Processo do Juízo Local Cível de Lisboa

           Sumário:

I. A acção a que dá origem o exercício do direito previsto no art. 27/1 da Lei 2/99 (lei de imprensa) não é um processo urgente.

II. A decisão que vier a ser proferida na ERCS sobre o direito à resposta, não torna impossível supervenientemente o processo judicial, pois que a decisão que vier a ser proferida pelo tribunal, que pode ser diferente daquela, prevalece sobre a da ERCS (art. 205/2 da CRP).

            Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

            A e B-SA (autores) instauraram a presente acção especial ao abrigo do disposto no artigo 27º, n.º 1, da Lei n.º 2/99 (Lei de Imprensa), contra C-SA (ré) pedindo a condenação da ré a publicar o texto que lhe foi solicitado pelos autores a 02 de Fevereiro, nos termos do disposto no artigo 27º, n.º 4, da Lei de Imprensa, bem como, para além do mais, a pagar aos autores o valor por estes despendido com advogados no âmbito deste processo, a liquidar em execução de sentença.

            A ré veio, entre o mais, excepcionar a litispendência desta acção com um processo, intentado pelos autores contra si, junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERCS), tendo por objecto a mesma pretensão de exercício do direito de resposta.

            Tal excepção foi julgada procedente num despacho saneador, levando à absolvição da instância da ré. Isto com base na seguinte argumentação, em síntese: não subsistem dúvidas de que há identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir; tendo sido citada para responder em primeiro lugar no processo que corre os seus termos pela ERC verifica-se litispendência no presente processo em que a citação foi posterior.

            Este despacho foi notificado aos autores por carta elaborada a 19/04/2016 (fl. 128).

            A 23/05/2016 (fl. 146), os autores interpuseram recurso de tal despacho saneador vindo o tribunal da relação de Lisboa a decidir, por acórdão de 16/11/2016, que não se verificava a excepção de litispendência, porque, em síntese, “o legislador nacional, ao instituir um sistema de dupla via – jurisdicional e administrativa – de exercício de direitos, no quadro previsto de forma cumulativa e paralela no art. 27 da Lei de Imprensa, não produziu um contexto susceptível de gerar situações de litispendência (e, pela mesma ordem de razões, de caso julgado).”

            Com as contra-alegações do recurso, a ré tinha junto (mais tarde e dizendo que estava a notificar os autores dessa junção) a deliberação proferida a 25/05/2016 pela ERC no processo respectivo, com o seguinte teor, na parte que importa:

         Reconhecer legitimidade aos recorrentes para o exercício do direito de resposta. Verificar que o texto de resposta viola o art. 25/4 da LI na parte que diz respeito à extensão da resposta, por ser mais longa em relação ao texto respondido. Informar os recorrentes de que, caso mantenham interesse na publicação do texto de resposta deverão reduzir a sua extensão ou pagar o equivalente à publicidade comercial redigida, nos termos do art. 26/1 da LT. Determinar ao jornal C a publicação do texto de resposta dos recorrentes, caso efectuem a reformulação do texto de resposta nos termos enunciados nos pontos anteriores, na sua edição online, conforme dispõe o artigo 26 da LI, o qual deve ser acompanhado da menção de que tal publicação decorre por determinação da ERC, em conformidade com o artigo 27/4 da LI; A publicação da resposta deve ser feita na secção opinião e no final do artigo de opinião que a motivou e aí permanecer enquanto o texto a que se responde estiver disponível online; Adverte-se o recorrido de que fica sujeito, por cada dia de atraso no cumprimento da publicação do texto de resposta, à sanção pecuniária compulsória prevista no art. 72 dos Estatutos da ERC; Esclarece-se que o recorrido deverá enviar à ERC comprovativo da publicação do texto de resposta na sua edição online.

            Perante isto, e depois do processo com o ac. do TRL ter chegado ao tribunal recorrido, este, por despacho de 16/01/2017 determinou “a notificação das partes, a fim de esclarecerem se, face à decisão da ERCS de fls. 158, se foi cumprida, tendo em vista a inutilidade superveniente da lide.” A secção de processo notificou o despacho (mas não enviou cópia da decisão da ERCS, naturalmente, por entender que ela já teria sido notificado pela ré aos autores).

            A ré veio então dizer que:

         [Na sequência da deliberação da ERC,] os requerentes nada fizeram; em momento algum enviaram o texto reformulado, expressaram qualquer intento de reduzir a extensão do texto ou pagar o 9/18 equivalente à publicidade comercial redigida, nos termos do art. 26/1 da LI; desinteressaram-se, por completo, da questão; certo é que a ERC já deliberou sobre o direito de resposta; tal deliberação foi notificada às partes por ofício de 31/05/2016; tal deliberação não foi impugnada judicialmente por nenhuma das partes; esta deliberação da ERC é um facto posterior à instauração da presente acção, não foi impugnada pelas partes, pelo que se verificou um facto posterior à instauração da presente acção, que deliberando sobre o objecto do processo, torna o objecto supervenientemente impossível; impossibilidade essa que deve ser declarada nos termos do disposto no artigo 277-e do CPC.

            Os autores foram notificados do despacho e terão sido notificados do articulado da ré e nada disseram.  

            Seguiu-se a seguinte decisão:

        Vieram os autores propor a presente acção, pedindo que a ré fosse condenada a publicar um texto, ao abrigo do direito de resposta.

         Ora, nos termos do artigo 287-e do CPC, a instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.

         A extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade da lide é uma figura processual consagrada com a revisão de 1961, que o Código de 1939 desconhecia, mas que o Professor Alberto dos Reis reconhecia (CPC Anotado, Vol. I, 1948, pág. 393).

         Há a extinção da instância por impossibilidade da lide, ou porque se extinguiu o sujeito, ou porque se extinguiu o objecto, ou porque se extinguiu a causa (autor e obra citada).

         Dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida, Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio (Prof. Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. I, pág. 512).

         No caso vertente, a ERCS já se debruçou sobre a controvérsia, condicionando a publicação do direito de resposta à sua redução ou pagar 9/18 equivalente à publicidade comercial redigida.

         Acontece, que a autora, nada fez.

         Pelo exposto, e em face da argumentação invocada, julga-se a instância extinta por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277-e do CPC.

         Custas pela autora.

            Este despacho foi notificado aos autores por carta elaborada a 03/04/2017 (fl. 206).

            A 15/05/2017, os autores vêm recorrer desta decisão – para que seja declarado nula, nos termos do disposto no art. 615/1-b-c-d do CPC, a fim de que o tribunal recorrido venha a conhecer do mérito da causa relativamente a todos os três pedidos formulados pelos autores -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A. A sentença não concretiza qual a causa de impossibilidade superveniente da lide que considera verificada nem quais os factos que justificam uma tal conclusão.

B. Nem elabora qualquer raciocínio lógico-subsuntivo fundado em factos devidamente identificados e criticamente apreciados.

C. Pelo que é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, nos termos do art. 615/1-b, violando o disposto nos arts 154/1 e 607, n.ºs 3 e 4, todos do CPC.

D. A referida decisão limita-se a indicar que a “ERC já se debruçou sobre a controvérsia”, sem que isso resulte provado dos autos.

E. No mais, daquele “debruçar” não resulta estarem satisfeitas as pretensões formuladas pelos autores nos presentes autos.

F. Pelo que não desapareceu nem o objecto, nem a causa da pretensão dos autores.

G. Donde – ainda que o tribunal a quo houvesse argumentado neste sentido, o que não fez –, sempre seria de concluir não estarem reunidos os pressupostos para o encerramento da instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no art. 277-e do CPC.

H. Decidindo por um tal encerramento, o Tribunal a quo deixou de apreciar o mérito da causa, incorrendo a sentença assim proferida em ilegalidade cominada com a sanção da nulidade, nos termos do disposto no art. 615/1-d do CPC.

I. De facto, o legislador estabeleceu expressamente, por via do artigo 27/1 da LI, a possibilidade de se efectivar simultaneamente o direito de resposta exercido e denegado perante os tribunais e perante a ERC.

J. Pelo que os autores têm o direito de escolher a qual das vias (ou mesmo ambas), judicial ou administrativa, pretendem recorrer para defender e efectivar os seus direitos de resposta.

K. Ao julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, o tribunal a quo recusou aquele direito dos autores,

L. Incorrendo em erro de direito,

M. E mais, violando o sentido da decisão anteriormente proferida pelo TRL nos presentes autos, em cujo acórdão decidiu no sentido da existência de “(…) um sistema de dupla via – jurisdicional e administrativa – de exercício de direitos (…)”, num “(…) quadro previsto de forma cumulativa e paralela no art. 27 da LI (…).”.

N. Por força das ofensas à honra e ao bom nome dos autores e da recusa de publicação do direito de resposta dos mesmos por parte da ré, a ré deu causa à presente acção.

O. Os autores não retiraram qualquer proveito do presente processo, na medida em que não viram satisfeita (nem sequer conhecida de mérito) nenhuma das suas fundadas pretensões.

P. Pelo que deveria ter sido a ré a condenada no pagamento da totalidade das custas.

Q. Condenando os autores em custas, a sentença ora recorrida incorreu em contradição, enfermando de nulidade nos termos do disposto no art. 615/1-c do CPC, por não ser compaginável considerar, simultaneamente, que o pedido dos autores se tornou supervenientemente impossível por já ter sido “apreciado” e, por outro, não condenar em custas a ré, nos termos do disposto na segunda parte do número 3 e primeira parte do número 4, ambos do art. 536 do CPC.

            A ré contra-alegou, tendo sintetizado as suas alegações nas seguintes conclusões (síntese que, dada a extensão do corpo das alegações, se aproveita aqui):

A. O recurso interposto assume a natureza de processo urgente, sendo de 15 dias o prazo para a sua interposição, por força do disposto art. 638/1 do CPC.

B. Ainda que o carácter urgente da tramitação não se encontre especificamente expresso na letra da lei, toda a redacção do artigo 27 da LI, designadamente os prazos de reacção concedidos e a restrição dos meios de prova admissíveis, comprova a celeridade pretendida na resolução da controvérsia.

C. Tendo as partes sido notificadas do conteúdo da sentença recorrida por despacho datado de 03/04/2017, os autores só praticaram o acto de interposição de recurso a 15/05, data em que o prazo de 15 dias para recorrer já havia sido largamente ultrapassado.

D. Interpretando extensivamente o referido preceito legal porque, ex vi do artigo 9 do CC, a isso impõe o espírito do legislador, deve o presente recurso ser rejeitado, porque intempestivamente interposto.

E. A deliberação da ERC é um facto posterior à instauração da presente acção, que não foi impugnado pelos recorrentes e que, desse modo, tornou a lide supervenientemente inútil, por força da alínea e) do art. 277 do CPC.

F. Perante a superveniente inutilidade da lide, o juiz deve emitir uma decisão puramente declarativa da extinção da instância, não lhe competindo conhecer do fundo da causa.

G. A decisão recorrida não viola o disposto no art. 615/1-d CPC, na medida em que não deixou o juiz de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.

H. Os autores viram na deliberação ERC/2016/119 (DR-NET) uma possibilidade de, mediante a observância de determinadas imposições, ver a sua pretensão satisfeita.

I. Não obstante, nada fizeram, nem no sentido de lhe dar cumprimento, nem no sentido da sua impugnação.

J. A atitude dos autores em relação à deliberação da entidade administrativa denota claramente a extinção do seu interesse na prossecução da demanda.

K. Para recorrer a juízo não se afigura suficiente a intenção de enfatizar um determinado direito ou de satisfazer um mero capricho.

L. Os autores não têm interesse em agir, na medida em que o seu pedido não reclama a necessidade de tutela judicial.

M. Os autores litigam de má-fé, nos termos do artigo 542 do CPC (cf., em especial, as alíneas a, b e c do preceito), alterando a verdade dos factos, omitindo factos relevantes e ignorando o dever de cooperação que sobre eles recai.

N. Actuam os pretensos respondentes como se desconhecessem o teor da deliberação, que lhes foi notificada e se encontra disponível para consulta pública, colocando em causa o efectivo conhecimento da controvérsia por parte da ERC.

O. Conduta que se enquadra na previsão do artigo 334 do CC, especificamente na modalidade do venire contra factum proprium, na medida em que se traduz num exercício abusivo do direito de recurso à decisão da ERC que, num momento posterior, os autores se recusam a aceitar.

P. Os autores colocam em causa, numa atitude censurável, a credibilidade da deliberação da ERC.

Q. A actuação dos autores viola os princípios elementares da lealdade e da economia processual (cf., respectivamente, os artigos 7 e 130 do CPC), na medida em que praticam, com conhecimento, um acto inútil, que irá contribuir para a existência de formalidades desnecessárias e para uma injustificada sobrecarga da máquina judicial.

R. Nos termos do art. 536/3 do CPC, “a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas”.

S. In casu, a inutilidade da lide não pode nunca ser imputável à ré.

T. Foram os autores que deram causa à presente lide.

U. Foram os autores os únicos responsáveis pela intervenção e pela decorrente deliberação do Conselho Regulador da ERCS.

V. Assim, decidindo que a inutilidade é imputável à conduta dos autores, o tribunal deu adequado cumprimento ao preceituado no art. 536/3 do CPC, traduzido na condenação dos recorrentes no pagamento das custas processuais.

                                                      *

            Questões a decidir: da intempestividade do recurso; das nulidades da decisão recorrida; da verificação da causa de impossibilidade superveniente da lide invocada na decisão recorrida; e, a verificar-se, se as custas deviam ter ficado a cargo da ré; por fim, se se verifica litigância de má fé dos autores.

                                                      *

            Os factos provados são os que resultam do relatório que antecede, considerando-se necessário apenas explicitar que resulta da conjugação da posição assumida pelas partes ainda o seguinte facto:

            A resposta dos autores ainda não está publicada.

*

Da intempestividade do recurso

            Os processos urgentes dão origem a prazos de recurso reduzidos a metade dos prazos normais (art. 638/1 do CPC). Processos urgentes são os qualificados como tal pela lei (como acontecia na antiga lei de imprensa – DL 85-C/75, de 26/02 -, no seu artigo 52, que dispunha, em relação aos processos por crime de imprensa, que, mesmo que não haja réu preso, teriam natureza urgente, com prioridade sobre todos os demais processos, ainda que urgentes). Tendo a consequência da redução do prazo do exercício de um direito e a consequente caducidade do direito pelo não exercício tempestivo, a consideração de um processo como urgente não pode resultar de uma simples interpretação de normas que, não dizendo que o processo é urgente, permitam a conclusão de que materialmente o é. As partes poderiam ser apanhadas de surpresa e perder o direito ao recurso apenas porque um tribunal tinha considerado que o processo era urgente, apesar de a lei não o qualificar expressamente como tal.

            Neste processo, aliás, já houve um recurso e o mesmo não foi tratado como processo urgente, tendo o prazo para o recurso sido considerado o normal de 30 dias. E nenhuma das partes levantou então a questão.

            Assim, tendo o despacho recorrido sido notificado por carta elaborada a 03/04/2017, o mesmo considera-se notificado a 06/04/2017. Considerando-se que o prazo se suspende durante as férias judiciais (art. 138/1 do CPC), entre elas as férias da páscoa, ou seja, no caso, de 09/04 a 17/04, inclusive, o prazo correu de 07 a 08/04, inclusive, e depois de 18/04 a 15/05/2017, também inclusive, ou seja, um total de 2 + 13 dias + 15 dias, ou seja, fazia 30 dias no dia 15/05/2017, pelo que, tendo sido interposto nesse dia ainda estava em tempo.

            Assim sendo, considera-se que o recurso não é intempestivo.

*

Da nulidade do despacho recorrido

            Ao descrever o objecto do processo, ao explicar em que casos é que se verifica a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, e ao dizer que a ERCS já se debruçou sobre a controvérsia, e, por isso, ao julgar a instância extinta por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277-e do CPC, o tribunal fundamentou suficientemente a sua decisão, esclarecendo que a impossibilidade decorria do facto de o objecto do processo já ter sido decidido, deixando a solução do litígio de interessar, por o resultado pretendido já ter sido atingido; pelo que não se verifica a nulidade do despacho recorrido.

*

Da impossibilidade superveniente da lide

I

            O tribunal recorrido diz que a ERC já se debruçou sobre a controvérsia.

            Os autores dizem que tal não resulta provado nos autos.

            Dizem-no erradamente, já que a deliberação da ERC está junta aos autos e ela faz prova plena do facto invocado (arts. 369 a 371 do CC).

            Não há prova suficiente de que os autores tenham conhecimento de tal deliberação – embora seja pouco provável que assim seja, já que terão sido notificados dela pela ERC e pela ré -, já que não foi o próprio tribunal a fazer essa notificação e quanto às que terão sido feitas pela ERC e pela ré não se sabe se o foram de facto e em que termos.

            Mas, se os autores não têm conhecimento dela, podiam-no ter, já que foram notificados pelo tribunal da existência de uma deliberação do ERC, com o n.º de página dos autos onde ela se encontrava.

*

            O tribunal diz ainda que a autora – ou, melhor, os autores – nada fez (depois da deliberação da ERCS).

            Não há prova disso, mas é facto que não interessa. Como se verá, os autores nada tinham que fazer. 

II

            Posto isto,

            No ac. do TRL de 16/11/2016, disse-se o seguinte na questão da excepção da litispendência:

         “A solução da questão suscitada tem o seu eixo no disposto no art. 27 da Lei n.º 2/99, de 13/01 (Lei de Imprensa) que, sob a epígrafe «Efectivação coerciva do direito de resposta e de rectificação», rege no seu n.º 1, que “No caso de o direito de resposta ou de rectificação não ter sido satisfeito ou haver sido infundadamente recusado, pode o interessado, no prazo de 10 dias, recorrer ao tribunal judicial do seu domicílio para que ordene a publicação, e para a Alta Autoridade para a Comunicação Social nos termos da legislação especificamente aplicável”.

         […]

         A este respeito, encontramos na jurisprudência uma abordagem clara, que vislumbra a diversidade de intervenções e nela se funda de forma convincente – «em alternativa ao recurso à AACS, ou cumulativamente com ele, o respondente pode recorrer aos tribunais comuns nos termos do artigo 53 da Lei de Imprensa (cfr. Vital Moreira, O Direito de Resposta na Comunicação Socia, Coimbra Editora, 1994, p.143 e seguintes). Ou seja, o recurso para a AACS não substitui nem invalida o recurso aos tribunais, nem é uma condição prévia dele. Melhor dizendo, nos termos do artigo 27/1 da Lei de Imprensa, o titular do direito de resposta pode exercer coercivamente o seu direito, mediante o recurso, cumulativo, ao tribunal judicial e à entidade administrativa competente, e, na sequência desta, ao tribunal administrativo. É, pois, indiscutível a intenção de o legislador em assegurar duas vias cumulativas para efectivação do direito de resposta: uma via administrativa, mediante recurso para a entidade reguladora, e uma via judicial dirigida ao tribunal comum. Não existe, assim, a invocada excepção de litispendência. tanto mais que, em sede administrativa, as questões a apreciar se diferenciam das questões suscitadas na acção cível» (Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul; processo: 04861/09, de 27/05/2010; relator: Juiz Desembargador Coelho da Cunha, in http://www.dgsi.pt) e”A lei não confere ao interessado duas vias alternativas, em que uma delas exclui a outra. Concede-lhe duas vias cumulativas: “pode recorrer ao tribunal… e para a Alta autoridade”. O invocado paralelismo com a litispendência não tem razão de ser, pois esta figura é própria da pendência simultânea de duas causas judiciais. Não há litispendência entre procedimentos administrativos e processos judiciais, mesmo que as questões em apreço sejam semelhantes. Por outro lado, a AACS tinha, além do mais, o poder de aplicar coimas pelo incumprimento ou denegação do direito de resposta – arts. 7 e 27/2 da Lei 43/98, de 08/08. É a nosso ver quanto basta para mostrar que a intervenção da AACS ocorre ao abrigo de competências especiais com um âmbito de acção que extravasa a causa de pedir e pedido formulado na acção judicial. Ou seja, existem matérias cuja apreciação é comum (como é o caso da violação do direito de resposta), mas também há matérias que são da competência exclusiva da AACS (como é o caso da aplicação de coimas em caso de denegação do direito de resposta). Assim é, a nosso ver, certo e seguro que a deliberação recorrida violou o disposto no art. 27/1 da Lei 2/99, ao transformar em direitos alternativos os direitos que a lei conferia em regime de cumulação. Violação que se torna patente – em termos teóricos ou gerais – no caso de vir a ser reconhecida violação do direito de resposta, ficando assim sem apreciação a existência de eventuais contra-ordenações.» (ac. do STA; processo: 0870/10; de 24/05/2011, relator: São Pedro, ibidem).

         A acção, não só na sua materialidade mas também em termos conceptuais e jurídicos é o resultado de uma iniciativa orientada para a activação de um órgão incumbido de dizer o Direito, de administrar Justiça no exercício de funções de dimensão constitucional – cf. n.ºs 1 e 2 do art. 202 da Constituição da República Portuguesa e, quanto ao processo civil, o art. 10. Tal iniciativa é devida justamente face à impossibilidade de os tribunais se auto-activarem, ou seja, de actuarem oficiosamente – vd., neste sentido Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil, Coimbra, Almedina, 1981, vol, I, pág. 85.

         Neste contexto técnico, será que, relativamente à intervenção não jurisdicional prevista no art. 27 da Lei de Imprensa, se pode falar numa verdadeira causa?

         Quanto à ontologia, ou seja, à essência e natureza do órgão, não podemos falar em equiparação da autoridade administrativa envolvida aos órgãos jurisdicionais perante os quais, num Estado de Direito Democrático, se reclama que digam o Direito (id est, ante os quais se concretiza e corre a acção), integrados no Poder Judicial do Estado e por tal integração dotados de características diferenciadoras essenciais e instrumentais para o exercício do seu múnus, entre as quais avultam a independência interna e externa, a consequente não submissão a instruções e a recorribilidade das decisões em graus ou níveis de jurisdição situados sempre no âmbito do mesmo Poder do Estado.

         Quanto aos resultados, temos que a intervenção administrativa não se circunscreve nem centra na função de dizer o Direito movendo-se, antes, em contexto diverso e atendendo a distintas necessidades entre as quais avulta a finalidade reguladora que envolve, entre outras, a missão de sinalizar violações normativas com propósitos que atendem também ao interesse colectivo e não apenas aos das partes envolvidas, cabendo-lhe apontar o desrespeito de regras legais particulares do sector de intervenção e, quando justificado, produzir juízos de censura também com expressão pecuniária. Ainda relativamente a estes, cumpre referir, com relevo num quadro técnico cuja teleologia é a de evitar a descredibilização da Justiça e o comprometimento da execução coerciva do definido, que tal risco não existe já que a decisão judicial sempre prevalecerá – nos termos do disposto na parte final do n.º 2 do art. 205 da CRP – e são distintas as focagens e linhas de intervenção porquanto, mesmo quando, durante a instrução do processo administrativo, seja conhecida a decisão judicial, poderá continuar a revestir-se de utilidade a avaliação com finalidades reguladoras, relativas à formulação de juízo de censura e sancionatórias. Não há colisão entre o que não está ao mesmo nível.

         O legislador nacional, ao instituir um sistema de dupla via – jurisdicional e administrativa – de exercício de direitos, no quadro previsto de forma cumulativa e paralela no art. 27 da Lei de Imprensa, instituiu uma originalidade no Direito Luso, face ao Direito Comparado (vd., neste sentido, Vital Moreira, obra citada, pág. 143), mas não produziu um  contexto que, respeitando a literalidade da norma, seja susceptível de gerar situações de litispendência (e, pela mesma ordem de razões, de caso julgado).”

            Ou seja, neste mesmo processo, o TRL já deixou claro que não há litispendência entre os processos perante a ERC e o tribunal judicial, que a decisão da ERC não faz caso julgado e que uma posterior decisão do TJ em sentido contrário ao da ERC prevalece sobre o daquela, por força do art. 205/2 da CRP.

            O que é também a resposta da ERC à pergunta que lhe é frequentemente feita (consultada a 09/09/2017, podendo ser vista no link acabado de criar) “de que vias de recurso dispõe o respondente? O respondente pode recorrer para o tribunal judicial do seu domicílio e para a ERC ou para ambos, no prazo de 10 dias no caso da via judicial e de 30 dias no caso da via administrativa (art. 27/11 LI, art. 62/3 LR, art. 68/3 LTV e art. 59/1 Est. ERC). Para evitar decisões contraditórias, os tribunais devem informar a ERC das suas decisões (art. 10.º/2 Est. ERC), sendo que no caso de existirem duas decisões é a decisão judicial que prevalece sempre (art. 205.º|2 CRP).”

            Quer isto dizer que uma decisão da ERC sobre o direito de resposta dos autores não produz o desaparecimento do objecto do processo pelo que não se verifica a impossibilidade superveniente da lide.

            O despacho recorrido, ao dizer que a ERC já se debruçou sobre a controvérsia e sugerindo que daí decorria a impossibilidade da lide, pelo facto de o objecto do processo já ter sido decidido, deixando a solução do litígio de interessar, por o resultado pretendido já ter sido atingido, está a considerar que a questão não pode ser objecto de nova decisão, o que é um modo de atribuir à decisão da ERC o valor de caso julgado, contrariando materialmente a fundamentação aduzida pelo TRL ao decidir a questão da litispendência.

            O que interessa, de qualquer modo, é que, ao contrário do que o tribunal recorrido defende, tal como a ré (esta ainda com recurso à ideia da falta de interesse em agir), a questão pode ser decidida de novo e em sentido contrário (ou com um alcance mais favorável aos autores) ao da ERC e, nesse caso, prevaleceria sobre ela (art. 205/2 da CRP).

            Assim sendo, não se pode dizer que a decisão da ERC tinha alcançado o resultado pretendido pelos autores, ou dado solução ao litígio, impossibilitando o prosseguimento deste processo judicial.

            Ainda para mais quando o objecto do processo não era só esse, havendo outros pedidos dos autores, neste processo, que nem sequer foram considerados.

            Pelo que se impõe a revogação da decisão recorrida, por erro de julgamento.

            O que afasta, sem mais, a necessidade de apreciação das outras nulidades arguidas pelos autores e da questão das custas, que desaparecem com a revogação da decisão.

*

Da questão da má fé

            Já acima se disse que não há prova suficiente de que os autores tenham sido notificados da decisão da ERC, pelo que a arguição de má fé, imputada aos autores, com base nesse conhecimento, cai pela base.

            Por outro lado, já se viu que os autores podem aproveitar o original sistema português do direito de resposta, com a possibilidade de recurso cumulativo a duas vias de reacção, para tentar obter do tribunal mais do que obtiveram da ERC, pelo que não há qualquer abuso de direito dos autores em querer que o processo prossiga e só depois fazer o que seja necessário à publicação da resposta, nos termos em que o tribunal o definir. Para além de que, como se disse, falta decidir os outros pedidos.

            Pelo que, o facto de os autores tentarem com que o processo judicial prossiga, nada tem a ver com a litigância de má fé, ou com a prática de actos inúteis, ou com má fé processual.

                                                      *  

            Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando a decisão que considera a instância extinta por impossibilidade superveniente, devendo o processo prosseguir para apreciação dos pedidos deduzidos pelos autores.

            Custas pela ré.

            Lisboa, 28/09/2017

            Pedro Martins

            1.º Adjunto

            2.º Adjunto