Acção sumária 1186/09.4TBVLG do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo
Sumário:
- Parte da doutrina e da jurisprudência admite que o administrador do condomínio pode, em representação do condomínio, exigir ao empreiteiro a eliminação dos defeitos de construção, nos termos do art. 1221, ex vi art. 1255 do CC, ao abrigo do art. da al. f) do art. 1436 do CC, enquanto que outra parte não o admite, exigindo a autorização da assembleia de condóminos por força do art. 1437/1 do CC. No caso dos autos, não interessa tomar partido na questão, já que, existe a ratificação, pela assembleia, da actuação do administrador.
- O empreiteiro não se pode prevalecer, sob pena de abuso de direito (na modalidade do to quoque) da actuação do seu gerente que, sendo também administrador/representante do condomínio, fez, enquanto tal, denúncia de defeitos no edifício mas depois omitiu a propositura da acção de eliminação dos mesmos apesar da inércia do empreiteiro, deste modo levando à caducidade do direito de propor tal acção em relação a alguns defeitos. Desconsiderada esta actuação, não se verifica a caducidade.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
O Condomínio do Edifício J, representado pelo seu administrador D, intentou a presente acção contra B, Lda, pedindo a condenação desta a reparar defeitos de construção existentes no edifício J.
Alega para o efeito, em síntese, que a ré se dedica à construção e comercialização de imóveis, tendo sido ela quem construiu e vendeu o Edifício; este apresenta defeitos e anomalias que foram denunciados à ré (por comunicações de Maio e Agosto de 2008) e esta nada fez para os reparar.
a ré contestou, excepcionando a ilegitimidade do autor (por falta de autorização) e a caducidade do direito de acção (por denúncia de defeitos efectuada em Julho de 2006 e decurso do prazo do art. 916 ou mesmo do art. 1225, ambos do CC), e impugnou, negando a sua responsabilidade pelos defeitos em causa e concluindo pela improcedência da acção.
A autora respondeu às excepções deduzidas, defendendo a sua legitimidade (juntando para o efeito acta de ratificação da actuação do administrador) e que a caducidade não pode operar, porquanto a presente acção foi instaurada no prazo legal e a eventual denúncia de alguns dos defeitos, feita em Julho de 2006 pelo administrador anterior, não teria valor (mesmo que existisse e fosse real o conteúdo invocado) porque no período de 2006 a 2008 o administrador do condomínio era, em simultâneo, o sócio-gerente da ré e tal denúncia teria sido arquitectada para provocar a caducidade do direito da autora; concluiu pela improcedência das excepções invocadas.
Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu pela improcedência da excepção de ilegitimidade suscitada pela ré.
Depois de realizado o julgamento foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente por provada, e, em consequência, condenando a ré a reparar os seguintes defeitos de construção existentes no Edifício:
Bloco A: Interiores: – fissura vertical na fachada da frente e que se estende desde o 1.º piso até ao 6.º piso; – fissura horizontal na fachada da frente ao nível do 10.º piso e que se estende em quase toda a largura do edifício; – o muro lateral de acesso è entrada da garagem (n.º21), o qual se encontra escanado; – a floreira que se encontra no logradouro da Rua X, cujas soleiras se encontram escanadas.
Bloco A: – painéis de madeira que revestem o hall no acesso à entrada os quais se encontram danificados e apodrecidos pela existência de humidades e/ou infiltrações de água.
Bloco B: – fissuras na fachada da frente do prédio e que se estendem no sentido vertical entre os 1.º ao 4.º pisos. – fissura com uma extensão de aproximadamente 2 metros na fachada, ao nível do 8.º piso e que ocasiona infiltrações de água na fracção “DH”;
Garagem: – fissura na parede do hall de acesso ao piso (-1) da garagem. – fissuras nas paredes dos lugares de garagem das fracções BJ, BR, BS, BU, BZ, CA, CD, CX, DH, DD e DI.
– e absolvendo a ré do pedido de: – reparar a botoneira de chamada do elevador do patamar 0 (zero). – reparar o poço de um dos elevadores. – reparar o talude do canteiro de jardim (em frente ao Bloco B) que nunca foi ajardinado. – requisitar e instalar um contador na garagem do piso 0.
A ré recorre desta sentença – para que seja revogada – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) O administrador do condomínio apenas pode, por força do disposto no art. 1433/6 do CC, agir em juízo e em representação dos condóminos quando a assembleia-geral lhe confira autorização para tal e no âmbito da sua competência;
B) O administrador não é mais do que um representante judiciário e, consequentemente, não é por definição, parte legítima numa acção, nem passiva nem activamente, pois só o seu representado como verdadeiro titular do interesse directo em contradizer ou demandar – art. 26/1 do CPC – tem essa qualidade;
C) A recorrida não é parte legítima.
D) A recorrida denunciou os defeitos em Julho de 2006.
E) Nos termos do disposto no art. 917 CC, a acção por simples erro caduca findo qualquer dos prazos previstos no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia ou ter decorrido sobre esta seis meses;
F) A entender-se que se aplica o regime previsto no art. 1225 do CC, a acção deveria ter sido intentada no prazo de um ano a contar da denuncia dos defeitos, pelo que a não ter sido proposta, caducou o direito de acção;
G) A sentença violou o disposto nos arts 1433/6, 917, 287/2 e 1225 do CC e 26/1 do CPC.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Questões que importa decidir: da falta de legitimidade [conclusões A) a C)]; da caducidade do direito de acção [conclusões D) a G)].
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Foram considerados como provados os seguintes factos [os sob alíneas vêm dos factos assentes; os sob nºs árabes vêm da resposta aos quesitos; os sob nºs romanos foram acrescentados na sentença]:
A) A ré dedica-se à construção e comercialização de imóveis.
B) Tendo sido a ré quem construiu e vendeu o prédio denominado Edifício J, sito na Rua X.
C) O referido edifício apresenta os seguintes defeitos de construção que ora se discriminam:
Bloco A
Interiores:
– Existe uma fissura vertical na fachada da frente e que se estende desde o 1.º piso até ao 6.º piso;
– É visível uma fissura horizontal na fachada da frente ao nível do 10.º piso e que se estende em quase toda a largura do edifício;
BLOCO B
– Existe fissuras na fachada da frente do prédio e que se estendem no sentido vertical entre os 1.º ao 4.º pisos.
– Existe uma fissura com uma extensão de aproximadamente 2 metros na fachada, ao nível do 8.º piso e que ocasiona infiltrações de água na fracção “DH” sempre que chove, tendo vindo a provocar danos no interior da mesma fracção nomeadamente sala e cozinha;
GARAGEM
– Existe uma fissura na parede do hall de acesso ao piso (-1) da garagem.
1. Para além dos referidos em C) o edifício identificado em B) tem, no Bloco A, interiores, os painéis de madeira que revestem o hall no acesso à entrada danificados e apodrecidos pela existência de humidades e/ou infiltrações de água.
2. No Bloco A, interiores, a botoneira de chamada do elevador do patamar 0 (zero) está danificada.
3. No Bloco A, interiores, o poço de um dos elevadores recebeu, por uma vez, infiltrações de água.
4. No Bloco A, exteriores, o muro lateral de acesso è entrada da garagem (n.º21) está escanado, tal como a floreira que se encontra no logradouro da Rua X, cujas soleiras também se encontram nas mesmas condições.
5. O talude do canteiro de jardim (em frente ao Bloco B) nunca foi ajardinado.
6. Também no Bloco A, a garagem do piso 0 (zero) embora tenha o local para instalação de um contador de electricidade na verdade não foi requisitado.
9. Existem fissuras nas paredes dos lugares de garagem das fracções BJ, BR, BS, BU, BZ, CA, CD, CX, DH, DD e DI.
10. Na sequência, logo que detectados tais defeitos e anomalias foram denunciados à ré, conforme doc.1 e 2 juntos, cujo teor se dá por integralmente por reproduzido. Um dos documentos é uma carta, datada de 02/05/2008 e o outro é um fax datado de 12/08/2008. [Esta concretização é feita agora neste acórdão]
11. A ré apesar de interpelada nada faz para solucionar a situação.
12. Em 2006 a autora enviou à ré a carta registada com aviso de recepção, constante de fls. 23, 24 e 25, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
Destes documentos, com conteúdo útil, resulta o seguinte: por carta de 10/07/2006 e com referência a um mapa/resumo de anomalias anexo, são enumerados os seguintes pontos:
[…]
6. Fissura com cerca de 2m de extensão na fachada do bloco B, junto ao 8º piso;
7. Fissura horizontal na fachada nascente, junto ao 10º piso;
8. Fissura na parede do hall de acesso à garagem no Piso -1.
[Esta concretização é feita agora neste acórdão. Note-se que existem uma palavra e sinais manuscritos a lápis na fls. 24, que não são aqui considerados por não haver nenhum indício de que já constassem de tal folha antes de ela ser junta ao processo]
I. A presente acção deu entrada em juízo no dia 26/03/2009.
II. A carta referida em 12 supra, encontra-se assinada por C (documentos 23 e 24).
III. Por deliberação da Assembleia-geral do Condomínio do Edifício J, ocorrida no dia 01/09/2004, foi eleito por unanimidade como administrador do condomínio o Sr. C (Acta n.º1 de fls. 175).
IV. Por deliberação da Assembleia-geral de Condomínio do Edifício J, ocorrida em 02/10/2006, foi eleito por unanimidade, como administrador do condomínio o Sr. Eng. C, a vigorar para o período 01/11/2006 e 31/10/2007 (Acta n.º2 de fls. 178 e seguintes).
V. Por deliberação da Assembleia-geral de condomínio do Edifício J, ocorrida em 06/02/2007, foi eleito por maioria, como administrador do condomínio o Sr. Eng. C, a vigorar para o período 01/01/2007 e 31/12/2007 (Acta n.º3 de fls. 181).
VI. Por deliberação da Assembleia Geral de Condomínio do Edifício J, ocorrida no dia 09/01/2008, foi eleita como administradora do condomínio a empresa “D”, sita na Rua X (acta n.º 4 de fls. 185 a 188).
VII. C exerceu o cargo de gerente na ré desde 11/05/1998 até 11/04/2008, data em que renunciou ao mesmo (certidão comercial da ré constante de fls.193 a 197).
Facto tido em conta no despacho saneador ao decidir a questão da legitimidade [embora transcrito agora de forma mais completa]:
VIII. No dia 27/03/2009 a Assembleia Ordinária do Condomínio do Edifício, deliberou, por unanimidade dos presentes, relativamente ao ponto 2, pela ratificação da proposta de accionar judicialmente o promotor da obra [a ré], pelo facto de não ter corrigido os defeitos de construção nas áreas comuns em devido tempo denunciados, pelo que o administrador ficou legitimado para agir judicialmente, tal como assim foi comunicado aos presentes tê-lo feito para acautelar os interesses e direitos do Condomínio (documento de fls. 45 a 50 = fls. 35 a 38, com transcrição dactilografada a fls. 51/53).
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Da legitimidade
Não é o art. 1433/6 do Código Civil que rege a questão da legitimidade [ou melhor: dos poderes de representação judiciária] do administrador para este tipo de acções [em que é parte o condomínio: art. 6/e) do CPC]. O art. 1433 dispõe para as acções de impugnação das deliberações, o que nada tem a ver com o caso.
É antes o art. 1437/1 do CC que trata da matéria, dando legitimidade (ou antes: poderes de representação) ao administrador para agir em juízo, em nome do condomínio, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
Ora, entre as funções que pertencem ao administrador está, di-lo a al. f) do art. 1436 do CC, o realizar os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns, e entre eles está, segundo parte da doutrina e da jurisprudência, o de poder exigir a eliminação dos defeitos nos termos do art. 1221, ex vi art. 1255/3 do CC (neste sentido, veja-se Sandra Passinhas, A assembleia de condóminos e o administrador na propriedade horizontal, Almedina, págs. 311 a 315, especialmente págs. 312 a 314; bem como, entre outros, os acórdãos do TRP de 26/06/2006, 0652865 da base de dados do IGFEJ, que cita no mesmo sentido o de 22/02/2005, CJ.I, pág. 195 e do TRL de 04/11/2008, 2552/2008-1).
Mas, mesmo que, acompanhando parte de outra jurisprudência, assim não se entendesse, no caso até existe uma deliberação da assembleia de condóminos a ratificar a propositura da acção pelo administrador, o que seria suficiente para aqueles que a exigem ao abrigo do art. 1437/1, parte final, do CC, ou que a poderiam exigir, em cumprimento do disposto no art. 25 do CPC, para suprimento do vício que se considerasse existente (veja-se, no sentido da exigência da autorização, o ac. do STJ de 04/10/2007, 07B1875).
E tanto basta para assegurar a correcta representação (que não legitimidade) pelo administrador, nesta acção em que é autor o condomínio, este sim parte legítima (formal) na acção.
A explicação do regime do art. 1437 do CC e das questões de legitimidade do condomínio e de representação judiciária do administrador, está dada, com desenvolvimento, no artigo de Miguel Mesquita (A personalidade judiciária do condomínio nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos – anotação ao ac. do TRL de 25/06/2009, 4838/07.0TBALM.L1-8, Cadernos de Direito Privado, nº. 35, Julho/Set 2011, págs. 43 a 56, especialmente para o caso nas págs. 47 a 51).
O condomínio é pois parte (formal) legítima e o administrador seu regular legal representante.
Pelo que não devia proceder, como não procedeu, a excepção deduzida.
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Da caducidade do direito de acção
A sentença recorrida esclareceu, com a devida fundamentação, que a questão de caducidade invocada dizia respeito à do prazo para a propositura da acção, subsequente à denúncia, e que tal questão era regulada pelo art. 1225 do CC e não no art. 916 do CC. Depois, tendo em conta a denúncia dos defeitos pelas comunicações de Maio e Agosto de 2008 (facto 10) e o facto de a acção sido intentada em Março de 2009, concluiu que, à data, ainda não tinha decorrido o prazo de 1 ano de caducidade do art. 1225/2 do CC, parte final.
A ré, sem discutir nada disto em concreto, diz que se aplica o art. 917 do CC, e depois diz que mesmo que se aplicasse a regra do art. 1225 o direito de acção já tinha caducado. É que, segundo a ré, a denúncia dos defeitos foi feita por carta de Julho de 2006 (facto 12) e como a acção só foi intentada em 26/03/2009 já há muito teria decorrido o ano previsto no art. 1225/2.
A sentença aceita que, em relação a três concretos vícios nas partes comuns do Edifício, eles tinham sido denunciados na carta do administrador do autor de 10/07/2006 (facto 12). No entanto, considera que, como a carta de 2006 foi assinada pelo próprio gerente da ré (de 1998 a 2008), actuando como administrador do condomínio (de 01/09/2004 a 09/01/2008), o prazo de caducidade de denúncia dos defeitos não se poderia iniciar daquela data, mas só a partir do momento em que o gerente da ré deixou de ser administrador do condomínio. De outro modo haveria abuso de direito.
A fundamentação da sentença, nesta parte, é a seguinte:
“Ou seja, a pessoa que assinou a carta constante de fls. 23 e 24, datada de 10/07/2006 a comunicar vícios e defeitos existentes no Edifício […] à ré construtora/vendedora desse edifício, era a mesma pessoa que do lado da ré recebeu a carta e, na qualidade de gerente da ré, participou na decisão de nada fazer quanto à eliminação dos vícios então comunicados.
Por outro lado, essa pessoa, na qualidade de então administrador do Condomínio, tomou a decisão de, em face da inércia da ré (por si representada também), nada fazer, designadamente, não instaurar acção judicial contra a ré no ano que seguiu ao envio da aludida carta enviada em 10/07/2006 a denunciar vícios, já à data existentes no Edifício.
De todo o exposto, só podemos concluir, que o facto de o autor não ter reclamado da ré a competente indemnização no ano que seguiu à comunicação dos vícios existentes no edifício aqui em causa, operada pela carta enviada no ano de 2006, é da exclusiva responsabilidade da aludida pessoa, o qual actuou em representação e benefício exclusivo da ré, como de resto, a ré não pode desconhecer.”
E depois de citar o art. 165 do CC, sobre a responsabilidade civil das pessoas colectivas, e o art. 500 do CC, responsabilidade do comitente, continua:
“Dos trechos legislativos acabados de transcrever resulta que a ré, como pessoa colectiva que é, responde perante terceiros, pelas consequências decorrentes para aqueles, dos actos praticados pelos seus representantes legais, em seu nome e interesse.
Ora, considerando que ré beneficiou, claramente, da actuação da aludida pessoa, pessoa que no ano de 2006 tinha na ré poder decisório, ainda que não individualmente, não pode pretender agora a ré hastear a caducidade como forma de impedir, ainda que parcialmente, o direito de o autor reclamar os defeitos que alega existirem no prédio por aquela construído e vendido.
Falamos de claro abuso de direito.”
E depois de caracterizar o abuso de direito em geral, acrescenta:
“ Em face de todo o exposto, concluímos que, atentas as circunstâncias dados por provados nos autos, considerar […] o prazo de um ano para a denúncia dos defeitos, a partir da carta enviada pelo autor à ré no ano de 2006, configura um verdadeiro Abuso de Direito.
Em conformidade, entendemos que o prazo de caducidade para a denúncia dos vícios existentes no Edifício [….], deverá ter o seu início no dia seguinte a 09/01/2008, altura em que aquela pessoa deixou de ser administrador do condomínio do Edifício […]
Assim, considerando aquela data, verifica-se que a denúncia dos vícios e defeitos existentes no prédio, operada pela carta datada de 02/05/2008, por não ter decorrido prazo superior a 1 ano, é perfeitamente tempestiva, bem como o é, o pedido de reparação reclamado através da presente acção, sendo certo, que a presente acção entrou em juízo antes de ter decorrido o prazo de um ano, por referência à denúncia dos aludidos vícios ou seja, 02/05/2008.
Pelos fundamentos supra expostos, improcede a excepção de caducidade invocada pela ré.”
Aceita-se, no essencial, esta construção da sentença.
Dando por reproduzidas (as partes têm a sentença em seu poder e por isso não interessa transcrever aqui a fundamentação respectiva) as considerações tecidas na sentença quanto à questão do abuso de direito, chocaria realmente uma consciência jurídica bem formada admitir que a ré empreiteira se pudesse prevalecer da actuação do seu gerente, que actuando simultaneamente como administrador/representante de um condomínio, numa questão em que existe um óbvio conflito de interesses entre o condomínio e a ré, fez uma denúncia de defeitos para logo de seguida omitir o acto consequente à defesa dos interesses daquele, isto é, não propôs a acção de eliminação de defeitos no prazo de 1 ano apesar da inércia da ré, isto, pelo menos objectivamente, em benefício dos interesses da ré.
Aliás, se não se tirasse a conclusão do abuso, estaria encontrada a maneira de todos os empreiteiros de edifícios se eximirem às suas obrigações de eliminação dos defeitos. Conhecedores, por terem sido eles a construírem-no, dos vícios de um edifício, constituíam-no em propriedade horizontal, nomeavam-se administradores do condomínio, denunciavam os vícios na qualidade de administradores do condomínio, deixavam decorrer, enquanto administradores do condomínio, o ano para a propositura da acção e depois, enquanto empreiteiros, invocavam o decurso do prazo da caducidade. Não pode ser. Há, como diz a sentença recorrida, um claro abuso de direito (art. 334 do CC).
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Um parêntese para esclarecer, justificar ou desenvolver cinco pontos do que antecede:
– No sentido de que o administrador tem de defender os interesses do condomínio, veja-se, por exemplo, Sandra Passinhas: “a actividade do primeiro [administrador] deve curar atingir o interesse imputável ao segundo [condomínio]. As relações de representação devem uniformizar-se com a relação de gestão, que vincula o representante ao dominus, e à necessidade de constante tutela do interesse deste último.” (obra citada, pág. 197).
– Note-se que se fala de empreiteiros no geral, para incluir empreiteiros ou sociedades empreiteiras representadas por gerentes que são simultaneamente administradores dos condomínios em potencial conflito com elas.
– No sentido de admitir que pode haver casos em que se tenha impedido o titular do direito de intentar a tempo a acção impeditiva da caducidade e, depois, se tenha vindo invocar esta última e em que, por isso, poderá ser necessário fazer apelo ao princípio da boa fé de modo a evitar esse resultado, veja-se Menezes Cordeiro (Da caducidade no direito Português, Estudos em Memória do Prof. Doutor José Dias Marques, Almedina, Jan2007, pág. 24).
– o caso enquadra-se, dentro do abuso de direito, no tipo de casos agrupados sob a locução tu quoque, que “exprime a máxima segundo a qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso, ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente, ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.” (Menezes Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves – Vol. II, Coimbra Editora, Stvdia Ivridica, Dez2008, pág. 153), que tem na sua base a seguinte fundamentação: “a ordem jurídica postula uma articulação de valores materiais, cuja prossecução pretende ver assegurados. Nesse sentido, ela não se satisfaz com arranjos formais, antes procurando a efectivação da substancialidade. Pois bem: a pessoa que viole uma situação jurídica perturba o equilíbrio material subjacente. Nessas condições, exigir à contraparte um procedimento equivalente ao que se seguiria se nada tivesse acontecido, equivaleria ao predomínio do formal: substancialmente, a situação está alterada, pelo que a conduta requerida já não poderá ser a mesma. Digamos que, da materialidade subjacente, se desprendem exigências ético-jurídicas que ditam o comportamento dos envolvidos” (Menezes Cordeiro, estudo citado, págs. 154 e 155). Ora, no caso dos autos, a ré está a invocar uma actuação ilícita (por violação das obrigações inerentes às funções de um administrador do condomínio) do seu próprio sócio gerente enquanto administrador do condomínio, de modo a provocar a caducidade do direito de acção deste. Assim sendo não lhe deve ser permitido aproveitar-se da situação assim criada.
– por fim, diga-se que a sentença tem toda a razão em aplicar ao caso o prazo do art. 1225/2 do CC e não o do art. 916 do CC como quer a ré [o que aliás seria indiferente, no caso, para a sorte da excepção de caducidade do direito de acção, como se verá de seguida], porque é aquela a norma aplicável no caso de vícios em imóveis de longa duração, mesmo quando o empreiteiro seja também o vendedor do imóvel, o que resulta desde logo dos nºs. 1 e 4 do art. 1225 do CC e é demonstrado amplamente pela sentença recorrida – com invocação de doutrina e jurisprudência adequada para o efeito -, para a qual se remete.
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Posto isto, diga-se que apenas não se segue a sentença recorrida na parte em que configura a actuação do gerente/administrador como um impedimento ao exercício do direito de denúncia de defeitos que terminou na data da nomeação de nova administração do condomínio.
A forma como acima se colocou a questão – que corresponde também, no que importa, à forma como a sentença a colocou – aponta para que seja o conjunto da actuação do administrador do condomínio/gerente da ré, ao fazer a denúncia e, perante a inércia da ré (de que era gerente), não ter intentado a acção a pedir a eliminação dos defeitos, em benefício objectivo dos interesses desta e em prejuízo objectivo dos interesses do condomínio, que tem de ser afastado, não apenas parte dessa actuação.
Desconsiderando-se a carta de 16/07/2006, por ter sido escrita pelo gerente da ré enquanto administrador do condomínio, como parte da actuação conjunta que a ré está a invocar para sustentar a caducidade do direito de propor a acção, deixa de haver qualquer facto que aponte para a denúncia de defeitos antes da denúncia que foi feita em Maio e Agosto de 2008 pelo novo administrador, bem como, aliás, da eventual existência de defeitos à data daquela primeira carta e menos ainda do seu conhecimento pelos condóminos.
Esta desconsideração torna desnecessário seguir, no caso, a solução proposta em termos genéricos por Menezes Cordeiro (Da caducidade…, local citado) – de se ter a acção por intentada no momento em que se verificou a perturbação impeditiva (seguindo a posição de Vaz Serra, em anotação ao ac. do STJ de 05/12/1972, publicada na RLJ 107, págs. 20-23, idem 23-28 (25)), que mais ainda beneficiaria a conclusão da improcedência da caducidade.
Por fim, como referiu a sentença, o abuso de direito, que é de conhecimento oficioso, bastando que estejam provados os factos necessários para o efeito, aprecia-se em termos objectivos, sem necessidade da prova da culpa. Esta interessaria para a responsabilidade civil do administrador. Foi certamente por isso que não foram levados à base instrutória uma série de factos alegados pelo autor e de que na síntese feita acima da resposta à contestação se deu notícia resumida.
Pelo que também esta excepção era improcedente.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pela ré.
Porto, 26/09/2013
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto