Embargos de executado 175/14.1T8LOU-A

Porto – 1ª Secção de execução – J9

 

            Sumário:

I. Os avalistas que assinaram uma letra em branco (emitida incompleta) podem opor ao sacador-portador da letra que os accione o facto de ela ter sido completada contrariamente aos acordos realizados (≈ o preenchimento abusivo) – art. 10 da LULL -, mesmo que não sejam partes no pacto de preenchimento entre o avalizado e o portador nem estejam em relações imediatas com o portador.

II. Terão, no entanto, de alegar que a letra foi completada pelo sacador-portador em desconformidade com os acordos realizados (e por isso, nessa medida, poderão invocar e discutir a relação fundamental) e se o conseguirem provar daí decorrerá quase sempre que o sacador-portador estará de má fé ou, quando assim não seja, que terá incorrido em falta grave, verificando-se então, os dois pressupostos de que o art. 10 da LULL faz depender a invocação da excepção de preenchimento desconforme pelo subscritor em branco.

III. Se os avalistas embargantes nem sequer invocaram acordos para o preenchimento da letra em branco, não se pode dizer invocada a matéria da excepção do preenchimento contrário aos acordos, pelo que o juiz não deve convidar os embargantes a aperfeiçoarem o articulado de oposição à execução de modo a alegaram esses acordos, porque tal se traduziria na introdução de excepções que não tinham sido deduzidas pelas partes (art. 5/1 do CPC)

IV. Uma letra em branco não é uma letra à vista.

V. No que toca à letra em branco, “o prazo prescricional fixado pelo art. 70 da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento.

VI. “A letra só surge, como título cambiário, com o preenchimento (art. 2/1). Mas é natural que retroaja ao momento do saque, ou à data que da letra conste como aquela em que foi passada (art. 1/7). Porém, se essa mesma data foi deixada em branco pelo detentor, é a data que vier a ser preenchida que deve considerar-se a data da letra.”

VII. “Nas hipóteses de subscrição em branco, a obrigação cambiária não se forma de golpe mas através de um processo cuja primeira etapa – necessária, se bem que insuficiente – consiste na assinatura do título. […] A ratio do instituto da representação orgânica exige que se destaque, para efeitos da sua aplicação, aquele estágio inicial da fattispecie complexa.”

VIII. “O avalista, quando é demandado pelo portador do título que foi contraparte imediata do avalizado no plano extra-cambiário (isto é, seu credor fundamental), [não] se pode escudar em meios de defesa próprios do avalizado, [entre eles os] relativos à […] própria subscrição cambiária do avalizado (v.g., incapacidade, vício da vontade, falsidade da assinatura)”

IX. A data de 11/06/2014 não é uma data impossível.

X. São os embargantes que têm de alegar e provar a inexistência da relação subjacente à relação cambiária.

XI. Se os avalistas não são parte na relação fundamental (entre o credor/sacador e o devedor/avalizado) não podem opor ao sacador/portador que os executa, as excepções que respeitam à relação fundamental (que é para eles uma relação a que são estranhos) – art. 406/2 do CC e parte final do art. 32/II da LULL (por maioria de razão).

XII. O credor/autor/exequente que exige o cumprimento de uma obrigação, tem o ónus de alegação do não cumprimento (nem que seja implicitamente, para evitar a inconcludência do pedido), mas daí não decorre que também tenha o ónus da prova desse não cumprimento. É ao devedor/réu/executado que cabe o ónus de alegar e provar o cumprimento da obrigação.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

              J, Lda, requereu, em 24/09/2014, a execução de uma letra de câmbio, de 40.000€, contra D, Lda, M e J.

            Os dois últimos executados deduziram oposição à execução por embargos alegando, em suma, o seguinte (faz-se uma síntese muito ampla, de modo a reproduzir quase totalmente, embora sem repetições, a petição de embargos, para se poderem apreciar as questões processuais colocadas mais à frente):

Admitem terem assinado, no verso, a letra dada à execução, mas não admitem, pelo que impugnam expressamente, que tal assinatura tenha sido aposta na data nela indicada como tendo sido a respectiva data de emissão, e que o tenham feito, como nele – título – constando a data de vencimento como sendo em 30/06/2014, pela simples razão, como se demonstrará, que tal era … praticamente impossível!

A exequente foi, efectivamente, durante algum tempo, fornecedora de mercadorias do seu comércio à sociedade executada não sabendo os embargantes em que período, mas, no máximo, até meados ou perto do final de 2011, já que a sociedade executada não tem qualquer actividade no máximo desde o início de 2012, tendo sido declarada insolvente por sentença de data que registada na competente conservatória em 02/02/2012.

Os embargantes, não sendo, nem tendo sido, gerentes da sociedade executada, desconhecem, naturalmente, que fornecimentos foram feitos, quais os respectivos montantes, que facturas foram emitidas e se as mesmas foram pagas, o que equivale a impugnarem – art. 574/3 do CPC – os factos invocados sob os nºs 2 a 5 do requerimento executivo, excepto quanto ao que retro se afirmou quanto à sua assinatura na letra em causa.

Os embargantes admitem ter prestado o seu aval à sociedade executada, mas nunca em data posterior a meados/finais de 2011, provavelmente numa letra de câmbio em branco quanto à respectiva data de emissão e vencimento e que, tendo em conta o alegado no requerimento executivo, terá sido entregue, pelo representante da sociedade executada para pagamento das mercadorias fornecidas.

Tendo assinado uma letra em branco quanto à data de emissão e vencimento, a mesma deve ser considerada uma letra à vista (arts 2 e 33 da lei uniforme sobre letras e livranças), a qual, como tal, deve ser apresentada a pagamento dentro do prazo de um ano a contar da sua data – art. 34 LULL.

À letra não pode ter sido fixada como data de vencimento a de 30/06/2014.

Tendo sido emitida, em branco, algures em 2010 ou 2011, deveria ter sido apresentada a pagamento, no máximo, até final de 2012, o que nunca aconteceu.

Não podendo o título em causa produzir efeitos como letra de câmbio – art. 2 LULL – numa palavra, não podendo o referido título ser considerado título executivo – art. 703c) do CPC.

Constituindo a inexequibilidade do título um dos fundamentos legais de oposição à execução – art. 729/a) do CPC – excepção que expressamente se invoca.

Concluindo que a letra foi emitida e, sobretudo, se venceu em data anterior a Setembro de 2011, como acreditam os embargantes que aconteceu – constata-se que a mesma se encontra prescrita, excepção que expressamente se invoca – art. 70 da LULL, e que igualmente constitui fundamento de oposição à execução, nos termos do disposto no art. 729g) do CPC.

Os embargantes não sabem, também, se a exequente, eventualmente, reclamou, ou não, o respectivo crédito no processo de insolvência da executada, bem como qual o montante do crédito reclamado ou reconhecido pelo administrador de insolvência. Por isso, e sem prejuízo de tentar apurar estes factos, os embargantes impugnam tal matéria fáctica, designadamente quanto ao valor em dívida. A incerteza e a iliquidez da obrigação exequenda constituem, também, fundamentos de oposição à execução, nos termos do disposto no art. 729/e) do CPC, os quais aqui expressamente se invocam.

A exequente sabe perfeitamente, e não pode desconhecer, quando a letra de câmbio em causa lhe terá sido entregue e qual era a data de vencimento respectiva, se é que a havia. Ao apor como data de emissão a de 11/06/2014 e de vencimento a de 30/06/2014 – ou seja, 19 dias depois e 2 anos após a declaração de insolvência da executada – sabia que estava a falsear um título e a inscrever algo que não correspondia à verdade. Ainda por cima quando a executada já não tinha qualquer actividade e havia sido declarada insolvente, mais de 2 anos antes! A exequente deduziu, pois, pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterando a verdade dos factos e feito do processo um uso manifestamente reprovável.

            A exequente contestou, dizendo que (transcreve-se na parte útil e mantendo a construção da exequente):

         É uma sociedade por quotas que se dedica à venda de madeiras, aglomerados e derivados que no âmbito da actividade que desenvolve manteve relações comerciais com a sociedade executada e sempre com a gerência dos embargantes; a letra foi-lhe entregue pela sociedade executada, avalizada livremente pelos embargantes; chegada a data de vencimento, a executada [sic – a exequente está-se a referir à sociedade executada] não pagou o valor, e os avalistas, ora executados, também não liquidaram qualquer valor; a lei admite e reconhece a figura da letra em aval [sic – a exequente quis escrever ‘em branco’], a qual preenchida antes da apresentação a pagamento, passa a produzir todos os efeitos próprios da livrança, vide art. 10 LULL; a obrigação do avalista é autónoma e independente do avalizado; a garantia prestada pelos avalistas assumem caracter objectivo, responde como obrigado directo ou de regresso consoante a obrigação do avalizado; a responsabilidade dos aqui oponentes, em extensão e contendo, afere-se pelo avalizado, nos termos do art. 32 da LULL; a letra foi entregue à exequente em 2014 para pagamento dos valores em débito pela sociedade executada; impugna a sua alegada má-fé.

            No saneador julgaram-se improcedentes os embargos.

            Os embargantes recorrem deste saneador-sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

a) A oposição à execução constitui, simultaneamente, uma contra-acção do devedor à acção executiva do credor e uma contestação ao requerimento executivo deste;

b) A invocação e prova da existência de um pacto de preenchimento da letra, e respectivo preenchimento abusivo, que em princípio caberia aos embargantes, só fará sentido se tal documento existir o que, no caso dos autos, e conforme (não) alegado por estes na pi de embargos, ou só implicitamente alegado, não aconteceu.

c) A letra dada à execução, entregue em branco em data anterior à insolvência da aceitante – facto dado como provado – não poderá deixar de ser uma letra em branco, pagável à vista, e como tal, devendo ser apresentada a pagamento no prazo de um ano, a contar da sua data de emissão, nos termos do art. 34 da LULL.

d) No que respeita à letra dada à execução constata-se que a data nela inscrita como “data de emissão” se apresenta como impossível, pois naquela data a aceitante não a poderia ter emitido, por falta de capacidade jurídica e poderes de representação por parte de quem a obrigou no título (arts 1174 CC e 34 LULL);

e) Por isso, sendo impossível que a mesma letra tenha sido emitida em 17/06/2014, o referido título enferma de nulidade, nos termos dos arts 1, 2, 75 e 76 da LULL, por impossibilidade objectiva de ter sido esse o dia da data de emissão da letra, conforme, aliás, invocado nos nºs 18 e 19 da pi de embargos.

f) Nesta conformidade, e por tudo o até aqui exposto, o título dado à execução é inexequível, constituindo tal facto fundamento de oposição à execução (art. 729a do CPC);

g) Tendo sido emitida antes de 02/02/2012, em branco, a letra em causa deveria ter sido apresentada a pagamento no prazo de um ano contado dessa data de emissão, dado tratar-se de uma letra à vista, nos termos aliás já invocados (art. 34 LULL);

h) Assim sendo, a obrigação dos embargantes encontrava-se, à data de interposição da acção executiva, prescrita, nos termos do disposto no art. 70 da LULL;

i) Ainda que se admitisse – por mera hipótese académica em que não se concede – que se poderá considerar que a data de emissão da letra não foi apurada, ainda que em data anterior a 02/02/2012, e que o prazo de prescrição é de 3 anos, então haveria que apurar, em sede de julgamento, qual a data efectiva de emissão da letra, a fim de se contar o referido prazo de prescrição, o que impediria uma decisão, nesta fase, do mérito da causa;

j) Como já referido nesta peça, os embargos de executado são uma contra-acção do executado, mas, ao mesmo tempo, uma contestação à acção executiva interposta pelo exequente, cuja petição inicial é composta pelo requerimento executivo.

k) Por isso, o ónus dos embargantes é, quanto à questão de se saber se a dívida exequenda existia, não um “ónus de alegação”, mas um “ónus de impugnação”, que deve obedecer ao disposto no art. 574 do CPC.

l) Perante a invocação feita pela exequente, no requerimento executivo, de que a executada devia o montante da letra derivado do fornecimento de mercadorias e que os avalistas não tinham pago tal montante, bastaria a estes impugnar tais factos da forma que o fizeram na p.i. de embargos, que ultrapassou a mera alegação genérica, para que os mesmos se considerassem controvertidos e sujeitos a prova posterior;

m) De facto, o referido “ónus de impugnação” não poderá deixar de se satisfazer com uma alegação genérica, nesta fase processual, de desconhecimento da dívida ou do respectivo montante, uma vez que, não sendo – como nunca foram – os embargantes gerentes da sociedade avalizada, tais factos não são pessoais ou de que devam ter conhecimento, pelo que, nos termos do art. 574/3 do CPC, tal alegação será suficiente para que os factos em causa se considerem controvertidos, carecendo de prova em momento ulterior.

n) Daí que a obrigação exequenda seja incerta e ilíquida, constituindo tais factos fundamento de oposição à execução (art. 729e do CPC);

o) Tendo em conta os princípios da gestão processual e da busca da verdade material que actualmente enformam o novo processo civil português, deveria o juiz a quo ter convidado os embargantes a apresentar nova p.i. onde melhor fossem esclarecidas as questões relativas ao preenchimento abusivo da letra e da inexistência da dívida exequenda (art. 590/4 do CPC);

p) Porém, esta seria a “última solução”, uma vez que havia matéria factual controvertida que carecia de produção de prova em audiência de julgamento;

q) Não o tendo feito, e constituindo tal acto um “dever” do juiz, enferma a sentença recorrida do vício de nulidade (art. 615/1d do CPC).

r) Face a tudo quanto se invocou a sentença recorrida violou os arts 1, 2, 34, 70, 75 e 76 da LULL; 286 e 342 do CC e 574/3 e 590/4 do CPC.

            A exequente não contra-alegou.

                            *

            Questões a decidir: se os embargos não deviam ter sido julgados improcedentes logo no despacho saneador.

                                                       *

            Os factos provados que interessam a tais questões são os seguintes:

1. A presente execução tem como título executivo uma letra de câmbio, aceite pela sociedade executada e avalizada pelos embargantes, no valor de 40.000€ (constante a fls. 13 dos autos principais, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

2. Na letra consta o seguinte:

a) o número 500658277080001793 e a importância nela inscrita é de 40.000€;

b) o sacador é a exequente;

c) no lugar do aceite consta o nome da sociedade executada, estando aposta uma assinatura de C sob as palavras “A Gerência”;

d) no lugar do local e data de emissão consta “X, 2014/06/11”;

e) no lugar do vencimento consta “2014/06/30”;

f) no lugar do valor consta a expressão “transacção comercial”;

g) no verso da letra, e por baixo da expressão ”por aval ao subscritor” constam, pelo menos, as assinaturas dos embargantes;

3. A referida letra foi entregue à exequente assinada e avalizada em branco, antes da declaração de insolvência da sociedade executada, tendo todos os seus elementos, incluindo o montante, a data de emissão e vencimento, sido preenchidos posteriormente.

4. A sociedade executada foi declarada insolvente por decisão transitada em julgado, registada na competente Conservatória em 02/02/2012.

I

Do ónus de alegação do pacto de preenchimento

Conclusões a) e b)

            Não tem havido qualquer discussão, quer na doutrina quer na jurisprudência, quanto ao entendimento de que cabe àqueles que forem executados com base numa letra de câmbio emitida incompleta, alegar e provar, na oposição à execução, o pacto de preenchimento e a sua violação (o que o saneador-sentença demonstra, quanto à jurisprudência, com a invocação de vários acórdãos; no mesmo sentido, Lebre de Freitas, A acção executiva…, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 206/207, refere, como correctos, vários acórdãos em que se decidiu que o ónus da prova do preenchimento abusivo da letra é do executado; vários outros podem ver-se em Carolina Cunha, Letras e livranças…, Almedina, 2012, pág. 580, na nota 147).

            Ou melhor, tendo em conta a norma que está em causa, que é o art. 10 da LULL, é aos embargantes que cabe o ónus da alegação e prova de que a letra emitida incompleta foi completada contrariamente aos acordos realizados (para além do pressuposto da má fé ou da culpa grave também previsto naquele artigo).

            O que passa logicamente por demonstrar a existência dos acordos realizados, isto é, do seu conteúdo.

            Assim, por exemplo, Lebre de Freitas diz que o ónus da prova do conteúdo do pacto de preenchimento cabe ao executado embargante (obra citada, pág. 207, nota 31).

            Também Carolina Cunha diz que “[a] prova que incumbe ao devedor diz, portanto, respeito ao conteúdo da convenção extra-cartular” (obra citada, pág. 284).

            E mais à frente esta autora desenvolve a afirmação: “Em termos processuais, é ao subscritor (em branco) demandado que cabe fazer a prova quer da desconformidade (entre o conteúdo inserido no título e a von­tade por si manifestada), quer da má fé ou falta grave do portador. Só logrando demonstrar estes dois pressupostos conseguirá repelir a pretensão correspon­dente ao conteúdo inscrito no título […], já que a formulação do art. 10 determina que, de outro modo, «não pode a inobservância» da vontade manifestada pelo subscritor «ser motivo de oposição ao portador». Assim, é unâ­nime, na doutrina e na jurisprudência, a afirmação de que o ónus da prova cabe ao devedor demandado.” (obra citada, pág. 580; e também nota 148 da pág. 581).

            O que também resulta pura e simplesmente do facto de que a assinatura de uma letra em branco pelos avalistas que a entregam ao avalizado, pressupõe, logicamente, a existência de um acordo para o preenchimento da letra, o que também é referido pelo saneador sentença, que nesta parte também remete para Carolina Cunha.

            “O sujeito que avaliza ainda em branco o título que sabe destinado a suportar a obrigação cambiária do avalizado a quem sem mais entrega o documento assinado, está, segundo os cânones hermenêuticos vigentes no nosso ordenamento jurídico, a manifestar a vontade de que o preenchimento se faça nos mesmos termos que vierem a vigorar para a concretização da obrigação cambiária do avalizado; nem mais nem menos.” (Carolina Cunha, obra citada, pág. 588; corrigiu-se, em itálico, o lapso de se ter escrito avalista, como se pode confirmar nas págs. 590 e 591).

            E mais à frente (obra citada, págs. 620/621):

  “[…] ressalvadas as hipóteses de incompletude proveniente de lapso, parece-nos que haverá sempre pelo menos um acordo tácito das partes quanto aos termos do preenchimento [“os termos em que o completamento deve vir a ser efectuado (…) podem, ainda, “resultar implicitamente do pró­prio contrato que dá origem à letra, isto é, da relação jurídica fundamental”, hipótese em que o acordo de preenchimento será tácito], hermenêuticamente extraível do contexto negocial mais vasto em que a subscrição e entrega do título se inserem.

            Não quer isto dizer que, na prática, não surjam dificuldades relacionadas com a reconstrução ou comprovação dos termos desse acordo. Em última análise, tais dificul­dades resolvem-se por intermédio das regras relativas ao ónus da prova. Nunca é demais recordar que, em sede de art. 10 LU, nos movemos no interior de um conflito aberto: cabe ao subscritor em branco demonstrar o quid com o qual o preenchimento é desconforme. Por conseguinte, se não lograr reconstruir em juízo os termos do acordo de preenchimento, o credor será admitido a exercer o seu direito cartular tal como o título o documenta.”

            Sendo que no caso em que os subscritores em branco são, para além do avalizado, os avalistas (a dupla subscrição em branco de que fala Carolina Cunha) e estes não chegam a ter contacto com o credor/sacador/portador, “a reconstrução hermenêutica da vontade manifestada pelo primeiro aponta […] para que o título venha a ser preenchido e a sua declaração negocial completada nos exactos termos utilizados para deter­minar a obrigação cambiária do avalizado. Portanto, o acordo de preenchi­mento relevante, isto é, aquele por referência ao qual se há-de apurar se houve preenchimento desconforme em face do avalista, é o celebrado entre o credor e o ava­lizado.”

                 Em suma, os embargantes não têm razão ao pretender que cabia à exequente fazer a prova da existência de um acordo de preenchimento da letra, para que só então eles, embargantes, tivessem que fazer prova do preenchimento em desconformidade com esse acordo.

                                  II

            Para a questão do preenchimento desconforme (art. 10 da LULL) não interessa a existência ou inexistência de relações imediatas

            Como resulta do que antecede e também directamente do art. 10 da LULL, a oponibilidade da violação dos acordos não depende de os embargantes estarem em relações imediatas com exequente portador da letra.

            O que se esclarece porque a jurisprudência costuma exigir ou pressupor a existência dessas relações imediatas para permitir a oponibili-dade, como por exemplo se vê nos acórdãos citados pelo saneador-sentença.

            Veja-se:

            Se A (a exequente) sacou uma letra em branco contra B (sociedade executada) para garantia do pagamento do valor que B viesse a ficar em dívida para com ele no decurso de uma dada relação contratual e a seguir B vai ter com C e D a pedir-lhes a aposição de um aval para garantia do pagamento da letra a A, e aqueles acedem, assinando como avalistas e entregando a letra (que continua incompleta) a B que a vai entregar a A, aqueles C e D não estão em relações imediatas com A, nem por via da relação extra-cartular que estabeleceram apenas com B, nem por via da relação fundamental que existe apenas entre A e B. O facto de A e B estarem em relações imediatas não quer dizer que C e D, avalistas de B, também estejam em relações imediatas com A. E se C e D entregam a B a letra em branco (excepto quanto às assinaturas…), presume-se que eles aceitam que B convencione com A o modo de ela vir a ser preenchida ou que A o faça do modo como já tiver combinado com B. E neste caso eles também não fazem parte do pacto de preenchimento entre A e B (sendo apenas partes numa convenção extra-cartular com B). Nesta hipótese, está-se perante a dupla subscrição em branco de que fala Carolina Cunha.

            Isto já não seria assim, se, por exemplo, entre A e C e D tivessem estabelecido entre si (numa relação subjacente extra-cartular – para o que não basta que tenha sido A a exigir a prestação do aval, nem ter sido ele a escolher ou a aprovar C e D para prestar o aval) a forma como a letra seria preenchida e em que condições, ou se esse acordo tivesse sido estabelecido entre A, B, C e D (um acordo trilateral).

            Ou seja, os avalistas podem estar em relações imediatas com o credor/sacador/portador da letra, por exemplo por serem partes no pacto de preenchimento, mas isso não é assim necessariamente, nem mesmo normalmente (variadas hipóteses destas podem ver-se em Carolina Cunha, págs. 164 a 176, 251 a 255, 282 a 291, 581, 585 a 588, 591/592 e 596/597).

            Dito de outro modo, e parafraseando esta autora, o avalista que não teve (ou não fica provado que teve) qualquer contacto com o credor, nem celebrou com ele qualquer convenção de preenchimento, não passa a ser parte neste pacto (entre sacador e aceitante/avalizado) apenas por ter assinado em branco (pág. 588) nem está em relações imediatas com o sacador (síntese na nota 471, pág. 266: saber se entre o avalista do aceitante e o sacador existem ou não relações imediatas depende de saber se entre ambos foi ou não celebrada, tácita ou expressamente, uma convenção extra-cartular no caso concreto; contra, veja-se, Cassiano dos Santos, Direito Comercial Português, vol. I, citado pela autora, e Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação, RLJ 142/3980).

            Mas isso não impede que ele possa opor ao portador os acordos realizados quanto ao modo de completar a letra, principalmente o acordo de preenchimento entre A e B (sacador/portador e sacado/aceitante/ avalizado), o que pode levar, inclusive à discussão da relação fundamental, embora eles não sejam parte nela (se C e D apenas autorizaram B a entregar a letra a A para que ela fosse preenchida se e quando o sacador não conseguisse o pagamento da dívida subjacente, eles podem discutir se essa dívida existe e qual o seu valor).

            Como diz Carolina Cunha, “[n]o caso da dupla subscrição em branco as dificuldades prendem-se com a determinação do conteúdo da vontade manifestada pelo primeiro subscritor e – embora o ponto tenda a ser escamoteado – com a situação subjectiva do credor.” (obra citada, pág. 582 e 592).

            E mais à frente: “Ao abrigo do art. 10 da LULL o avalista pode prevalecer-se de certas vicissitudes de uma relação fundamental à qual é alheio. E pode fazê-lo porque a determinação do conteúdo a inserir na sua própria declaração cambiária é levada a cabo per relationem: depende da verificação do mesmo pressuposto do qual está dependente a responsabilidade cambiária do avalizado e esse pressuposto emana dos desenvolvimentos ocorridos na relação fundamental que este mantém com o credor.” (obra citada, pág. 592).

            E provado que fosse o preenchimento em desconformidade, pelo credor-portador, ele “estará quase sempre de má fé e, quando assim não seja, incorre[u] certamente em falta grave” (obra citada, pág. 593).

III

Da falta de alegação de qualquer acordo

            Ora, no caso dos autos, os embargantes, como já o disse o saneador-sentença, nunca invocaram ou sugeriam sequer os termos de qualquer acordo (fosse ele celebrado com quem fosse) quanto ao modo como a letra seria preenchida, pelo que não se pode pretender ter sido feita a afirmação de um preenchimento em desconformidade com os acordos realizados, ou contra a vontade manifestada pelo subscritor (para os efeitos do art. 10 da LULL).

            O máximo que eles fizeram foi dizer que a letra tinha sido emitida em branco – mas mesmo isso fizeram-no com muitas incertezas (dizem, por exemplo: “admitem ter prestado o seu aval à sociedade executada […] provavelmente numa letra de câmbio em branco”) – e que parte dos dizeres nela apostos eram impossíveis, mas nunca falaram em quaisquer acordos e na violação dos mesmos.

            Se os embargantes não alegaram nenhuns acordos que tivessem sido violados pelo preenchimento da letra pela exequente, não se pode dizer que tenha sido invocado esse facto impeditivo do exercício do direito da exequente (art. 342/2 do CC), ou seja, a matéria de excepção que aqui estaria em causa, pelo que, não existindo, não pode ser completada e por isso não havia que aperfeiçoar fosse o que fosse do articulado da oposição dos embargantes.

            Isto porque é às partes que cabe alegar os factos em que se baseiam as excepções invocadas (art. 5/1 do CPC), não cabendo dentro dos poderes de aperfeiçoamento do juiz, previstos no art. 590/2b) e 4 do CPC, convidar as partes a deduzir matéria de excepções.

  IV

Quanto à data de vencimento da letra

Conclusões c) e g)

            Entregue uma letra em branco, com um presumível acordo para o seu preenchimento, quando ela vier a ser apresentada a pagamento já totalmente preenchida presume-se que ela foi preenchida conforme aquele acordo. E conforme vier a ser completada, passará a ser, quanto à modalidade do vencimento, uma letra à vista, a um certo termo de vista, a um certo termo de data, ou pagável no dia fixado (art. 33 da LULL).

            Ou seja, não é possível confundir uma letra em branco, que poderá vir a ser ou não uma letra à vista, com uma letra à vista (que é a letra que é pagável à apresentação: art. 34 da LULL).

            No caso dos autos, o modo como a letra foi preenchida deu origem a uma letra que não é à vista, mas que é pagável no dia fixado (art. 33IV da LULL).

            O preenchimento em desconformidade da data de vencimento é apenas mais um preenchimento em desconformidade como qualquer outro, ou seja, para que os embargantes pudessem opor ao portador essa violação, primeiro teriam de fazer prova do acordo de preenchimento quanto à data de vencimento (art. 10 da LULL).

            Daí que Carolina Cunha, refira, sem crítica, “a corrente amplamente difundida na jurisprudência, no que toca à letra ou livrança em branco”, de que “o prazo prescricional fixado pelo art. 70 da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento”, apenas acrescentando que “a discussão transita, portanto, para a interpretação desse acordo”, a ser feita com uso dos critérios dos arts. 236 a 239 do CC, mas com factos que têm de ser alegados pelas partes.

                      V

Quanto à data da emissão da letra

Conclusão d)

          Como diz Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. III, FDL, 1992, pág. 117, “a letra só surge, como título cambiário, com o preenchimento (art. 2/1). Mas é natural que retroaja ao momento do saque, ou à data que da letra conste como aquela em que foi passada (art. 1/7). Porém, se essa mesma data foi deixada em branco pelo detentor, é a data que vier a ser preenchida que deve considerar-se a data da letra.”

Aderindo a esta posição, veja-se Engrácia Antunes, Os títulos de crédito, Coimbra Editora, 2009, nota 120 da pág. 66. É esta também a posição de Januário Gomes, O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio de sociedade para garantia de crédito bancário revolving, AUJ 4/2013, de 11/12/2012, proc. 5903/09, CDP 43, Jul/Set 2013, especialmente págs. 36 a 37, Cassiano dos Santos, Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação, RLJ 142/3980, espec. págs. 318 a 320, e Carolinha Cunha (como se verá mais abaixo).

                                                     VI

Da impossibilidade e da falsidade, da falta de poderes de representação e das nulidades

Conclusões d) e e)

            Os embargantes invocaram a falsidade da letra, mas não pelas razões que têm a ver com a falsidade em sentido próprio (aliás, no recurso já não se referem sequer à falsidade – note-se, de resto, que a alegação da falsidade de um título negocial constitui matéria de excepção: Lebre de Freitas, obra citada, pág. 206, nota 31). Ela decorreria antes do facto de a data que foi aposta como de emissão não poder ser a real, já que nessa data a sociedade executada já tinha sido declarada insolvente e já não exercia a actividade desde há dois anos. Mas daqui o que decorreria, quando muito, seria a falta de poderes do gerente da sociedade sacada para dar o aceite.

            O saneador-sentença também resolveu esta questão, invocando ainda um acórdão do TRP que resolve uma situação exactamente igual ao problema levantado pelos embargantes.

          O ac. do TRP é o de 13/03/2014, 1978/11.4TBVCD-B.P1, e diz, em sumário, que: “A livrança não padece de nulidade por dela constar como data de emissão uma data posterior à da declaração de insolvência da subscritora, dado estar assente que a mesma foi subscrita antes de ser declarada a sua insolvência.”

            Isto tem desde logo uma explicação óbvia e que não depende da adesão à tese da emissão (a que o saneador-sentença adere) quanto ao momento da constituição da obrigação cambiária, pois que aqueles que seguem a tese contrária, do preenchimento, também admitem o relevo da data em que a letra foi assinada de facto, dizendo: “[N]as hipóteses de subscrição em branco, a obrigação cambiária não se forma de golpe mas através de um processo cuja primeira etapa – necessária, se bem que insuficiente – consiste na assinatura do título. […] A ratio do instituto da representação orgânica exige que se destaque, para efeitos da sua aplicação, aquele estágio inicial da fattispecie complexa” (Carolina Cunha, obra citada, págs. 641/642 e mais à frente: 643 a 647)

            Pelo que se a letra foi assinada – o que não foi posto em causa – pela gerente da sociedade executada à data em que este a subscreveu como tal, não há qualquer problema de falta de poderes de representação.

                                                     VII

                            Da inoponibilidade de eventuais nulidades

            Mas mesmo que houvesse – e não há – qualquer invalidade decorrente da falta de poderes de representação (quanto à obrigação do avalizado), os embargantes, como avalistas, não a podiam opor ao sacador-portador.

            “Nos termos do art. 32ºII, a obrigação do avalista permanece ‘mesmo no caso da obrigação que ele garantiu ser nula [por qualquer razão que não seja um vício de forma]’. E não existe, no domínio da LU, qualquer preceito que, ao arrepio do princípio res inter alios acta, autorize o avalista a invocar contra o credor meios de defesa próprios do avalizado” (Carolina Cunha, obra citada, pág. 107).

            Ou seja, mesmo que à data formal de emissão da letra o gerente que aceitou o saque em nome da sociedade executada já não tivesse poderes para a obrigar e que isso pudesse implicar a invalidade da obrigação do avalizado, a obrigação dos embargantes, como avalistas (de garantir o pagamento da letra: art. 30/I da LULL), manter-se-ia.

            O que aliás também decorre do art. 7 da LULL: Se a letra contém assinaturas de pessoas incapazes de se obrigarem por letras, assinaturas falsas, assinaturas de pessoas fictícias, ou assinaturas que por qualquer outra razão não poderiam obrigar as pessoas que assinaram a letra, ou em nome das quais ela foi assinada, as obrigações dos outros signatários nem por isso deixam de ser válidas.

            Como lembra Carolina Cunha (obra citada, pág. 106, nota 177), o aval gera uma obrigação cartular sujeita ao regime geral da lei uniforme, com destaque para a independência em face das outras obrigações que integram o lado passivo da relação jurídica cambiária (art. 7 da LULL) e para a inoponibilidade de excepções pessoais a terceiros (art. 17 da LULL).

            Daí que, parafraseando Carolina Cunha, se possa dizer que “o avalista, quando é demandado pelo portador do título que foi contraparte imediata do avalizado no plano extra-cambiário (isto é, seu credor fundamental), [não] se pode escudar em meios de defesa próprios do avalizado, sejam eles oriundos da relação subjacente que o liga ao credor (v.g., invalidades, incumprimento), sejam relativos à […] própria subscrição cambiária do avalizado (v.g., incapacidade, vício da vontade, falsidade da assinatura)” (pág. 112)

            “O art. 32ºII LU reiterando o princípio consagrado no art. 7 LU, impede claramente a invocação de patologias inerentes à subscrição cambiária do avalizado (com excepção do ‘vício de forma’). Quanto aos meios de defesa oriundos da relação subjacente avalizado/credor, a impossibilidade da sua invocação pelo avalista fundar-se-á no princípio geral res inter alios acta, também acolhido pelo art. 17 da LU” (pág. 112).

            Quanto ao vício de forma “estarão […] em causa aquelas situações em que o simples exame do título, na sua aparência objective, permite concluir que a obrigação do avalizado não se constituiu validamente, ou, a fortiori, não se constitui de todo. […] Nesta categoria de situações, avulta ictu oculi, sem necessidade de qualquer averiguação complementar ou de recurso a elementos estranhos ao título, que a pessoa ‘por quem se dá o aval’ (art. 31ºIV), não contraiu, na verdade, qualquer obrigação cambiária” (pág. 115), o que não é manifestamente o caso dos autos.

            Repare-se aliás que nem a falsidade da assinatura do avalizado impediria a constituição da obrigação do avalista (Carolina Cunha, obra citada, pág. 117). Daí que se diga que o avalista suporta o risco de ter de cumprir mesmo que a obrigação cambiária do avalizado se venha a revelar inexistente porque, v.g., a sua assinatura foi falsificada (autora e obra citadas, pág. 587, nota).

            E por isso, o ac. do TRP de 29/11/2006, 0624506, citado por Carolina Cunha (pág. 597, nota 175, e pág. 254, argumento que é invocável para o caso dos autos por maioria de razão), manteve a obrigação do dador de aval apesar de considerar que a “obrigação que ele garantiu ser materialmente nula” (no caso, a avalizada havia sido declarada insolvente por sentença transitada em julgado em momento anterior ao da subscrição da livrança e o avalista sustentava que a nulidade da relação fundamental impedia o válido preenchimento do título).

            E Lebre de Freitas (obra citada, págs. 206/207) cita como correcto o ac. do TRP de 08/07/1994, CJIV, pág. 177, que decidiu que “[…] a nulidade do saque e do endosso (por não menção, pelo garante, da qualidade de representante da sacadora) que não afectava a validade do aceite (art. 16 da LULL)”.

            Aliás, isto também resulta de a letra em branco poder ser preenchida depois da morte do subscritor cambiário – Carolina Cunha, obra citada, págs. 646/647 e acórdãos citados na nota 307 – caso que, na lógica dos embargantes e do ac. do STJ de 04/05/2004 (referido a seguir), seria de data impossível (na data que consta como de emissão o subscritor já estava morto…), mas que não é.

                                                    VIII

                            Ainda da impossibilidade da data

            Os dois acórdãos invocados pelos embargantes em nada favorecem a argumentação dos recorrentes.

            O primeiro, do STJ de 13/04/2011, 2093/04.2TBSTB-A L1.S1, nem sequer reconhece, ao contrário do que os embargantes sugerem, que a data fosse impossível (muito simplesmente, num caso idêntico ao do ac. do STJ referido a seguir, deu-se uma explicação para aquela data – um lapso manifesto – e passou-se à frente; diz este acórdão de 2011: “ora […] o preenchimento da data aposta como da emissão não exprime falsificação, nem aposição de data impossível como alega o recorrente”). 

          Quanto ao ac. do STJ de 04/05/2004, 04A1044, referido no primeiro e invocado por remissão pelos embargantes, também não ajuda em nada a posição destes, pois que aí a data da emissão colocada era anterior ao próprio contrato que a livrança visava garantir e por isso se considerou que se tratava de uma data impossível (remetendo para Ferrer Correia, Lições de direito comercial, vol. III, Coimbra, pág. 113 [será na edição de 1966; na edição de 1975 a pág. é a 120]), o que não é o caso dos autos em que a data aposta como de emissão é posterior.

            De qualquer modo diga-se que a referência à data impossível, neste último acórdão do STJ não é correcta: uma data impossível tem sido entendida de outro modo, como por exemplo, a data de 32 de Janeiro…; a data de 11/06/2004, caso dos autos, nada tem de impossível; poderia ser falsa, mas isso era outra questão (que nestes autos se está a resolver em sentido contrário ao do STJ).

            Neste sentido, Oliveira Ascensão, Direito comercial, III, FDL, 1992, pág. 107; vejam-se também os exemplos de Pinto Furtado, Títulos de crédito, Almedina, 2000, págs. 171/172; de Abel Delgado, LULL, Petrony, 1996, pág. 35, que invoca os exemplos de 29 de Fevereiro quando o ano é comum ou a data de 31 de Abril, com referência a Ferrer Correia, pág. 112. Carolina Cunha faz exactamente esta mesma crítica a este acórdão do STJ: obra citada, págs. 645/646, também quanto ao resto.

                                                     IX

Da liquidez, da exigibilidade e da certeza da dívida exequenda

Conclusões f) e n)

            Estando a letra preenchida com um valor pecuniário certo e uma data já vencida, sem subordinação a qualquer condição, é evidente que ela diz respeito a uma dívida líquida (“aquela que tem por objecto uma prestação cujo quantitativo não esteja ainda apurado” ou que não diga respeito a uma universalidade), exigível (“quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com a estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do art. 777/1 CC, de simples interpelação do devedor”), certa [“a obrigação cuja prestação se encontra qualitativamente determinada (ainda que esteja por liquidar ou individualizar)” – as definições são retiradas de Lebre de Freitas, obra citada, págs. 98 a 102].

            Neste sentido, Lebre de Freitas, obra citada, págs. 38 e 40: “a certeza, a exigibilidade e a liquidez só constituem requisitos autónomos da acção executiva quando não resultem já do título executivo (art. 713 do CPC); caso contrário, diluem-se no âmbito das restantes características da obrigação e a sua verificação é, tal como elas, presumida pelo título, sem qualquer especialidade de regime a ter em conta”; e em nota: “A disparidade entre a realidade e o que constar do título quanto à certeza, à exigibilidade e à liquidez da prestação tem o mesmo tratamento que a mesma disparidade relativa à própria existência e a outros aspectos do conteúdo da obrigação. Não tendo o exequente que delas fazer prova (para além da decorrente da apresentação do título), só em oposição à execução elas poderão ser postas em causa […].”

  X

Da prescrição

Conclusões h) e p)

            Como resulta do que já foi dito acima com recurso a Oliveira Ascensão e como diz Carolina Cunha: “A vinculação cambiária “como tal” só surge depois de preenchida a letra, ‘isto é, uma vez verificados os requisitos essenciais da obrigação formal’” e não desde a aposição da assinatura (obra citada, págs. 635/636), pelo que a prescrição cambiária só corre a partir da data com que a letra vier a ser preenchida (desde que o seja de acordo com o título – mas a desconformidade tem de ser alegada e provada pelo embargante).

            Não se estando perante uma letra à vista – a letra só seria de presumir pagável à vista (art. 2/2 da LULL), se no momento da apresentação a data de vencimento ainda se encontrasse em branco -, mas sim perante uma letra que se vencia na data nela colocada, que foi a 30/06/2014, tendo a execução sido requerida em 24/09/2014, é evidente que não se verifica nenhum dos prazos de prescrição do art. 70 da LULL.

XI

Da prova da dívida e do pagamento

Conclusões j), k), l) e m)

            Na sequência da tentativa de inversão dos ónus a cargo de uma e da outra parte, nestas conclusões os embargantes defendem que o ónus da alegação e de prova da dívida exequenda e do não pagamento da mesma é dos embargantes.

            Mas isto também sem qualquer apoio legal, doutrinal ou jurisprudencial, pois que sempre se tem entendido que é aos embargantes que cabe a alegação e a prova da inexistência da relação subjacente à obrigação cambiária e do pagamento da dívida.

            O título executivo serve de base à execução e é simultaneamente prova da existência da mesma; daí que, como diz Lebre de Freitas, “[a] obrigação exequenda tem de constar do título e a sua existência é por ele presumida […] dispensando a indagação do direito que pressupõe […]”; presumida [a existência da obrigação exequenda] pelo título executivo, dela não há necessidade de fazer prova”; “ao exequente mais não compete, relativamente à existência desta obrigação [a exequenda] do que exibir em tribunal o título (executivo) pelo qual ela é constituída ou reconhecida” (obra citada, págs. 24, 25, 38, 43, 72, 81, 83, 85, 90, 97).

            Por isso, são os executados que têm de alegar e provar a inexistência da relação subjacente à relação cambiária (Lebre de Freitas, obra citada, cita como correctos os acs. do TRP de 21/10/1996, CJ.V, pág. 183, e de 13/03/2003, CJ.II., pág. 179, que decidiram ser ónus do executado a prova da inexistência da relação fundamental).

              Postas as coisas nos termos de Carolina Cunha: “qualquer que seja o significado particular de uma concreta vinculação cambiária, o certo é que atribui objectivamente ao credor um instrumento poderoso: a faculdade de exigir o pagamento de uma quantia em dinheiro com a simples apresentação do título e dentro dos pressupostos ou limites que o próprio título enuncia (prazo, soma, sujeitos, etc.). Ao contrário do que sucede com um cre­dor vulgar, nada mais tem o credor cambiário que alegar ou provar para obter a satisfação do seu direito. O que não significa, contudo, que o resultado seja auto­mático: justamente na medida em que ao devedor seja reconhecida a faculdade de opor excepções causais, pode a satisfação do credor ver-se impedida pelo êxito dessa oposição. Mas ainda quando isso aconteça, diz-se, beneficia o credor cambiário, no confronto com um credor vulgar, de uma significativa vantagem: o benefício da inversão do ónus da prova, já que é ao devedor (imediato) que cabe alegar e provar os factos respeitantes à causa (aos seus revezes ou à sua ausência). Equacionando o problema no âmbito do princípio geral da necessidade de indicação da causa, estamos em presença de um desvio mediante o qual a ordem jurídica concede reconhecimento ad-hoc ao puro efeito documentado (constituição da relação obrigacional cambiária), dispensando o credor de realizar qualquer demonstra­ção relativa à função económico-social que torna inteligível o negócio (cartular) de onde promana. Esta preciosa simplificação processual do exercício do direito combina-se, no nosso ordenamento jurídico, com uma outra vantagem de peso: à luz do dis­posto no art. 46º1 c) do CPC [agora art. 703/1c do CPC], o título cambiário constitui um título exe­cutivo extrajudicial. Serve, portanto, de fundamento à instauração directa de um processo executivo, sem precedência de processo declaratório: o credor cam­biário não pede ao tribunal que condene o devedor a cumprir a obrigação cam­biária, e sim que dê realização material coactiva à pretensão documentada no título” (obra citada, págs. 267/268).

              Mas, para além disso, os executados só podem invocar questões relacionadas com a relação fundamental se forem parte nela, não o podendo fazer se esta relação fundamental for só entre o credor/sacador/portador e o devedor/aceitante/avalizado; é que se não forem parte nesta relação, a mesma é uma relação alheia e não tem sentido estarem a invocá-la contra terceiro (arts. 406/2 do CC e parte final do art. 32/II da LULL aplicável por maioria de razão).

          Como diz Carolina Cunha, segundo o princípio geral da relatividade das obrigações, a relação obrigacional alheia não deveria prejudicar terceiros (i.e., não poderia o credor terceiro ver o exercício do seu direito frustrado pela invocação de uma relação na qual o devedor é parte], nem beneficiar terceiros (i.e., não poderia o devedor-terceiro esquivar-se ao cumprimento invocando uma relação na qual o credor é parte) (obra citada, pág. 246).

            Ou seja, os avalistas não podem opor ao credor/sacador/portador as relações pessoais deles com o devedor avalizado (porque o credor não é parte nelas) – decorre do art. 406/2 do CC e está de harmonia com o art. 17 da LULL -, nem podem opor ao credor/sacador/portador as relações que este tem com o devedor avalizado (porque eles, avalistas, não são parte nela) – art. 406/2 do CC e parte final do art. 32/II da LULL aplicado por maior da razão.

            Assim, por um lado, o avalista, quando demandado, não poderá defender-se invocando as suas relações pessoais com o avalizado porque estas são para o credor/exequente uma res inter alios acta: “protege-se o terceiro contra a eventualidade de ver o exercício do seu direito de crédito prejudicado por vicissitudes oriundas de uma relação obrigacional alheia.” (Carolina Cunha, obra citada, págs. 169, 253/254 e 595, entre outras)

            E, por outro lado, “na ausência de convenção específica nesse sentido”, o avalista não pode “opor excepções provenientes das relações entre o credor e o avalizado – ou seja,” não pode “retirar um benefício de uma relação obrigacional que lhe é estranha. […S]e no próprio plano cambiário a nulidade da obrigação do avalizado não se comunica à vinculação assumida pelo avalista […], por maioria de razão não há-de ser possível ao avalista invocar vicissitudes extra-cambiárias atinentes ao avalizado para justificar uma recusa de cumprimento da sua própria obrigação” (Carolina Cunha, obra citada, pág. 254).

XII

O ónus da alegação e prova do pagamento

            Quanto ao pagamento sempre se entendeu que não é ao credor que cabe a prova da falta de pagamento; cabe-lhe apenas alegar a falta de pagamento o que faz implicitamente ao vir executar a letra; é ao devedor que cabe, como matéria de excepção peremptória, o ónus de alegação do pagamento – já que o pagamento/cumprimento é uma causa de extinção de uma obrigação, logo facto extintivo do direito do credor [vejam-se as epígrafes do capítulo VII, cumprimento e não cumprimento das obrigações, secção I, cumprimento, e capítulo VIII, causas de extinção das obrigações além do cumprimento, do Livro II, do Título I, do CC, arts. 571/2, parte final, e 576/2 do CPC; e, por exemplo, Lebre de Freitas, A acção declarativa comum à luz do código revisto, Coimbra editora, 2000, pág. 100, dando como exemplo de excepção peremptória o pagamento da obrigação).

            Dito de outro modo: Quando o credor/autor/exequente exige o cumprimento de uma obrigação, tem o ónus de alegação do não cumprimento (nem que seja implicitamente, apenas para evitar a inconcludência do pedido), mas daí não decorre o ónus da prova do não cumprimento. É antes ao devedor/réu/executado que cabe o ónus de alegar e provar o cumprimento da obrigação (veja-se, neste sentido, Joaquim de Sousa Ri­beiro, no seu estudo sobre as Prescrições Presuntivas, na RDE 5, 1979, págs. 402/403, nota 31: “Muito embora o incumprimento, em acções deste tipo, não tenha que ser provado pelo autor – nesse sentido, com largo desen­volvimento, Alberto dos Reis, CPC anotado, III, 3ª ed., Coimbra, 1948, pág. 285 s. – deverá ser por ele alegado, para evitar a inconcludência do pedido – Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, IV, Coimbra, 1969, pág. 123, nº.1”).

            Explica o Prof. Joaquim de Sousa Ribeiro (págs. 403/404):

        “No que ao incumprimento diz respeito, há que advertir, em primeiro lugar, que ele não constitui fundamento essencial do pedido, mas antes a resposta antecipada à afirmação de cumprimento que o réu venha eventualmente a opor. Prevendo que a parte contrária invoque esse facto extintivo, o autor adianta-se a negar a sua verificação (Castro Mendes, DPC, III, Lisboa, 1980 [AAFDL], pág. 99). O que não invalida, todavia, que, nessa qualidade, ele conserve a natureza de fundamento de uma excepção, a deduzir pelo réu, a tal não obstando a circunstância de já constar, sob a forma negativa, da petição inicial [remete para Manuel de Andrade, Anselmo de Castro e Castro Mendes].

        Por aqui se vê que não tem qualquer cabimento falar-se, a este respeito, em ónus de impugnação especificada […]. Ao réu não cabe impugnar a alegação de incumprimento, pela simples razão de que tal matéria se encontra incluída no ónus da prova a seu cargo, e, como é evidente, o ónus da impug-nação não faz sentido em relação a factos cuja afirmação cabe à parte produzir […]. Mais do que negar o incumprimento, o que lhe compete é afirmar e provar que cumpriu, o que o autor, esse sim, poderá, por sua fez, impugnar”.

   XIII

Do despacho de aperfeiçoamento

Conclusões o) e q)

            O juiz nunca deve proferir despachos de aperfeiçoamento que se vão traduzir na introdução na acção de causas de pedir ou de excepções (art. 5/1 do CPC).

            Ora, não tendo os embargantes invocado quaisquer acordos para o preenchimento da letra e a violação dos mesmos, nem tendo dito nada no sentido de tentarem demonstrar a inexistência da relação fundamental, factos que corresponderiam a excepções que teriam de ser invocadas pelos embargantes como já foi visto acima, nunca o juiz os poderia convidar a aperfeiçoar o seu articulado, porque complementar ou concretizar um articulado insuficiente não é o mesmo que convidar à introdução de matéria de excepção não deduzida.

            Veja-se, ainda, o que já acima foi dito sobre a questão.

XIV

Da (des)necessidade de prova

Conclusões i), k), l), m), p) e q)

            Quanto à prescrição já se viu que ela não se verifica, pelo que é evidente que não se impõe a produção de prova sobre os factos correspondentes.

            De qualquer modo, acrescente-se que a investigação de factos não se faz durante o processo. A instrução é uma investigação da verdade das afirmações de facto feitas pelas partes com base na investigação dos factos que estas fizeram ou deviam ter feito antes do processo.

            Dito de outro modo: a instrução feita no decurso de um processo destina-se à prova das afirmações de facto feitas pelas partes, não à investigação de factos que permitam às partes fazer afirmações de facto (art. 341 do CC).

                                                      *

            Quanto à dívida exequenda e da falta de pagamento, já se viu acima que o que necessitava de prova seriam as afirmações, a serem feitas pelos embargantes – mas eles não as fizeram –, da inexistência da dívida exequenda e do pagamento.

            Em suma, não havia afirmações de facto necessitadas de prova para base da decisão de direito.

                                                      *

            Entretanto nota-se que os factos alegados pela exequente, nos artigos 3 e 4 do requerimento executivo -: “para pagamento de parte dessa mercadoria a executada entregou à exequente a letra aqui dada à execução, com vencimento em 30/06/2014; a letra foi entregue à exequente pela representante da sociedade executada e foi avalizada pelos sócios gerentes os dois embargantes” –, para além de estarem parcialmente errados de certeza (sabe-se, pelo registo, que os embargantes não eram gerentes – ao menos de direito – da sociedade executada), não estão de acordo com a lógica da entrega de uma letra em branco avalizada (que serve para garantia de um evento futuro no âmbito de uma dada relação que se prolonga no tempo e não para pagamento de parte de mercadorias). Mas tal não tem relevo, porque aquelas que não constam dos factos dados como provados são afirmações inócuas face aos ónus de prova que cabiam aos embargantes e não à exequente.

            Por outro lado, tendo em conta estas afirmações de facto feitas pela exequente e os factos dados como provados, torna-se surpreendente a afirmação, também feita pela exequente, de que a letra lhe foi entregue em 2014: por quem? Pelos embargantes? Pelo AI? Mas tal não tem relevo no caso dos autos, já que (i) a afirmação não fazia sentido, (ii) estava em contradição implícita com o conjunto de factos alegados no requerimento executivo, na petição de embargos e na contestação a estes, (iii) foi desconsiderada no saneador-sentença e (iv) ficou em contradição com os factos dados como provados neste sem que tal tenha sido objecto de impugnação neste recurso e, por isso, é como se não tivesse sido feita.

                                                      *  

            Pelo exposto, improcede o recurso.

            Custas pelos embargantes.

            Porto, 03/03/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto