Processo do Juízo Central Cível de Cascais

              Sumário:

           Transitada em julgada uma decisão da não admissão das declarações de parte do autor, não é pelo facto de este fazer novo requerimento de prestação de declarações de parte, desta vez com a observância de um requisito legal que faltaria no anterior, que se altera o objecto da questão que já está decidida.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

           A terminar a sua petição inicial, o autor fez o seguinte requerimento de prova, na parte que interessa: “Requer declarações de parte do autor, nos termos do artigo 466/1 do CPC.”

         Na audiência prévia que teve lugar a 08/03/2019 e onde se encontravam presentes os mandatários das partes, foi entre o mais proferido o seguinte despacho:

          O autor veio requerer a prestação das suas declarações de parte, ao abrigo do disposto no art. 466 do CPC.

          Estabelece este preceito que:

            1. As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo.

            2. Às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417 e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.

           3. O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.”

         E o art. 452/2 (ex vi do nº 2 do acima citado preceito) dispõe que:

          Quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há-de recair.

         Verifica-se que o autor não cumpriu o ónus de indicação especificada dos factos sobre os quais deveria recair o meio de prova que requereu, conforme exigido pelos citados artigos 452/2, ex vi do art. 466/2. [A consequência de t]al incumprimento do ónus processual é a preclusão (neste sentido ver, entre outros, ac.  do TRG de 21/05/2013, in http://www.dgsi.pt).

         Pelo exposto, não se admite a prestação de declarações de parte do autor.

           Na audiência final de 08/09/2020, o mandatário do autor pediu a palavra e requereu “a prestação de declarações de parte à matéria constante dos artigos 1 a 65 da PI, nas quais o autor teve intervenção e conhecimento directo, o que faz ao abrigo do art. 466 do CPC.”

                O requerimento foi indeferido, dizendo-se que:

         “[…T]al pretensão já havia sido objecto do despacho proferido em audiência prévia dia 08/03/2019, tendo tal pretensão sido indeferida.

         Pese embora as requeridas declarações de parte possam ser deduzidas até ao início das alegações orais em 1.ª instância, conforme dispõe o art. 466/1 do CPC, a verdade é que o tribunal já se pronunciou expressamente sobre a tal pretensão, pelo que ao abrigo do disposto no art. 613/1-3 do CPC, encontra-se esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto ao requerido. […]”

              O autor recorre de tal despacho, para que seja revogado e substituído por outro que admita a prestação de declarações de parte, alegando, em síntese, que:

         Reconhece-se naturalmente que o despacho proferido em sede de audiência prévia transitou em julgado por não ter sido objecto de recurso. No entanto, tal despacho incidiu apenas sobre o requerimento então apresentado pelo autor, indeferindo-o por razões formais (não especificação dos factos relativamente aos quais o autor deveria depor), e não por razões substanciais (o que sucederia se, por exemplo, o autor tivesse requerido a prestação de declarações de parte sobre factos relativamente aos quais, manifestamente, não tivesse conhecimento directo), pelo que, numa correcta interpretação e aplicação do disposto no art. 613/1-3 do CPC, o caso julgado formado por esse despacho apenas pode abranger o respectivo âmbito, ou seja, única e exclusivamente o indeferimento daquele concreto requerimento, por falta de especificação dos factos sobre os quais incidiriam as declarações de parte do autor.

         Só haveria uma repetição do requerimento de declarações de parte se o autor tivesse visto indeferida a sua pretensão de prestar declarações de parte sobre determinados factos concretos, e apresentasse novo requerimento com vista à prestação de declarações de parte sobre os mesmos factos relativamente aos quais o tribunal já tivesse decidido que tais declarações não seriam admissíveis.

         Refira-se que, no caso concreto, a prestação das declarações de parte requeridas pelo autor é um meio de prova essencial à boa decisão da causa, tendo em conta que, como resulta do alegado na petição inicial, o autor teve intervenção directa e participação em todos os factos alegados nesse articulado e na causa de pedir, uma vez que está essencialmente em causa nestes autos um acordo verbal celebrado entre o autor e a sua mãe e irmãos, bem como o trabalho/diligências e inerentes custos/despesas incorridos pelo autor, tudo no âmbito da defesa de património familiar.

              A ré não contra-alegou, tal como não se tinha oposto ao requerido pelo autor.

              Questões que importa decidir: se o requerimento do autor devia ter sido deferido.

              Os factos que importam a esta decisão são apenas as posições processuais descritas acima.

               Decidindo:

              O despacho de indeferimento de 08/03/2019 transitou em julgado (art. 628 do CPC): foi notificado ao autor – já que o seu mandatário se encontrava presente (art. 638/3 do CPC) – e o autor dele não recorreu.

              Esta conclusão não é posta em causa pelo autor.

            Ora, a decisão em causa o que diz é que, no momento em que é decidido o requerimento de prestações de declarações, têm de estar indicados os factos objecto dessas declarações.

            Se fosse permitido à parte, depois do trânsito em julgado, formular novo requerimento, desta vez já com a indicação dos factos e fosse proferida nova decisão, desta vez em sentido contrário, estar-se-ia a dizer que afinal aquela decisão estava errada, que os factos podiam ser indicados noutro momento. O que é suficiente para confirmar que o objecto da questão é o mesmo e que não pode ser proferido nova decisão sobre ele, agora em sentido contrário, sob pena de violação do caso julgado.

              Por fim, a essencialidade, no caso, de tal meio de prova não é fundamento para alterar o decidido. O despacho que não admitiu a produção de um determinado meio de prova, não passa a estar errado, apenas porque o elemento de prova em causa possa ou não ser essencial.

              E o autor só dele se pode queixar, se tal for o caso, pois que, das duas, uma: ou o despacho (de 08/03/2019) que indeferiu o requerimento estava errado e então o erro foi do autor em não ter recorrido, ou o despacho não estava errado e o erro continua a ser do autor, porque ao requerer as prestações da parte não cumpriu a norma legal invocada naquele despacho.

              Em suma, mesmo que o tribunal de 1.ª instância quisesse admitir a prestação de declarações, pelas razões materiais invocadas pelo autor, não o poderia fazer, pois que estaria a violar um caso julgado.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Custas, na vertente de custas de parte (não há outras), pelo autor (que é quem perde o recurso).

              Lisboa, 11/03/2021

              Pedro Martins

              2.ª Adjunta

              1.ª Adjunta, com a seguinte

Declaração de voto

            Voto a decisão, embora não acompanhe inteiramente a fundamentação do acórdão e entenda que se justificam algumas considerações adicionais.

              No despacho proferido na audiência prévia (em 08-03-2019), que indeferiu a prestação de declarações de parte pelo Autor, justificou-se o decidido com o argumento de que o A. não cumpriu o ónus de indicação especificada dos factos sobre os quais deveria recair o meio de prova que requereu, conforme exigido pelos citados artºs 452º, nº 2, ex vi do artº 466º, nº 2. Tal incumprimento do ónus processual é a preclusão (neste sentido v., entre outros, ac.RG de 21-05-2013, in http://www.dgsi.pt)”. Salvo o devido respeito por opinião contrária, considero não ser claro – devido à sucinta fundamentação do despacho – por que motivo se considerou não ter sido cumprido esse “ónus de indicação especificada dos factos”, designadamente:

            i) se o foi por se ter entendido que nenhuma matéria de facto havia sido indicada, como inculcam as afirmações feitas no acórdão “Se fosse permitido à parte, depois do trânsito em julgado, formular novo requerimento, desta vez já com a indicação dos factos” e que “a decisão em causa (isto é, o despacho de 08-03-2019) o que diz é que, no momento em que é decidido o requerimento de prestações de declarações, têm de estar indicados os factos objecto dessas declarações”;

                  ou, ii), se o foi por se entendido que abrangeria toda a matéria de facto alegada na Petição Inicial.

           Procurando interpretar o referido despacho (segundo as regras de interpretação dos negócios jurídicos formais), considero ter sido a última hipótese indicada, ou seja: o Autor pretendia prestar declarações de parte a toda a matéria alegada na Petição Inicial (é o que faz mais sentido, considerando até que se trata de requerimento feito nesse articulado) e o Tribunal entendeu isso mesmo, tanto assim que citou, em abono da sua posição, o acórdão do TRG de 21-05-2013, que foi (acrescente-se) proferido no processo n.º 2629/11.2TBBCL-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt, cujo sumário tem o seguinte teor: «É legalmente admissível o indeferimento do requerimento em que o autor pede o depoimento de parte da ré a toda a matéria dos factos constantes da base instrutória ”a que o seu depoimento é admissível”, sem que exista o dever legal por parte do tribunal de efectuar convite para o respectivo aperfeiçoamento».

               Portanto, o que o Autor claramente não fez na Petição Inicial – e justificou o indeferimento do aí requerido – foi uma especificação dos factos sobre os quais pretendia ser ouvido em declarações de parte.

            De salientar que tal peça processual contém precisamente 65 artigos com a alegação de matéria de facto, sendo os restantes dedicados às razões de direito (os artigos 66.º a 99.º são mesmo antecedidos da menção “II. Do Direito”).

                Assim, na audiência de julgamento, ao requerer a prestação de declarações de parte “à matéria constante dos art. 1º a 65º da Pl, nas quais o autor teve intervenção e conhecimento direto”, o Autor estava, na verdade, a reiterar/repetir o anterior requerimento, que já havia sido indeferido, continuando, no fundo, a fazer uma indicação genérica dos factos sobre os quais pretendia ser ouvido, sem qualquer critério (como é particularmente evidente até porque certos factos apenas podiam ser provados por documento e os próprios Réus haviam alertado para isso nas suas Contestações).

             Logo, ainda que se possa discordar da posição sufragada no primeiro despacho (desalinhada da jurisprudência dominante de que são exemplos os acórdãos do TRG de 12-03-2015, proc. 1286/11.TBEPS-B.G1, e 03-04-2014, proc. 3310/13.3TBBRG.G1, e do TRP de 21-11-2019, proc. 29903/15.6T8PRT-F.P1) impõe-se aqui respeitar o caso julgado formal (art. 620.º do CPC).

              Por outro lado, embora podendo ser oficiosamente determinada a prestação de declarações de parte pelo Autor sobre factos relevantes para a boa decisão da causa, nada indica que a mesma se mostra, no caso dos autos, necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio (cf. artigos 411.º e 452.º, n.º 1, do CPC).