Processo do Juízo Central Cível do Funchal

              Sumário:

              Não é inepta, mas apenas deficiente, a causa de pedir que consta de um requerimento de injunção, no qual se indica que está em causa obrigação emergente de transacção comercial, no local destinado à indicação do contrato em causa se refere “fornecimento de bens ou serviços”, indicando-se a data do contrato e o período a que se refere, e referindo-se, no local destinado à exposição dos factos, a circunstância terem sido prestados pela requerente serviços à requerida, no âmbito da actividade de construção civil daquela, e números, datas e montantes de facturas.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A 18/10/2019, a Massa Insolvente de A-Lda., instaurou procedimento de injunção solicitando a notificação de R-Lda., no sentido de lhe serem pagas as quantias mencionadas no respectivo requerimento, indicando que está em causa obrigação emergente de transacção comercial, sendo que, no local destinado à indicação do contrato em causa, se refere “fornecimento de bens ou serviços”, indicando-se a data do contrato e o período a que se refere, e referindo-se, no local destinado à exposição dos factos, para além da pendência de processo de insolvência, a circunstância terem sido prestados pela sociedade insolvente serviços à ré e números, datas e montantes de facturas, acrescentando-se que a ré foi interpelada para a morada constante da factura, sendo que não procedeu ao respectivo pagamento.

              Devido à frustração da notificação da requerida, o processo foi enviado para o tribunal e transmutou-se o procedimento mencionado em acção declarativa com processo comum (artigos 16 e 17 do DL 269/98, de 01/09 e 10 do DL 62/2013, de 10/05).

              A ré, citada na pessoa do seu legal representante, não deduziu oposição.

              A 11/01/2021, foi decidido, no saneador, anular todo o processado por ineptidão do requerimento inicial, e consequentemente absolver a ré da instância.

              A autora recorre deste saneador-sentença – para que seja revogado e substituído por outro que considere que o requerimento injuntivo contém causa de pedir e pedido, ou pelo menos que se considere que a causa de pedir se encontrava minimamente alegada pelo que deverá a autora ser convidada a aperfeiçoar seu requerimento inicial – dizendo, em síntese, que, de uma análise atenta do requerimento injuntivo que deu azo à presente acção, resulta que todos os elementos que devem constar do requerimento de injunção, constantes do art. 10/2 do DL 269/98, de 01/09, estão devidamente preenchidos; só existe falta de causa de pedir quando o autor não indica o “facto genético” ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer, o que não é o caso. Contudo, admitindo que este requerimento inicial se poderia considerar como deficiente, deveria o tribunal a quo ter prolatado decisão a convidar expressamente a autora a aperfeiçoá-lo (art. 17/3 do DL 269/98).

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              Questão a decidir: se a ré não devia ter sido absolvida da instância devido à excepção da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.

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              No essencial, o saneador sentença recorrido entende que nas acções baseadas em contratos, e partindo da noção legal dada pelo artigo 581/4 do CPC, o núcleo essencial da causa de pedir é constituído pela celebração de certo contrato gerador de direitos, devendo o autor alegar, para além das cláusulas essenciais definidoras do negócio celebrado, os factos materiais indispensáveis à integração dos outros factos jurídicos ajustados à sua pretensão.        E que para isso mostram-se insuficientes as menções feitas no requerimento inicial (remetendo para os acórdãos do TRP de 25/10/1994, proc. 9341188 e da TRL de 03/03/2009, proc. 6500/2009-1 e de 19/02/2019, proc. 94052/17.7YYPRT.L1-7).

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              Decidindo:

              Factos principais (essenciais numa acepção ampla) e factos essenciais numa acepção estrita – falta de causa de pedir e causa de pedir insuficiente

              Passa a seguir-se, de perto, aquilo que já foi dito nos acórdãos do TRP de 09/07/2014, proc. 16/13.7TBMSF.P1, e de 24/09/2015, proc. 87345/14.7YIPRT, e no ac. do TRL de 03/12/2020, proc. 98964/18.2YIPRT.L2-2, com base na lição de Lebre de Freitas:

              Nos termos do art. 552/1d) do CPC, “Na petição, com que propõe a acção, deve o autor […] expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir”, isto é, nos termos do art. 581/4 do CPC, o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, ou de modo mais preciso, o conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer (os que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito pretendido: arts. 552/1d, 5/1, 574/1 e 581/4, todos do CPC).

              Todos estes factos são factos principais (os essenciais do art. 5/1 do CPC, entendidos numa acepção ampla) e todos eles integram a causa de pedir; todos eles servem uma função fundamentadora do pedido; a falta de alegação de qualquer deles, se entretanto não for corrigida, dá lugar à absolvição do pedido da parte contrária, por insuficiência da fundamentação de facto do pedido, isto é, por insuficiência duma causa de pedir que se deixou incompleta.

              Mas alguns destes factos principais são factos essenciais (agora numa acepção estrita), isto é, são factos que cumprem a função individualizadora da causa de pedir, são eles que individualizam a pretensão do autor (a causa de pedir é, enquanto cumpre a sua função individualizadora, o núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido – Lebre de Freitas, A acção declarativa, pág. 41; Introdução ao processo civil…, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, págs. 64/72). Se estes factos essenciais estiverem alegados, a causa de pedir está identificada e a petição não pode ser inepta por falta de causa de pedir, embora esta possa estar incompleta se faltarem alguns dos outros factos principais.

              Se faltarem factos essenciais (na acepção estrita), a petição inicial é inepta (art. 186/2a do CPC) e os réus devem ser absolvidos da instância [arts. 278/1b, 577/b) e 595/1a), todos do CPC]. Se faltarem outros factos principais, a petição inicial não é inepta, mas a causa de pedir é insuficiente ou está insuficientemente concretizada; neste caso ela pode e deve ser alvo de um despacho de aperfeiçoamento (art. 590, nºs. 2b e 4 do CPC) destinado a completar a causa de pedir, com a alegação de factos que vão complementar ou concretizar os factos alegados na causa de pedir, ou pode a parte salvar a petição, completando ou concretizando a causa de pedir, por exemplo, manifestando a vontade de se aproveitar do aparecimento, durante a instrução do processo, desses factos (art. 5/2b do CPC).

              Assim, em suma, como diz Lebre de Freitas (Introdução, 2013, págs. 70/71), a função individualizadora da causa de pedir permite verificar se a petição é apta (ou inepta) para suportar o pedido formulado e se há ou não repetição da causa para efeito de caso julgado. Mas não é suficiente para que se tenha por realizada uma outra função da causa de pedir, que é a de fundar o pedido, possibilitando a procedência da acção (o autor desenvolve a questão ainda nas págs. 41/44, 47/48, 143/146, 157, 173, 183, 189 e 308/309 d’ Acção, e nas págs. 48/50, 56, 64/72, 165/169, l82/183 da Introdução; e, antes, também no artigo, mais antigo, Sobre o novo CPC (uma visão de fora), publicado na ROA, 2013/I, principalmente no ponto 5; no mesmo sentido, no essencial, vai a posição de Mariana França Gouveia, no artigo publicado sob o título O Principio do Dispositivo e a Alegação de Factos em Processo Civil, na ROA 2013/II/III, que continua a identificar os factos essenciais com os factos principais, reconduzindo a estes os factos complementares ou concretizadores – principalmente no ponto 5 e nos três primeiros parágrafos do ponto 6; a revista da OA é acessível no sítio da respectiva ordem).

            Perspectiva diferente tem Miguel Teixeira de Sousa que defende que a causa de pedir se limita aos factos essenciais na acepção estrita, correspondente, segundo este professor, aos factos essenciais referidos no art. 5/1 do CPC, pelo que, por outro lado, para este professor não há causas de pedir insuficientes, mas sim articulados deficientes, que têm de ser completados ou concretizados; os factos complementares ou concretizadores posteriormente introduzidos não fazem parte da causa de pedir, pois que esta, para este autor, não é constituída por todos os factos de que pode depender a procedência da acção, mas apenas por aqueles que são necessários para individualizar a pretensão material que o autor quer defender em juízo (Ónus de alegação e de impugnação em processo civil, Scientia Ivridica, nº. 332, págs. 396/397, e também nas entradas no blogo do IPPC de 19/07/2014, sob Factos complementares e causa de pedir, de 21/07/2014, sob Factos complementares e função da causa de pedir, de 14/08/2014, sob O regime da alegação dos factos complementares no nCPC; e de 11/03/2015, sob Jurisprudência (92)).

              Dos três acórdãos invocados pela decisão recorrida em sustento da sua posição, o primeiro, o do TRP de 25/10/1994, proc. 9341188, refere-se à situação descrita abaixo que vem do ac. do TRL de 03/12/2020, e o terceiro, do TRL de 19/02/2019, proc. 94052/17.7YYPRT.L1-7 conclui não pela falta de causa de pedir mas sim por uma petição deficiente. O segundo, da TRL de 03/03/2009, proc. 6500/2009-1, partiu também de uma causa de pedir deficiente, sendo que a respectiva requerente, mesmo depois do despacho de aperfeiçoamento, se limitou a acrescentar: “Trabalhos executados em V/ Obra durante o ano de 2006.” Pelo que nenhum daqueles acórdãos traz razões para afastar o que antecede.

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                                         Aplicação ao caso dos autos

              No caso dos autos a variedade de factos expostos pela autora no requerimento injuntivo não deixa dúvidas sobre a causa do pedido que faz: trata-se de um contrato celebrado entre autora e ré em 16/10/2000 [cuja alegação não parece perfeita, já que a data é a mesma da 1.ª factura o que não parece compatível com a duração da prestação de serviços por um período posterior], por força do qual a autora prestou à ré os precisos serviços que vieram a ser facturados entre Out2000 e Mar2002, relativos à actividade de construção civil da autora, pelos valores referidos naquelas facturas, que têm números e datas certos. A alegação destes factos principais/essenciais em sentido estrito é apta para suportar o pedido formulado e para efeitos de caso julgado.

              É certo que tudo isto precisa de ser aperfeiçoado – complementado e concretizado -, com a alegação mais completa e correcta do contrato celebrado e com a junção das facturas pelos serviços prestados, pois que os factos foram parcialmente alegados com remessa para as facturas.

              Mas com os factos alegados já é suficiente para não haver dúvida de que a autora está a dizer que prestou à ré, no âmbito da sua actividade de construção civil e com base num contrato celebrado entre elas, os precisos serviços que constarão das facturas em causa, nas datas que estas referirão e pelos valores que lá constarem.

              Assim, os factos principais que faltam correspondem a factos complementares e/ou concretizadores da causa de pedir. A sua falta conduz a uma causa de pedir insuficiente (ou, na posição do Prof. Teixeira de Sousa, a uma petição deficiente), mas não à falta de causa de pedir.

        Coisa diferente seria se, por exemplo – como já se referiu no ac. do TRL de 03/12/2020, proc. 98964/18.2YIPRT.L2-2 -, a autora se tivesse limitado a dizer que a obrigação derivava de diversos negócios entre as partes ou que pretendia o pagamento do preço de um contrato de prestação de serviços. Em qualquer destes casos, a autora não teria identificado devidamente sequer o contrato que estava em causa, isto é, não teria alegado os factos que poderiam, se provados, preencher a previsão normativa das normas que poderiam atribuir o direito que estava a exercer (veja-se o artigo de Lebre de Freitas, Da falta da causa de pedir no momento da sentença final de embargos à execução titulada por documento de reconhecimento de dívida, publicado na ROA 2018, III/IV, págs. 745-753).

              E o mesmo aconteceria se a autora se tivesse limitado a utilizar, na alegação dos ‘factos’, “afirmações que têm mera significação técnico-jurídico” usadas na previsão daquelas normas (vejam-se as referências a este tipo de casos que são feitas no ac. do TRL de 21/05/2020, proc. 4588/18.1T8OER, sendo a última passagem citada tirada da obra de Paulo Pimenta, Processo civil declarativo, 2.ª edição, 2017, Almedina, págs. 240-241).     

              Não faltam, por isso, os elementos que o despacho recorrido diz estarem em falta, utilizando para o efeito uma fórmula abstracta: “cláusulas essenciais definidoras do negócio celebrado, os factos materiais indispensáveis à integração dos outros factos jurídicos ajustados à sua pretensão”.

              Assim, a solução não passava pela excepção da ineptidão da petição inicial, mas pela formulação, depois de recebidos os autos, de um despacho de aperfeiçoamento do articulado inicial, proferido ao abrigo dos arts. 17/3 do regime anexo ao DL 269/98, na redacção em vigor, e 590/2-b do CPC.

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              Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido que se substitui por este outro que convida a autora a, em 10 dias, aperfeiçoar o articulado inicial, incluindo a apresentação de todas as facturas invocadas, de modo a suprir as deficiências apontadas no 2º§ da parte deste acórdão que trata da aplicação do direito ao caso dos autos.

              Custas do recurso, na vertente de custas de parte, pela ré (que é quem beneficiaria com a manutenção da decisão recorrida).

              Lisboa, 01/07/2021

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto