Insolvência 5757/15.1T80AZ Oliveira Azeméis – 2ª S. Comércio – J1

            Sumário:

                 I. O valor do “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar [art. 239/3b)i) do CIRE] deve ser fixado tendo em conta as circunstâncias do caso concreto (incluindo as concretas despesas necessárias àquele preciso sustento que tiverem ficado provadas).                     

                II. Não havendo prova dessas despesas, pode-se partir, como base, do valor do salário mínimo nacional (para um insolvente), subindo ou diminuindo (excepcionalmente) esse valor face às circunstâncias do caso concreto.

              III. Esse valor não deve ser multiplicado automaticamente pelo número de membros do agregado familiar, dada a existência de economias de escala, devendo antes aplicar-se, como princípio, a ideia de que a um adulto corresponde o factor 1, ao adulto seguinte o factor 0,7 e a um menor o factor de 0,5. O que, no caso, dá, 2,2 salários mínimos nacionais.

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            I apresentou-se, a 04/12/2015, à insolvência pedindo, em simultâneo, a exoneração do passivo restante, alegado para o efeito, em síntese e na parte que ainda importa, que o seu agregado familiar é composto por si e por dois filhos estudantes, embora um já maior; recebe ilíquidos 2200€, mas líquidos (depois de descontos e penhoras) apenas 1000€; e tem despesas com [feitas agora as contas, que a requerente não fez] um valor mensal de 1748,16€. Não propunha nenhum valor como rendimento disponível (a entregar ao fiduciário durante os 5 anos de pendência do pedido) nem do sustento minimamente digno do agregado familiar. Não juntava qualquer prova destes factos [estes dados não constavam deste apenso enviado pelo tribunal recorrido – foram obtidos em consulta da petição no processo electrónico, pedido para o efeito em 21/04/2016].

            O Sr. Administrador da insolvência nada disse de concreto sobre as despesas mensais da requerente. Nem ele nem nenhum dos credores contestou os valores apresentados pela requerente.

            A requerente foi declarada insolvente a 10/12/2015.

            A 12/02/2016, a requerente, dando-se por notificada de um despacho, veio juntar uma série de documentos para prova das despesas invocadas, sendo três deles impressões das deduções provisórias em IRS tiradas do sítio e-factura, um quadro feito pela própria com esses valores e observações da mesma, um outro com as despesas regulares anuais, e 18 facturas/recibos avulsos e de apenas um mês de electricidade, gás, água, comunicações, e de dias variados de talho, frutaria, confeitaria, comboios, supermercado, óptica, explicações e propinas.

            A 18/02/2016 foi admitido liminarmente o pedido de exoneração e determinado que o rendimento da insolvente que ultrapassasse o equivalente a 2 salários mínimos nacionais fosse cedido ao AI que nesse acto se nomeou para exercer as funções de fiduciário.

            A insolvente vem recorrer desta decisão – para que seja substituída por outra que exclua do rendimento disponível o equivalente a 3 salários mínimos nacionais ou pelo menos 2 e meio – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem na parte minimamente útil:

         “[…]

         IV. Verifica-se pelos comprovativos das despesas familiares juntas aos autos, que no total são no valor de 22.835,88€, que dividido por 12 meses dá um total de despesas mensais de 1902€.

          V. O valor atrás indicado já não inclui despesas que não sejam de saúde, alimentares, educação e do agregado familiar, nomeadamente, as extracurriculares e de vestuário, estando estas plasmadas no portal das finanças.

    VI. Pelo que, fixar o rendimento disponível na ordem de dois salários mínimos é manifestamente insuficiente para que a insolvente possa suportar as despesas do seu agregado familiar, obrigando a socorrer-se da ajuda de terceiros para poder manter os seus filhos a estudar.

         VII. Ora o rendimento disponível a fixar pelo tribunal trata-se de uma resposta forçosa e obrigatória às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente e ao seu agregado familiar

         VIII. Na definição da amplitude do rendimento disponível, seja qual for a técnica legislativa utilizada, sempre terá de ficar de fora o rendimento disponível, parte essa suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência.

           IX. Esta exclusão surge como exigência da dignidade humana contido no art. 1 da CRP e a que alude o seu art. 59 a propósito da retribuição de trabalho.

       X. O reconhecimento do princípio da dignidade humana, exige do ordenamento jurídico o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.

       XI. O rendimento designado disponível, é caracterizado como a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor, a norma legal indica tal limite como não podendo exceder 3 vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão judicial fundamentada como deve ser qualquer decisão judicial.

         XII. Partilha aqui a insolvente o acento tónico de que a dita alínea i) no sustento digno do devedor que não se confina com um enquadramento de limites mínimo e máximo desse sustento.

         XIII. Assim, considerando que a insolvente tem a seu cargo dois filhos, um ainda menor, estudante e outro na universidade e que não possui ajuda por parte do progenitor dos mesmos no que concerne às despesas de educação, de saúde e alimentares, uma vez que sempre se furtou às suas obrigações, é manifestamente insuficiente para manter o agregado fixar como disponível o rendimento equivalente a dois salários mínimos.

         XIV. Ora, a insolvente especificou as despesas tidas como mensais, sendo que algumas delas só se verificam uma vez no ano como as propinas do seu filho. 

         XV. As despesas tidas como familiares são em, nomeadamente, supermercado, gás, luz, água, comunicações, vestuário, ainda, especifica a insolvente, que não possuiu comprovativo mas que o seu filho para se fazer deslocar para a faculdade partilha de despesas com um colega e ainda despende em alimentação a quantia de 300€ mensais.

         XVI. E mesmo que retirássemos as despesas com actividades extracurriculares do menor e televisão e internet, mensalmente continuariam a existir uma média de 1900€ de despesas.

         XVII. Ora assim, pelo menos deveria ter sido fixado, como rendimento disponível, 3 vezes o salário mínimo nacional.

         XVIII: E mesmo este rendimento seria insuficiente face às despesas apresentadas e não contestadas.

             […]”

              Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                      *

            Questões que cumpre solucionar: se o valor das despesas fixas mensais devia ter sido fixado em 1902€ e se devia ter sido excluído dos rendimentos a entregar ao fiduciário o valor equivalente a 3 salários mínimos ou pelo menos a 2 e meio.

                                                           *

            Deram-se como provados os seguintes factos:

         […]

         2 – A insolvente é divorciada e vive com os seus dois filhos, um deles menor de idade sendo que o maior ainda estuda.

         3 – É inspectora tributária e aufere um vencimento mensal ilíquido de 2200€.

         4 – O seu ex-marido, apesar de condenado a pagar a pensão de alimentos a favor dos filhos de ambos, nada paga neste momento, aguardando a insolvente que se efective uma penhora já ordenada pelo Tribunal de Família.

         5 – Tem despesas fixas mensais de cerca de 1000€ [a rasura corresponde à eliminação desta parte facto, conforme determinado abaixo].

         6 – Não tem quaisquer bens.

         7 – Estão provisoriamente reconhecidos créditos no montante de 521.623,55€.

         8 – Até à data em que a insolvência foi declarada, o seu vencimento estava penhorado à ordem de uma execução instaurada no ano de 2004.

                                                         *

Da impugnação da decisão da matéria de facto

            Como se pode concluir das conclusões IV, V, XIV, XV e XVI transcritas acima, a recorrente pretende pôr em causa o valor dado como provado das despesas fixas mensais do seu agregado familiar, que foi de 1000€, entendendo ela que o valor correcto é, pelo menos, de 1902€.

            A decisão recorrida invoca como motivação/fundamentação o seguinte: “Os factos acima elencados resultam do teor do relatório apresentado pela AI, do teor dos documentos juntos aos autos pelo devedor, quer com a petição inicial, quer após a assembleia e o CRC também junto aos autos.”

            Trata-se de um lapso. Como já se viu, em lado algum se fala em despesas fixas mensais de 1000€, a requerente não juntava documentos com a petição inicial, do relatório do – e não da – AI nada resulta quanto a essas despesas e dos documentos juntos pela – e não pelo – requerente não é possível tirar, nem aproximadamente, o valor de 1000€ de despesas fixas mensais.

            O facto de o AI e de os credores não impugnarem os valores invocados pela requerente não implica a prova dos mesmos, já que não existe essa cominação no CIRE.

            Os documentos apresentados pela requerente não provam que as despesas em causa sejam multiplicáveis por 12, ou seja, que todos os meses, durante o ano, elas existam e sejam iguais. E quanto aos documentos que se referem às despesas anuais, eles não provam que elas existam todos os anos e sejam iguais em todos eles.

            Quanto às impressões das deduções provisórias em IRS, referem-se a facturas que foram introduzidas no sítio e-factura como despesas gerais e familiares, de educação e saúde, suas e dos seus dois filhos que estão a seu cargo.

            Mas aquilo que a recorrente permitiu que o tribunal visse de tais facturas é apenas o resultado final da introdução delas naquele sistema, não se sabendo a que bens em concreto é que tais facturas dizem respeito, pelo que, do exibido não é possível tirar a conclusão que se reportam a despesas fixas mensais, ou anuais subdividas por 12 meses. Podem parte delas, eventualmente parte significativa, ser apenas despesas ocasionais.

            Para além disso, o facto relativo a despesas fixas mensais tem (nos termos conclusivos como está formulado) implícita a restrição de que são despesas fixas necessárias para o agregado familiar. Ora, dos elementos fornecidos pela recorrente não é possível concluir que as despesas relacionadas com as facturas por si introduzidas sejam despesas necessárias. Podem ser despesas supérfluas.

            Em suma, não é possível, ao contrário do decidido, dar um valor, mesmo que por aproximação, às despesas fixas, isto quer o valor dado de facto – 1000€ – quer o valor que a requerente pretende, de 1902€ mensais, pelo que o valor em concreto deve ser eliminado.

            Mas, por outro lado, é evidente que elas existem. Nenhum agregado familiar (de dois maiores e um menor) vive sem despesas mensais fixas, pelo que essa parte do facto deve manter-se.

                                   *

             Do recurso quanto ao direito

            Do montante necessário para o sustento minimamente digno

            O art. 239/3 do CIRE dispõe, na parte que interessa, que “integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão, […] b) do que seja razoavelmente necessário para: i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.”

            Por isso, essa exclusão traduz-se na fixação de um valor que, quanto maior for, em benefício do devedor, mais vai prejudicar outras pessoas, que são os credores deste. Trata-se, de outra perspectiva, com tal exclusão, de admitir uma situação de incumprimento parcial de uma obrigação, situação que por princípio seria ilícita, já que as obrigações devem ser pontualmente (ponto por ponto) cumpridas (art. 406/1 do Código Civil).

            Assim sendo – isto é, tendo em conta os interesses conflituantes decorrentes do que antecede, sendo que os credores podem ser pessoas que destinam o valor do crédito correspondente ao pagamento do sustento do seu agregado familiar, ou podem ser empresas que têm trabalhadores a quem têm de pagar salários com esse destino -, compreende-se a exigência legal de que o valor a excluir seja apenas do necessário para um sustento minimamente digno e que, salvo circunstâncias fora do normal, não deva exceder o valor de três salários mínimos nacionais.

              Como diz o ac. do TRP de 12/06/2012, 3529/11.1TBVLG-B.P1, citado implicitamente pela decisão recorrida: “A proibição do excesso, na hipótese de fixação do “rendimento indisponível”, olhará, de um lado, às necessidades fundamentais para um sustento minimamente [digno] do devedor e do seu agregado familiar, mas do outro terá em mente a necessária, tanto quanto possível, satisfação dos direitos dos credores (olvidado este escopo do processo falimentar, facilmente a “exoneração do passivo restante” se transformaria num prémio ou na cobertura a uma fraude, como significativamente alude o ac. do TRE de 13/12/2011 CJ.V/263)” [= 2583/10.8-B da base de dados do IGFEJ].

            Não se pretende, pois, que o devedor mantenha o nível de despesas que vinha tendo e, por isso, estas só terão relevo na medida em que se possam identificar com aquelas correspondentes a um sustento minimamente digno

            (neste sentido, por exemplo, vejam-se os acs:

              – do TRL de 02/10/2012, 1594/11.0TBBRR.L1-1: “III. […] o devedor não tem o direito de manter o nível de vida anterior, nem este é um critério a atender na fixação do rendimento disponível. IV- O que releva é o necessário para um sustento minimamente digno, conceito este que não equivale aos padrões de conforto generalizados.”;

              – do TRP de 25/09/2012, 3057/11.5TBGDM-E.P1, que cita vários outros com interesse: “I – No instituto da exoneração do passivo restante está em causa determinar o estritamente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, e não necessariamente manter o nível de vida que tinham antes da declaração de insolvência. A situação de insolvência tem como primeira consequência a impossibilidade de manutenção do anterior nível de vida. [A exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor. Implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos]. […] IV – As despesas têm de ser adequadas às disponibilidades do agregado.”;

              – do TRC de 31/01/2012, 1255/11.0TBVNO-A.C1: “I. No âmbito da exclusão constante do ponto i) da al. b) do n.º 3 do art. 239 do CIRE, não existe qualquer correspondência directa entre o valor a retirar do rendimento disponível para garantir o sustento do devedor e o montante global das despesas por aquele indicadas – a não ser assim, o legislador diria que o valor a fixar deveria corresponder ao montante global das despesas apresentadas e não fixaria um valor máximo. […];

              – do TRG de 14/02/2013, 3267/12.8TBGMR-C.G1: […] II. O insolvente tem de adequar o seu modus vivendi ao estado de insolvência a que está sujeito, não é o estado de insolvência que tem de se adequar ao modus vivendi que o insolvente entenda adoptar. […]”;

              – do TRP de 03/12/2013, 3934/13.9TBMTS-B.P1, e do de 16/09/2014, 1940/12.0TJPRT-D.P1 (citados implicitamente pela decisão recorrida): “o critério legal a atender não pode ser a mera soma contabilística, mesmo que comprovada, das despesas médias mensais do devedor e do seu agregado familiar,  sob pena de podermos cair no paradoxo de nos depararmos com despesas superiores aos rendimentos auferidos.”;

              – do TRC de 17/03/2015, 693/13.9TBFND-D.C1: “O critério decisivo para quantificar o montante de rendimentos a excluir da cessão não é o que os devedores/ /insolventes dizem precisar para o seu sustento; decisivo é o que é indispensável, num plano de normalidade, razoabilidade, comedimento e sobriedade, para um sustento minimamente digno (independentemente do trem de vida que se teve e/ou se aspira a manter.”))

            Assim sendo, as despesas que os requerentes insolventes alegam ter, mesmo que se provem, só têm relevo se dos factos respectivos se puder retirar, sem dúvidas, que essas despesas são as absolutamente indispensáveis a um sustento minimamente digno dos requerentes e dos seus agregados familiares.

            Caso assim não aconteça, isto é, caso não seja possível estabelecer esta correspondência, aquela enumeração das despesas não passa de uma lista das despesas que se tinham e que se desejam manter, não tendo relevo para determinar o valor daquelas a que têm direito manter, como declarados insolventes. 

            Por outro lado, quando a lei [art. 239/3bi) do CIRE] exclui do rendimento disponível que os insolventes têm de entregar ao fiduciário durante o período da cessão, aquilo que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não está a fixar um limite mínimo objectivo que deva ser aplicado em todas as situações, mas sim a impor a fixação da exclusão com ponderação de todas as circunstâncias do caso, entre elas a prova em concreto das despesas que o agregado tem de ter para uma vida minimamente digna.

            Mas para que se possa ter em consideração todas as despesas do agregado familiar, indispensáveis ao sustento minimamente digno desse agregado, há que fazer a alegação e a prova delas.

            Não havendo essa alegação e/ou prova (do montante indispensável), embora esteja provado que elas existem (como não podia deixar de ser), há que recorrer a presunções daquilo que qualquer agregado familiar, do tamanho deste, tem em qualquer caso, para conseguir levar uma vida com um mínimo de dignidade (neste sentido, o ac. do TRP de 19/09/2013, 3123/11.7TBVLG, publicado em outrosacordaostrp.com; o ac. do TRP de 06/03/2012, 1719/11.6TBPNF-D.P1, acolheu a ponderação, em abstracto e por estimativa, de qual o sustento minimamente digno da insolvente e do seu agregado familiar, num caso em que a requerente não tinha alegado nem provado as suas despesas).

            Ora, esse mínimo tem sido normalmente visto no salário mínimo nacional (neste sentido, por último, veja-se o ac. do STJ de 02/02/2016, 3562/14.1T8GMR.G1.S1: IV – Se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deve atender a esse salário mínimo nacional, para no caso concreto, saber a partir dele, o quantum que se deve considerar compatível [com] o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. […]”).

            Isto porque, conforme tem vindo a ser dito pelo Tribunal Constitucional (por exemplo, acórdão 96/2004, de 11/02/2004, publicado no DR, II série, de 04/04/2004): (…) “o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como ‘o mínimo dos mínimos’ não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo” (…)” (no mesmo sentido, o acórdão 318/1999, publicados no sítio do TC na internet; e, por último, o ac. do STJ de 02/02/2016, já citado: V – Em regra, o salário mínimo nacional é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna).

            Embora ele possa, em concreto, ser ultrapassado, quando as circunstâncias, naturalmente excepcionais [como, por exemplo, os próprios in-solventes “confessarem” que têm despesas inferiores], do caso o justificarem (veja-se, no entanto, a defesa de que “o montante equivalente a um salário mínimo nacional deve constituir limite mínimo para a exclusão do rendimento disponível, não devendo nunca, em caso algum, ser fixado quantitativo inferior”, em Raquel Fernandes, O rendimento disponível no âmbito da exoneração do passivo restante, Universidade Católica Portuguesa – Centro Regional do Porto Escola de Direito, Maio de 2014, pág. 42, http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/15893/1/O%20Rendimento%20Dispon%C3%ADvel%20no%20%C3%82mbito-pdf.pdf)

            O regime paralelo dos limites da penhorabilidade das execuções (singulares), pode servir de contraponto, já que a situação de um insolvente que tem dívidas para pagar é, neste aspecto, muito semelhante a um qualquer outro devedor que fosse executado (o processo de insolvência é, grosso modo, uma execução com mais de que um credor) (de algum modo neste sentido, entre muitos outros, com diferentes fundamentações e para vários efeitos, vejam-se, por exemplo, os acs. do TRL de 08/11/2012, 2135/11.5YXLSB-D.L1-6; do TRL de 15/11/2012 289/12.2TJLSB-B.L1-6; do TRL de 16/02/2012, 1613/11.0TBMTJ-D.L1-2; do TRP de 25/09/2012, 3057/11.5TBGDM-E.P1; do TRP de 12/06/2012, 51/12.2TBESP-E.P1; do TRP de 15/09/2011, 692/11.5TBVCD-C.P1; do TRC de 12/03/2013, 1254/12.5TBLRA-F.C1; e, por último, o ac. do STJ de 02/02/2016, já citado: “Não se vislumbra critério equitativo que afaste a ponderação da aplicação da norma processual civil, respeitante à impenhorabilidade ao rendimento disponível, que deve ser deixado ao insolvente requerente da exoneração, para lhe assegurar uma vivência com um mínimo de dignidade”).

            Ora, no art. 738/3 do CPC, a impenhorabilidade de parte dos salários e prestações equivalentes prevista no n.º 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional [ou melhor: retribuição mínima mensal garantida, que é, actualmente (2016) de 530€ (DL 254-A/2015, de 31/12)].

            Logo, aceita-se que deve ser ressalvado um salário mínimo nacional para o sustento minimamente digno de um insolvente, quando não houver prova de despesas concretas com outro valor. Pois que um credor que executasse os insolventes sempre estaria sujeito a tal limite de impenhorabilidade. Embora a ponderação das circunstâncias do caso concreto possa levar a uma exclusão menor ou maior.

            Mas quando se tratar de um agregado familiar, de duas ou mais pessoas, esta ideia tem de sofrer uma adaptação, dadas as inerentes economias de escala, pelo que não [é] pelo facto de um agregado ser composto por três pessoas, que a exclusão deverá ser, automaticamente, o resultado da multiplicação do salário mínimo por três.

            A norma do art. 239/3b)i) do CPC dá relevo ao agregado familiar: o sustento que deve ser garantido é o do “devedor e do seu agregado familiar.”

            Ora, um agregado familiar de duas pessoas não gasta o mesmo que a soma dos gastos de dois indivíduos isolados. Tal como um agregado familiar de três pessoas não gasta o mesmo que a soma de três indivíduos isolados. Há “economias de escala”, no sentido de que “o gasto per capita vai diminuindo à medida que aumenta o número de membros da família” (a definição é retirada do sítio http://www.apfn.com.pt/Noticias/Set2002/economia.htm)

              O conceito das economias de escala é aplicado legalmente, por exemplo no art. 5 do Dec.-Lei 70/2010, de 16/06, no apuramento da capitação dos rendimentos do agregado familiar, em que a ponderação de cada elemento é efectuada de acordo com a escala de equivalência seguinte: 1 + 0,7 + 0,5, respectivamente pelo requerente, por cada indivíduo maior e por cada indivíduo menor (no artigo de Nuno Alves, Novos factos sobre a pobreza em Portugal, publicado no Boletim económico do Banco de Portugal, primavera de 2009, utiliza-se a escala de equivalência modificada da OCDE, que atribui um peso de 1.0 ao primeiro adulto do agregado familiar, 0.5 aos restantes adultos e 0.3 a cada criança (com menos de 15 anos) http://www.bportugal.pt/pt-PT/BdP%20Publicaes%20de%20Investigao/AB200902_p.pdf, mas as condições económicas em Portugal são piores do a média da OCDE e os gastos repartem-se de outra forma).

              (no sentido da aplicação desta ponderação vão: o ac. do TRC de 12/03/2013, 1254/12.5TBLRA-F.C1, o já citado ac. do TRP de 19/09/2013, 3123/11.7TBVLG, e o ac. do TRG de 08/01/2015, 1980/14.4TBGMR-E.G1; no ac. do TRG, de 14/01/2016, 218/10.8TBMNC.G1, aceitou-se a fixação, pela 1ª instância, do valor de 1,75 SMN por cada um dos insolventes, mas o agregado familiar era ainda composto por três filhos, um deles maior, estudante, o que corresponde quase à aplicação do que antecede: 1 + 0,7 + 0,7 + 0,5 + 0,5 = 3,4 SMN. O ac. do TRL de 16/02/2012, 1613/11.0TBMTJ-D.L1-2, fixou em 1,5 SMN o rendimento indisponível de um agregado com uma insolvente e filha menor)

            Assim, um agregado familiar de dois adultos e um menor não precisa, para o seu sustento minimamente digno, do valor equivalente a três salários mínimos nacionais, mas, aplicando o critério daquele DL 70/2010, de 1 + 0,7 + 0,5 salários mínimos nacionais, ou seja, 2,2 SMN, isto é, hoje, de 530€ x 2,2 = 1166€.

            Note-se que a situação é diferente do caso do ac. do STJ de 02/02/2016, já citado, em que se entendeu que devia ser atribuído um salário mínimo nacional a cada um dos insolventes conviventes. Ou seja, cada um dos membros do agregado familiar era insolvente, o que não é o caso dos autos em que só há um insolvente, sendo os outros dois membros dependentes daquele. Por isso, naquele acórdão do STJ utiliza-se o argumento de que “se por cada um d[os insolventes] fosse requerida autonomamente a exoneração, lhes deveria seria assegurado esse valor, não sendo justo nem equitativo que, fazendo-o conjuntamente, seja atribuída aos dois a mesma quantia”, argumento que não pode ser utilizado aqui. Seja como for, atento o que se disse atrás, acha-se antes correcto o ac. do TRL de 17/12/2014, 3065/14.4TBSXL-D.L1-2 que, mesmo no caso de dois insolventes, não atribui dois SMN, dizendo que: II – O apuramento do montante a excluir pressupõe sempre uma ponderação casuística por parte do juiz III – Tal operação arreda a salvaguarda sistemática do valor correspondente a um SMN, e designadamente por cabeça do agregado familiar, como o necessário ao sustento minimamente digno do devedor.”; o mesmo fez o TRC de 31/01/2012, 3638/10.4TJCBR-G.C1. Por outro lado, repare-se que o ac. do TRL de 19/12/2013, 726/13.9TJLSB-C.L1-7, fixou em dois SMN o rendimento indisponível, um por cada um dos insolventes, mas o agregado familiar era composto de 4 pessoas (os insolventes e duas filhas menores); ora, sendo este o acórdão-fundamento referido pelo ac. do STJ, este ponto não foi tida em conta pelo STJ.

            Posto isto, conclui-se que, naquela medida (1 + 0,7 + 0,5), mas apenas nela, é procedente o recurso da requerente, já que a reserva de apenas 2 salários mínimos deve ser considerada (embora em estimativa abstracta), insuficiente para o sustento digno de dois adultos e um menor.

                                                       *

            Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, alterando-se a decisão recorrida de modo a fixar em 2,2 salários mínimos nacionais (por ora igual a 1166€) o valor do sustento do agregado familiar (composto por três indivíduos) da insolvente, isto é, aquele que fica excluído do rendimento disponível a ceder ao fiduciário.

            Custas pela insolvente e pela massa na proporção do decaimento.

            Porto, 05/05/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto