Processo do Juízo Central Cível de Sintra – Juiz 5

              Sumário:

I. O prazo de 20 dias que está em causa no art. 423/2 do CPC, conta-se, no caso de uma audiência final marcada para 3 sessões, em relação à 1.ª sessão com produção de prova testemunhal, e não em relação à 3.ª sessão.

II. A utilização da faculdade do art. 423/3 do CPC pressupõe que a parte, que apresenta os documentos, alegue e arrole prova, no próprio requerimento (art. 293/1 do CPC) de que não o pôde fazer antes ou que a apresentação só se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior.

III. O art. 411 do CPC não pode nem deve servir para afastar as regras processuais que disciplinam a produção de prova, impondo prazos, ónus e preclusões à actividade das partes para se vir a obter um resultado probatório formalmente válido da verdade das alegações de facto que as partes fizeram.

IV. “[A] responsabilidade probatória do juiz” tem “uma natureza meramente complementar ou acessória” e a respectiva “actividade não pode ter lugar com prejuízo para o sistema de ónus e preclusões previstos no código.”

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

                  A 22/05/2018, A intentou uma acção contra B-Lda e C.

          Depois de apresentadas a contestação e a réplica, a 17/10/219 foi proferido despacho com identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova. O julgamento foi designado para 16, 22 e 27/01/2020.

                A 06/01/2020, o autor requereu a junção aos autos de 8 documentos, com cerca de 62 páginas, em que, para além de fazer a ligação dos documentos aos temas de prova, se limita a dizer que os apresenta “ao abrigo do disposto no art. 423/2 do CPC.”

                A 13/01/2020 os réus pronunciaram-se sobre o requerimento em causa e sobre o mérito dos documentos, entre o mais opondo-se à sua junção, grosso modo pelos motivos que constam da sua contra-alegação referida abaixo.

          A 16/01/2020, na 1.ª sessão da audiência final, foi proferido o seguinte despacho, que se transcreve na parte que importa:

             Dispõe o disposto no art. 423/1 do CPC, que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, no caso dos autos o articulado em causa sempre seria a petição inicial.

         Nos termos do art. 423/2 do CPC, se não forem juntos com o articulado respectivo os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final.

         A audiência final tem o seu início na presente data, 16/01/2020, estando a mesma agendada desde 17/10/2019. Decorre da simples apreciação das datas em que os documentos foram oferecidos e da do dia de hoje que os mesmos não foram apresentados no prazo legal, tendo-o sido 10 dias antes da data designada para a audiência de julgamento.

         O autor não alega qualquer facto impeditivo que justificasse a apresentação dos documentos na data em referência, ao abrigo do art. 423/3 do CPC.

         Assim, por intempestivos, não se admite a junção aos autos dos documentos apresentados pelo autor com o requerimento de 6/01/2020.

              O autor recorre de tal despacho, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem na parte minimamente útil e com simplificações:

e) Nos termos do art. 423/3 do CPC, “se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado”.

f) […] sempre foi objecto de discussão […] – tanto doutrinal, como jurisprudencial -, a questão relativa ao termo do prazo de 20 dias quando a audiência de julgamento não terminava no mesmo dia em que se iniciava, ou seja, quando a discussão e julgamento da causa não se realizava e efectivava numa única sessão de julgamento.

g) […] entende o autor, suportado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, proc. 11465/17.1T8PRT-B.P1, que não se realizando a audiência de julgamento num só dia – como ocorreu no caso sub judice -, não existe qualquer perturbação com a apresentação dos documentos, desde que os mesmos sejam entregues até 20 dias antes da data designada para a continuação da audiência porquanto possibilitará, desde logo, que a parte contrária se pronuncie sobre a sua admissibilidade e, ainda, impugne os documentos apresentados, nos termos do art. 444 do CPC, no prazo de 10 dias, ou seja, necessariamente antes da continuação da audiência […]

h) Ora, o autor, fez o requerimento em 06/01/2020, precisamente 20 dias antes da última sessão de audiência de julgamento agendada, a realizar-se no dia 27/01/2020, não implicando, assim, qualquer necessidade de eventual adiamento de audiências, nem qualquer perturbação para o decorrer das audiências previamente agendadas.

i) De todo o modo, atente-se que no dia 13/01/2020, veio a ré exercer o contraditório, pelo que não existe qualquer violação do princípio da igualdade das partes e, assim, do direito de exercício do contraditório.

j) Dado o exposto, o autor considera ter apresentado em tempo o requerimento, inexistindo razões para que o mesmo tenha sido indeferido por alegada intempestividade.

k-l) No que respeita ao segundo fundamento do despacho recorrido, o autor não apresentou qualquer justificação para a sua junção tardia, pela sua desnecessidade, dado entender encontrar-se em tempo para a sua junção, ao abrigo do art. 423/2 do CPC.

m) De todo o modo, a falta de indicação de motivos justificativos para a junção tardia, não pode constituir fundamento admissível para a rejeição imediata do requerimento.

n) Perante a omissão, incumbia ao tribunal, ao abrigo do princípio da gestão processual (art. 6 do CPC), do princípio da cooperação (art. 7 do CPC) do princípio do inquisitório (art. 411 do CPC) e do princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma, ter convidado o autor a indicar tais motivos, ao invés de indeferir, pura e simplesmente, o requerimento em questão – veja-se, neste sentido, o ac. do TRP, de 21/01/2019, proc. 988/08.3TTVNG-1.P1 [não publicado e não junto].

              A ré disse, em contra-alegações, em síntese, o seguinte:

a) As circunstâncias que tornam admissível a apresentação de documentos depois dos 20 dias que antecedem a audiência final têm de ser alegadas e provadas pela parte que pretende a junção do documento, o que o autor não fez em sede própria, isto é, no requerimento apresentado em 06/01/2020, não podendo agora – só agora, em sede de recurso – colmatar tal lapso.

b) No respectivo requerimento de junção, o autor não se dignou apresentar qualquer espécie de justificação para a apresentação de documentos que possuía ab initio, apenas 10 dias antes da data já designada para o julgamento; Nem, sequer, indicou a finalidade dos documentos em crise, limitando-se a arrazoar, a talhe de foice, que os mesmos se destinavam a provar temas de prova que indicou.

c) Ao caso dos autos é aplicável o disposto no art. 423/3 do CPC, pois uma vez iniciada a audiência de julgamento, ainda que entre sessões decorram mais de 20 dias, não é admissível a junção documental ao abrigo do nº 2 do mesmo artigo.

d) E mesmo que se entendesse o contrário, sempre seria necessário aquilatar se os documentos são pertinentes ou necessários, pois a não se entender assim, perdia sentido a obrigação de apresentação da prova em momentos processuais determinados, pois restaria sempre à parte a possibilidade de invocar a sua “essencialidade” (o que o autor, insista-se, nem fez…).

e) O disposto no artigo 411 do CPC não descaracteriza, nem invalida, o princípio base do processo civil que é o do impulso processual, competindo às partes em toda a sua extensão, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligências probatórias. Não pode sequer o tribunal, ao abrigo do inquisitório e da cooperação, suprir o incumprimento (negligente) de formalidades essenciais pelas partes, permitindo o atropelo de normas legais e postergar o princípio da auto-responsabilização das partes e o princípio da preclusão, importando este que, ao longo do processo, as partes estão sujeitas, entre outros ónus, ao de praticar os actos dentro de determinados prazos peremptórios.

f) A falta de diligência da parte e a produção do chamado “efeito-surpresa” são incompatíveis com os parâmetros actuais do processo civil.

g) A não ser assim, querendo a contraparte confrontar testemunhas não arroladas até então com os documentos assim apresentados, fica impedida de o fazer, por ultrapassagem do prazo para aditar testemunhas ao rol apresentado, gerando-se, portanto, uma situação de iniquidade e desigualdade de armas.

*

              Questão a decidir: se os documentos deviam ter sido admitidos.

                                                                  I

              Se a audiência final se divide em três sessões, basta apresentar os documentos 20 dias antes da última sessão para que tenha sido dada observância à regra do art. 423/2 do CPC?

              Para que os documentos possam ser utilizados na audiência final, é necessário que tenham sido admitidos (arts. 443, 427 e 415, todos do CPC). Antes disso acontecer, tem de ser dada oportunidade à parte contrária de impugnar a genuinidade dos documentos, ou arguir factos para ilidir a sua autenticidade ou força probatória, para o que existe o prazo de 10 dias que, grosso modo, conta a partir da notificação da apresentação (arts. 444/1 e 446, ambos do CPC).

              Só com isto – mesmo sem contar que depois, a parte que impugne pode querer produzir prova desses factos, e a parte que apresentou os documentos pode querer produzir prova destinada a convencer da sua genuinidade (art. 445 do CPC); tal como relativamente à arguição de factos, pode a parte apresentante responder (para o que tem 10 dias: arts. 448 e 149 do CPC) e depois ambas podem querer produzir prova (art. 449 do CPC) -, só com isto, dizia-se, já são esgotados, por regra, 13 dias (os 3 da notificação: arts. 248 e 255 do CPC e os 10 do prazo), o que torna impossível, nas hipóteses normais, que, se o prazo de 20 dias for contado com referência à última sessão de julgamento, nas sessões anteriores os documentos possam ser utilizados.

           Ora, também normalmente, os documentos podem ser necessários para confrontar as testemunhas com eles, ou para que as testemunhas esclareçam o seu conteúdo. E a parte contrária à apresentante, pode querer pôr em causa os documentos, com as suas testemunhas ou com outros documentos que tenha em seu poder.

              Assim, não se pode minimamente dizer que a apresentação de documentos sem observância do prazo de 20 dias em relação à sessão da audiência final onde vá ser produzida prova testemunhal, não provoque qualquer perturbação. Pelo contrário, é quase certo que a provocará, levando ou ao adiamento da 1.ª sessão ou à necessidade de repetição de prova (com testemunhas já ouvidas a terem de ser ouvidas de novo para serem confrontadas com documentos só admitidos posteriormente), ou à produção de prova com eventual prejuízo do contraditório da parte contrária (quando esta, para evitar o adiamento, prescinda do adequado exame do documento). Aliás, era frequente acontecer isso – por regra, o adiamento – antes da reforma de 2013 do CPC e, apesar de com esta se ter pretendido acabar com este estado de coisas, é frequente ainda hoje continuar a acontecer, sendo um dos pretextos usados para adiar os julgamentos, precisamente porque a parte apresenta os documentos sem observância do prazo de 20 dias em relação à 1.ª sessão da audiência final.

              Assim, embora se esteja a referir ao artigo 598/2 do CPC, que, como se verá, não pode ser aplicado sem mais, veja-se Paulo Pimenta (Processo civil declarativo, 2.ª edição, Almedina, 2017, pág. 327, nota 350): “A antecedência de 20 dias deve ter-se como reportada à data inicialmente designada para a realização da audiência final (ou da 1.ª sessão desta), isto é, independentemente de haver adiamento ou de haver mais do que uma sessão. Neste sentido, cfr. o ac. do TRP de 12/05/2015, proc. 7724/10.2TBMTS-B.P1).”

              Note-se que, como resulta do que antecede e será melhor esclarecido pelo que se diz a seguir, não se concorda com a parte sublinhada, mas, por exemplo, o acórdão invocado por Paulo Pimenta, e que é no fundo a posição a que adere, embora tenha o sumário idêntico, só estava a decidir o caso (que era aquele de que estava a tratar) de uma audiência com mais do que uma sessão e não para um caso de adiamento. Aliás, mais à frente (pág. 381/ nota 896), aquele Professor já vem dizer que “esta antecedência fixada na lei deve ser entendida como reportada à data em que a audiência final se realize efectivamente. Assim, em caso de eventual adiamento (art. 603), reabre-se a hipótese de apresentar documentos até 20 dias antes da nova data. Neste sentido, Lebre de Freitas, (A acção declarativa, pág. 290, nota 65-A).”    

          Outros acórdãos, em casos tipo diferente do dos autos, têm decidido coisas diferentes: assim, no caso do ac. do TRP invocado pelo autor, decidiu-se para um caso em que tinha havido suspensão da audiência final, ou seja, não tinha sido ainda produzida qualquer prova testemunhal, e por isso se pôde dizer que a apresentação dos documentos, 20 dias antes da data designada para a audiência, não trazia nenhuma perturbação. Ou seja, independentemente do teor do respectivo sumário (infeliz na redacção), o que este acórdão decidiu foi uma questão diferente, que era a de saber se a simples abertura de uma audiência final também contava, ou se tinha que se realizar efectivamente. Ora, nestes casos em que a audiência apenas se abre e se suspende de imediato, sem produção de prova, tendo, mais tarde, que ser marcada nova data, não se levanta dúvida de que a solução seguida pelo ac. do TRP seja a melhor, porque não se pode invocar a referida perturbação.

            A norma do art. 598/2 do CPC, que rege para a apresentação de novas testemunhas, não tem total analogia com a situação decorrente da apresentação de novos documentos. Em relação às novas testemunhas não se pode dizer tudo aquilo que acima se disse quanto aos documentos. Será por isso que a posição de Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, a propósito daquela norma, não é repetida, nem que seja por remissão, nas anotações ao art. 423/2 do CPC. Aliás, estes professores lembram, na anotação 5 ao art. 598 do CPC, que este artigo “não se aplica à prova documental, uma vez que esta está sujeita a um regime próprio de apresentação (cf. artigos 423 a 425) […]” (CPC anotado, vol. 2.º, Almedina, 2018, pág. 676).

              De qualquer modo, aquilo a que estes professores se referem é a audiências que são adiadas ou suspensas. Directamente, eles não se referem a audiências que são marcadas para várias sessões, nem dizem que, neste caso, só interessa a data da última sessão. Mais, eles pressupõem que a audiência não se realize efectivamente, o que não foi o caso dos autos. E os dois primeiros acórdãos que citam parecem ir no mesmo sentido (utiliza-se o ‘parecem’ porque só estão publicados os sumários; mas o segundo, refere-se a “abertura desta, seguida logo de adiamento”), sendo que o terceiro se refere a uma questão ainda com menos pontos de contacto com a dos autos: ou seja, à repetição de um julgamento determinada pelo tribunal da relação. Quanto ao acórdão do TRC de 08/09/2015, proc. 2035/09, também por eles citado, refere-se a um caso em que a audiência final marcada foi desmarcada e marcada para outra data, sendo pois natural, face ao referido acima, que nenhuma perturbação pudesse advir de se contar o prazo em relação a esta nova data.

              Tendo tudo isto em consideração, percebe-se e vê-se que não difere da conclusão a que este acórdão acima chegou, o 2º § da anotação 7 destes professores ao artigo 423/2 do CPC: “não se realizando a audiência na data designada, o prazo conta em função da nova data, pois que o que importa é a data em que a audiência se realiza e não aquela em que era suposto realizar-se.” (obra citada, pág. 241). E assim, quando se manifestam contra o ac. do TRP de 12/05/2015, proc. 7724/10.2TBMTS-B.P1, apenas o estão a pôr em causa – com o que aqui, neste acórdão, como se viu, se concorda – na parte em que se refere aos casos de adiamento.

       No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos do TRL de 06/06/2019, proc. 18561/17.3T8LSB-A.L1-2, do TRL de 26/09/2019, proc. 939/16.1T8LSB-G.L1-2, e do TCAN de 17/01/2020, proc. 1227/10.2BEPRT-S1, que invocam vária outra doutrina e jurisprudência.

                                                                 II  

              Estando, pois, fora do prazo para apresentar documentos, o autor só o poderia fazer ao abrigo do art. 423/3 do CPC (já transcrito acima) e para isso tinha que alegar – e provar – um dos pressupostos alternativos para o efeito.

              Isto é, só podem ser admitidos os documentos relativamente aos quais a parte que os apresente alegue, e prove se necessário, que não os pôde apresentar antes ou que a sua apresentação só se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior. (art. 342/1 do CC e acs. do TRL de 22/10/2014, 681/13.5TTLSB.L1-4; do TRC de 24/03/2015, 4398/11.7T2OVR-A.P1.C1; do TRC de 16/12/2015, 1395/08.3TBLRA-B.C1; e do TRL de 11/01/2018, proc. 15688/15.0T8LSB-A).

        E isto tem que ser feito no próprio requerimento e não mais tarde: é no requerimento em que se suscite o incidente que o requerente deve oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova (art. 293/1 do CPC).

         Ora, no caso dos autos, o autor nem sequer alegou qualquer destes dois pressupostos alternativos, pelo que, muito menos os poderia provar. 

              E não tendo pretendido fazer uso da faculdade do art. 423/3 do CPC, não tendo pois alegado nada quanto a tais pressupostos, por um lado, como diz a ré, não o podia fazer, agora, no recurso, e, por outro lado, nunca poderia o tribunal estar a convidá-lo a aperfeiçoar o requerimento: se fosse permitido tal convite, estar-se-ia a permitir a violação da norma do art. 293/1 do CPC, já que seria depois de ter sido feito o requerimento que a parte apresentaria as razões do mesmo e a respectiva prova.

              O acórdão do TRP de 21/01/2019, proc. 988/08.3TTVNG-1.P1, que o autor invoca mas não juntou apesar de não estar publicado, não é conhecido, pelo que não se sabe o que o poderá ter levado a dizer o contrário do que antecede, se é que o disse. O número do processo onde tal acórdão foi proferido permite, no entanto, dizer que o caso terá características muito particulares, já que é de 2008 e o acórdão datará de 11 anos depois, pelo que o que tiver sido dito aí, sobre matéria processual, muito provavelmente terá pouca aplicação em casos normais. A confirmar o que antecede, no sítio da base de dados da DGSI consta um acórdão, já de 22/02/2017, referente a esse processo, com um número P4 (988/08.3TTVNG.P4.S1) que indica que o processo já terá passado pelo STJ quatro vezes.

                                                                 III

             Por último, o autor invoca, numa das conclusões do recurso, em termos genéricos, para fundamentar a sua pretensão de ter sido convidado a aperfeiçoar a sua peça processual, o art. 411 do CPC e o tal acórdão do TRP não publicado.

          O recurso a este artigo 411 do CPC – que diz que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio” – pretende sugerir, tal como a ré o entendeu, que ao abrigo dela o juiz devia ter admitido os documentos.

              A ré tem razão, no essencial, no que diz na síntese (e) das suas contra-alegações.

            Para além disso, também aqui, não foi ao abrigo desta norma que o autor requereu a junção aos autos dos documentos, pelo que está a levantar uma questão nova, que não foi colocada ao tribunal recorrido.

              De qualquer modo acrescente-se o seguinte:

              Parafraseando o ac. do TRP de 18/02/2016, proc. 788/14.1T8VNG, o princípio do inquisitório (art. 411 do CPC) não pode ser utilizado para auxiliar uma das partes, prejudicando a outra, permitindo àquela introduzir no processo documentos que não apresentou atempadamente nos termos do art. 423 do CPC.

             O princípio da “verdade material”, muitas vezes invocado a propósito desta norma e nestes casos, não é uma varinha mágica que sirva para ultrapassar as regras legais. A verdade é só uma e só pode ser obtida validamente com observância daquelas regras.

              Como diz Lebre de Freitas, “[d]urante muito tempo, a doutrina, ao contrapor as novas concepções à velha concepção liberal do processo, utilizou os conceitos de verdade material (extraprocessual) e de verdade formal (intraprocessual), como se pode ver em Manuel de Andrade, Noções cit., p. 360. A verdade, como relação de adequação do intelecto à realidade, é, porém, embora inatingível, uma só, diversos sendo apenas os meios que a visam alcan­çar. […]” (Introdução ao processo civil, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, pág. 156, nota 5).

              E como diz Germano Marques da Silva, “não é correcto falar-se de verdade formal e de verdade material, a não ser como conceitos meramente instrumentais; não há duas espécies de verdade, mas somente a verdade. […] A verdade processual não é senão o resultado probatório processualmente válido, isto é, a convicção de que certa alegação singular de facto é justificavelmente aceitável como pressuposto da decisão, por ter sido obtida por meios processualmente válidos. […] a lei processual não impõe a busca da verdade absoluta, e, por isso também, as autoridades judiciárias, mormente o juiz, não dispõem de um poder ilimitado na produção da prova.” (Curso de processo penal, II, Verbo, 4ª edição, 2008, pág. 130).

              Ou como diz Figueiredo Dias: “E é bom que isto se acentue, para que não se ceda à tentação de santificar a violação de proibições de prova em atenção ao fim da descoberta de uma (pretensa) verdade ‘material’. Hoc sensu, a chamada ‘verdade material’ continua a ser, ainda aqui, uma verdade intraprocessual.” E mais acima: “[a ‘verdade material’] há-de ser antes de tudo uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida.” (Direito processual penal, primeiro volume, Coimbra Editora, 1984, págs. 193 a 195).

         Segundo Nuno de Lemos Jorge (com referência embora, nesta parte, ao caso específico da prova testemunhal, mas com razão de ser idêntica – Os poderes instrutórios do juiz: alguns problemas, Julgar 3, 2007, pág. 70 – lembrado por Fernando Silva Pereira, A responsabilidade probatória das partes no actual modelo processual, Almedina, 2019, págs. 451-452): “[…] a conjugação do disposto no artigo 265/3 [princípio do inquisitório = art. 411 do CPC depois da reforma de 2013 – este parenteses recto e o seguinte foram agora colocados por este TRL], com o preceituado no artigo 645 [inquirição de testemunhas por iniciativa do tribunal = 526 do CPC depois da reforma de 2013] mostra que a necessidade de promoção de diligências probatórias pelo juiz deve resultar do normal desenvolvimento da lide. Se foi a própria parte a negligenciar os seus deveres de proposição da prova, não seria razoável impor ao tribunal o suprimento dessa falta. Apenas na hipótese – raríssima – de resultar do já processado, designadamente da produção de outras provas, objectiva e seguramente, a necessidade de tal diligência, revelando-se esta em termos que permitam concluir que se verificaria igualmente caso a parte houvesse sido diligente na satisfação do seu ónus probatório, é que o juiz deverá, excepcionalmente, atender a tal “sugestão”.

              Ou seja, segundo Fernando Silva Pereira, o juiz só tem o dever de praticar o acto [sugerido/requerido pela parte – parenteses recto deste TRL] a partir do momento “em que, face aos elementos do processo, e independentemente de a parte ter sido ou houvesse sido diligente na satisfação do seu ónus, se torna patente a necessidade da realização da diligência, a realização da mesma não se reconduzindo assim à vontade da parte, que teve outros meios, processualmente adequados, para se manifestar (obra citada, pág. 452). E em nota: “dada a necessidade de articulação com o princípio da responsabilidade probatória das partes, o tribunal só deve ordenar a diligência, independentemente de a mesma ser relevante para o apuramento da verdade, quando a mesma não constitua uma forma de sanar a negligência da parte na observância do seu ónus probatório, o que só acontece quando essa diligência se imponha de tal modo, que a mesma seria necessária ainda que a parte tenha sido ou houvesse sido diligente.” (nota 1411).

           Como o autor acrescenta mais à frente (pág. 455, sempre com invocação de inúmera doutrina e jurisprudência):

         “Os elementos do processo de que deve resultar a essencialidade da prova são, assim, em princípio, aqueles que resultem da instrução da causa, dificilmente se contando entre eles os articulados das partes. E a razão é esta: se a essencialidade da prova resulta destes articulados, com muita dificuldade se poderá dizer não ser responsabilidade das partes requerer a sua produção, até ao último momento previsto para esse efeito. Para além disso, se bastasse que o relevo da prova resultasse dos articulados, estaria prejudicado o argumento de que o exercício do poder instrutório do juiz não pode constituir uma forma de sanar a total inércia das partes, já que, em alguns casos, bastaria que as mesmas fizessem uma alegação fundamentada dos factos da causa, sem observarem, em nenhuma escala, o ónus de dedução formal da prova, para que o juiz devesse produzir, ou ordenar ex officio iudicis a produção da prova.

         Portanto: se o relevo da prova resulta patentemente dos articulados, a parte não pode, em princípio, invocar mais tarde que desconhecia a importância dessa prova; era responsabilidade sua produzi-la, não podendo, num momento em que o direito de requerer a sua produção se encontra precludido, solicitar ao juiz que a realize oficiosamente, já que isso constituiria uma forma de contornar aquele fenómeno preclusivo.”

              Ou seja, conclui-se, para efeitos do art. 411 do CPC (e muito do que se diz a propósito deste pode ser dito, com as devidas adaptações, a propósito do art. 436 do CPC – veja-se, apenas por exemplo, o ac. do TRL de 07/05/2020, proc. 597/14.8YYLSB-F.L1), em regra deve ser perante a prova já produzida que se deve manifestar a necessidade objectiva da prática do acto de obtenção de prova pelo juiz, e não perante o conteúdo de uma sugestão feito nesse sentido por uma parte, depois da fase dos articulados, sem nada ter ocorrido entretanto, apenas porque a parte quer que seja o tribunal a obter a prova, ou não quer pagar a multa devida pela apresentação tardia da mesma, ou porque já perdeu o direito de a requerer. Isto é, a actividade instrutória do tribunal não é nem deve ser uma forma de suprir a actividade que a parte devia ter tido e que não teve porque não quis ou não soube ou não cuidou ou não se preocupou em ter antes. Ainda de outro modo: o art. 411 do CPC não pode nem deve servir para afastar todas as regras processuais que disciplinam a produção de prova, imponho prazos, ónus e preclusões à actividade das partes, de modo a vir a obter-se um resultado probatório formalmente válido da verdade das alegações de facto que as partes fizeram.

              Ou seja, parafraseando o autor citado por último: “a responsabilidade probatória do juiz” tem “uma natureza meramente complementar ou acessória” e a respectiva “actividade não pode ter lugar com prejuízo para o sistema de ónus e preclusões previstos no código.” (obra citada, pág. 463).

            Mais ou menos no mesmo sentido, entre muitos outros, vejam-se, por exemplo, todos eles com inúmeras referências doutrinárias e jurisprudenciais, os acórdãos do TRL de 20/02/2020, proc. 18085/17.9T8LSB.L1-2; do TRL de 10/09/2019, proc. 922/15.4T8VFX-E.L1-7 ; do TRG de 10/07/2019, proc. 68/12.7TBCMN-C.G1; do TRL de 02/07/2019, proc. 1029/14.7TVLSB.L1-7; do TRC de 12/03/2019, proc. 141/16.2T8PBL-A.C1; e do TRG de 04/03/2013, 293/12.0TBVCT-J.G1.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

              Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelo autor (que perde o recurso).

              Lisboa, 04/06/2020

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto