Quebra de segredo bancário – Oposição à execução 1832/13.5YYPRT-B – 1ª secção de execução do Porto – J2

            Sumário:

               Não deve ser quebrado o segrego bancário no âmbito de uma oposição à execução em que o embargante nem sequer excepciona a inexistência da relação fundamental (antes impugna a afirmação contrária feita pelos exequentes) e as informações pretendidas são irrelevantes para a contraprova da inexistência da relação fundamental (porque nem sequer foram feitas afirmações suficientes para prova dessa inexistência).

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            A e marido requereram uma execução contra os dois únicos herdeiros de B, com base num reconhecimento de dívida relativo a um empréstimo que lhe fizeram em data anterior a Janeiro de 2000 de 5000 contos.

            Um dos herdeiros deduziu oposição à execução em 23/04/2013, impugnando o empréstimo, dizendo, entre o mais, que a falecida nunca teve necessidade de recorrer a empréstimos e que levava uma vida desafogada.

            Na contestação à oposição, os exequentes impugnaram estas duas afirmações do embargante, invocando a existência de outras duas execuções contra a falecida (arts 64 a 66 da contestação) e, entre o mais, vieram requerer (ponto 3 de fls. 33) que fosse solicitado ao Banco de Portugal “para informar sobre o histórico da situação bancária da devedora […] a fim de aferir se há referência a incumprimentos”. Não fizeram referência a nenhum facto concreto que tivessem alegado e que se tornasse necessário e indispensável provar através de tais informações. Juntaram prova documental de uma das outras duas execuções e requereram uma diligência para prova da outra (mas acabaram por juntar prova dela por si próprios – conf. fls. 99 do processo electrónico da oposição à execução, entretanto pedido por este TRP para consulta) e ainda requereram depoimento de parte do embargante.

            O Banco de Portugal escusou-se a fornecer tais elementos, com base no dever de sigilo bancário.

            Os exequentes vieram requerer que fosse ordenado o levantamento do sigilo, sem invocar nenhum facto em concreto que fosse necessário e indispensável provar com tais informações.

            O opoente opôs-se, entre o mais invocando a absoluta inutilidade do pedido.

            A outra executada, como cabeça-de-casal, veio dizer que não autorizava o levantamento do sigilo bancário.

            O tribunal onde corre o processo desencadeou, por despacho de 07/03/2016, incidente de levantamento do sigilo bancário, ao abrigo dos arts. 519 do CPC e 135 do CPP, para obtenção das informações pretendidas pelos exequentes no ponto 3 de fls. 33, sem mencionar em concreto qual o facto para prova do qual o levantamento se tornava necessário,

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             Segundo o art. 78 do RGICSF (regime anexo ao DL 298/12, de 31/12, com 42 alterações a última das quais da Lei 118/2015, de 31/08, segundo consulta do site da Procuradoria-Geral distrital de Lisboa):

         1 – Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores [antes de 2014: empregados], mandatários, comissários [antes de 2014: comitidos] e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. 

         2 – Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.

         3 – O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.

             O artigo 79 do RICSF estabelece as excepções ao dever de segredo, entre elas, as que no caso interessam:

         1 – Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.

         2 – Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados: […]

  1. f) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.

            O art. 80, referente ao dever de segredo do Banco de Portugal, diz:

         1 – As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no BP, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas. 

         2 – Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao BP, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal. 

         […]

         5 – Fica igualmente ressalvada do dever de segredo a comunicação a outras entidades pelo BP de dados centralizados, nos termos da legislação respectiva.

            O artigo 83 referente a informações sobre riscos diz:

        Independentemente do estabelecido quanto ao Serviço de Centralização de Riscos de Crédito, as instituições de crédito poderão organizar, sob regime de segredo, um sistema de informações recíprocas com o fim de garantir a segurança das operações.

             O art. 417 do CPC no seu n.º 1 estabelece o dever de cooperação para a descoberta da verdade e no n.º 2 as consequências para essa falta.

             O art. 417/3c) do CPC admite a legitimidade da recusa em colaborar para a descoberta da verdade se a obediência importar […] b) intromissão na vida privada […]; c) Violação do sigilo profissional […], sem prejuízo do disposto no n.º 4.

             E o nº. 4 do art. 417 do CPC2013 dispõe que deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

             O art. 135 do CPP (na redacção da Lei 48/2007, de 29/08) dispõe, sobre o segredo profissional, o seguinte:

         1 – Os […] membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 

         2 – Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 

         3 – O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado […], pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é susci-tada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. 

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            Tendo isto em conta, nota-se, antes de mais, que a via seguida pelo tribunal de 1ª instância foi a imposta pelo acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ de 13/02/2008 (publicado na Iª série do DR de 31/03/2008) o qual, apesar de proferido na área crime tem aplicação na questão, porque as normas são as mesmas (por força do nº. 4 do art. 417 do CPC, com remessa para o art. 135 do CPP). No mesmo sentido deste acórdão de uniformização, veja-se, apenas por exemplo, o estudo de Ricardo de Gouvêa Pinto, A circulação do cheque e o sigilo bancário, Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Almedina, 2008, Vol. II, págs. 1159/1192, especialmente págs. 1167/1180). E que, por outro lado, a decisão deste incidente (que não é um recurso), por este tribunal da relação, não é uma decisão que conheça a final do objecto do processo.

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            A legitimidade da escusa por parte do BP é evidente, perante as normas já acima transcritas (principalmente, no caso, art. 80 e 81 do RGICF).

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            Nos termos adaptados do art. 135/3 do CPP, a quebra apenas se poderá considerar justificada, se, no caso, se considerar prevalecente o interesse subjacente ao dever de cooperação para a descoberta da verdade (que tem a ver com o interesse público da administração da justiça – tal como referido no ac. do STJ de 17/12/2009 sob 159/07.6TVPRT-D.P1.S1 da base de dados do ITIJ) sobre os interesses subjacentes ao dever de sigilo.

            O primeiro (dever de cooperação) tem a ver, também, com o interesse particular na averiguação do facto que se pretende obter com a informação pedida, enquanto o segundo (dever de sigilo) tem a ver com dois interesses distintos que são, na análise do dito AUF de 2008 (também publicado na base de dados do ITIJ sob o 07P894): por um lado, um interesse de ordem pública (do regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indirectamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos) e, por outro, o interesse de ordem particular do cliente da banca (protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a “biografia” de cada sujeito), interesse privado (mas não íntimo – como explica Saldanha Sanches no seu artigo sob Segredo Bancário, Segredo Fiscal: uma perspectiva funcional, publicado na Fiscalidade, Revista de Direito e Gestão Fiscal, nº. de Janeiro/Março de 2005, nº. 21, divulgado em http://www.saldanha-sanches.pt/pdf2/2005,%20Fiscalidade,%2021,%203342.pdf, págs. 35 a 37, invo-cando Canaris; contra, veja-se o ac. do TC 442/2007, de 14/08, na Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano 1, nº. 1, págs. 259 e segs e Gouvêa Pinto; expressando dúvidas, veja-se Luís Máximo dos Santos, em comentário àquele acórdão do TC publicado na mesma revista).

            Assim, a ponderação de interesses que está inerente à decisão do incidente de quebra de sigilo bancário existe com o fim de decidir quais daqueles interesses que, numa situação concreta de conflito, devem ceder para satisfação dos outros.

            Essa ponderação faz-se, tendo em conta, nomeadamente, a imprescindibilidade da quebra para a descoberta dos factos, a gravidade dos interesses em causa e a necessidade de protecção dos mesmos.

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            Ora, no caso dos autos, há algo que logo devia chamar a atenção para a total inutilidade das informações pedidas, embora em sentido oposto ao defendido pelo embargante:

            É que as informações pedidas não têm nenhum relevo para a prova da existência e do montante da dívida exequenda, ou seja, não se destinam a apurar se a devedora recebeu ou não o empréstimo e se fez ou não pagamentos.

            Destinam-se só a apurar ‘incumprimentos’ não concretizados pelos exequentes, para pôr em causa a afirmação feita pelo embargante de que a falecida nunca teve necessidade de recorrer a empréstimos e que levava uma vida desafogada.

            Note-se ainda que não está em causa um pedido de levantamento do segredo do banco onde a devedora tinha a conta, para prova, designadamente, de que a referida quantia mutuada tinha sido depositada na conta da devedora no banco particular.

            E também não se destina a provar a alegação de que a devedora fez um pagamento de juros de tal empréstimo (facto instrumental da constituição do mesmo).

            Trata-se apenas de apurar ‘referência a incumprimentos’, através do Banco de Portugal, sendo que não se diz, nem teria lógica que se dissesse, que o Banco de Portugal poderia fornecer informações de que o empréstimo em causa não tinha sido cumprido, ou, dito de outro modo, que os incumprimentos a que se refere o pedido de informações, sejam do empréstimo que está em causa nestes autos.

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            Posto isto, as informações em causa são irrelevantes essencialmente por dois motivos:

            Desde logo, porque é ao executado embargante que cabe o ónus de alegação e prova da inexistência da relação subjacente (art. 458 do CC: “se alguém, por simples declaração unilateral… reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”) e o embargante não fez sequer a afirmação que tinha que provar. O que ele fez foi impugnar a afirmação contrária feita pelos exequentes, o que não corresponde a excepcionar a inexistência da relação subjacente. Impugnar uma afirmação positiva de uma parte, não é fazer a afirmação negativa contrária.

            Como diz Antunes Varela: “[…e]stes actos [promessa de cum­primento e reconhecimento de uma dívida] [c]riam […] a presunção da existência de uma relação negocial ou extranegocial (a relação fundamental a que aquele pre­ceito se refere) sendo esta a verdadeira fonte da obrigação  [Há neste caso não só uma inversão do ónus da prova, mas um agravamento desse ónus, na medida em que o aparente devedor não tem apenas que afastar determinada causa, mas convencer o tribunal de que a prestação prometida ou a dívida reconhecida não têm nenhuma causa]. Por isso se inverte o ónus da prova, mediante uma verdadeira relevatio ab onere probandi. Se o declarante ou seus sucessores alegarem e provarem que se­melhante relação não existe, a obrigação cai (Das obrigações em geral, 9ª edição, Almedina, 1998, págs. 454 e 455 e nota 1).

            Para além disso, tendo o embargante apenas impugnado a relação subjacente afirmada pelos exequentes, as afirmações de facto que fez são apenas uma tentativa de criar um pano de fundo favorável à contraprova da existência da dívida, que os exequentes, como se viu, não têm de provar, sendo praticamente irrelevantes para provar a inexistência da relação subjacente (porque não se destinam a isso, sendo insuficientes para o efeito, já que o embargante não entendeu que tinha que fazer e provar a afirmação da inexistência da relação subjacente).

            Ora, as informações que os exequentes pretendem obter do BP são apenas, por sua vez, uma tentativa de pôr em causa aquele pano de fundo que o embargante tentou criar e que praticamente nenhuma relevância tem.

            Ou seja,  dito de outro modo, as informações pretendidas destinam–se apenas a serem contraprova de contraprova e não contraprova de prova de factos que pudessem conduzir de forma necessária e suficiente à conclu-são da inexistência da relação fundamental.

             Por fim, os exequentes até já produziram prova dos alegados “incumprimentos” da falecida (as duas certidões de execuções contra a falecida), pelo que é óbvio que não necessitavam dos elementos em causa para a fazer.

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            Pelo exposto, não se determina a quebra do segredo bancário.

            Custas do incidente pelos exequentes.

             Porto, 21/04/2016

             Pedro Martins

             1º Adjunto

             2º Adjunto