Acção do Juízo Central Cível de Almada – Juiz 2
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
M propôs a presente acção contra H-Lda, pedindo que (i) se declare resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado entre o autor e a ré, (ii) a condenação da ré a restituir-lhe a quantia recebida a título de sinal, 60.000€, em dobro, acrescida de juros de mora a contar da citação, e (iii) o reconhecimento de que o autor tem direito de retenção relativamente ao imóvel objecto do contrato-promessa para garantia daquele crédito.
Mais tarde o autor veio requerer a intervenção principal provocada passiva da C-SA, que entretanto tinha adquirido o imóvel e registado o mesmo a seu favor, requerimento que foi admitido, tendo a C-SA sido chamada por meio de citação.
A C-SA veio contestar, apenas por impugnação, tanto que, depois, veio requerer que não fosse admitida a resposta do autor à contestação, por não ter sido deduzida reconvenção, o que foi deferido.
Por despacho proferido a folhas 150 a 152, o autor foi convidado a suprir as insuficiências/deficiências na sua exposição de facto quanto à perda de interesse na concretização do negócio e quanto à conversão da mora em incumprimento definitivo.
Na sequência, o autor apresentou nova petição inicial, corrigida, com o aditamento, apenas, do seguinte:
No art. 11 da petição inicia, onde dizia: E convocou a ré para que comparecesse no dia 18/07/2013, pelas 10h30m, no Cartório Notarial de X, para a realização da escritura definitiva do contrato prometido, conforme resulta do teor da referida carta que ora se protesta juntar, passou a dizer: E interpelou a ré para que comparecesse no dia 18/07/2013, pelas 10h30m, no Cartório Notarial de X, para a realização da escritura definitiva do contrato prometido, mediante o envio de carta registada com aviso de recepção, datada de 02/07/2013, e expedida nessa mesma data, para a morada da ré indicada no contrato-promessa de compra e venda.
E acrescentou os seguintes artigos: 12. A qual foi recepcionada pela ré conforme posteriormente foi confirmado pelo autor por contacto telefónico com a ré. 13. Na referida carta, o autor advertiu a ré de que caso esta não comparecesse no dia, hora e local, indicados, a fim de outorgarem a mencionada escritura pública de compra e venda, esta incumpriria definitivamente o contrato-promessa de compra e venda celebrado e, em consequência, consideraria imediatamente resolvido o contrato-promessa celebrado. 14. Conforme se prova pelo teor da referida carta e respectivo talão de registo, que ora se junta e cujo conteúdo aqui se dá integralmente por reproduzido para todos os legais efeitos como doc. 2 [carta e registo].
Perante isto, a C-SA apresentou uma nova contestação, que identificou como 2.ª, onde impugnou os factos em causa e onde deduziu reconvenção contra o autor, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a título de indemnização a quantia de 14.807,97€ acrescida de juros de mora à taxa legal, decorrente do facto do autor ocupar a fracção sem autorização e conhecimento da C-SA, causando a esta prejuízos.
O autor apresentou réplica.
A reconvenção foi alvo do seguinte despacho de 08/09/2017, de-pois de se ter feito uma síntese do processado e articulados (transcreve-se apenas na parte que importa ao caso):
Nos termos do disposto no artigo 583/1 do CPC a reconvenção é deduzida separadamente na contestação.
No caso em apreço o pedido reconvencional não foi formulado com a contestação, mas sim em sede de exercício do contraditório quanto a factos alegados pelo autor na sequência do convite que lhe foi dirigido. A tanto acresce que o pedido reconvencional não se reporta aos factos constantes da resposta ao convite (que apenas respeitou à perda de interesse e conversão da mora em incumprimento definitivo).
A reconvenção apresentada pela chamada não foi deduzida em momento próprio, ou seja, com a contestação, mas sim em momento posterior e já em sede de exercício de contraditório.
Nestes termos, e por não ter sido deduzido em tempo não admito o pedido reconvencional deduzido pela chamada.
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A C-SA vem, a 28/09/2017, recorrer deste despacho – para que seja revogado e substituído por outra que admita a reconvenção – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (com alguma síntese feita por este tribunal de recurso):
- De acordo com o art. 755/1-f do CPC, são requisitos do direito de retenção em contrato promessa “[…] a existência de um crédito resultante de um incumprimento do contrato promessa imputável à ré e a tradição da fracção autónoma prometida vender.”
- O incumprimento em causa é o incumprimento definitivo nos termos do art. 442 do CPC.
- Na petição inicial primeiramente apresentada, o autor não invocou o incumprimento definitivo, que ocorre quando o credor, em consequência da mora, perde o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor, pois que não invocou a interpelação admonitória a que alude o art. 808/1 do CC, e quanto à perda de interesse limitou-se a afirmá-la, sem invocar quaisquer factos que a fundamentem, o que impede a sua verificação.
- Isto mesmo foi reconhecido pelo tribunal que [o] fez constar do despacho de aperfeiçoamento, tendo o autor sido convidado a suprir a deficiências na concretização/exposição da matéria de facto.
- Sobre a tradição da coisa, afirmou o autor que a mesma decorre da estipulação das partes, mas sem invocar como foi formalizada, sendo que a entrega do bem ao autor não tem qualquer apoio no invocado contrato-promessa. O autor [nem] sequer invoca em que se traduziu a tradição do bem ou quais os poderes que exerceu sobre o bem, sendo que certamente o não habitou, por o mesmo não deter condições para o efeito.
- Em resposta ao convite feito, o autor veio apresentar o que denominou de “nova petição inicial”, ali invocando ter a carta enviada a convocar a promitente-vendedora para a escritura a natureza de interpelação admonitória, juntando o que diz ser tal carta.
- Ora, perante a nova possibilidade de vir a provar-se um dos requisitos que poderá levar à eventual procedência da acção, e que antes inexistia de todo, a posição da ré teve necessariamente de se modificar em conformidade.
- É certo que o autor continuava a não fazer prova dos restantes elementos que podem levar ao reconhecimento da existência do direito de retenção, mas viera também entretanto, juntar uma resposta à contestação com variados documentos através dos quais pretendia fazer prova da ocupação do imóvel, em resposta que veio a ser mandada desentranhar.
- Perante isto, a ré que desconhecia de todo tal ocupação, e que continua a não aceitar, veio deduzir pedido reconvencional na contestação à petição inicial aperfeiçoada, para o caso de ser provada a ocupação, ilícita e não autorizada, da fracção pelo autor.
- Na réplica, o autor volta a invocar novos factos sobre a ocupação do imóvel e a juntar os documentos que antes havia junto e que foram desentranhados.
- Ao não admitir a reconvenção, a decisão impugnada viola a lei não apenas no seu indeferimento, como no facto de não ter ordenado, em simultâneo que a réplica fosse desentranhada, pois, sem aquela, esta deixa de ter razão de ser.
- A manutenção da réplica nos autos passa a constituir violação do disposto no art. 584 do CPC, tratando-se de apresentação de prática de acto que a lei não admite, o que constitui nulidade.
- Ao decidir como o fez, omitindo decisão sobre o desentranhamento da réplica, o despacho impugnado padece de nulidade, nos termos do disposto no art. 615/1-d do CPC.
- A decisão impugnada faz errada interpretação da lei, designadamente do disposto no art. 583 do CPC, decorrente da errada percepção da natureza da petição aperfeiçoada.
- A nova petição substitui a anterior, passando a constituir o articulado em que o autor expõe factos de direito, com pedidos e causa de pedir próprios. Ao contestar tal petição, o réu goza do direito ao contraditório em toda a sua extensão, designadamente para, em nova valoração do que vem de novo invocado, poder concluir pela necessidade de apresentação de reconvenção.
- Esta é natureza e extensão do direito de defesa do réu, perante a petição aperfeiçoada, comummente aceite, na doutrina e jurisprudência (neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 16/11/2005, proc. 1993/05-1).
O autor não contra-alegou.
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Questão que importa decidir: se a reconvenção devia ter sido admitida.
Não é, também, questão a decidir, a de saber se a réplica devia ter sido desentranhada. Com efeito, o facto de não ter havido decisão sobre tal questão, não implica qualquer nulidade do despacho recorrido, porque a réplica não era objecto do mesmo (arts. 613, 615 e 608, todos do CPC). Se for certo que a réplica não devia ser admitida, o que se verifica é a falta de um despacho sobre a sua inadmissibilidade (art. 195/1 do CPC), ou seja, a omissão de um acto previsto na lei. Assim, o que haverá é uma nulidade processual e não uma nulidade do despacho (que não existe). Ora, uma nulidade processual não é objecto de um recurso, mas sim de uma arguição de nulidade, a ser feita perante o tribunal onde ela foi cometida. E só do despacho que se pronuncie sobre tal nulidade é que se poderá, então, recorrer. As alegações de recurso, na parte que se referem à nulidade processual em causa, talvez tenham levantado a questão a tempo, embora provavelmente não. Se sim, então, nessa parte, poderão ser, talvez, consideradas pelo tribunal recorrido, quando o processo lhe for devolvido, aproveitando-se para o efeito, como se fossem uma arguição de nulidade. Mas, para já, neste recurso, a questão é irrelevante.
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Os factos que interessam à questão a decidir, são os que resultam do relatório que antecede.
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Um despacho de aperfeiçoamento de um articulado deficiente quanto à matéria de facto, apenas pode ter em vista suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (art. 590/4 do CPC). As alterações à matéria de facto alegada na petição inicial devem conformar-se com os limites estabelecidos no art. 265 do CPC (art. 590/6 do CPC) e os factos objecto de esclarecimento, aditamento ou correcção ficam sujeitos às regras da contraditoriedade e prova (art. 590/5 do CPC).
O aperfeiçoamento da petição inicial não dá, pois, origem a um articulado onde se exponham, pela primeira vez, pedidos e causa de pedir próprios, ao contrário do que defende a ré. O pedido nem sequer é alvo do despacho de aperfeiçoamento e a causa de pedir tem de ser a mesma. O au-tor não pode modificar a causa de pedir num articulado de aperfeiçoamento (neste sentido, apenas por exemplo, veja-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, Almedina, 3.ª edição, 2017, pág. 634, onde toda esta matéria está desenvolvida; no mesmo sentido, Paulo Pimenta, Processo civil declarativo, Almedina, 2015, págs. 216 a 225).
Assim sendo, um articulado de aperfeiçoamento – que é um complemento de um articulado – de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada numa petição inicial apenas dá ao réu a possibilidade de contraditar os novos factos e aduzir novos meios de prova, não também de deduzir uma reconvenção.
Tal resulta, ainda, do efeito preclusivo da apresentação de uma contestação sem reconvenção. Esta tem de ser deduzida na contestação (art. 583/1 do CPC), pelo que, ultrapassado esse momento, tomada a opção de não se deduzir reconvenção, precludiu-se a possibilidade de o fazer.
Nem se justificaria que um simples complemento de exposição ou concretização da matéria de facto, que não pode sair para fora do âmbito da causa de pedir invocada na petição inicial, colocasse de novo a ré numa fase anterior do processo, com possibilidade de repensar o contraditório em toda a sua extensão, como ela pretende, sem invocar base legal para o efeito.
Isto posto, justifica-se perfeitamente o despacho recorrido que não admitiu a reconvenção, tanto mais que o autor se limitou a actuar parcialmente de acordo com o despacho de aperfeiçoamento, não tendo introduzido nova causa de pedir no processo.
Na lógica do despacho de aperfeiçoamento, não se tratou de, antes dele, não haver causa de pedir e, por isso, impossibilidade de procedência da acção, mas sim uma deficiência de formulação de factos na petição que, corrigida, poderá levar ao aumento da possibilidade da procedência da acção; ora, a ré tinha que contar com este risco, visto que a possibilidade de aperfeiçoamento de articulados existe no nosso processo civil precisamente com esse fim.
Se a ré não deduziu reconvenção a contar com a improcedência da acção por ineptidão ou por imperfeição da petição inicial, o risco do eventual erro dessa decisão corre por sua conta. E o mesmo vale se ela não deduziu reconvenção porque não reparou que a situação do autor poderia vir a consubstanciar uma ocupação ilícita do imóvel que entretanto a ré adquiriu. Se a ré não deduziu reconvenção na altura própria, não o pode fazer agora, apenas porque o autor aperfeiçoou a alegação da matéria de facto, em pontos que, aliás, não tinham nada a ver com a matéria da reconvenção.
Quanto ao acórdão do TRG invocado pela ré, há que ter em conta que o TRG se pronunciou (i) perante a redacção do CPC anterior à reforma de 2013, com solução diferente quanto à possibilidade de alterar a causa de pedir no articulado de aperfeiçoamento da petição inicial (veja-se a demonstração disto na obra e local citados acima); (ii) sobre um caso em que houve reconvenção desde o início, ou seja, não se tratou de considerar como admissível uma reconvenção que só tivesse sido deduzida depois da petição inicial corrigida. Por outro lado, há que ter em conta que nem todos os despachos de aperfeiçoamento têm os mesmos objectivos e as mesmas consequências. Ora, o TRG decidiu, a final, (iii) depois da sentença, perante a situação consumada da existência de uma petição inicial nova, com novos factos e pedidos com formulação diferente. Tudo isto é suficiente para se poder concluir que o caso do ac. do TRG invocado não tem nenhuma similitude com o dos autos.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pela ré.
Lisboa, 11/01/2018
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto