Intervenção na acção – Juízo Central Cível de Loures
Sumário:
I. As heranças cujos titulares são já determinados – por serem conhecidos e aceitantes -, não são heranças jacentes. Como tal não têm personalidade judiciária (art. 12/-a do CPC) e não podem fazer requerimentos para intervirem como assistentes de partes principais. E sendo a intervenção requerida por todos os herdeiros (art. 2091/1 do CC) não se põe qualquer questão de preterição de litisconsórcio necessário.
II. Se a declaração de nulidade de uma compra e venda registada pode afastar o incumprimento definitivo de um anterior contrato-promessa obrigacional de compra e venda, os sucessores do promitente-comprador podem intervir como assistentes do autor, que é o promitente-vendedor, na acção intentada por este para obter aquela declaração (art. 326 do CPC).
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
O e mulher intentaram uma acção contra a P-Lda, pedindo a declaração da nulidade da venda (já registada) que lhe fizeram em 2015 de um prédio com um edifício não constituído em propriedade horizontal e cancelamento do registo da compra de tal prédio pela ré.
MN e MP e as heranças dos seus pais, vieram requerer a sua constituição como assistentes dos autores nesta acção.
Em suma (de dezenas de páginas), alegaram o seguinte (desconsiderando-se contradições e incongruências e outros pedidos e causas de pedir relacionados com outros eventuais interesses): os pais das 1.ª e 2.ª requerentes foram arrendatários do 2.º andar daquele edifício até 1989; em 1989 os pais das 1.ª e 2.ª requerentes celebraram com o autor, que era nu-proprietário do prédio (os usufrutuários eram os pais do autor), um contrato-promessa de compra e venda da nua-propriedade do 2.º andar, depois de o edifício ser constituído em propriedade horizontal; a esse contrato não foi atribuída eficácia real, mas foi ressalvada a execução específica do mesmo; o preço da nua-propriedade foi considerado pago, por dedução do valor de uma dívida que o autor tinha para com o pai das 1.ª e 2.ª requerentes; os pais destas passaram desde então a considerar-se e a comportar-se como proprietários do 2.º andar em que antes viviam como arrendatários e onde continuaram a viver; em 1993 faleceu o último dos usufrutuários e então [não concretizam a data] o autor e o pai das requerentes acordaram na compra e venda [não dizem que o tenham feito por escrito] também do usufruto, por um preço [não dizem qual foi] que foi sendo pago com a entrega de 300€ mensais [não dizem até quando]; entretanto os pais das 1.ª e 2.ª requerentes faleceram e estas são as suas únicas herdeiras; têm interesse em que a acção seja procedente, pois que assim podem vir a conseguir a execução específica do contrato-promessa que pediram numa acção que intentaram contra o autor depois de terem conhecimento desta (havendo já, para isso, segundo dizem, a certidão necessária à constituição da propriedade horizontal).
A sociedade ré opôs-se à intervenção das requerentes e a mesma foi indeferida por despacho que, seguindo no essencial os termos da oposição da sociedade, se fundamentou no seguinte, agora muito em síntese:
– as 1.ª e 2ª requerentes aceitaram a herança de seus pais e são as únicas herdeiras, logo não há herança jacente que possa ser parte acessória; pelo que o pedido de intervenção das heranças é indeferido liminarmente (inadmissibilidade legal por falta de personalidade judiciária);
– as 1.ª e 2.ª requerentes, na acção que intentaram, querem ser reconhecidas como proprietárias do 2º andar por o terem adquirido por usucapião; e ao mesmo tempo querem a execução específica do contrato-promessa celebrado entre o seu pai e o autor;
– se as requerentes tiverem adquirido por usucapião a propriedade do 2.º andar, que retroage a momento (início da posse: Novembro de 1989) muito anterior ao da venda do prédio à sociedade ré, a nulidade objecto desta acção não tem qualquer relevo, quer a acção seja procedente ou improcedente: mesmo que a compra e venda do prédio seja válida, a aquisição por usucapião prevalece sobre ela;
– quanto à pretensão da execução específica do contrato-promessa, por um lado ela é contraditória com a pretensão de as requerentes serem já proprietárias (por terem adquirido por usucapião o 2.º andar); por outro lado, a pretendida celebração das escrituras prometidas (de constituição da propriedade horizontal e de compra e venda), por via da execução específica, não é suficiente para a transmissão da propriedade do 2º andar, pois o que foi prometido vender foi a nua propriedade; assim sendo, mesmo que esta acção de declaração de nulidade da venda feita à sociedade proceda e a propriedade do prédio volte à esfera jurídica dos autores, a execução do contrato-promessa celebrado com o autor não permitirá que as requerentes adquiram a propriedade do 2.º andar.
– pelo que o requerimento de intervenção das requerentes como assistentes dos autores foi indeferido.
As requerentes recorrem deste despacho, para que seja revogado e substituído por outro que admita a intervenção delas quatro, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões sintetizadas por este acórdão (mas respeitando a construção das requerentes):
– as heranças fizeram o requerimento representadas pela cabeça-de-casal, a qual, no âmbito dos seus poderes de administração, pretende ter intervenção nestes autos na qualidade de assistente e em representação das heranças, porque neles estão em causa interesses do acervo hereditário; todas as herdeiras das heranças pretendem intervir nos autos; a intervenção das heranças apenas visa defender e alcançar interesses e objectivos coincidentes com os das 1.ª e 2.ª requerentes, suas herdeiras; por conseguinte, ainda que as heranças sejam ilíquidas e indivisas, improcede a arguição da sua ilegitimidade; invocam neste sentido, o ac. do STJ de 14/12/1994.
– a causa de pedir de todos os pedidos que as requerentes fizeram na outra acção é mesma e ela não é o contrato-promessa invocado nem a usucapião, pelo que não há incompatibilidade de pedidos na outra acção, nem esta questão era da competência do juiz desta acção;
– o pai das 1.ª e 2.ª requerentes comprou a nua propriedade do 2º andar e pagou pelo usufruto e, desde 03/11/1989, os pais delas passaram a comportar-se relativamente ao 2º andar na convicção de que eram seus proprietários; e nessa posse sucederam-lhes as referidas requerentes, pelo que se encontra preenchido o requisito do interesse jurídico delas se constituírem assistentes.
– interesse jurídico que também resulta do facto de o prédio em causa ser composto pelo 2.º andar que é objecto quer de um contrato de arrendamento quer do contrato-promessa de compra e venda celebrados entre o autor e o pai das 1.ª e 2.ª requerentes; pelo que, nos termos do art. 326/1 do CPC têm um interesse jurídico cuja consistência prática e económica depende da pretensão invocada pelo autor nos presentes autos.
Quer os autores quer a ré não contra-alegaram.
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Questão a decidir: se o incidente de intervenção das requerentes como assistentes dos autores deve ser admitido.
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A questão deve ser decidida face ao alegado pelas requerentes. Ou seja, os factos que interessam à decisão são os que constam do relatório que antecede.
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Quanto às heranças.
O despacho recorrido tem razão.
Quem fez o requerimento de intervenção foram as heranças, não a cabeça-de-casal. Ou melhor, para o caso: foram as heranças representadas pela cabeça-de-casal. Não foi a cabeça-de-casal.
Ora, como o despacho diz, as heranças já aceites – como é o caso, porque segundo o alegado são só duas as herdeiras e o requerimento de intervenção, feito pelas próprias, é inequívoco sinal de que aceitam as heranças – e ainda não partilhadas são heranças ilíquidas e indivisas e não heranças jacentes (arts. 2046 do Código Civil), sendo que apenas as heranças jacentes têm personalidade judiciária (art. 12/a do CPC).
“Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado” (art. 2046 do CC). Esta aceitação tem de dizer respeito a todos os chamados Ou seja, a herança não deixa de ser jacente por já ter havido uma aceitação… só deixa de ser jacente, passando à situação de herança indivisa depois de aceite por todos os sucessíveis (que assim se tornam sucessores), ou aceite por uns e repudiada por outros (se for repudiada por todos passa a herança vaga)… Neste sentido, para além de Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 19/20, veja-se o ac. do TRC de 13/01/2004 (3290/03 do ITIJ): “1. Sendo vários os chamados à sucessão, a questão da titularidade só ficará resolvida quando todos responderem à vocação, aceitando-a ou repudiando-a. Não basta que um só herdeiro se apresente ou responda positivamente a uma só notificação nos termos do art. 2049 do CC. O próprio preceito é explícito no sentido de se percorrerem todos os sucessíveis até se obter a certeza sobre quem assume a titularidade da herança. 2. Por isso, não tendo a herdeira cabeça de casal aceite ou repudiado a herança, esta mantém-se jacente, não obstante ter sido tacitamente aceite por outros herdeiros. 3. Consequentemente mantém a herança personalidade judiciária e pode demandar em acção declarativa de reivindicação e condenação).” Bem como, entre muitos outros, os acs do TRP de 09/06/2009 (52/03.1TBMDR-A.P1) e do TRC de 27/05/2008 (400/2002.C1) e de 16/11/2010 (51/10.7TBPNC.C1).
Não sendo as heranças requerentes heranças jacentes mas heranças ilíquidas e indivisas e não tendo estas personalidade judiciária, não podem intervir no processo.
De resto, a questão não tem qualquer interesse para as requerentes heranças – que não existem enquanto pessoas – nem para a cabeça-de-casal. Pois que, tendo todas as herdeiras, que são apenas as duas primeiras requerentes, feito o requerimento de intervenção, não se põe qualquer problema de preterição de litisconsórcio. Ou seja, o tribunal apesar disso decidiu a questão posta pelas outras duas requerentes, tendo considerado a presença delas suficiente para o efeito. O que era evidente face ao disposto no art. 2091/1 do CC: “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.” Como diz Antunes Varela, CC anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1998,pág. 152: “Trata-se, por conseguinte, de casos de litisconsórcio necessário, para os quais o cabeça-de-casal já não tem legitimidade, e em que a falta de qualquer dos herdeiros interessados na acção é fundamento de ilegitimidade de qualquer dos intervenientes.”
Em suma:
As heranças de titulares indeterminados – por serem desconhecidos os herdeiros ou ainda não se saber se os conhecidos vão aceitar a herança -, são heranças jacentes. Como os seus titulares são indeterminados, não se poderia exigir a intervenção de todos eles e por isso é dada às heranças jacentes personalidade judiciária: são elas as partes, representadas pelo cabeça-de-casal.
As heranças não partilhadas com titulares determinados – conhecidos e aceitantes -, são heranças ilíquidas e indivisas, não heranças jacentes: nos casos dos arts. 2088 a 2090 do CC, o cabeça-de-casal é parte legítima por si; nos outros casos, são todos os herdeiros que têm de estar em juízo, mas só eles, não o cabeça-de-casal (art. 2091/1 do CC). Isto sem prejuízo do disposto nos arts. 2075 e 2078 (petição da herança) e 2327 e 2328 (cabeça-de-casal como testamenteiro) do CC que não têm aplicação ao caso.
O ac. do STJ de 14/12/1994 – que as requerentes não identificam, nem localizam, mas que está publicado na CJ.STJ.1994,III, págs. 183/185: – não diz nada contra isto, antes pelo contrário. Está-se perante um caso de herança jacente – embora o acórdão não utilize o conceito, vê-se que é o caso já que faz referência a que nem todos os titulares estavam determinados; na acção intervieram todos os herdeiros e também o cabeça-de-casal; por isso, como era um caso de herança jacente e interveio o cabeça-de-casal, a questão da ilegitimidade estava ultrapassada.
Existe um outro acórdão do STJ, este mais recente, que é do de 12/09/2013, proc. 1300/05.9TBTMR.C1.S1, que refere o de 1994 e diz:
I – A herança indivisa e impartilhada só é dotada de personalidade judiciária se ainda não tiver sido aceite nem declarada vaga para o Estado, caso em que deverá ser qualificada de jacente (arts. 2046 do CC e 6-a, 1.ª parte, do CPC).
II – A aceitação da herança pode revestir forma expressa ou tácita, nos termos, respectivamente, dos arts. 2056/2 e – para além do previsto no art. 2057/2 – 217/1, todos do CC.
III – Em acção de impugnação de escritura de justificação notarial instaurada por herança não jacente, mostrando-se que todos os respectivos herdeiros “intervieram” na mesma, tendo outorgado procuração forense ao ilustre advogado da autora e propondo-se esta defender e alcançar interesses e objectivos coincidentes com os daqueles, não deve ser decretada a absolvição da instância filiada na excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da autora, caso a decisão deva ser integralmente favorável à autora e nenhum outro motivo a tal obste.
No caso deste acórdão de 2013, sendo caso de herança ilíquida e indivisa, por serem conhecidos todos os herdeiros, tendo todos eles já aceite a herança, tinham que intervir todos os herdeiros. Mas a acção foi proposta apenas pela herança, representada pelo cabeça-de-casal. Só que, como a procuração para a propositura da acção tinha sido passada por todos os herdeiros, também se considerou ultrapassada a questão da ilegitimidade.
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Quanto ao interesse jurídico
Quanto ao interesse jurídico das duas primeiras requerentes, o despacho recorrido incorreu num equívoco, partilhado com a ré, equívoco que não está minimamente referenciado nas alegações de recurso das requerentes.
É que não interessa apurar se a outra acção intentada pode ou não conduzir à aquisição da propriedade do 2.º andar pelas requerentes, nem se esta acção pode ajudar a esse fim.
O que importa é ver se o êxito desta acção pode ter interesse para a esfera jurídica ou económica das requerentes (art. 326/2 do CPC: “para que haja interesse jurídico, capaz de legitimar a intervenção, basta que o assistente seja titular de uma relação jurídica cuja consistência prática ou económica dependa da pretensão do assistido”).
Ora, se a declaração de nulidade da venda que o autor fez à ré for considerada procedente, tudo se passa como se o prédio não tivesse sido vendido à ré pelo autor e nunca tivesse saído da esfera patrimonial deste (art. 289 do CC) e, por isso, a questão do incumprimento definitivo do contrato-promessa (não dotado de eficácia real: art. 413 do CC), por força dessa venda, que impossibilitaria a sua execução específica (art. 830 do CC – porque a aquisição pela ré foi registada antes de ter sido intentada a acção: arts. 5 e 6 do Código do Registo Predial), deixa de se pôr.
E, assim sendo, poderá vir a ter êxito o pedido de execução específica – na acção já proposta ou noutra que o venha a ser se entretanto não se formar um caso julgado incompatível com tal – contra o autor, do contrato-promessa que este celebrou com o antecessor das requerentes (art. 412/1 do CC). E mesmo que isso só leve à compra e venda da nua propriedade do 2.º andar, não se poderá negar que tal poderá representar um interesse económico para as requerentes.
Tanto basta para que deva ser admitido o incidente, embora por razões que nada têm a ver com as constantes das alegações das requerentes (com argumentos incongruentes e inconsequentes: por exemplo, como é que, pedindo-se a execução específica de um contrato-promessa se pode afirmar que a causa de pedir desse pedido não é [para além do mais] o contrato-promessa? Como é que, pedindo-se a declaração de se ser proprietário [por se o ter adquirido devido a uma posse por tempo suficiente para a usucapião], se pode dizer que a causa de pedir desse pedido não é a usucapião? Como é que se pode dizer que se prometeu comprar uma coisa e logo a seguir que se comprou essa coisa, isto com base no mesmo contrato? Etc.).
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Em suma: era de admitir a intervenção das 1ª e 2ª requerentes como assistentes dos autores, pelo que o despacho recorrido deve ser revogado nessa parte. As consequências disto (por aplicação analógica do art. 195 do CPC) terão que ser tiradas pela 1ª instância (a nível dos direitos que as requerentes podiam ter exercido e não exerceram), se necessário com o uso de algum poder de adequação processual, depois de ouvidas as partes (art. 6 do CPC), por não existirem neste apenso de recurso em separado elementos necessários para o efeito.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se o despacho recorrido e admitindo-se agora a intervenção das 1ª e 2ª requerentes, como assistentes dos autores.
Custas (de parte – as taxas de justiça já foram pagas e não há encargos) do incidente e do recurso pelas 3ª e 4ª requerentes em 1/3 e pela ré sociedade em 2/3, por se entender ser essa a proporção do decaimento destas no incidente e no recurso (arts. 527, n.ºs 1 e 2, 529, 532 e 533, todos do CPC).
Lisboa, 15/02/2018
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto