Insolvência 4486/15.0T8OAZ-B – Oliveira Azeméis – 2ª S. Comércio – J2

            Sumário:

        I. Na sentença de verificação e de graduação de créditos do processo de insolvência, deve-se atentar na possibilidade da existência de erros na lista de créditos reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência, mesmo que não tenha havido impugnação da lista.

       II. Erros que podem “respeitar à indevida inclusão do crédito nessa lista, ao seu montante ou às suas qualidades.”

           III. E se esses erros puderem ser corrigidos sem prejudicar outros credores, tal pode ser feito logo na sentença.

           IV. Se a sentença não o fizer, incorre em erro de julgamento (que não é erro de escrita ou de cálculo) que pode ser logo corrigido pelo tribunal de recurso ao abrigo do art. 655 do CPC.

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            No processo supra identificado, foi proferida a 16/03/2016 sentença que, relativamente à verba n.º 1 dos bens do insolvente (imóvel n.º 750) graduou assim os créditos verificados (na parte que interessa):

            Em 1º lugar, o crédito hipotecário do B, SA, no valor de 245.444,41€;

            Em 2º lugar, o crédito hipotecário de I.

            […]

            A credora I recorre desta sentença, dizendo (em síntese que foi feita por este acórdão do TRP) que:

         (i) o crédito do B corresponde a quatro créditos, três deles garantidos por hipotecas anteriores à sua (de 45.781,25€ + 29.300,38€ + 151.035,06€ = 216.116,69€ [sic]) e um quarto (de 19.439,58€) garantido por uma hipoteca posterior à sua, pelo que a sentença incorreu em erro manifesto ao ter graduado em 1º lugar um crédito do B de 245.444,41€, bem como em contradição notória com os fundamentos invocados;

         (ii) o facto de não ter havido impugnação da lista dos créditos reconhecidos, não dispensava o tribunal de verificar a conformidade substancial e formal daqueles créditos, conforme defendido pelo ac. do STJ de 25/11/2008, p 08A3102, e por Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, vol. I, pág. 460), mais que não fosse por aplicação do art. 411 do CPC;

         (iii) o erro deve ser rectificado, graduando-se em 1º lugar apenas os três primeiros créditos do B, garantido pelas três primeiras hipotecas, no valor de 216.116,96€ [sic], em 2º lugar o seu e em 3º lugar o crédito do B no valor de 19.439,58€.

            B contra-alega, defendendo a parcial improcedência do recurso, já que (também em síntese deste acórdão do TRP) os seus 3 primeiros créditos têm o valor de 226.004,83€ e não o valor referido pela recorrente, pelo que é aquele o valor do crédito que deve ser graduado em 1º lugar, ficando em 3º lugar o seu crédito de 19.439,58€ a seguir ao da recorrente.

                                                      *

            Questão que importa decidir: se a sentença incorreu no erro e contradição apontados pela recorrente.

            Entretanto, note-se que:

            – a recorrente incorre em três erros, um de cálculo, outro de entendimento e um terceiro de escrita: o de cálculo é o seguinte: 45.781,25€ + 29.300,38€ + 151.035,06€ não é igual a 216.116,69€, mas sim a 226.116,69€. Dos outros dois falar-se-á à frente.

            – a discussão só interessa à credora recorrente e ao B, sendo indiferente para os restantes credores e para o insolvente. Pois que, tudo se resume a saber se, por um lado, os créditos do B que devem ser graduados em 1º lugar têm um valor mais reduzido, e, por outro, se como aqueles dois credores entendem, o último crédito do B não deve ser colocado em 1ª lugar, mas sim em 3º, depois do crédito da recorrente, pelo que todos os outros créditos mantém a sua posição relativa. E isto tem relevo para o que se dirá a seguir.

                                                      *

            Factos provados:

1. A verba n.º 1, apreendida nos autos como bem do executado, é o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de X sob o nº 750, e na matriz sob o artigo xxxx da freguesia de Y.

2. O Sr. AI listou um crédito do B no valor de 681,278,11€, dos quais 245.441,41€ garantidos por hipotecas sobre aquela verba.

3. O B reclamou quatro créditos garantidos por hipoteca sobre a verba n.º 1:

         (i) 48.669,39€, com hipoteca registada a 10/02/1999 (ap. 2) [a recorrente escreve 45.781,25€, mas esse é apenas o valor do capital em dívida]

         (ii) 29.300,38€ = com hipoteca registada a 16/04/1999 (ap. 11)

         (iii) 141.035,06€ com hipoteca registada a 30/10/2008 (ap. 1) [por lapso manifesto de escrita a recorrente refere o valor de 151.035,06€]

         (iv) 19.439,58€ com hipoteca registada a 09/08/2011 (ap. 340).

4. A recorrente tem um crédito de 380.803,20€ garantido por uma hipoteca sobre a verba n.º 1, hipoteca essa registada em 02/04/2009 (ap. 3692).

5. O B reclamava um total de 674.278,11€, a que dizia acrescerem despesas de cobrança de 7000€; ao longo da descrição das operações bancárias das quais resultou tal valor total reclamado, o B foi referindo que ao respectivo valor acresciam despesas de cobrança, sem nunca referir qualquer montante efectivamente despendido nem fazer prova da existência das mesmas (cfr. arts. 13, 26, 39, 41, 59, 70, 81, 92, 96, 107).

            (a discriminação dos pontos 3 e 5 foi feita por este tribunal da relação do Porto, com base no registo predial e na relação de créditos apresentados pelo B ao AI; a sentença recorrida fazia referência ao registo predial, tal como a credora reclamante e o B, mas o registo, tal como a reclamação de créditos, não constava deste apenso de recurso em separado, nem mesmo do processo electrónico principal, entretanto consultado por este TRP; estes dois documentos foram fornecidos entretanto (e prontamente) pelo B, a pedido do relator deste acórdão feito indistintamente ao AI e ao B, transmitido pela secção de processos e de que foi dado conhecimento à credora reclamante.)

                                                       *

            Posto isto,

            Se se reparar nos factos provados sob 3 e 4 vê-se que a credora recorrente e o B têm razão ao pretender dividir o crédito garantido do B de 245.444,41€ em 4 créditos diferentes, três deles garantidos por hipotecas registadas antes da hipoteca da recorrente e o último por hipoteca registada depois da hipoteca que beneficia a recorrente.

            Os três primeiros créditos do B não têm o valor dado pela credora recorrente, que incorre nos erros já assinalados, mas sim o discriminado em 3(i) a 3(iii).

            Mas também não têm o valor dado pelo B, dado que a soma deles os três é de apenas é de 219.004,83€.

            O B soma-lhes o valor de 7000€, de despesas de cobrança dos créditos, mas da reclamação de créditos vê-se que: esse valor não é um valor que o B alguma vez tenha pago (ou pelo menos não diz que seja o caso); e, por outro lado, é um valor em abstracto que o B avança para a cobrança de todos os créditos que reclamou no processo de insolvência, de 674.278,11€. Assim sendo, esse valor não pode ser imputado apenas à cobrança dos créditos garantidos. Tem de o ser apenas na proporção dos mesmos. Assim, se a 674.278,11€ corresponde 7000€, a 219.004,83€ corresponde 2273,59€ e a 19.439,58€ corresponde 201,81€.

            Assim, os três primeiros créditos, somam, incluindo as despesas com a cobrança, 221.278,42€, e o 4º crédito soma 19.641,39€

                                                      *

            Esta alteração pode ser feita, por este TRP, pelo seguinte:

         A sentença baseou-se, ao referir-se ao crédito do B, quer na lista de créditos elaborada pelo AI, quer no registo predial, com referência às datas e n.ºs das apresentações dos pedidos de registo das hipotecas. Por isso, embora o registo não constasse deste apenso, nem do processo electrónico principal, a sentença teve, de certeza, acesso ao registo predial. Assim sendo, a sentença não atentou devidamente em documentos a que tinha acesso, pois que deles constavam os elementos suficientes para a discriminação dos créditos do B, de modo a que fosse possível saber que um deles era posterior ao da credora recorrente.

            Se a sentença tivesse atentado nesses elementos de prova, poderia então concluir que o AI tinha incorrido em erro ao elaborar a lista de créditos reconhecidos. E poderia ter pedido ao AI a reclamação de créditos apresentada pelo B para ter conhecimento do que é que justificava a discrepância e chegado às mesmas conclusões que este TRP.

            Isto tudo ao abrigo dos arts. 130/3 e 58 do CIRE, tal como defendido pelo ac. do STJ 25/11/2008, 08A3102, citado pela credora reclamante, acórdão esse que, por sua vez, cita, no mesmo sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE anotado, vol. I, [Quid Juris, 2005] pág. 460) que defendem que se “deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar nem dos documentos e demais elementos de que disponha, para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite”, que acrescentam (pág. 461) que este erro “pode respeitar à indevida inclusão do crédito nessa lista, ao seu montante ou às suas qualidades” [estes autores, na edição de 2015 do CIRE anotado, 3ª edição, págs. 528/529, citam três acórdãos neste sentido, um deles, o do STJ citado].

            Acrescenta aquele ac. do STJ que “tal necessidade e determinação de rectificação não pode deixar de se considerar incluída nos poderes de fiscalização conferidos ao juiz pelo art. 58 do CIRE, visto que, como é óbvio, cabe ao juiz fiscalizar se o Sr. administrador da insolvência elaborou a relação de créditos com observância de todas as determinações legais, quer de ordem formal, quer de ordem substancial […].”

            No mesmo sentido, vai o ac. do STJ de 10/12/2015, 836/12.0TBSTS-A.P1.S1: “I. Do art. 130/3 do CIRE colhe-se que a ausência de impugnação de créditos constantes da lista apresentada pelo AI, nos termos do art. 129 do CIRE, não impede o juiz de exercer um controle sobre a respectiva legalidade, não apenas formal mas substantiva: os requisitos da elaboração da lista pelo AI contêm normas procedimentais e juízos de qualificação jurídica (por exemplo, quanto se considera que o crédito X ou Y dispõe de garantia real ou é um crédito privilegiado). Se pensarmos que muitas vezes o AI não é jurista, a possibilidade desculpável de erro existe. II. O conceito indeterminado “erro manifesto” tem latitude e elasticidade para conferir ao juiz, o poder-dever de analisar a lista elaborada em cumprimento do art. 129, nºs 1 a 3, e não a homologar ao abrigo do nº 3 do art. 130 do CIRE. O conceito deve ser interpretado de forma ampla. III. Se é certo que no Preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03, que aprovou o CIRE, se enfatiza a desjudicialização do processo como corolário da “supremacia dos credores no processo de insolvência” e da larga autonomia de que gozam no concernente à liquidação ou à recuperação da insolvente como meio de assegurar o pagamento dos seus créditos, também no ponto 11) se refere que – “A desjudicialização parcial acima descrita não envolve diminuição dos poderes que ao juiz devem caber no âmbito da sua competência própria: afirma-se expressamente, no artigo 11º do diploma, a vigência no processo de insolvência do princípio do inquisitório, que permite ao juiz fundar a decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes”. IV. Tendo sido apreendidos para a massa insolvente três imóveis, (dois prédios urbanos e um rústico) propriedade da insolvente, sendo que num deles, identificado no requerimento de credores trabalhadores da insolvente (que indicaram que exerciam a sua actividade no imóvel sede da insolvente), e que requereram a graduação e o pagamento dos seus créditos pelo produto da venda desse imóvel, não tendo a lista elaborada pelo AI assinalado tais créditos como privilegiados, a lista padece de erro manifesto que o julgador, atento o facto de existirem imóveis apreendidos, créditos hipotecários e créditos laborais, deveria ter suspeitado existir, mesmo na ausência de impugnações. V. A não se admitir que o juiz, malgrado a latitude que, numa primeira abordagem, parece emergir do art. 130/3 do CIRE, conferindo aos credores pela via da impugnação, questionarem ou não a legalidade da lista, seria levar longe de mais esse auto-controle dos credores menorizando o papel do julgador nas mãos de quem a lei coloca o mister de controle da legalidade, sobretudo, como no caso, em que a incorrecta graduação dos créditos, pode ter drásticas consequências. VI. A natureza peculiar do processo insolvencial não afasta os princípios fundamentais do processo civil, designadamente: o poder dispositivo, de gestão processual e de cooperação, sendo de particular relevo no processo de insolvência o princípio do inquisitório. VII. O acórdão recorrido, considerando que, no caso, não ocorreu erro manifesto apenas e porque não houve impugnação da lista dos credores, não pode manter-se, sob pena de dar guarida a uma sentença que julgou em desconformidade com o direito.”

            E o ac. do TRP de 02/06/2014, 3953/12.2TBVNG-B.P1: I – Não há qualquer correspondência entre o “erro manifesto” referido no art. 130/3 do CIRE e o “lapso manifesto” referido nos arts 614 e 616 do CPC. II – Verificando-se o “erro manifesto” aludido no art. 130/3 do CIRE, a sentença homologatória da lista de credores reconhecidos apresentada pelo AI é susceptível de revogação em sede de recurso, determinando-se a elaboração de nova lista rectificada e abrindo-se de novo o prazo de impugnação previsto no n.º 1 do citado normativo. III – O “erro manifesto” aludido no art. 130/3 do CIRE não se resume ao “erro formal” decorrente de qualquer incongruência que a lista de créditos apresente, podendo assumir natureza substancial, quando, confrontada a lista com os elementos juntos aos autos, se constate que a mesma se encontra em contradição com tais elementos. IV – Os “erros materiais” previstos nos arts 613 e 614 do CPC traduzem-se na divergência entre a vontade real e a vontade declarada do julgador, e só a verificação de tal vício permite o afastamento da regra da intangibilidade da sentença, não se confundindo com os “erros de julgamento”, que ocorrem nas situações em que o julgador disse o que queria dizer mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos provados.

            Fazendo também a correcção da sentença de graduação de créditos, veja-se ainda o ac. do TRP de 15/10/2015, 535/10.7TBSTS-M.P1 (publicado em www.outrosacordaostrp.com).

            Dando conta de diversas interpretações do art. 130/3 do CIRE, veja-se Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de direito da insolvência, 2015, Almedina, págs. 257 a 259, e Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE anotado, Almedina, 2013, págs. 388 a 390. Com uma visão restritiva, veja-se o ac. do TRP de 20/06/2006, 0623082, invocado na sentença recorrida.

                                                      *

            Assim, com estes elementos, a que este TRP também teve de ter acesso para poder decidir a questão que lhe era posta pelo recurso, pode-se então, em substituição do tribunal recorrido (art. 665 do CPC), corrigir os factos que têm relevo para a decisão, bem como a lista de créditos elaborada pelo AI.

            E estas alterações em nada afectam os outros credores ou o insolvente: o valor global do crédito do B é o mesmo e o valor dos créditos garantidos até baixa em benefício daqueles.

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, passando os créditos da credora I e de B, garantidos por hipotecas sobre a verba n.º 1, a ser graduados da forma que se segue:

            Em 1º lugar, o crédito hipotecário de B, no valor de 221.278,42€.

            Em 2º lugar, o crédito hipotecário de I.

            Em 3º lugar, o crédito hipotecário de B, no valor de 19.641,39€.

            Os restantes créditos (a serem pagos pelo produto da venda da verba n.º 1) mantém-se como graduados na sentença, mas agora com a numeração de 4 e 5 em vez da anterior de 3 e 4.

            A lista de créditos é rectificada deste modo: O total da parte garantida do crédito do B é de 240.919,81€ (em vez de 245.444,11€) e da parte não garantida, comum, é de 440.358,30€.

            Estas correcções devem ser assinaladas no lugar próprio pelo tribunal recorrido e delas deve ser dado conhecimento adequado ao AI.

            Custas pela credora reclamante em 17,60% e pelo B em 82,40%.

            Valor do recurso para efeitos de custas: 29.327,42€.

            Porto, 02/06/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto