Processo do CIMPAS

              Sumário:

           I – Não se sabendo como é que se deu o embate, a velocidade a que os veículos seguiam e a distância a que circulavam um do outro, não se pode presumir a culpa do condutor do veículo que seguia atrás, nem que circulava a velocidade desadequada ou sem observar a distância de segurança.

             II – Salvo se se provar o contrário, a falta por um certo período de tempo de um veículo que se adquiriu para usar e se estava a usar, traduz-se num dano de privação do seu uso, que deve ser reparado pelas seguradoras com a colocação à disposição do lesado de um veículo de substituição (de características semelhantes) ou, caso essa obrigação não seja cumprida, pela atribuição, pelo menos tendencialmente, de um valor que parta do custo de aluguer diário de veículo idêntico.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

           N apresentou uma reclamação perante o Centro de informação, mediação e arbitragem de seguros (= CIMPAS) contra a F Companhia de seguros, SA, com o fim de obter desta o pagamento de uma indemnização pelos danos que diz terem-lhe sido causados por um acidente de viação de que foi culpado o condutor do veículo segurado na Fidelidade.

            O valor da indemnização pedida é de 8115,72€, igual à soma de 3950€, valor do veículo dado como perda total, com 788,80€, pelo equipamento de protecção pessoal, mais 1466,92€, pelo valor descontado no seu ordenado por se encontrar de baixa, e mais 1910€ pela privação do uso do motociclo equivalente a 191 dias (total de dias entre a entrega da declaração amigável e a resposta definitiva, menos 32 dias uteis do prazo legal de resolução do processo, segundo o autor).

              A F contestou, impugnando os factos alegados, pois que imputa o acidente a culpa do reclamante, condutor do outro veículo.

              Depois de ser realizada a audiência arbitral, foi proferida decisão julgando a reclamação improcedente, absolvendo a reclamada do pedido.

              O reclamante recorre desta decisão arbitral – para que seja revogada e substituída por outra que condene a seguradora no pedido – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (para já sem a transcrição das conclusões relativas aos danos):

         1 – O acidente dos autos ocorre por culpa única e exclusiva da conduta estradal do condutor do veículo PU, seguro na apelada, por violação do disposto nos artigos 14-A/-c e 35/1, ambos do Código da Estrada.

         2 – O condutor do PU pretendia sair na 3.ª saída da rotunda, e não na segunda, pelo que, a mudança de faixa de rodagem que efectuou, da esquerda para a direita, foi intempestiva e inoportuna por violadora do disposto no art. 14-A/-c do CE.

         3 – Não cabia ao reclamante intuir ou esperar que o condutor do PU pretendia contornar a rotunda pela via da direita, quando pretendia sair na 3.ª saída e não na 2.ª, pois tal comportamento estradal não é consentâneo com as regras de trânsito a observar naquela situação de trânsito e o princípio genérico da segurança e confiança da circulação rodoviária.

         4 – Não há fundamento de facto, ou de direito, para que o tribunal arbitral pudesse decidir que o condutor do NR, ora reclamante, circulava na esteira do PU, colado à traseira do mesmo, já que nada decorre dos factos provados ou da descrição dos mesmos efectuada pelos intervenientes no acidente e, como tal, não pode tal afirmação, insustentada, servir de base para a decisão proferida.

         5 – O condutor do PU não se apercebeu da presença do NR, quando efectuou a mudança de faixa de rodagem, cortando a linha de marcha do reclamante e por isso violou igualmente o disposto no art. 35/1 do CE.

         6 – A localização dos danos no farol traseiro esquerdo e no guarda-lamas traseiro esquerdo do PU evidenciam que o embate é lateral, o que evidencia também que o PU estava a virar à esquerda, a voltar à rotunda e não a sair dela, manobra esta que devia ter sido precedida, pelo menos, de cautela por parte do condutor do PU, o que não sucedeu no caso em presença de modo algum.

         7 – A localização dos danos, na lateral esquerda do PU é esclarecedora de que, nem o NR seguia colocado à traseira do PU, nem o fazia em velocidade inadequada ou excessiva para o local, sendo antes a manobra intempestiva e inesperada do condutor do PU, supra enunciada, a causa do acidente dos autos.                         

              A seguradora sintetiza assim as suas contra alegações (para já sem a transcrição das conclusões relativas aos danos):

        1. O recurso, versando sobre matéria de direito, deve ser liminarmente rejeitado, por violação do disposto no artigo 639/2 do CPC.

         […]

        1. O reclamante não logrou provar qualquer dos factos constitutivos dos direitos alegados, em especial qualquer facto ilícito imputável ao condutor do veículo seguro, razão pela qual, nos termos do disposto no artigo 342/1 do CC, não era possível proferir outra decisão.
        2. Tendo ficado provado que «ambos os veículos acederam e tomaram a via da esquerda da rotunda, o NR à retaguarda do PU (facto 3) que o reclamante não impugna, terá de se concluir que este não tomou as devidas precauções, nomeadamente, adoptando uma distância de segurança suficiente do veículo seguro, que o precedia, de modo a evitar qualquer embate, na traseira, propriamente dita ou na lateral traseira (farol traseiro esquerdo e guarda-lamas traseiro esquerdo).
        3. Quem violou o disposto no artigo 14-A/1-c do CE, foi o reclamante, na medida em que após a primeira saída não se mudou para a faixa da direita da rotunda, pretendo sair na 2.ª saída, como pretendia, mantendo-se na faixa da esquerda, na retaguarda do veículo PU seguro.

                                                                 *

              Questões que importa decidir: a relacionada com a forma como o recurso foi interposto; se as decisões quanto à matéria de facto estão erradas e se tal pode ser considerado na decisão do recurso; e se a seguradora devia ter sido condenada a pagar a indemnização – e em que termos – por o acidente se ter devido a culpa do seu segurado.

                                                                 *

                                             Da rejeição do recurso

              A argumentação da seguradora é um mero estereótipo, já que é evidente que o recorrente vai invocando as normas jurídicas violadas, o que até repetia a final numa 10ª conclusão que não se transcreveu para evitar repetições e, fazendo-o a propósito daquilo que vai dizendo, também é claro que está a dizer quais é que deviam ter sido aplicadas, em vez daquelas que o foram.

                                                                 *

              Para a decisão das outras questões que importa decidir, interessam os seguintes factos que foram dados como provados (para já sem referência aos danos):

         1 – No dia 07/06/2018, pelas 8h10m, na rotunda LIONS, via circular externa 1, no Montijo, ocorreu um acidente de viação entre o motociclo com a matrícula 00-00-NR propriedade do reclamante e por ele conduzido e o veículo ligeiro de matrícula 00-PU-00 cuja responsabilidade civil se encontrava transferida para a seguradora por contrato titulado pela apólice n° 000.

         2 – O local do acidente configura uma rotunda de sentido giratório com duas vias de trânsito delimitadas por linha longitudinal descontínua.

         3 – Ambos os veículos acederam e tomaram a via esquerda da rotunda, o NR à retaguarda do PU.

         4 – O NR pretendia sair na 2.ª saída pela via esquerda das duas vias de circulação ali existentes.

         5 – O condutor do PU pretendia sair na 3.ª saída da rotunda.

         6 – Ambos os condutores desviaram à direita.

         7 – Aquando o desvio o NR embate com a frente na traseira sob a esquerda do PU causando-lhe danos no farol traseiro esquerdo e guarda-lamas traseiro esquerdo.

                                                                 *

Da impugnação da decisão da matéria de facto

              Embora não o diga expressamente, o reclamante, com a sua argumentação, põe em causa alguns dos factos considerados na fundamentação da decisão recorrida.

              Nessa argumentação, o reclamante não diz expressamente quais os factos cuja decisão está a impugnar, nem é linear a conclusão de quais eles sejam, o que leva à rejeição da impugnação das decisões da matéria de facto (sem prejuízo do seu aproveitamento parcial se tal fosse possível, o que teria de ser demonstrado se e quando necessário), por força das normas dos arts. 639/1 e 640, ambos do CPC, que impõem aos recorrentes o ónus de o fazerem.

            Não importa precisar esta conclusão, porque a rejeição dessa impugnação tem uma razão mais funda, que é a impossibilidade prática de a apreciar.

               Veja-se:

              No decurso do julgamento foi produzida prova pessoal oral – os dois condutores foram ouvidos, tal como o foi o perito avaliador testemunha da seguradora – que não foi gravada.

              O juiz-árbitro narrou, na sentença, o que foi dito pelas pessoas ouvidas, mas essa narração da prova não é uma transcrição de prova, em sentido próprio, que, por exemplo, estivesse sujeita a contraditório dos intervenientes, garantindo-se assim a sua fidedignidade.

              Sendo assim não é possível discutir a decisão da matéria de facto relativamente à qual, na respectiva fundamentação, o juiz-árbitro faz apelo a prova pessoal oral, a cujo teor este tribunal de recurso não tem acesso e, por isso, não sabe o que, com precisão, foi dito pelas pessoas ouvidas.

           Ora, é esse o caso dos poucos factos relativos à forma como o acidente ocorreu, cuja decisão se baseou, entre o mais, no que foi dito pelos dois condutores.

            Só será possível essa discussão em relação aos factos cuja decisão tenha dependido apenas de prova constante na íntegra dos autos e em que, por isso, este tribunal de recurso tem acesso aos mesmos elementos de prova utilizados pelo juiz-árbitro; na altura própria ver-se-á se há algum facto e impugnação que esteja nestas condições.

           O que antecede parte do princípio que seria possível proceder à gravação da prova no processo que correu termos no CIMPAS. E essa gravação é hoje possível como resulta do Regulamento do CIMPAS (em vigor desde 01/06/2019, conforme deliberação do Conselho Directivo do CIMPAS) https://www.cimpas.pt/files/files/Regulamento%20CIMPAS.pdf, que, embora não preveja a gravação obrigatória da prova, admite que ela seja feita quando requerida (art. 8. A gravação da prova só será admitida nos processos de reclamação cujo valor do pedido seja superior à alçada dos Tribunais de Primeira Instância e desde que tal seja requerido pela parte ou partes interessadas com a apresentação da Reclamação e da Contestação). Este regulamento só entrou em vigor em Junho de 2019, e por isso não abrangia o caso dos autos; o anterior, de 2010, https://www.cimpas.pt/pdfnovos/RegulamentoSMA.pdf, não toma posição sobre a questão; mas fosse ou não possível a gravação, o reclamante não levantou qualquer questão relativa à falta de gravação da prova.

                                                                 *

                                 Do recurso sobre matéria de direito

              A decisão arbitral recorrida, na fundamentação de direito, consta do seguinte [não se transcreve aquilo que, na fundamentação, faz referência às alegações de facto não provadas na síntese do que se passou, porque estas não correspondem à prova das alegações contrários e por isso não devem ser lidas como se o fossem; a numeração é agora colocada para mais fácil remissão sem repetições]:

         1 – A dinâmica do acidente que resultou provada foi a de que ambos os condutores circulavam na rotunda na via esquerda, o NR à retaguarda do PU e que ambos começaram a desviar para a direita após a 1.ª saída […], o reclamante pretendia sair na 2.ª saída pela via da esquerda […] e embateu na traseira do PU, o que confirma a sua circulação a uma velocidade inadequada pois caso contrário ter-se-ia apercebido que o  PU não pretendia sair naquela saída mas apenas fazia uma aproximação à via da direita.

         2- Refira-se que não ficou provado qualquer facto que indicie que o condutor do PU tenha praticado qualquer facto ilícito ou inobservância de dever de cuidado. Quem embateu no PU foi o reclamante, conforme declarações do mesmo às entidades policiais, pelo que o acidente em apreço se deveu única exclusivamente à conduta do condutor do NR, reclamante, pelo que o direito deste a ser indemnizado pelos danos que lhe advieram do acidente, carece de fundamento.

         3 – As manobras que os condutores realizaram não se encontra plasmada no auto policial, que dá a entender que circulavam a par e que o condutor do PU cortou o sentido de marcha do NR o que não se verificou, bem como a descrição feita no esquema do acidente na DAAA (realizada integralmente pelo reclamante) coloca-o a sair pela via da direita da 2.ª saída da rotunda o que também não está correcto.

         4 – O reclamante circulava na esteira do PU, colado à traseira do mesmo, não guardando a necessária distância de segurança pois se o fizesse não teria embatido, em clara violação ao disposto nos artigos 3/2, 11/2, 24/1 e 25/1-h, todos do Código da Estrada.

         5 – Ao condutor do veículo seguro na reclamada não poderá ser imputada qualquer responsabilidade pela ocorrência do acidente em apreço.

             Decidindo:

             Vista a transcrição acabada de fazer, vê-se que, no 1.º§ se invoca um facto que não consta dos factos provados (corresponde à primeira parte sublinhada); e que na parte final desse § dá-se a fundamentação da decisão de direito com base numa presunção judicial de facto: considera-se que a culpa é do reclamante porque com base no embate, por trás, se considera que ele circulava a uma velocidade desadequada. Nos §§ 2.º e 5.º fundamenta-se a conclusão de que o acidente não é imputável também a culpa do condutor segurado; na parte sublinhada desse § usa-se, mal, uma argumentação que só tem a ver com a fundamentação da decisão de facto. No 3.º§ está-se, de novo, a fundamentar a decisão da matéria de facto, não a de direito pelo que o que aí se diz não tem interesse. Na parte sublinhada do 4.º§ está-se a invocar um facto que não consta dos factos provados e a tirar dele uma conclusão de direito com base numa presunção judicial de facto: a de que o reclamante não guardava a necessária distância de segurança.

        Tendo isto em conta, vê-se que o reclamante tem razão em dizer que a fundamentação da decisão arbitral usa factos que não foram dados como provados e que não podiam ser considerados provados; e, por outro lado, constata-se que parte das conclusões do recurso do mesmo, embora sejam dirigidos a impugnar a decisão da matéria de facto, são também fundamento do recurso sobre matéria de direito e que a este nível devem ser consideradas.

             E a questão coloca-se agora assim: considerando apenas os factos realmente provados, sem os acrescentos que constam da fundamentação de direito, alguns sem base para tal e outros com base em presunções judiciais, é possível dizer que o reclamante foi o único culpado do acidente?

               Trata-se pois de saber se, tendo em consideração os factos 1 a 7, se pode dizer que foi o reclamante o único culpado, sendo que estes factos se podem sintetizar assim:

            Os dois veículos acederam a uma rotunda, onde o acidente se deu, pela via esquerda, um deles atrás do outro; essa rotunda, de sentido giratório, tem duas vias de trânsito delimitadas por linha longitudinal descontínua; o veículo que ia à frente pretendia sair na 3.ª saída da rotunda; o veículo que ia atrás pretendia sair na 2.ª saída pela via esquerda das duas vias de circulação ali existentes; ambos desviaram à direita; aquando o desvio [sic] o veículo que ia atrás embate com a frente na traseira sob a esquerda do veículo que ia à frente causando-lhe danos no farol traseiro esquerdo e guarda-lamas traseiro esquerdo.

              Note-se que desta descrição dos factos não decorre (e por isso não se sabe) em que parte da rotunda se deu o acidente – se na via da esquerda se na da direita, se antes ou depois da 1.ª saída e ou da 2.ª saída – nem se sabe a que velocidade iam os veículos ou que distância tinham entre si.

              Assim, postas as questões de outro modo, isto é, do modo como a decisão arbitral implicitamente a colocou: é possível presumir (presunção natural ou judicial) que o veículo que ia atrás circulava a uma velocidade desadequada para as circunstâncias, pois caso contrário ter-se-ia apercebido que o PU não pretendia sair naquela saída mas apenas fazia uma aproximação à via da direita? e/ou é possível concluir que o veículo que ia atrás não guardava a necessária distância de segurança do que ia à frente, pois que se o fizesse não teria embatido?

              Tem-se em conta a 21.ª versão do CE de 1994 (na edição online do sítio da PGDL) já que o acidente ocorreu em 07/06/2018. A decisão arbitral disse que o reclamante violou o disposto nos artigos 3/2 (As pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis), 11/2 (Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança), 24/1 (O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente) e 25/1-h (Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade: […] nas […] rotundas), todos do Código da Estrada.

              Ora, nenhum dos factos provados permite dizer que o reclamante praticou alguma destas violações de regras estradais, nem aliás outra que costuma ser invocada nestas situações, que é a do art. 18/1 do CE: O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis.

              Mas, não constando dos factos provados nem a velocidade a que qualquer dos veículos seguiam, nem a distância a que ambos se encontravam entre si, a conclusão de que tal se verificava, apenas com base no facto de que o embate se dá com a frente do NR na traseira do PU, é uma inversão das regras legais.

              Ou seja, em vez de, como se costuma fazer, concluir, a partir do preenchimento de uma violação de uma norma de conduta estradal, a culpa do condutor que a praticou, está-se, a partir da ocorrência de um embate, descrito sem quaisquer particularidades, a tirar a presunção de que ele ocorreu por violação das regras estradais.

              Não pode ser.

              Neste sentido, por exemplo, o ac. do STJ de 28/11/2013, proc. 372/07.6TBSTR.S1: A presunção natural, segundo a qual actua, em princípio, culposamente o condutor que – encontrando-se objectivamente em contravenção a determinada norma estradal – não conseguiu provar a existência de circunstâncias excepcionais, susceptíveis de excluírem um juízo subjectivo de censura, só pode ser chamada a funcionar quando estiver claramente provado, no plano objectivo da ilicitude, o cometimento de uma infracção ao CE, presumindo-se a culpa do contraventor se não forem por ele demonstradas circunstâncias excepcionais excludentes do juízo de imputação subjectiva.

              Desenvolvendo o assunto, o ac. do STJ diz: 

         “Como decorre da factualidade provada, não resultou, nem a que velocidade seguia a referida condutora na altura do sinistro, nem a que distância do veículo que a precedia circulava: ou seja, da prova concretamente produzida não se apurou directamente o cometimento das infracções de velocidade excessiva ou de desrespeito da distância de segurança exigível. Entendeu, porém, a Relação, no acórdão recorrido, inferir indirectamente tal excesso de velocidade – na interpretação normativa que fez do art. 24/1 do CE – do facto de a referida condutora do veículo NL não ter conseguido imobilizar a viatura que conduzia no espaço livre e visível à sua frente, acabando por colidir na traseira do veículo conduzido pela autor, quando este inopinadamente se imobilizou na via, em resultado do  violento embate sofrido como consequência  inevitável do despiste do GJ.

         Por outro lado – e agora no plano da imputação subjectiva de tal infracção – recorreu a Relação à presunção judicial – comummente reconhecida e aplicada na jurisprudência – segundo a qual incumbe ao condutor que se encontra em infracção objectiva a certa regra estradal demonstrar que ocorreram circunstâncias excepcionais e por ele não controláveis, susceptíveis de se configurarem como facto excludente da culpa, do consequente juízo de imputação subjectiva e de censura a título de negligência.

         […]

         Considera-se […] que – na especificidade da situação ora em litígio – não é possível fazer uso da presunção natural, segundo a qual terá, em princípio, actuado culposamente o condutor que – encontrando-se objectivamente em contravenção a determinada norma estradal, não consegue provar a existência de circunstâncias excepcionais, susceptíveis de excluírem um juízo subjectivo de censura: é que, para tal presunção judicial poder funcionar, é indispensável que esteja claramente provado, no plano objectivo da ilicitude, o cometimento de uma infracção ao CE, presumindo-se a culpa do contraventor se não forem por ele  demonstradas circunstâncias excepcionais excludentes do juízo de imputação subjectiva.

         Ora, no caso dos autos, a presunção natural, nos termos em que vem formulada pela Relação, acabaria por funcionar ainda no plano objectivo da ilicitude, – isto é, no âmbito dos elementos que contribuem para a tipificação da infracção prevista no art. 24/1 do CE, – ao inferir a velocidade excessiva da mera circunstância de ter ocorrido um embate na traseira do veículo que precedia o da  ré e de esta não ter demonstrado, nomeadamente, que respeitava os limites de velocidade e a distância de segurança exigível face às concretas condições de circulação rodoviária.”

              Posto isto, tendo em conta apenas os factos – sem se acrescentar outros, como fez a decisão arbitral – não é possível dizer por culpa de quem se deu o acidente, principalmente se se tiver em conta o que se disse acima quanto a não se saber, minimamente, onde é que ele ocorreu e como é que ocorreu.

             Assim, tudo o que se possa dizer com base neles, seriam puras especulações, como aquelas que o reclamante também faz, alterando os factos dados como provados.

              Assim, por exemplo, o reclamante, tendo em conta as regras do art. 14-A/1 do CE – Nas rotundas, o condutor deve adoptar o seguinte comportamento: […] b) Se pretender sair da rotunda na primeira via de saída, deve ocupar a via da direita; c) Se pretender sair da rotunda por qualquer das outras vias de saída, só deve ocupar a via de trânsito mais à direita após passar a via de saída imediatamente anterior àquela por onde pretende sair, aproximando-se progressivamente desta e mudando de via depois de tomadas as devidas precauções; […]” – diz que está provado (no sentido de constar dos factos provados) que o segurado mudou da faixa da esquerda antes da saída da segunda rotunda, quando pretendia sair na 3.ª saída. E, com base no facto acrescentado pela decisão arbitral, é realmente isto que parece que a decisão arbitral quis dizer. E, se assim fosse, realmente, o condutor segurado teria praticado uma contra-ordenação clara, ao ter ido para a via direita muito antes de o dever fazer. Mas, se se reparar, não é isso que está provado: no facto 6 apenas se diz que ambos os condutores desviaram à direita, não que eles tivessem chegado à via direita, ou que o embate já se tivesse dado nesta via, e muito menos se ele ocorreu antes ou depois da 1.ª saída.

              Ou quando, para inserção do caso na violação do art. 35/1 do CE [O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito] o reclamante tenta, através dos factos dados como provados, concluir que o embate se deu quando o PU voltava à rotunda, mudando de via de rodagem, cortando a linha de trânsito do NR, porque, segundo ele, dos danos descritos resultaria que o embate afinal se teria dado com a lateral esquerda do PU, isto apesar da decisão arbitral dizer, claramente, que ela se deu com a traseira do PU, embora sob a esquerda.

              Assim, não se sabendo como é que o embate se deu, e por isso não se podendo dizer com que participação de cada um dos veículos/condutores, está-se perante um caso de colisão entre veículos (um ligeiro e um motociclo), devendo-se distribuir a responsabilidade entre eles em partes iguais (art. 506 do Código Civil).

              Pelo que a seguradora deve responder pelos 50% do valor dos danos apurados, da responsabilidade do proprietário do veículo (art. 503/1 do CC), com base no contrato de seguro que transferiu essa eventual responsabilidade civil.

                                                                 *

                                                          Os danos

              Foram dados como provados os seguintes factos relativos aos danos:

         8 – Na sequência do embate o NR foi declarado perda total pelos serviços técnicos da seguradora com um valor venal de 3200€ e salvado 767€.

         9 – O veículo é reparável pelo valor de 3259,26€ acrescido de IVA.

         10 – O reclamante nas suas deslocações habituais passou a utilizar outro motociclo que possui.

         11 – A entidade patronal do reclamante mantinha com a seguradora Tranquilidade um contrato de seguro de acidentes de trabalho.

         12 – A entidade patronal do reclamante procedeu ao desconto no vencimento de 1446,92€, relativo à baixa por acidentes de trabalho no período de 08/06/2018 a 25/06/2018.

         13 – O reclamante recebeu 1438,41€ da seguradora Tranquilidade no período em referência.

        14 – Na sequência do acidente, o vestuário e calçado do reclamante sofreram danos.

              Quanto a isto o reclamante diz o seguinte:

         8 – O autor tem direito, nos termos do art. 562 do CC, ao valor do NR face à perda total, no caso 3500€, e a 1910€ relativos à privação de uso do mesmo.

         9 – Não tendo ficado provado o valor dos prejuízos causados no vestuário e sapatos do autor, deve a quantificação dos mesmos ser relegados para execução em liquidação de sentença, vide art. 564/2 do CC.

              E a seguradora contrapõe:

        1. Relativamente aos alegados danos, recorde-se que ficou provada a perda total do veículo NR, nos termos do disposto no artigo 41 do DL 291/2007, de 21/08, sendo certo que também ficou provado o valor venal do mesmo, de 3200€ (facto 8) e não de 3500€.
        2. No que se refere ao alegado prejuízo de privação de uso, quantificado em 1910€, o autor não logrou fazer qualquer prova [e no corpo das contra-alegações invocou o que consta do facto 10].

                                                               *

                                                   Valor do veículo

              O reclamante não põe em causa, no recurso, ter-se verificado a perda total do veículo e quer agora ser indemnizado pelo respectivo valor.

              Diz que o valor dele é de 3500€ e não dos 3200€ dados como provados, e diz isso, no corpo das alegações, com base no que terá sido dito pelo avaliador da seguradora. Também aqui, por isso – ou seja, por recorrer a prova oral não gravada -, não é possível discutir esta implícita impugnação da decisão da matéria de facto.

              Dado que o valor da reparação é superior ao valor do veículo, a indemnização deve ser fixada em dinheiro (arts. 566/1 do CC – A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor – e 41/1-c do DL 291/2007, de 21/08: Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses: […] Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos).

              Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (art. 566/2 do CC), ou nos termos do art. 41/3 do DL 291/2007 (O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização). Ou seja, a indemnização pelo valor do veículo, face aos factos dados como provados e estas normas é de 3200€ – 767€ = 2433€.

              Pelo valor dela, a seguradora só é responsável em 50% (art. 506 do CC).

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Privação do uso do veículo

              Está de há muito assente aquilo que se diz, por exemplo, no ac. do TRP de 08/10/2015, proc. 1597/12.8TBOAZ.P1, com as necessárias referências jurisprudenciais e doutrinárias, isto é, que, salvo se se provar o contrário, a falta por um certo período de tempo de um veículo que se adquiriu para usar e se estava a usar, traduz-se num dano de privação do seu uso, que deve ser reparado pelas seguradoras com a colocação à disposição do lesado de um veículo de substituição (de características semelhantes) ou, caso essa obrigação não seja cumprida, pela atribuição, pelo menos tendencialmente, de um valor que parta do custo de aluguer diário desse veículo.

              Não se desenvolve a questão, porque ela já está desenvolvida naquele acórdão e na doutrina e jurisprudência ali referidas, e porque a questão consta hoje expressamente do art. 42 do DL 291/2007, no qual, como se diz naquele acórdão, o único pressuposto do direito em causa é a imobilização do veículo sinistrado, não se exigindo ao lesado que alegue e prove que tinha possibilidade ou a vontade de continuar a utilizar o veículo sinistrado (neste sentido, mas sem referência a este regime específico, vejam-se, por exemplo, os acs. do STJ de 24/01/2008, 07B3557, e do TRP de 19/03/2009, 3986/06.8TBVFR.P1).

              E se a seguradora não cumpre a obrigação de colocar à disposição do lesado um veículo de substituição durante o período de imobilização (Maria da Graça Trigo, Responsabilidade civil, temas especiais, Universidade Católica Portuguesa, Setembro de 2015, pág. 63, chama-lhe “uma segunda privação de uso’) essa obrigação será substituída pela obrigação equivalente de pagar o respectivo valor que terá de ser o valor do montante diário necessário ao aluguer de um tal veículo durante o mesmo período.

              Nem se diga, raciocinando a contrario, que não tendo a seguradora assumido a responsabilidade exclusiva já não seria obrigada a fornecer o veículo sinistrado, pois que o que decorre de tal norma é a obrigação de fornecer o veículo desde que a responsabilidade seja da seguradora, pelo que, a partir do momento em que se apure que a responsabilidade é da seguradora, esta está obrigada a indemnizar mesmo durante o período em que defendia, sem razão, que a responsabilidade não era sua.

              Nem, pela mesma ordem de razões, se diga que a seguradora não tem obrigação de indemnizar pelo período anterior à assunção de responsabilidade, o que seria outro contra-senso que o n.º 5 do art. 42 logo afasta, ao dizer que o disposto neste artigo não prejudica o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transporte em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição. Neste sentido, veja-se Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, vol. I, Coimbra Editora, 2008, págs. 568/569, nota 1639), com referência ao art. 20-J [do DL 522/85, de 31/12, regime depois substituído por um igual no DL 291/2007, já referido acima]: “O que resulta das regras gerais sobre a indemnização é, porém, que o lesado tem direito à reconstituição natural logo após a privação do uso do veículo, não devendo entender-se que, quando a seguradora não reconheça logo a sua responsabilidade, mas esta venha posteriormente a apurar-se, fique prejudicado também o direito à compensação dos custos do aluguer de uma viatura pelo próprio lesado. Tal aluguer pelo lesado, em lugar do recurso a outros meios de transporte, não configura, só por si, um agravamento dos danos que conduza à exclusão da indemnização nos termos gerais do art. 570/1, ficando, aliás, a dever-se ao não reconhecimento imediato pela seguradora de uma responsabilidade que depois se veio a apurar.”

              Assim, verifica-se o dano real em causa – não importando o que consta do facto 10 porque não corresponde à prova do contrário – e pelo menos por todo o período pedido pelo reclamante.

              No entanto, como não se sabe o valor diário desse dano (que não há razões para dizer que não pode ser averiguado exactamente, nos termos do art. 566/3 do CC e por isso não pode ser fixado desde já com recurso à equidade), por não se ter feito prova dele, há que relegar a sua liquidação para momento posterior. A seguradora só é responsável por 50% do valor que for apurado.

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Vestuário e calçado do reclamante

              Na sequência do acidente, o vestuário e calçado do reclamante sofreram danos (facto 14), pelo que também estes danos têm de ser indemnizados (arts. 483, 562 a 564 e 566/1, todos do CC), a liquidar nos mesmos termos referidos acima para o anterior.

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              O reclamante pedia inicialmente 8115,72€. Poderá obter, no máximo de 2565,90€ [= 1216,50 + 394,40€ (= ½ de 788,80€) + 955€ (= ½ de 1910€)]. Assim, é já certo que o decaimento é de 68,38% (correspondente a um vencimento possível de 31,62%), sendo que o vencimento já certo é de apenas 14,99%. Assim, provisoriamente, fixam-se as custas em 76,70% para o reclamante e 23,305% para a seguradora.

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              Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, revogando-se a decisão arbitral e condenando-se agora a seguradora a pagar ao reclamante, 1216,50€ pela perda total do veículo, mais 50% do que se vier a liquidar como valor dos 191 dias de privação do uso do NR e do vestuário e calçado estragados.

              Custas da acção e do recurso, na vertente de custas de parte (não existem outras), provisoriamente, em 76,70% para o reclamante e 23,305% para a seguradora.

              Lisboa, 04/06/2020

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto