Acção de inabilitação 5956/12.8TBMTS do J2 da Secção Cível de Matosinhos

Sumário:

I – No CPC depois da reforma de 2013, se não houver contestação ao pedido de inabilitação, não é obrigatório que se proceda a interrogatório; tendo a fase dos articulados findado depois de 01/09/2013, a lei aplicável é aquela. Dito de outro modo: “Deve aplicar-se imediatamente a lei que, dentro da forma de processo que está a ser seguida, suprima um acto ou altere os pressupostos da sua prática”                

II – “O decretamento da inabilitação envolve sempre para o inabilitado pelo menos a incapacidade de praticar actos de disposição de bens. […] O tribunal pode, porém, entregar ao curador parte ou a totalidade da administração do património do inabilitado […].”

           Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            O Ministério Público requereu, em 20/09/2012, a inabilitação de M.

            Foi feita a publicidade legal da acção (art. 945 do CPC antes da reforma de 2013) e depois foi tentada a citação da mesma, o que não se pode efectuar em virtude dela se encontrar, aparentemente, impossibilitada de receber a citação, pelo que lhe foi designado um seu irmão como curador provisório que foi citado para contestar em nome da requerida, o que ele não fez, pelo que lhe foi nomeada defensora oficiosa que, uma vez citada a 24/10/2013, nos termos do art. 15 do CPC (por força do art. 947 do CPC antes da reforma de 2013), também não contestou.

            Depois foi realizado exame pericial à requerida (a que esta teve de comparecer sob mandado), com nova entrevista para complementar o anterior, tendo-se seguido sentença em que foi decretada a inabilitação da requerida, declarando-se que a sua incapacidade remonta ao início da maioridade e foram nomeados curador e vogais para o conselho de família.

            A requerida recorre desta sentença – para que seja revogada “por manifesta insuficiência de fundamentos de facto e de direito sendo a requerida absolvida da instância, com imediato levantamento da inabilitação decretada, ou caso assim se não entenda, substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos a fim de se realizarem as diligencias complementares instrutórias, tais como a audição da requerida e dos irmão – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

  1. Do relatório pericial, não resulta prova inequívoca e cabal que possa determinar a inabilitação da ora requerida.
  2. Pois a requerida confecciona as suas refeições, trata da sua higiene.
  3. Trabalhou e que geriu o dinheiro que recebia, gerindo também a mesada do seu pai.
  4. Tratou da mãe alcoólica e do pai que sofreu de um avc.
  5. Receia que os irmãos não a deixem voltar a casa.
  6. Mostrou ser capaz de contar dinheiro e ter alguma noção do seu valor.
  7. Não resulta, pois prova capaz de indicar que a requerida deva ser inabilitada, pois, as conclusões do mesmo, não se revelam claras nem suficientes.
  8. Acresce ainda que, o facto de ter trabalhado em limpezas e bem ainda de ter desempenhado essas tarefas na fase de alcoolismo da mãe, e de ter sido capaz durante anos de cuidar do pai, são reveladoras que seja capaz de gerir a sua vida, e ainda a do pai e da mãe.
  9. Quanto [a]o valor das coisas refere que a mesma trabalhou a dias, que auferiu salário, conhece o dinheiro, e que geria uma mesada que o pai lhe dava, não se concebendo face a esta factualidade como possa a mesma ser incapaz de reger o seu dinheiro.
  10. Não existe assim, na perspectiva da defesa fundamento para a inabilitação, pois, não resulta do dito relatório a certeza de que a mesma seja incapaz de gerir os seus bens, e bem ainda a sua pessoa já que cozinha para si e trata sozinha da sua higiene.
  11. Acresce ainda, que o relatório é parco na sua fundamentação, pois não teve o elementar cuidado de ouvir a médica de família da requerida, limitando-se tão-somente a ter ouvido as pessoas conotadas com interesses na inabilitação da requerida, nomeadamente os irmãos.
  12. Foram preteridas diligências probatórias requeridas pela ora inabilitada.
  13. Ora, salvo o devido respeito, tal diligência probatória revelava-se essencial para a descoberta da verdade, para aquilatar se de facto a requerida padece de deficiências de entendimento e discernimento que a incapacitem de administrar pessoas e os seus bens.
  14. Assim, e porque o relatório é no entender da requerida parco, impõe-se ao julgador uma maior averiguação e ponderação dos factores a ter em conta na decretação de tão gravosa medida e num cuidado especial compatível e proporcional ao reforço dos poderes de indagação oficiosa.
  15. Assim para além da tipificada necessidade do interrogatório da inabilitanda ou do exame pericial, deve o tribunal agir para que fique devidamente assegurada a necessidade e adequação da providência, promovendo a produção de outros meios de prova, quando do exame não resultem elementos suficientemente seguros que habilitem tal decisão.
  16. Na verdade, concluída a perícia, o tribunal considerou, a nosso ver erradamente possuir elementos suficientes para de imediato decretar a inabilitação.
  17. O tribunal não ouviu a requerida, o irmão, quaisquer testemunhas, nem promoveu qualquer informação complementar, sendo portanto no mínimo exigível que ordenasse o prosseguimento dos autos e procedesse à audição da requerida e do irmão.
  18. Temos, pois, de concluir que o acervo factual em que a decisão proferida pelo tribunal a quo se baseia é manifestamente insuficiente para se concluir pela inabilitação e consequentemente decretar esta incapaz de gerir a sua pessoa e os seus bens.
  19. Nenhuma prova foi feita que demonstre a prática pela requerida de actos de desapossamento, com prejuízo próprio, de alguns dos seus bens, inadvertidamente e a preços irrisórios, ou sequer que a requerida gira de forma pouco criteriosa o seu património, de forma tal que o possa comprometer irreversiívelmente e na totalidade, e bem ainda a sua pessoa.
  20. Para decidir como decidiu, impunha-se, pois, ao tribunal a quo uma actividade instrutória tendente a precisa e completa caracterização do estado da requerida que permitisse a formulação, com a necessária segurança e em diversas instâncias, dos juízos necessários à formulação da conclusão de estarem verificados os requisitos legais para decretar a incapacidade da requerida de administrar o património e decidir a extensão e os limites da medida mais adequada.
  21. A sentença violou os arts. 342/1 do Código Civil, e bem ainda os arts. 452/2, 507 e 899/2 todos do novo CPC.

            O MP contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

                                                      *

            Questões a decidir: se há outros factos que deviam ter sido dados como provados; se alguns dos factos provados não deviam ter sido dados como provados; se, perante os factos que devam ser tidos como provados, não se pode concluir pela incapacidade da requerida reger os seus bens e se o juiz devia ter procedido a interrogatório da requerida, bem como a outras diligências de prova para apurar essa incapacidade.

                                                      *

            Foram dados como provados os seguintes factos (que resultaram “das diligências realizadas e demais elementos juntos aos autos”):

  1. A requerida nasceu em M, no dia 0x/0x/19xx e é filha de A e de B;
  2. Frequentou a escola até aos 14 anos, tendo completado a 4ª classe;
  3. Apresenta uma personalidade imatura e é intelectualmente infra dotada, padecendo de um atraso mental ligeiro, de acordo com a rubrica 317, da 9ª revisão da classificação internacional de doenças da organização Mundial de Saúde;
  4. Conhece o dinheiro, o seu valor e para o que serve, mostrando-se, contudo, incapaz de o gerir adequadamente;
  5. Não consegue tomar qualquer tipo de decisões relativas aos seus assuntos, quer pessoais, quer materiais;
  6. Apresenta uma personalidade sugestionável, sendo extremamente influenciável por terceiros desconhecidos.

                                                      *

                   Da impugnação da decisão da matéria de facto

            A requerida põe em causa, no seu recurso, as conclusões a que o perito chegou e que, sob uma forma algo diferente, foram levadas em parte aos factos dados como provados sob 3, 4 e 6.

            Para o efeito, a requerida utiliza nas suas conclusões do recurso uma série de factos que trata como se fossem factos provados apesar de alguns deles não constarem daqueles que foram dados como tal na sentença recorrida.      E, conforme resulta dessas conclusões, baseia-se para ter tais factos como provados no relatório pericial junto aos autos.

            Daqui resulta que importa saber se aqueles factos 3, 4 e 6 não deviam ter sido dados como provados e, por outro lado, se os factos que constam das conclusões 2 a 6 e 8 a 10 deviam ter sido dados como provados.

            Note-se que o art. 901/4 do CPC, depois da reforma de 2013 (= art. 954/4 do CPC antes da reforma), diz que “na decisão da matéria de facto, deve o juiz oficiosamente tomar em consideração todos os factos provados, mesmo que não alegados pelas partes”, pelo que não importa que os factos em causa não tenham sido alegados pelo MP nem pela requerida (que, como se disse, não apresentou contestação).

            Começando pelos últimos:

            Diz a requerida (em 2 e 10) que confecciona as suas refeições (cozinha para si) e trata (sozinha) da sua higiene.

            O perito médico começou por dizer que a requerida “aparenta idade correspondente à real, aspecto físico regular (abundante falta de dentes)”. Depois conta que “na nova entrevista, a irmã da requerida [que estava presente, tal como a advogada da requerida e o outro irmão] contou que a requerida […] cozinha “à sua maneira” (mal) e usa utensílios seus por ser incapaz de comer de um prato onde outra pessoa tenha tocado. Que gasta muito dinheiro em comida (por exemplo, quatro costeletas ou um frango inteiro a uma refeição) porque a dá a gatos e outros animais. E que ela parte muita louça. Por outro lado, é cuidadosa na higiene pessoal.” E acrescenta: “a requerida […c]onfirmou (sorrindo e rindo algo néscia) que cozinha grandes quantidades de alimentos (designadamente galinha e costeletas) mas só lhe agrada “chuchar” os ossos, dando a carne aos animais “que também precisam de comer.” (sic) E que com frequência atira pratos ao chão, partindo-os (ri-se, pueril), porque se irrita. Não soube explicar porque era incapaz de comer em pratos onde outros haviam tocado. Disse a respeito: “Fui sempre muito nojenta como o meu pai… começo a tremer, a tremer, e os pratos caiem ao chão mas se gostar da pessoa já consigo… eu gosto do Dr. X [o médico que estava a fazer o exame]. Se pegasse no meu prato eu era capaz de comer.” (sic).

            Pelo que daqui não resulta a confirmação de que a requerida confeccione as suas refeições com o sentido que a requerida lhe dá, isto é, que o faça de um modo normal, como qualquer outra pessoa sem problemas. Quanto à sua higiene pode aceitar-se a afirmação, restrita embora à higiene pessoal.

            Assim, aditar-se-á que a requerida é cuidadosa na sua higiene pessoal.

                                                      *

            Diz a requerida em 3 que trabalhou e que geriu o dinheiro que recebia, gerindo também a mesada do seu pai, em 8 acrescenta que trabalhou em limpezas e em 9 que trabalhou a dias, auferiu salário e geria a mesada que o pai lhe dava.

            O perito médico diz que a requerida “contou que se escolarizou até aos 14 anos de idade tendo completado a quarta classe. Entre os 14 e os 17 anos de idade trabalhou “a dias, em limpezas” auferindo cerca de 50 escudos à hora. Então, o problema de alcoolismo da progenitora impediu­-a de cuidar das coisas domésticas, empurrando a requerida para essas tarefas que foi desempenhando como pôde. Nunca mais se empregou, não voltou a ter qualquer remuneração. Era seu pai quem custeava todas as suas despesas, dando-lhe uma espécie de semanada […].

            Daqui resulta – com base no que a requerida contou e que o médico aceitou – que a requerida trabalhou dos 14 aos 17 anos de idade “a dias, em limpezas” auferindo cerca de 50 escudos à hora. Nunca mais se empregou, não voltou a ter qualquer remuneração. Era seu pai quem custeava todas as suas despesas, dando-lhe uma espécie de semanada […].

            Mas não resulta – note-se que o perito está apenas perante a versão da requerida, sem que ela tivesse contestado e arrolado prova para comprovar o que afirmava – que ela tenha gerido o dinheiro que recebia. Receber dinheiro não é o mesmo que geri-lo.

            Aliás, note-se que noutra parte da entrevista “a irmã da requerida contou que a requerida […] gasta muito dinheiro em comida (por exemplo, quatro costeletas ou um frango inteiro a uma refeição) porque a dá a gatos e outros animais.

            O que a requerida “[…c]onfirmou (sorrindo e rindo algo néscia) que cozinha grandes quantidades de alimentos (designadamente galinha e costeletas) mas só lhe agrada “chuchar” os ossos, dando a carne aos animais “que também precisam de comer.” (sic) E que com frequência atira pratos ao chão, partindo-os (ri-se, pueril), porque se irrita.          

            Assim, aditar-se-á apenas o seguinte: a requerida trabalhou dos 14 aos 17 anos de idade, a dias, em limpezas, auferindo cerca de 50 escudos à hora. Nunca mais se empregou, nem voltou a ter qualquer remuneração. Era seu pai quem custeava todas as suas despesas, dando-lhe uma espécie de semanada […].”

                                                      *

            Diz a requerida, em 4, que “tratou da mãe alcoólica e do pai que sofreu de um AVC” e em 8 acrescenta ter desempenhado tarefas de limpeza na fase de alcoolismo da mãe, e de ter sido capaz durante anos de cuidar do pai.

            O perito médico diz que a requerida “contou que […e]ntre os 14 e os 17 anos de idade trabalhou “a dias, em limpezas” […] Então, o problema de alcoolismo da progenitora impediu­-a de cuidar das coisas domésticas, empurrando a requerida para essas tarefas que foi desempenhando como pôde. […] quando o pai sofreu o acidente vascular cerebral que o atirou para a cama, levando a requerida a ter mais esta responsabilidade e carga “laboral” de cuidar do pai, “a cabeça não aguentou … dava tombos, não sei se era AVC.” (sic)”

            Daqui não resulta que a requerida tenha tratado da mãe e do pai, mas apenas que ela entende que esteve encarregue dessas tarefas que, de resto, nem assume que tenha desempenhado bem.

                                                      *

            A requerida diz, em 5, que receia que os irmãos não a deixem voltar a casa.

            O perito médico aceitou este receio mas na nova entrevista esclare-ceu que a requerida referiu ainda que já não desconfia das intenções dos irmãos a seu respeito como aconteceu em outras alturas, pelo que não se vê razão para aditar este facto.

                                                      *

            A requerida diz, em 6, que mostrou ser capaz de contar dinheiro e ter alguma noção do seu valor.

            Isso já tinha sido dado como provado sob 4, mas com reservas, que resultam fundamentadas no relatório pericial.

            Veja-se:

            [A requerida] “não usufrui de qualquer pensão. Já lhe foi dito que deve recorrer à sua médica de saúde familiar a fim de pôr em marcha o pedido de junta médica para efeitos de pensão de invalidez, por exemplo. Mas, se por um lado “os papéis complicam-me, fico nervosa, começo a falar mal… não entendo bem as coisas, tenho este meu atraso” (sic) […]

            Considera […] que necessita da ajuda d[o] irmão para governar a sua vida que foi sempre gerida pelo agora inválido progenitor […]

            Na nova entrevista, a irmã da requerida […] contou que a requerida […] gasta muito dinheiro em comida (por exemplo, quatro costeletas ou um frango inteiro a uma refeição) porque a dá a gatos e outros animais. E que ela parte muita louça.

            Disse então a requerida estar ciente do que ali a trazia e sentir necessidade de apoio e protecção de terceiros, logo afirmando preferir o irmão […] para a tutelar.

            Referiu ainda que já não desconfia das intenções dos irmãos a seu respeito como aconteceu em outras alturas. Confirmou (sorrindo e rindo algo néscia) que cozinha grandes quantidades de alimentos (designadamen-te galinha e costeletas) mas só lhe agrada “chuchar” os ossos, dando a carne aos animais “que também precisam de comer.” (sic) E que com frequência atira pratos ao chão, partindo-os (ri-se, pueril), porque se irrita.”

                                                       *

                                           Factos aditados

            Assim, de todos os factos invocados pela requerida no seu recurso, aditam-se apenas os seguintes:

  1. A requerida é cuidadosa na sua higiene pessoal.
  2. A requerida trabalhou dos 14 aos 17 anos de idade, a dias, em limpezas, auferindo cerca de 50 escudos à hora. Nunca mais se empregou, nem voltou a ter qualquer remuneração. Era seu pai quem custeava todas as suas despesas, dando-lhe uma espécie de semanada.

                                                      *

            Quanto aos factos que a requerida entende que não deviam ter sido dados como provados, são eles as conclusões periciais que, sob outra forma, foram dados como provados sob 3, 4 e 6 (note-se que estas conclusões periciais são, apesar de juízos de valor sobre certos factos, matéria de facto – neste sentido, por exemplo, o ac. do TRL de 19/03/2013, 2199/08.9TVLSB.L1-2, e o ac. do TRP de 03/02/2014, 2138/10.7TBPRD.P1).

            Mais precisamente, as conclusões periciais tinham sido as seguintes:

  1. A personalidade da requerida, indiferenciada/imatura e intelectualmente infradotada (atraso mental ligeiro […] apresenta características de afabilidade, sedução e sugestionabilidade pueris, que fazem dela urna vítima potencial a necessitar de protecção.
  2. Sobre esta condição incidiu um estado ansioso (com libertação/acentuação de vectores paranóides) […]
  3. Por força da primeira destas afecções (a segunda a potenciar as limitações que a segunda acarreta), cuja cura está para além das possibilidades da medicina actual, está a requerida incapaz de reger convenientemente o seu património.

            Estas conclusões podiam ser tiradas pelo perito médico?

            Este perito tirou tais conclusões com base em dois exames que fez, um para esclarecimento de dúvidas que a requerida tinha levantado.

            Os dois relatórios, conjugados, dão o seguinte resultado (do qual apenas se retiram as afirmações dos dois irmãos que tinham sido feitas fora da presença da requerida, numa visita que o perito tinha feito para fazer o exame no local onde ela residia, já que a requerida não as ouviu e não se pronunciou sobre elas:

        O perito – coordenador do serviço de psiquiatria forense do Hospital de X – visitou a requerida em sua casa a 03/06/2014, tendo-se esta fechado à chave no seu quarto dizendo ao irmão “nunca pensei que me fizesses isto” (sic) ao aperceber-se da presença do perito e sua estagiária.

        Viria pouco depois a sair para dizer “deixai-me em paz! deixai-me um paz!” (sic) e que os irmãos não podiam fazer “aquilo” sem que primeiro lhe pedissem autorização, não se deixando ver e voltando à reclusão do seu quarto.

        A requerida aparenta idade correspondente à real, aspecto físico regular (abundante falta de dentes), compostura pessoal adequada às condições sócio-económicas e climatéricas.

        O contacto captou ligeira indiferenciação psico-afectiva, afabilidade e sugestionabilidade néscio/pueris, e leve elação do humor com taquipsiquismo, tingida aqui e além por tendência interpretativa e suspicácia.

        A consciência vigil e orientada, permitia uma atenção captável, funções mnésicas conservadas, funções intelectivas cujo rendimento apontava pura a infradotação ligeira.

        Não apresentou sinais ou sintomas que permitissem inferir actividade alucinatória/delirante (o complexo de ideias sobrevalorizadas, acalentado pela requerida e segundo as quais os irmãos a querem descartar, abandonando-a à sua sorte, permitem ainda o contraditório, não tendo por essa razão qualidade delirante) ou que indiciassem estado tóxico, alcoólico ou outro.

        Ao discurso, espontâneo, circunstanciado e algo digressivo, com apreciáveis recursos semânticos se atendermos às limitações intelectivas da requerida, e sem distorções sintácticas relevantes, subjazia um pensamento que, formalmente, surgia com dificuldades para se elevar em movimentos abstractivo/categoriais (não foi capaz de decifrar adágios populares, por exemplo: – nem tudo o que brilha é ouro? “eu limpo um vidro e fica a brilhar mas não é ouro… de limpezas sei eu”; – grão a grão enche a galinha o papo? “pode ser milho… enche sim, se comer muito, enche; – água mole em pedra dura tanto dá até que fura? “vai indo, vai indo, acaba por desgastar a pedra até furar”) e cursava algo acelerado

        Contou a avaliada que se escolarizou até aos 14 anos de idade tendo completado a quarta classe. Entre os 14 e os 17 anos de idade trabalhou “a dias, cm limpezas” auferindo cerca de 50 escudos à hora. Então, o problema de alcoolismo da progenitora impediu­-a de cuidar das coisas domésticas, empurrando a requerida para essas tarefas que foi desempenhando como pôde. Nunca mais se empregou, não voltou a ter qualquer remuneração. Era seu pai quem custeava todas as suas despesas, dando-lhe uma espécie de semanada. Porém, quando o pai sofreu o acidente vascular cerebral que o atirou para a cama, levando a requerida a ter mais esta responsabilidade e carga “laboral” de cuidar do pai, “a cabeça não aguentou … dava tombos, não sei se era AVC.” (sic)

        Mas foi quando, uns meses atrás (?) a gata foi histeroctomizada devido a neoplasia maligna, e a irmã da requerida a confrontou com a necessidade de lhe descontar da semanada as despesas com o veterinário, que verdadeiramente se angustiou; “fiquei a cismar… apavorada, fiquei com trauma… medo de ir para debaixo da ponte… ela (a irmã) é que tem o dinheiro do meu pai por transferência bancária e eu não tenho nada… tanto trabalhei e agora ser abandonada.” (sic) Persiste até hoje este medo. Não usufrui de qualquer pensão. Já lhe foi dito que deve recorrer à sua médica de saúde familiar a fim de pôr em marcha o pedido de junta médica para efeitos de pensão de invalidez, por exemplo. Mas, se por um lado “os papéis complicam-me, fico nervosa, começo a falar mal… não entendo bem as coisas, tenho este meu atraso” (sic), por outro lado recusa-se a ir à médica por receio de ser internada e ficar sem tecto durante o internamento. Receia que os irmãos não a deixem voltar para casa.

        Considera, contudo, que necessita da ajuda deste irmão para governar a sua vida que foi sempre gerida pelo agora inválido progenitor. Pareceu permeável à ideia de ser acompanhada em consulta de psiquiatria, ao menos para que a sua angústia seja psico-farmacologicamente mitigada.

        Na nova entrevista, a irmã da requerida (que estava presente, tal como a advogada da requerida e o outro irmão) contou que a requerida, há uns 20 anos, engravidou e teve uma criança na Maternidade X, criança que foi dada para adopção devido à incapacidade da requerida para dela cuidar. Disse ainda que a avaliada cozinha “à sua maneira” (mal) e usa utensílios seus por ser incapaz de comer de um prato onde outra pessoa tenha tocado. Que gasta muito dinheiro em comida (por exemplo, quatro costeletas ou um frango inteiro a uma refeição) porque a dá a gatos e outros animais. E que ela parte muita louça.

        Por outro lado, é cuidadosa na higiene pessoal.

        Disse então a requerida estar ciente do que ali a trazia e sentir necessidade de apoio e protecção de terceiros, logo afirmando preferir o irmão para a tutelar.

        Referiu ainda que já não desconfia das intenções dos irmãos a seu respeito como aconteceu em outras alturas. Confirmou (sorrindo e rindo algo néscia) que cozinha grandes quantidades de alimentos (designadamente galinha e costeletas) mas só lhe agrada “chuchar” os ossos, dando a carne aos animais “que também precisam de comer.” (sic) E que com frequência atira pratos ao chão, partindo-os (ri-se, pueril), porque se irrita. Não soube explicar porque era incapaz de comer em pratos onde outros haviam tocado. Disse a respeito: “Fui sempre muito nojenta como o meu pai… começo a tremer, a tremer, e os pratos caiem ao chão mas se gostar da pessoa já consigo… eu gosto do Dr. X [o médico que estava a fazer o exame]. Se pegasse no meu prato eu era capaz de comer.” (sic)

        Não apresentou sintomatologia depressiva, muito pelo contrário.

        Continua a recusar acompanhamento por psiquiatria, desta vez argumentando que “fico a cismar no que os médicos dizem” (sic), e mostra-se reticente em consultar ginecologista, mesmo sabendo (ao que diz) que existe a possibilidade de engravidar por ter namorado com quem terá encontros físicos. Menos mal que a última menstruação ocorreu em Setembro do ano passado, “no mês a seguir a vir cá ao Dr. X.” (sic)

                                                       *

            Perante isto, vejam-se agora as conclusões do recurso em que a requerida põe em causa estas conclusões periciais:

            A conclusão 1 é uma simples acusação genérica, sem concretização alguma; a conclusão 7 é apenas uma variante da 1; as conclusões 8 e 9 baseiam-se em factos que não foram dados como provados na parte que importa; a conclusão 10 é uma nova variante da primeira, com a mistura da invocação de facto não provado e de outro provado mas irrelevante; a parte inicial da conclusão 11 é uma nova variante da conclusão 1.

            Em suma, para além de uma argumentação baseada em factos não provados, a requerida não faz qualquer tentativa de demonstração de que o perito médico não podia, com os factos que apurou, ter chegado às conclusões a que chegou.

                                                      *

                  Da (não) insuficiência dos factos para a decisão

            Perante o que antecede, seria necessário proceder ao interrogatório da requerida, ouvir o irmão e médica de família da requerida e outras testemunhas (não se sabe quais) e “promover” qualquer informação complementar? Ou o tribunal podia decidir logo, como decidir.

            Quanto ao interrogatório da requerida, antes de mais poderia colocar-se a seguinte questão (mas a requerida não a colocou, certamente por concordar com o que se segue): 

            Diz o art. 896 do CPC, depois da reforma de 2013, sob a epígrafe prova preliminar, que “quando se trate de acção de interdição, ou de inabilitação não fundada em mera prodigalidade, procede-se, findos os articulados, à realização do exame pericial ao requerido e, tendo havido contestação, ao seu interrogatório.”

            Logo, não tendo havido contestação, não se procede ao interrogatório.

            No entanto, o processo foi intentado em 2012 e, antes da reforma de 2013, o art. 949 do CPC, equivalente àquele, dizia que, proceder-se-á, findos os articulados, ao interrogatório do requerido e à realização do exame pericial.

            No caso dos autos, a fase dos articulados findou já depois da entrada em vigor da reforma do 2013 do CPC, pelo que a questão da prova preliminar se colocou já no âmbito da vigência da redacção do CPC depois da reforma, pelo que, não havendo nenhuma norma transitória que fizesse vigorar para o futuro a anterior redacção (como resulta dos 7 artigos da Lei 41/2013, de 26/06, nenhum deles se referindo à fase da produção de prova no âmbito de processos especiais), a que se aplicava era a nova, que não previa o interrogatório. Como diz, por exemplo, Marco Carvalho Gonçalves, o art. 5/1 da Lei 41/2013, “estabelece a regra segundo a qual o novo CPC é imediatamente aplicável às acções pendentes. Trata-se, com efeito, do princípio da aplicação imediata da nova lei processual, segundo a qual, à luz do art. 12 do CC, com as devidas adaptações, a nova lei processual civil deve aplicar-se não só às acções futuras, como também aos actos futuros a serem praticados em acções pendentes” (Notas sobre o regime transitório de aplicação do novo CPC, CDP Out/Dez2013, nº. 44, págs. 23/24, com remessa para Antunes Varela; e diz o Prof. Antunes Varela: “Deve aplicar-se imediatamente a lei que, dentro da forma de processo que está a ser seguida, suprima um acto ou altere os pressupostos da sua prática” – Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 55, nota 1).   

            Assim sendo, não tendo havido contestação, não havia lugar a interrogatório pelo que não se tinha de proceder ao mesmo.

            Depois, diz o art. 899 do CPC, na nova redacção, a aplicável a partir de 01/09/2013 como já se viu, agora sob a epígrafe termos posteriores ao interrogatório e exame, que: 1 — Se o interrogatório, quando a ele haja lugar, e o exame do requerido fornecerem elementos suficientes e a ação não tiver sido contestada, pode o juiz decretar imediatamente a interdição ou inabilitação. E o n.º 2 acrescenta: — Nos restantes casos, seguem-se os termos do processo comum, posteriores aos articulados; sendo ordenado na fase de instrução novo exame médico do requerido, aplicam-se as disposições relativas ao primeiro exame.

            Perante estas normas pode-se concluir que não tendo havido contestação, não havia lugar a interrogatório e findo o exame, se este fornecesse elementos suficientes, o juiz podia decretar logo a inabilitação. Não tinha nem devia, nesse caso, proceder a outras diligências de prova.

            Quanto ao interrogatório (pelo juiz), não deixe de se dizer que era particularmente desnecessário no caso, pois que o mesmo tem por fim averiguar da existência e do grau de incapacidade da requerida (art. 897 do CPC) e no caso o exame pericial consistiu em duas entrevistas à requerida, feita por um coordenador de psiquiatria forense de um Hospital EPE que, dada a sua especialização, muito melhor que o juiz poderá averiguar da existência e do grau de incapacidade da requerida. E como isto normalmente é assim e a possibilidade de contestação da requerida é potenciada pela su-cessiva citação de pessoas para o efeito, compreende-se bem que o legislador tenha dispensado o interrogatório quando os requeridos não contestam.

            Assim, a única coisa que resta discutir é se perante os factos provados, a inabilitação devia ou não ter sido decretada, ou se se devia ter procedido à produção de outra prova.

                                                      *

                                      Conteúdo da sentença

            O art. 153/1 do Código Civil diz que os inabilitados são assistidos por um curador, a cuja autorização estão sujeitos os actos de disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de cada caso, forem especificados na sentença.

            O art. 154/1 do CC diz que a administração do património do inabilitado pode ser entregue pelo tribunal, no todo ou em parte, ao curador. E o nº. 2 acrescenta que neste caso, haverá lugar à constituição do conselho de família e designação do vogal que, como subcurador exerça as funções que na tutela cabem ao protutor.

            Resulta daqui que a sentença de inabilitação pode levar a uma situação de necessidade de autorização para a prática de actos de disposição de bens entre vivos ou outros actos que sejam especificados na sentença (inclusive actos relativos ao governo das pessoas dos inabilitados) ou ir mais além e considerar que a própria administração do património do inabilitado deve ser entregue, no todo ou em parte, ao curador (neste preciso sentido, veja-se Anabela Susana de Sousa Gonçalves, Breve estudo sobre o regime jurídico da inabilitação, em Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Heinrich Ewald Hörster, Almedina, Dez2012, especialmente págs. 120/121, e as anotações de António Agostinho Guedes aos arts. 152 a 156 do CC, no Comentário ao CC, Parte Geral, UCP, Set2014, págs. 336 a 343, entre o mais nas págs. 338/339, anotação 4: “a inabilitação é uma incapacidade específica: em princípio, o inabilitado fica impedido de praticar, por acto próprio, apenas actos de disposição de bens, mantendo, porém, capacidade para praticar actos de mera administração e outros previstos na lei. Todavia, a lei permite que o tribunal retire ao inabilitado a capacidade para praticar outros actos, adaptando a incapacidade de exercício do inabilitado à sua incapacidade natural. Esta restrição acrescida deverá ser especificada na sentença e parece poder referir-se também a actos de natureza não patrimonial [o autor remete depois para Carvalho Fernandes […] o decretamento da inabilitação envolve sempre para o inabilitado pelo menos a incapacidade de praticar actos de disposição de bens. […] O tribunal pode, porém, entregar ao curador parte ou a totalidade da administração do património do inabilitado […]”).

            A sentença, tendo apenas decretado a inabilitação, sem dizer mais nada, apenas diz respeito à primeira situação; daí que nada tenha dito quanto à administração dos bens da inabilitada e a fundamentação da sentença se refira só à necessidade de que a requerida seja assistida por curador em todos os actos de disposição do seu património.

            Isto embora a sentença tenha nomeado vogais para o conselho de família o que só teria sentido se a administração do património da inabilitada tivesse sido entregue pelo tribunal, no todo ou em parte, ao curador, o que manifestamente não sucedeu.

            Assim, o que importa decidir no caso dos autos é se os factos que já podiam ser dados como provados autorizavam ou não a conclusão, pelo juiz, de que a requerida necessitava ser assistida por curador em todos os actos de disposição do seu património e isso por anomalia psíquica que a incapacitava de governar, sozinha, os seus bens.

            Ora, os factos permitiam claramente essa conclusão, pois que a requerida apresenta uma personalidade imatura e é intelectualmente infra dotada, padecendo de um atraso mental ligeiro, pelo que, embora conheça o dinheiro, o seu valor e para o que serve, mostra-se incapaz de o gerir adequadamente e apresenta uma personalidade sugestionável, sendo extremamente influenciável por terceiros desconhecidos.

            Por isso não havia dúvidas quanto aos factos provados e que estes possibilitavam a conclusão tirada, pelo que nada mais era preciso para que o juiz decretasse a inabilitação ainda para mais com o alcance restrito que lhe deu, que apenas respeita à necessidade de autorização de um curador para a prática de actos de disposição do seu património.

            E, assim sendo, improcedem todas as razões aduzidas contra tal decisão nas conclusões 11 (parte ainda não apreciada) a 20 do recurso da requerida.

                                                       *

            Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

            Custas pela requerida.

            Porto, 23/06/2015

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto