AECOP do juízo de média e pequena instância cível de Ovar

              Sumário

I – Um recibo (quando assinado) é uma declaração de ciência que serve de confissão do recebimento da prestação (arts. 376/2 e 358/2, ambos do CC).

II – Quando o credor não tiver recebido a prestação apesar de ter emitido o recibo, terá de fazer prova “do não cumprimento, ou seja, contraprova daquilo que resulta do documento […].”

III. Um recibo não assinado não vale como tal, mas como simples documento, sem qualquer valor probatório especial (art. 366 do CC), contra o qual já vale qualquer elemento de prova que torne duvidoso o facto respectivo (art. 346 do CC). 

IV – As declarações de uma parte (art. 466 do CPC) a seu favor, se não forem corroboradas por outros meios de prova, não tem valor probatório suficiente de um pagamento.

              Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

              E intentou em 04/07/2013 um procedimento de injunção contra a L-Lda, pedindo a condenação desta a pagar-lhe 18.662,50€, acrescidos de juros de mora vencidos, no valor de 1.293,18€.

              Para tanto, alega que no âmbito de um contrato verbal celebrado entre ambos, prestou à ré, em obras cuja execução foi contratada a esta, os serviços de electricidade e pichelaria descritos em inúmeras facturas emitidas pelo primeiro e entregues à segunda, entre as quais as facturas 103, no valor de 1.500€, 104, no valor de 700€, 105, no valor de 15.000€, e 112, no valor de 1.462,50€. Sucede que, vencidas estas, respectivamente em 15.06.2012, 10.08.2012, 01.08.2012 e 18.02.2013, a ré não pagou os seus montantes.

              A ré deduziu oposição entre o mais excepcionando o pagamento das facturas 103, 104 e 105 e o não dever o pagamento da factura 112 em virtude de o autor jamais ter concluído o último serviço para o qual foi contratado, tendo abandonado a obra, acrescentando, ainda, que nunca foi sequer interpelada para a pagar; nesta medida é também indevida a quantia peticionada a título de juros de mora.

              Depois de realizado o julgamento, apenas com declarações do gerente da ré, requeridas por esta, foi proferida sentença condenando a ré a pagar ao autor 18.662,50€, acrescidos de juros de mora vencidos sobre as facturas 103, 104 e 105, no valor total de 1.251,96€, absolvendo-se a mesma do demais peticionado [isto é, quanto aos juros da factura 112, tendo o decaimento do autor sido fixado em 0,21%].

              A ré interpôs recurso desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que a absolva do pedido – terminando as suas alegações com conclusões relativas à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, que serão transcritas abaixo.

              Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                                 *

              Questões a decidir: se a decisão relativa à matéria de facto deve ser alterada no sentido indiciado pela ré.

                                                                 *

              Os factos que foram dados como provados foram os seguintes:

1. Em Abril de 2012, autor e ré celebraram acordo verbal por força do qual o primeiro se obrigou perante a segunda a prestar a esta serviços de electricidade e pichelaria, em obras cuja execução foi contratada à ré sitas em França: duas em Lion – uma Clinica e um Museu -, e uma em Alençon – Centro Comercial;

2. No âmbito desse acordo, de 20/04/2012 a 03/09/2012, o autor prestou à ré os serviços no valor titulado nas seguintes facturas:

         103, emitida em 15/06/2012, no valor de 1500€,

         104, emitida em 10/08/2012, no valor de 700€,

         105, emitida em 01/08/2012, no valor de 15.000€ e

         112, emitida em 18/02/2013, no valor de 1.462,50€,

       cujas cópias se mostram juntas de fls. 15 a 17 e 35 dos autos, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. Autor e ré acordaram que o pagamento dos serviços devendo ser feito de imediato/a pronto pela ré, após a apresentação da factura pelo autor.

4. O autor entregou à ré, que as recebeu, as facturas 103, 104 e 105, bem como os respectivos recibos.

5. A entrega destas facturas [ocorreu] em 15/06/2012, 10/08/2012 e 07/08/2012, respectivamente.

6. O autor entregou à ré a factura 112.

7. A ré não pagou ao autor esta factura.

              Não se consideraram provadas, entre outras (que não interessam às questões postas) as seguintes afirmações de facto:

         a), b) e c) em 15/06/2012, 10/08/2012 e 07/08/2012, respectivamente, a ré pagou ao autor o valor constante das facturas 103, 104 e 105;

        e) os recibos constantes de fls. 15 a 17 dos autos foram emitidos e entregues à ré aquando da emissão e entrega das facturas 103, 104 e 105, dada a relação de confiança existente entre autor e ré.

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Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Factura 112

Conclusões II a V

II. Em relação à factura 112, a decisão recorrida enuncia que, em rigor, a ré não questiona/impugna o facto de o autor lhe ter prestado os serviços no valor da factura, tendo-se limitado a defender que este, porém, não é devido, atentos os prejuízos que teve que suportar em virtude de o autor ter, alegadamente, abandonado a obra.

III. Tendo em conta o que foi alegado pela ré, nomeadamente o teor do artigo 32 da oposição, facto que foi totalmente ignorado na decisão recorrida, é manifesto que esta enferma de erro de julgamento da matéria de facto, pois a ré, antes de mencionar que o autor abandonou a última obra, refere expressamente que nada lhe deve relativamente à factura 112.

IV. Na sequência da impugnação do montante titulado pela factura 112, por parte da ré, não resultou qualquer prova relativa aos serviços descritos na factura e à exigibilidade do montante peticionado, por parte do autor.

V. Face ao exposto, deve ser dado como não provado que o autor prestou à ré os serviços titulados na factura 112, emitida em 18/02/2013, no valor de 1.462,50€, o que se requer.

              Assim, com estas conclusões a ré está a pôr em causa o facto dado como provado sob 2 no que se refere à factura 112.

              A fundamentação da decisão impugnada, embora já sintetizada pela ré, foi, mais precisamente, a seguinte (considerando apenas a fundamentação concreta e não a formulada com considerandos abstractos):

         “[…] no que concerne à factualidade supra dada como prova-da sob os pontos 1, 2 e 4, a mesma resultou do acordo das partes, porquanto não foi controvertida pela ré. De esclarecer que também assim se entendeu no que toca ao facto de os serviços a que se refere a factura 112 terem sido, efectivamente, prestados, uma vez que, da análise cuidada da oposição, concretamente dos seus pontos 32 a 35, resulta que a ré se limita a alegar que o valor desta factura não é devido, não porque os respectivos serviços não tenham sido prestados, mas em virtude de o autor nunca ter acabado o último serviço para o qual foi contratado, tendo abandonado a obra, o que a obrigou a ela, ré, a mobilizar os seus próprios trabalhadores para a terminar, com todos os custos daí inerentes. Ou seja, em rigor, a ré não questiona/impugna o facto de o autor lhe ter prestado serviços no valor da factura em apreço, limitando-se a defender que este, porém, não é devido, atentos os prejuízos que teve que suportar em virtude de o autor ter, alegadamente, abandonado a obra. No entanto, e mesmo que assim fosse – o que não cumpre no âmbito destes autos apreciar, uma vez que a ré não alegou quaisquer factos integradores de uma eventual excepção de não cumprimento e/ou de compensação – a verdade, é que, atenta a sua versão dos factos, sempre se teria de concluir pela prestação, pelo autor, dos serviços em causa.”

              Ou seja, a decisão impugnada considerou provado o facto 2, no que se refere à factura 112, com base na admissão por acordo por falta de impugnação (art. 574, nº.s 1 e 2 do CPC), não em prova concreta produzida, e a ré entende que não admitiu o facto em causa, antes o impugnou.

              Dizia a ré nos artigos 32 a 35 da oposição:

32. Em relação à factura 112, no valor de 1462,50€, a mesma terá sido emitida talvez por lapso do autor, pois a ré nada lhe deve.

33. Aquilo que a ré pode referir é que o autor nunca acabou o último serviço para o qual foi contratado pela ré, pois abandonou a obra.

34. O que obrigou a ré a mobilizar os seus próprios trabalhadores para terminar a obra, com todos os custos daí inerentes.

35. Além disso, a ré nunca foi interpelada pelo autor para proceder ao pagamento do valor titulado por esta factura.

              Ou seja, a ré começa por afirmar, conclusivamente, que nada deve em relação à factura 112, conclusão que baseia nos factos que descreve a seguir, que têm a ver com o facto de ter tido que mobilizar os seus trabalhadores para acabar o último serviço que teria sido contratado ao autor e que este não teria acabado por ter abandonado a obra.

              Resulta daqui que não só a ré não impugna os factos invocados pelo autor – pois que apenas lhes opõe uma afirmação conclusiva – como os aceita – pois que a conclusão que opõe não está baseada na falta da prestação dos serviços, mas sim no abandono da obra pelo autor depois de a ter iniciado (daí que diga que os seus trabalhadores tiveram que ser mobilizados para terminar a obra).

              Ou seja, a ré não contradiz os factos articulados pelo autor (art. 571/2, 1ª parte, do CPC), o que faz é alegar factos que poderiam servir, junto com outros, de causa extintiva do direito invocado do autor (o abandono da obra), ou seja, defende-se por excepção (art. 571/2, 2ª parte, do CPC) e não por impugnação.

              Assim, considera-se que, realmente, os factos provados sob 2 estão admitidos por acordo, por falta de impugnação (art. 574/2 do CPC), também em relação aos serviços da factura 112, improcedendo, pois, a impugnação nesta parte.

                                                                 *

                             O pagamento das facturas 103, 104 e 105

                                              Conclusões VI a XXII

VI. Em relação às facturas 103, 104 e 105, é inegável que o autor entregou à ré os recibos relativos às mesmas.

VII. O tribunal a quo considerou como não provado que a entrega desses recibos tenha sido contemporânea com a entrega das facturas, atendendo a uma alegada prática habitual entre clientes e fornecedores, conforme alegado pelo autor.

VIII. Se os recibos não foram entregues juntamente com as facturas, dada a relação de confiança entre o autor e a ré, não implicando a sua entrega o recebimento do valor titulado pelas facturas, como alegou o autor, então apenas se concebe que a entrega dos recibos tenha sido efectuada como forma de quitação, na sequência dos pagamentos efectuados pela ré e relativos às facturas em causa.

IX. A sentença recorrida é nula, em virtude da flagrante contradição existente entre a fundamentação (designadamente os pontos supra elencados) e a decisão, nomeadamente ao considerar que os recibos emitidos pelo autor e entregues à ré não fazem prova do pagamento das facturas 103, 104 e 105.

X. O art. 376 do Código Civil possibilita que o autor possa provar que a sua declaração não correspondeu à sua vontade, ou que foi afectada por algum vício do consentimento, o que significa que incide sobre o credor o ónus da prova da irrelevância da emissão e entrega dos recibos à ré.

XI. No entanto, apesar da incessante procura nos presentes autos, a ré não encontra qualquer prova produzida pelo autor demonstrativa de que os recibos não foram entregues na sequência do pagamento pela ré. Aliás, a própria sentença recorrida enuncia que não ficou provado que os recibos constantes de fls. 15 a 17 dos autos foram emitidos e entregues à ré aquando da emissão e entrega das facturas 103, 104 e 105, dada a relação de confiança existente entre autor e ré.

XII. O autor limitou-se a alegar, na resposta que apresentou à oposição da ré, que os recibos não significam um verdadeiro recebimento do pagamento, mas não produziu qualquer prova susceptível de afastar a presunção do art. 376 do Código Civil.

XIII. Pelo que o autor não logrou provar que a ré não efectuou o pagamento da dívida titulada pelas facturas em apreço, beneficiando a ré de uma presunção legal de cumprimento, através da apresentação dos respectivos recibos, a qual foi ignorada pelo tribunal a quo.

XIV. Pois, demonstrando a ré, como efectivamente demonstrou através da apresentação dos recibos de pagamento juntos a fls. dos autos, o pagamento da dívida, o direito do autor extingue-se, nada mais tendo a ré a pagar ao autor, na sequência da emissão das facturas.

XV. Podemos, ainda, concluir que, de acordo com a tese vertida na sentença recorrida, para além de ter estado cerca de cinco meses, em França, a prestar serviços à ré sem receber qualquer montante, o autor apenas em Julho de 2013 se “lembrou” de cobrar coercivamente os valores titulados pelas facturas, ou seja, cerca de 15 meses após ter iniciado a prestação de serviços e cerca de dez meses depois de ter terminado a colaboração com a ré.

XVI. Esta tese que se retira da sentença recorrida é manifestamente arrebatadora, tendo em conta que significa, ainda, que o autor esteve sem receber os 18.662,50€ que reclama nos autos até Setembro de 2012, e apenas se “lembrou” que a ré não lhe tinha pago esse montante “insignificante”, em Julho de 2013, ou seja, dez meses depois de ter terminado a prestação de serviços.

XVII. Acresce que não pode ser descurado que, entendendo a decisão recorrida que os recibos em apreço não respeitam o formalismo do art. 787 do Código Civil, tal facto apenas pode ser imputado ao autor, pois foi o mesmo que assim emitiu e entregou os recibos à ré e, a ser assim, estamos perante um flagrante venire contra factum proprium.

XVIII. Por último, importa referir que os comprovativos das transferências efectuadas pela ré, atendendo às datas indicadas nos mesmos, demonstram pagamentos efectuados em 27/04/2012, 14/05/2012 e 17/08/2012 (durante o período em que o autor esteve em França a prestar serviços à ré).

XIX. Ainda em relação às transferências bancárias, o tribunal a quo ignora por completo a confissão feita pelo autor no requerimento com a referência 15721996 no qual, nomeadamente no artigo 23, confessa que o pagamento realizado em 17/08/2012 refere-se ao pagamento parcial da factura 104, datada de 10/08/2012, facto que foi expressamente aceite pela ré, através do seu requerimento com a referência 15801958, mas que não foi tido em conta na decisão recorrida, tendo ainda assumido que a ré lhe fez as transferências documentadas nos autos, incluindo mais uma no valor de 900€, em 31/07/2012, que também imputa às facturas em apreço.

XX. A ré apenas concebe a sua condenação nos presentes autos, como um “generoso” propósito de amparar a parte circunstancial ou sócio-economicamente mais débil. Porém, o tribunal não pode descurar que não é lícito perseguir esse propósito, ignorando os factos constantes no processo, no caso dos autos, o pagamento das quantias peticionadas pelo autor.

XXI. Por conseguinte, deve a sentença recorrida ser revogada e, consequentemente, ser a ré absolvida do pagamento das facturas 103, 104 e 105, nomeadamente em virtude de os recibos apresentados nos autos serem prova suficiente do pagamento das mesmas, o qual foi concretizada parcialmente por transferência bancária e, o remanescente, em dinheiro.

XXII. A decisão recorrida violou os arts. 342/1, 346, 350/2 e 376 do Código Civil, bem como o art. 615/1c) do Código de Processo Civil.

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Fundamentação da decisão relativa à matéria de facto

              Quanto à falta de prova do pagamento e ao valor probatório dos recibos diz a decisão impugnada o seguinte:

         “[…] relativamente […ao…] pagamento das facturas 103, 104 e 105, pagamento esse que a ré começa por sustentar com a apresentação dos respectivos recibos, tendo, posteriormente, já em sede de audiência de discussão e julgamento apresentado comprovativos de três transferências bancárias – uma no valor de 200€, efectuada em 27/04/2012, outra de 600€, efectuada em 14/05/2012 e uma outra de 630€, efectuada em 17/08/2012 (cfr. fls. 36 e 37 dos autos). No mais, alega que a quantia remanescente foi paga em numerário. Ora, quanto às entregas documentadas pelos documentos de fls. 36 e 37, as mesmas não se revelam suficientes para sustentar/demonstrar o invocado pagamento parcial das facturas dos autos, desde logo, porque a relação profissional que existiu entre autor e ré remonta a data anterior à da primeira das facturas aqui reclamadas, concretamente a 18/04/2012, como o legal representante da ré admitiu e se mostra sustentado pela factura 101, cuja copia se mostra junta a fls. 45. Sabemos, portanto, que tal relação não se limitou à prestação dos serviços a que se referem as facturas dos autos, o autor anteriormente prestou serviços à ré, os quais, segundo o autor, se encontram devidamente pagos, sendo que, objectivamente, ou seja, pelo valor das transferências supra identificadas não se descortina que facturas as mesmas visavam liquidar. Por outro lado, e relativamente aos pagamentos alegadamente feitos em numerário, em rigor, a prova produzida, limita-se às declarações prestadas pelo legal representante da ré, as quais não podem, no contexto destes autos, ter-se por isentas e desinteressadas.

         Resta apenas apreciar do “valor” dos recibos que a ré apresentou relativamente ao pagamento das facturas 103, 104 e 105. O autor alega que os mesmos foram emitidos e entregues à ré logo aquando da emissão e entrega à mesma das correspondentes facturas, como é procedimento “(…) habitual entre clientes e fornecedores que realizam contratos de boa fé e com confiança na outra parte. (…)”. Ora, este facto, levado à al. e), e sem prejuízo de admitir a existência dessa prática, não se provou, na medida em que nenhuma prova foi apresentada nesse sentido, designadamente que tal prática fosse a adoptada entre autor e ré.

         Por outro lado, a verdade é que em causa estão documentos particulares, a sua entrega não constitui qualquer presunção de cumprimento nos termos do disposto no art. 786/3 do Código Civil, e é documento a que a lei não confere especial valor probatório, nem é susceptível de, por si só, e sendo contestado o pagamento, levar à dúvida quanto a este, a que alude o art. 346 do mesmo diploma, desde logo por não respeitar o formalismo previsto no seu art. 787. Quanto à sua força probatória rege o disposto no seu art. 376, segundo o qual, tais documentos fazem prova plena quanto às declarações contrárias aos interesses do declarante, no caso, o autor, regime de prova este que se reporta apenas à materialidade das declarações e não à exactidão do seu conteúdo, podendo, assim, quanto a este, o autor do documento produzir livremente prova. Daqui resulta, portanto, que provado está que o autor, efectivamente, entregou à ré os recibos referentes às facturas 103, 104 e 105 (cfr. ponto 4 dos factos provados), com o que declarou ter recibo os montantes deles constantes, o que não significa que os tenha, de facto, recebido, sendo certo que os recibos em questão nem sequer estão assinados pelo autor. De resto, o autor negou o pagamento/cumprimento invocado pela ré, e sendo o pagamento uma excepção, era à ré que competia demonstrá-lo, o que não fez, pelas razões já acima expostas. Consequentemente, forçoso se torna concluir que não se provaram os factos levados às als. a) a c).

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 Do valor dos recibos

              Embora não se concorde com as considerações tecidas na decisão impugnada quanto ao valor dos recibos, a solução final está correcta.

              Veja-se:

              Basta a comparação dos recibos com as facturas para se concluir que aqueles foram passados ao mesmo tempo (porque são deles “uma cópia a papel químico”). Esta simultaneidade da passagem dos recibos e facturas, logo indicia que a entrega dos recibos não teve a finalidade normal que lhes está associada, que é a de servirem de documento de quitação de um pagamento subsequente à entrega da factura. Isto relacionado com a sequência também normal dos factos: passa-se e entrega-se a factura, recebe-se o pagamento e passa-se e entrega-se o recibo.

              De qualquer modo, se os recibos forem, realmente, recibos, a ré tem razão: eles servem de quitação e por isso fazem presumir que estão pagos os valores a que se referem (como decorre dos arts. 376/2 e 358/2, ambos do CC – daí que Antunes Varela, obra citada, págs. 38/39, diga: “A quitação ou recibo é um documento particular, no qual o credor declara ter recebido a prestação. […] Trata-se […] de uma simples declaração de ciência, certificativa do facto de que a prestação foi realizada e recebida pelo credor.”), pelo que o simples indício de que as coisas não se passaram como deviam ter passado, a tornar duvidoso o pagamento, não seria suficiente para afastar essa confissão.

              E não vale dizer que, nos termos do art. 376 do CC, o recibo só faz prova que as declarações foram feitas, pois que, por outro lado, como diz o nº. 2 do art. 376, “[o]s factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante […]”. Por força desta norma, que “é uma aplicação dos princípios que regem a confissão”, a declaração de ciência constante do documento tem eficácia “enquanto meio de confissão dos factos que dela são objecto” (as partes entre aspas são tiradas de Lebre de Freitas, A falsidade no direito probatório, Almedina, 1984, pág. 56).

              Por tudo isto compreende-se que Antunes Varela, CC anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 38, diga que “contra o perigo da expedição antecipada do recibo ou quitação, terá o credor de defender-se, fazendo prova do não cumprimento, ou seja, contraprova daquilo que resulta do documento […].”

              E também não tem valor o argumento da forma do art. 787 do CC, pois que os formalismos previstos neste artigo eram só para a hipótese de a ré, devedora, querer que os recibos os observassem, questão que nem sequer se coloca.

              Mas para valerem todas estas regras tem que se estar perante um recibo e este é um documento assinado pelo seu autor. Se não está assinado não vale como recibo. Logo não faz prova do pagamento.

              A dependência da assinatura também resulta do que diz Antunes Varela, obra citada, págs. 38/39: “A quitação ou recibo é um documento particular, no qual o credor declara ter recebido a prestação. Supõe, portanto, a indicação do crédito, a menção da pessoa que cumpre, a data do cumprimento e a assinatura do credor.”

              Ora, no caso dos autos os recibos não estão assinados e por isso não valem como quitação, mas como simples documento, sem qualquer valor probatório especial (art. 366 do CC – “Não quer isto dizer que o documento a que falta a assinatura seja desprovido de qualquer valor; não terá, certamente, a eficácia que teria se tivesse sido assinado, mas sempre constituirá um coeficiente probatório a apreciar livremente pelo tribunal”: Gonçalves Sampaio, A prova por documentos particulares, Almedina, 1987, pág. 105), contra o qual já vale qualquer elemento de prova que torne duvidoso o facto respectivo (art. 346 do CC).

              A situação seria um pouco diferente, mas não no resultado prático final, se em vez de perante um recibo propriamente dito, se estivesse perante um registo e outros escritos do art. 380, ou perante as notas em seguimento, à margem ou no verso do documento, do art. 381, ambos do CC.

              Ora, afastados os recibos como declaração de ciência confessória do recebimento do preço dos serviços prestados, o facto de eles terem sido passados em simultâneo com as facturas, serve de contraprova do pagamento.

              Elemento de contraprova com tanto mais valor quanto é corroborado desde logo pela circunstância (para que a decisão recorrida chama a atenção) de a ré, contraditoriamente com a alegação inicial feita na oposição de que os pagamentos tinham ocorrido na data dos recibos, ter tentado provar o pagamento com duas transferências bancários anteriores à data dos recibos…

              Perante isto, a convicção forma-se logo no sentido de que realmente aqueles documentos intitulados como recibos, não assinados, não comprovam, no caso, qualquer recebimento do pagamento dos preços em dívida.

Da nulidade da sentença

              O que antecede é desde logo suficiente para afastar qualquer contradição na sentença, acusação que a ré lhe fazia com base na consideração de que os recibos teriam de provar o pagamento, pois que fica demonstrado que os “recibos” não comprovam o pagamento.

                                                                 *

Outros argumentos contra a decisão impugnada

               A conclusão XVIII só se entende porque a ré não atentou na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto, onde se desvalorizaram, especificadamente, os comprovativos das transferências bancárias, sem que a ré invoque sequer uma razão que seja em contrário.

               Quanto à conclusão XIX a ré esquece que a factura 104 tem o valor de 1700€ e o autor só reclamou o pagamento de 700€, pelo que nada tem de estranho que o autor aceite que houve um pagamento parcial dessa factura, de 630€ em 17/08/2012. E a decisão relativa à matéria de facto não tinha que estar a explicar isto. Quanto às outras transferências que o autor aceita terem ocorrido, referem-se, segundo ele, a outras facturas, a que o autor já fazia menção no requerimento inicial, e não às facturas reclamadas nos autos, e nada há nos autos que demonstre que se referem às facturas reclamadas nestes autos (como já o explicou a decisão impugnada).

               Ora, como diz a sentença recorrida, é a ré, devedora, que cabe o ónus da prova do pagamento:

              Quando o autor exige o cumprimento de uma obrigação, tem o ónus de alegação do não cumprimento (nem que seja implicitamente, apenas para evitar a inconcludência do pedido), mas daí não decorre o ónus da prova do não cumprimento. É antes ao devedor/réu que cabe o ónus de alegar e provar o cumprimento da obrigação (veja-se, neste sentido, Joaquim de Sousa Ri­beiro, no seu estudo sobre as Prescrições Presuntivas, na RDE 5, 1979, págs. 402/403, nota 31: “Muito embora o incumprimento, em acções deste tipo, não tenha que ser provado pelo autor – nesse sentido, com largo desen­volvimento, Alberto dos Reis, CPC anotado, III, 3ª ed., Coimbra, 1948, pág. 285 s. – deverá ser por ele alegado, para evitar a inconcludência do pedido – Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, IV, Coimbra, 1969, pág. 123, nº.1”).

              Explica o Prof. Joaquim de Sousa Ribeiro (págs. 403/404):

         “No que ao incumprimento diz respeito, há que advertir, em primeiro lugar, que ele não constitui fundamento essencial do pedido, mas antes a resposta antecipada à afirmação de cumprimento que o réu venha eventualmente a opor. Prevendo que a parte contrária invoque esse facto extintivo, o autor adianta-se a negar a sua verificação (Castro Mendes, DPC, III, Lisboa, 1980 [AAFDL], pág. 99). O que não invalida, todavia, que, nessa qualidade, ele conserve a natureza de fundamento de uma excepção, a deduzir pelo réu, a tal não obstando a circunstância de já constar, sob a forma negativa, da petição inicial [remete para Manuel de Andrade, Anselmo de Castro e Castro Mendes].

         Por aqui se vê que não tem qualquer cabimento falar-se, a este respeito, em ónus de impugnação especificada […]. Ao réu não cabe impugnar a alegação de incumprimento, pela simples razão de que tal matéria se encontra incluída no ónus da prova a seu cargo, e, como é evidente, o ónus da impugnação não faz sentido em relação a factos cuja afirmação cabe à parte produzir […]. Mais do que negar o incumprimento, o que lhe compete é afirmar e provar que cumpriu, o que o autor, esse sim, poderá, por sua fez, impugnar”.

               Por último, quanto à única prova pessoal produzida nos autos, qual seja, a de declarações do gerente da ré, já a decisão recorrida disse o essencial, pois que elas, manifestamente, não podiam, no caso, só por si, servir para prova do pagamento das facturas através de numerário.

               É certo que, por força do art. 466/3 do CPC, “[o] tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”, mas as declarações de uma parte, a seu favor, sem qualquer corroboração, não podem servir de prova de um pagamento em dinheiro…

               Como diz Jordi Nieva Fenoll, La valoración de la prueba, Marcial Pons, 2010, págs. 241/242: “lo único que cabe valorar de la declaración de un litigante es que su relato esté espontaneamente contextualizado e que se vea acreditado por outros médios de prueba. De lo contrario, la declaración es sospechosa de falsedad, o al menos su fuerza probatória es tan débil que no tiene por qué ser tenida en cuenta. Ni siquiera si es coherente, por las razones antes vistas. En esos casos, cabría concluir que el resultado de la práctica de la prueba es infructuoso, e así debería argumentarlo el juez en la sentencia.” De resto, certamente por isto, a ré nem sequer argumentou quanto a desvalorização deste elemento de prova feita na decisão impugnada.

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               Improcedem, assim, todas as restantes conclusões, todas elas relativas à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, pelo que, quanto ao direito, não tendo havido qualquer alteração nos factos, nada há a considerar.                            

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               Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

               Custas pela ré.

               Porto, 26/06/2014

               Pedro Martins

               1.º Adjunto

               2.º Adjunto