formulado inicialmente com base na nulidade do contrato, pelo que a citação para a acção não pode ser vista como um acto anterior de interpelação para o pagamento dessa indemnização que tivesse colocado a ré de má-fé em momento anterior: art. 564/-a do CPC).

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              Nos autos está provado que a ré passou a fazer depósitos das rendas desde Abril de 2018 (   facto l)). Há que dar destino aos valores depositados – arts. 17 a 23 do NRAU -, tanto mais que implicitamente já está dado destino ao primeiro deles, o feito em Abril, para pagamento da renda de Maio, que os autores aceitaram ter recebido e que, por isso, a sentença já não englobou, na condenação, o valor correspondente. Ora, quanto aos outros depósitos, eles devem ter o mesmo destino, não para pagamento das rendas, mas para pagamento do valor correspondentes às mesmas. O valor depositado é impreciso, pelo que a decisão, para respeitar a repartição correcta, terá que dizer que os valores em que a ré foi condenada saem do que estiver depositado, devendo o restante, se o houver, ser restituído à ré. Há que atentar, entretanto que a condenação da ré se reporta a uma indemnização que se vai continuar a vencer enquanto a ré não restituir a fracção ocupada.

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           Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, corrigindo-se a redacção da decisão, alterando-se a mesma quanto aos juros e aditando-a da decisão quanto ao destino dos depósitos, ficando ela com o seguinte teor:

         (i) Declara-se a nulidade, por falta de forma, do contrato de arrendamento celebrado entre os autores e a ré;

              E condena-se a ré a

              (ii) restituir imediatamente aos autores a fracção ocupada (identificada em c dos factos provados), livre e devoluta de pessoas e bens, e

             (iii) a pagar aos autores, a título de indemnização pela ocupação do imóvel, 2250€, correspondente ao valor que seria devido a título de rendas pelo período de Agosto de 2017 a Abril de 2018 (inclusive),

              (iv) mais o valor correspondente ao período já decorrido desde Junho (inclusive) de 2018 e ao que vier a decorrer até à restituição da fracção, à razão de 250€ mensais,

         (v) tudo acrescido dos juros vencidos desde a data da sentença recorrida e vincendos até integral pagamento, à taxa legal civil,

              (vi) iniciando-se o pagamento com o valor dos depósitos efectuados pela ré e o que restar desses depósitos, se algo restar, será devolvido a esta.

              Custas, na vertente de custas de parte, pelos autores em 0,5% e pela ré em 99,5%, sem prejuízo do concedido apoio judiciário à ré na vertente do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

              Lisboa, 04/06/2020

              Pedro Martins

              1º Adjunto

              2.º Adjunto