Juízo de execução de Lisboa – J4

              Sumário:

         Mesmo que se aceitasse que um indeferimento liminar possa ser uma decisão surpresa (a impor a audição prévia da parte), tal nunca seria o caso de um indeferimento liminar por incompetência material do tribunal, quando se sabe que a exequente tinha conhecimento que a questão da competência era discutida e ela já tinha sido parte em pelo menos 4 processos (três deles exactamente sobre a mesma questão e um outro sobre uma questão paralela, com apoio da doutrina) decididos por 4 acórdãos no sentido da incompetência do tribunal.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              A Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores requereu, em 29/06/2017, uma execução para pagamento de quantia certa contra M, dado como advogado de profissão, no Juízo de Execução de Lisboa, invocando que o executado se encontra obrigatoriamente inscrito na CPAS, nos termos do disposto no art. 29/1 do DL 119/2015 de 29/06, tendo de pagar mensalmente as contribuições a que se refere o art. 79 e seguintes desse DL, o que não tem feito, devendo, neste momento, a quantia peticionada a título de contribuições e de juros, conforme certidão de dívida emitida pela direcção da CPAS, que constitui título executivo, nos termos do disposto no art. 703/1-d do CPC e do art. 81/5 do DL 119/2015.

              Esta execução veio a ser rejeitada liminarmente por despacho judicial de 06/09/2017, com base no entendimento de que falece competência, em razão da matéria, aos juízos de execução judiciais para apreciar este tipo de execuções, atento o disposto no artigo 129/1 da Lei 62/2013, de 26/08, pertencendo antes, a competência, aos tribunais administrativos e fiscais, por força do art. 4/1-o do ETAF. Ou seja, com base na verificação dessa excepção, a qual é de conhecimento oficioso, implicando o indeferimento liminar do requerimento executivo ou a rejeição da execução (cfr. arts 96-a, 97/1 e 99/1, todos do CPC).

              O tribunal invocou neste sentido, o ac. do TRP de 23/01/2006, proc. 0446941, bem como a obra de Soveral Martins, Organização dos tribunais judiciais portugueses, I, edição Fora do texto, [Coimbra, 1990] pág[s]. [226/]227, e o ac. do TRP de 20/06/2016, proc. 6988/16.2PRT.P1.

              A 21/09/2017, a CPAS arguiu a nulidade deste despacho dizendo, muito em síntese, o seguinte:

          O despacho foi proferido sem que a CPAS, previamente, pudesse exercer o direito ao contraditório ou pronunciar-se sobre a questão da competência material.

         Nos termos do disposto no art. 195/1 do CPC, “… a omissão de uma acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, […] produz […] nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”

         O art. 3/3 do CPC dispõe que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito (…) decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

         Não se diga sequer que a argumentação a aduzir pela CPAS para defesa da sua posição, caso tivesse sido ouvida, não alteraria o resultado, uma vez que é entendimento da CPAS que existem fundamentos válidos para julgar este tribunal competente em razão da matéria.

         Assim, não tendo a CPAS sido previamente ouvida sobre a questão da incompetência material deste tribunal, foi violado o princípio do contraditório, devendo, por isso, o despacho ser declarado nulo por preterição de uma formalidade (nulidade de acto processual). E em consequência dessa anulação devem os actos subsequentes ser igualmente anulados, nos termos do disposto no art. 195/2 do CPC, e a CPAS notificada para se pronunciar sobre a competência do tribunal em razão da matéria.

       Neste sentido, o ac. do TRL de 09/03/2017, proc. 17398/15.9T8LRS.L1-2.

              A arguição foi indeferida dizendo-se que:

         A competência absoluta, em razão da matéria, constitui um pressuposto processual que o tribunal aprecia oficiosamente (art. 97 do CPC) e que a parte deve naturalmente levar em consideração antes da interposição de qualquer acção.

         As situações que conduzem ao indeferimento liminar da petição traduzem questões evidentes, indiscutíveis em termos de razoabilidade, que permitem considerar dispensável a audição das partes, em sintonia com o preceituado no art. 3/3 do CPC e que tornam inútil qualquer instrução e discussão posterior. Por isso se entende que as situações de indeferimento liminar são casos em que é manifesta a desnecessidade de se ouvir o autor sobre o “projecto” ou a “intenção” de se indeferir a petição (cfr., neste sentido o acórdão do TCA Sul de 18/06/2015, proc. 08710/15).

         Acresce que têm sido proferidas diversas decisões, em diversos processos, nos quais a exequente é parte, e em que se decidiu, em casos semelhantes ao dos autos, pela competência da jurisdição administrativa e fiscal para a tramitação da execução interposta com vista à cobrança coerciva das contribuições não pagas por beneficiário da CPAS.

         Desta forma, o despacho proferido nos autos não pode ser considerado uma “decisão-surpresa”, isto é, uma decisão absolutamente inesperada para a exequente, sendo o exercício do contraditório manifestamente desnecessário (art. 3/3 do CPC.

              A 06/02/2018 a CPAS interpôs recurso deste despacho, concluindo as suas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem na parte útil):

         O preterir o estatuído no art. 3/3 [do CPC] viola os princípios do processo civil, mas, também, o art. 20/1 da Constituição da República Portuguesa.

         Isto porque, não tendo a CPAS sido previamente ouvida sobre a competência do tribunal para tramitar e julgar a presente acção, a decisão tem de ser considerada uma decisão-surpresa.

         Não sendo admissível a chamada decisão-surpresa, tem a CPAS, previamente à decisão, de ser auscultada sobre a matéria.

         Além disso, o princípio do contraditório visa, também, permitir que a parte possa carrear para os autos os elementos que achar pertinentes para que o tribunal, quando decidir, o faça na posse do máximo de informação possível.

         Não tendo a CPAS sido ouvida previamente à decisão, foi violado o princípio do contraditório previsto no art. 3/3 do CPC.

                                                                 *

          O art. 3/3 do CPC dispõe que: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

        A parte sublinhada corresponde à parte que a CPAS omitiu na transcrição feita acima das suas alegações de recurso.

         Quer dizer que a lei aceita que há casos em que é desnecessária a observância do contraditório.

         O despacho recorrido lembra um ac. do TCAS que diz que os casos de indeferimento liminar são casos em que não se justifica dar à parte a oportunidade de se pronunciar sobre a questão que vai servir de motivo de indeferimento. Aquele acórdão refere vários outros do STA, para além de doutrina, no mesmo sentido.

              No mesmo sentido, pode agora ver-se também o ac. do TRC de 27/02/2018, proc. 5500/17.0T8CBR.C1 (que refere ainda, neste sentido, os acórdãos do STJ de 24/02/2015, proc. 116/14.6YLSB, do TRP de 04/11/2008, proc. 0826336, do TRL 27/09/2017, proc. 10. 847/15.8T8LSB-D.L1 -4, e do TRL de 09/11/2017, proc. 1375/04 – o ac. do TRC foi publicado por Miguel Teixeira de Sousa no blog do IPPC, sem qualquer observação crítica) e o ac. do TRL de 24/04/2018, proc. 15582/17.0T8LSB.L1-7 [em sentido contrário podem ver-se as decisões singulares do TRC de 05/12/2016, proc. 6097/17.7T8CBR.C1, e de 29/01/2018, proc. 3550/17.6T8CBR.C1].

              Por outro lado, a questão com que o tribunal recorrido se deparava era, já à data em que a execução foi requerida – 06/09/2017 – uma questão decidida no mesmo sentido por vários acórdãos publicados, como o próprio despacho recorrido lembra.

        Com efeito, havia, publicados, já três acórdãos dos tribunais de recurso que decidiam esta precisa questão do modo decidido pelo despacho de indeferimento liminar, em casos em que, aliás, era parte a própria CPAS (como aliás o é em todos os outros sobre esta questão).

              São eles:

      – do TRP de 20/06/2016, proc. 6988/16.2PRT.P1 (citado pelo despacho de indeferimento),

                 – do TRL de 09/03/2017, proc. 17398/15.9T8LRS.L1-2,

         – do Tribunal de Conflitos de 27/04/2017, proc. 037/16, este com a particular autoridade que lhe é reconhecida, pela composição e por força das funções para que existe.

              Sendo certo que a propósito de um caso paralelo havia ainda um outro acórdão e doutrina, citados no despacho de indeferimento liminar, que iam no mesmo sentido.

                                                                 *

           A CPAS, no corpo das alegações do recurso, diz que, se lhe tivesse sido dada oportunidade de se pronunciar sobre a competência do tribunal, poderia ter juntado aos autos um parecer da Autoridade tributária, em que esta entidade alega não ter competência para instaurar processos de execução para cobrança das contribuições da CPAS por falta de norma habilitante para o efeito.

              Mas isto, ao contrário do que a CPAS pretende, vem reforçar o que era dito no despacho recorrido: “ A competência absoluta, em razão da matéria, constitui um pressuposto processual que o tribunal aprecia oficiosamente (art. 97 do CPC) e que a parte deve naturalmente levar em consideração antes da interposição de qualquer acção.”

              É que, com a invocação de tal parecer, a CPAS está a revelar que, quando propôs a execução nos tribunais judiciais, já sabia que a questão da competência se discutia e já a podia ter discutido invocando no requerimento executivo aquele parecer e, por isso, não foi apanhada de surpresa pela decisão recorrida.

              Já agora, porque a CPAS não o faz nem o identifica devidamente, deixe-se dito que o “parecer” que a CPAS está a invocar é por demais conhecido – por ser referido em todos os acórdãos que se pronunciaram já sobre a questão (que são muitos como se irá vendo), data de 09/11/2015, consta de uma comunicação proveniente da Autoridade tributária e aduaneira dirigida à direcção da CPAS, tendo por assunto «Processo de execução fiscal para cobrança de créditos da CPAS», e nele diz-se: “Em respeito ao assunto em epígrafe, cumpre informar que, por despacho da Directora–Geral de 08/10/2015, foi sancionado o entendimento que considera não existir actualmente norma legal que habilite a instauração de processo de execução fiscal pela AT para cobrança de contribuições em dívida à CPAS. De facto, essa possibilidade não tem cabimento no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), nem está expressamente consagrada em legislação avulsa especial. Neste âmbito, foi analisado o Regulamento da CPAS, aprovado pelo Decreto-Lei 119/2015, de 29/06. Contudo, também aqui não está prevista a instauração do processo de execução, nem mesmo no n.º 1 do art.  85. O teor desta norma limita-se a indicar os requisitos que devem revestir os títulos executivos a extrair pela CPAS na qualidade de credora, pelo que se considera não haver suporte na letra da lei que admita a instauração do processo de execução fiscal pela AT».

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              Anote-se, entretanto, que quando a CPAS interpôs recurso do despacho recorrido, a 06/02/2018, já tinham sido publicados mais 9 acórdãos no mesmo sentido do despacho de indeferimento liminar.

              Esses acórdãos são os seguintes:

              – do TRL de 02/11/2017, proc. 9354-16.6T8LSB.L1-8,

              – do TRC de 27/11/2017, proc. 2077/17.0T8ACB.C1

              – do TRG de 07/12/2017, proc. 2825.17.9T8VCT.G1

              – do TRE de 11/01/2018, proc. 3303/17.1T8ENT.E1

              – do TRC de 16/01/2018, proc. 6611/17.8T8CBR.C2;

              – do TRE de 25/01/2018, proc. 3485/17.2T8ENT.E1;

              – do TC de 01/02/2018, proc. 044/17,

              – do TRP de 05/02/2018, proc. 785/17.5T8OVR.P1,

              – do TRP de 05/02/2018, proc. 17311/17.9T8PRT.P1,

          Ora, perante estes acórdãos – que vão todos no mesmo sentido, não sendo conhecido um único acórdão em sentido contrário, o que revela uma corrente jurisprudencial uniforme e reiterada – constata-se o seguinte:

              As alegações do recurso da CPAS em todos esses casos são quase exactamente do mesmo teor. Isto é, apesar de tudo o que já foi escrito sobre o assunto, a CPAS não desenvolveu entretanto qualquer novo argumento para rebater as decisões que não lhe dão razão. Não se vê, por isso, o que é que a CPAS poderia ter dito neste processo, de novo. Aliás, o requerimento da arguição da nulidade e as alegações de recurso, não têm absolutamente nada de novo relativamente a todas as alegações de recurso (sempre, salvo erro, com 20 conclusões) que constam de todos aqueles acórdãos.

                                                                 *

              Perante tudo isto, considera-se que, no caso, não se justificava, manifestamente, a necessidade de dar a oportunidade à CPAS para se pronunciar sobre a competência material do tribunal.

              Repare-se, já agora, que depois da interposição do recurso pela CPAS foram ainda publicados os seguintes acórdãos/decisões singulares, todos no mesmo sentido:

              – do TRE de 08/02/2018, proc. 5863/17.8T8STB.E1;

              – do TRP de 21/02/2018, proc. 16878/17.6T8PRT.P1;

              – do TRP de 21/02/2018, proc. 24893/17.3T8PRT.P1;

              – decisão singular do TRL de 12/03/2018, proc. 8516/17.3T8SNT.L1 [do subscritor deste acórdão, não publicada por, presumivelmente, ser mais uma entre as dezenas de outras no mesmo sentido];

              – do TRC de 06/03/2018, proc. 5471/17.3T8CBR.C1;

              – do TRE de 22/03/2018, proc. 694/17.8T8BJA.E1;

              – do TRL de 22/03/2018, proc. 16976/17.6T8SNT.L1-8;

              – do TRP de 11/04/2018, proc. 1789/16.0T8MAI.P1;

         Em todos estes acórdãos e decisão singular, não se viu, de novo, qualquer argumento da CPAS que não constasse já das alegações dos recursos iniciais.

                                                                 *

             Assim, sendo, julga-se o recurso improcedente.

             Não há lugar a mais custas (a CPAS já pagou a taxa de justiça devida e o executado não contra-alegou, pelo que não há custas de parte do mesmo em que a CPAS devesse ser condenada).

              Lisboa, 21/06/2018

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto