Execução do Juízo de execução de Lisboa
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
G-Lda, requereu, em 23/07/2012, contra B-Lda, uma execução para entrega de uma fracção autónoma que tinha arrendado a esta para o exercício de actividade de escritório e agência de viagens.
Requereu tal com base no contrato de arrendamento conjugado com a notificação judicial avulsa da executada (cfr. art. 15/1-c da Lei 6/2006, de 27/02 = Novo Regime do Arrendamento Urbano), nos termos da qual a exequente comunicou à executada a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento em causa, para efeitos do disposto no art. 1097 do Código Civil.
Cerca de 1 ano depois, isto é, em 10/07/2013, foi proferido um despacho de indeferimento liminar com base na seguinte fundamentação, em síntese:
O título executivo base desta execução para entrega de coisa certa, formado embora de acordo com a lei vigente à data da sua constituição, já não tinha exequibilidade à data da propositura da acção executiva, por força da entrada em vigor, em 12/11/2012, da Lei 31/2012, de 14/08 (que alterou o NRAU), servindo agora de base ao procedimento especial de despejo; isto porque a nova lei, processual, deve ser de aplicação imediata, pois que não contém nenhuma norma transitória contrária à regra do art. 12 do CC que é a da aplicação da nova lei processual civil não só às acções futuras mas também aos actos futuros praticados nas acções pendentes.
A exequente recorreu de imediato deste despacho – para que fosse revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos – alegando, em síntese, que:
O título executivo cumpria todas as formalidades previstas na lei em vigor à data do requerimento para fundamentar a acção executiva; por força do art. 12/1 do CC, as leis apenas valem para o futuro (ressalvando-se os efeitos já verificados quando lhe seja atribuída eficácia retroactiva, o que nem sequer é o caso); a lei (31/2012, de 14/08) que instituiu o procedimento especial de despejo apenas entrou em vigor em 12/11/2012 (embora sem efeitos práticos quanto a este ponto uma vez que o Balcão Nacional do Arrendamento apenas foi criado em Janeiro de 2013); logo, aquando da entrada em juízo da acção executiva (23/07/2012), o título executivo era válido e eficaz, sendo exequível; consequentemente, ao indeferir liminarmente a execução o Sr. juiz a quo fez errada interpretação da lei, violando claramente o disposto nos arts. 812-E/1-a, 45/1, 46/1-d, todos do CPC, na redacção então em vigor, art. 15/1-c da Lei 6/2006, com a redacção em vigor em Fevereiro de 2011 e Julho de 2012, e art. 12/1 do CC.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso só foi remetido a este tribunal quase cinco anos depois, isto é, em 11/07/2018 (tendo sido distribuído a 10/09/2018 e concluso a 17/09/2018).
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Questão a decidir: se o título executivo não perdeu exequibilidade com a entrada em vigor da Lei 31/2012, de 14/08.
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Os factos que interessam à decisão desta questão são os que constam do relatório deste acórdão.
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O despacho recorrido está errado: quando a execução foi requerida, em 23/07/2012, a nova lei (31/2012) ainda nem sequer existia. E quando ela apareceu, em 14/08/2012, para entrar em vigor em 12/11/2012, não pode ter retirado exequibilidade ao título (que decorria dos arts. 45/1, 46/1-d, todos do CPC, na redacção antes da reforma de 2013 e 15/1-c da Lei 6/2006), já formado e em juízo, porque a nova lei não continha qualquer norma transitória retroactiva, tal como essa norma não existe no CPC nem no CC, antes pelo contrário, já que o art. 12/1 do CC diz que “A lei só dispõe para o futuro; ainda que, lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.”
E o facto de o despacho recorrido ter sido proferido depois da entrada em vigor da nova redacção da lei, não tem relevo, porque a apreciação da existência e exequibilidade do título tem de ser feita com base na lei em vigor à data em que ele entrou em tribunal [no comentário referido a seguir, de Lebre de Freitas, diz este Prof.: “Sempre se considerou que a exequibilidade é definida pela lei em vigor à data da execução […]”; e no art. 6 da Lei 41/2013, de 26/06, a distinção é entre as execuções pendentes à data da entrada em vigor da lei e as execuções iniciadas após a sua entrada em vigor, e não, em qualquer dos casos, o momento em que o juiz profere despacho; ou seja, a execução inicia-se com a sua instauração e fica pendente a partir daí].
Tal como o facto de a lei ter deixado de conferir exequibilidade a um conjunto de documentos que antes a tinham, documentos que passam, então, daí para a frente, a servir apenas de justificação para o processo especial de despejo, não tem relevo, porque, pelo já referido, o processo já existia e estava pendente, não podendo ser extinto ou perder exequibilidade com base numa lei que nem sequer previa a sua retroactividade.
Aliás, pode-se ir ainda mais longe e entender que até à Lei 31/2012 ter sido regulamentada e posta em prática, o que só aconteceu de facto em 08/01/2013, como decorre do art. 27 do DL 1/2013, de 07/01, (o que foi lembrado pela exequente), tais documentos não podiam perder a sua força executiva, pelo que, mesmo que a execução tivesse sido intentada entre 12/11/2012 e 08/01/2013, os mesmos continuavam a ser títulos executivos suficientes para esta execução (neste sentido, por exemplo, o ac. do TRL de 30/01/2014, proc. 21865/12.8YYLSB.L1-8).
Note-se que, no caso, não tem interesse – embora seja esclarecedora – a polémica estabelecida entre o Tribunal Constitucional e os Profs. Teixeira de Sousa e Lebre de Freitas (tratada, por exemplo, em Títulos executivos perpétuos? Ac. do TC 847/2014, de 03/12/2014, anotado por Miguel Teixeira de Sousa, em Cadernos de Direito Privado, n.º 48, OUt/Dez2014; e no post de 26/03/2014 de Lebre de Freitas, publicado no blog do IPPC, Aplicação no tempo do nCPC: títulos executivos forever? (2)), porque ela diz respeito a documentos que ainda não tinham dado entrada no tribunal à data da Lei 41/2013, de 26/06, isto é, ainda não tinham produzido a sua eficácia executiva. Ou seja, esta polémica diz respeito a títulos que já se tinham formado mas que ainda não tinham sido dados à execução, ou seja, à questão da perda da possibilidade de instaurar uma acção executiva, enquanto, no caso dos autos, o título, já formado, já estava dado à execução. Tendo-lhe sido franqueada o acesso ao tribunal, a exequente não pode, depois disso, com base numa lei posterior, ser posta na rua.
E pode-se aproveitar a lição de Teixeira de Sousa sobre a questão (também no post de 25/03/2014, Aplicação no tempo do nCPC: títulos executivos forever? publicado no blog do IPPC), e, parafraseando-o, dizer que, no caso, porque a Lei 31/2012 não impõe a sua retroactividade, ela não retirou carácter executivo a títulos que já tinham produzido a sua eficácia executiva no passado, isto é, não atinge execuções baseadas nos títulos já formados.
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Pelo exposto, revoga-se o despacho recorrido que se substitui por este que determina o regular prosseguimento dos autos, devendo ser proferido pelo tribunal recorrido o despacho necessário se nada mais se opuser a ele.
Custas, apenas na vertente de custas de parte do exequente (já que não existem outras), pela executada, por ser vencida.
Lisboa, 18/10/2018
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto