Acção 17304/15.0T8PRT – Porto – Secção Cível – J4

            Sumário:

I. A violação do dever de vigilância, se for culposa, pode levar à responsabilidade civil daquele que exerce as responsabilidades parentais para com o vigilando, relativamente a lesões sofridas no corpo deste, desde que se possa dizer que essas lesões foram provocadas adequadamente por essa violação (por força das disposições conjugadas dos arts. 483, 486, 563, 1878, 1918 e 1919, todos do Código Civil).

II. A ré não pode ser responsabilizada por o autor ter contraído o vírus W em consequência de actos ocorridos em circunstâncias, datas e lugares não apurados (mas que o autor dizia terem ocorrido no exterior da instituição daquela e terem sido voluntários [porque se encontrava revoltado com a negligência da ré]).

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            A intentou esta acção contra a B, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe uma indemnização de 20.000€ a título de danos não patrimoniais, sofridos com o facto de ter contraído o vírus W durante o período em que esteve institucionalizado na ré (concretiza que contraiu a doença em 2011 em virtude de comportamentos sexuais de risco que manteve com outros indivíduos – porque se encontrava revoltado com a negligência da ré – no exterior da instituição).

            A ré contestou, impugnando quer os factos quer a conclusão da violação, por si, do dever de vigilância do autor enquanto seu acolhido, com grande número de factos e de razões, depois de ter sistematizado a argumentação do autor.

            Depois do julgamento foi proferida sentença julgando a acção improcedente.

            O autor recorre desta sentença, terminando as suas alegações com conclusões que, indiferenciadamente, põem em causa a decisão relativa à matéria de facto e a matéria de direito, nos moldes concretizados abaixo.

            A ré contra-alegou concluindo pela improcedência do recurso.

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            Questões que importa decidir: se a decisão da matéria de facto deve ser alterada nos termos pretendidos pelo autor; e se a ré, perante os factos dados como provados, devia ter sido/deve ser condenada no pedido.

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            Foram dados como provados os seguintes factos com interesse para a decisão destas questões:

  1. Desde os 11 anos de idade, o autor, nascido em yy/0y/1994, foi seguido em consultas de Pedopsiquiatria e Psicologia, uma vez que apresentava um quadro de recusa escolar desde Novembro de 2006, sendo que sempre foram feitas diversas tentativas de reintegração escolar do autor por diferentes técnicos e serviços, contudo, as tentativas de integração escolar frustraram-se.
  2. Pelas razões acima expostas, na data de Março de 2007, o processo do autor foi sinalizado pelo Serviço de Pedopsiquiatria à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de X, com o fundamento na recusa escolar persistente, disfunção familiar e recusa na frequência das consultas de Pedopsiquiatria.
  3. O autor sofre de H e desde cedo começou a sentir fobia social, que se manifestava no pânico de frequentar a escola, sendo que, sempre que o autor frequentava as aulas tinha episódios de desmaios.
  4. O autor tinha comportamentos socialmente interpretados como sendo homossexuais, mostrando-se confuso relativamente à sua sexualidade.
  5. Fruto desses comportamentos, o autor foi alvo de agressões por parte de colegas, o que agravou o receio de frequentar as aulas.
  6. O autor foi sujeito a dois internamentos em psiquiatria, um no Y, em X, e outro no Z, no W, sendo que cada um dos internamentos referidos teve a duração de cerca de dois meses.
  7. A CPCJ interveio no ano de 2008, com a consequente instauração de processo de promoção e protecção que correu os seus termos no 1.º juízo de Família e Menores de X sob o n.º 426/08.1TMX.
  8. Por despacho datado de 23/04/2009, foi aplicada ao autor a medida de acolhimento em instituição, com efeitos imediatos, designadamente nas instalações da ré.
  9. A medida de acolhimento supra referida foi aplicada ao autor com o fundamento de que, na altura, menor, se encontrava em situação de grave risco, tendo sido determinada a execução imediata da mesma medida com o auxílio das forças de segurança.
  10. Deste modo, foi atribuído ao Centro de Acolhimento Temporário da ré o poder paternal relativamente ao autor, na parte respeitante à segurança, saúde, sustento e educação do autor.

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  1. Em 26/04/2009, com a idade de 14 anos, o autor foi institucionalizado […] na ré, destinada a rapazes com idades compreendidas entre os 12 e os 18 anos, tendo o mesmo saído da Instituição em questão na data de 30/09/2012, após completar 18 anos de idade.
  2. A ré acolhe 13 crianças, rapazes, adolescentes até aos 18 anos.
  3. No segundo piso, situam-se os 10 quartos, tendo estes casa de banho privativa.
  4. Em qualquer dado momento, existem sempre pelo menos dois adultos em casa, incluindo durante a noite.

         14-A. Até os jovens adormecerem ficam os adultos no andar de cima e depois estão no andar de baixo a fazer outras coisas ou vão fazendo rondas lá em cima [este ponto é acrescentado por força do decidido neste acórdão].

  1. Qualquer chamamento em voz alta feito a partir de um dos pisos é audível no outro piso.
  2. A ré avisa os adolescentes acolhidos para o facto de ser absolutamente proibida qualquer actividade sexual na ré, o que fez relativamente ao autor.
  3. A ré informa os adolescentes acolhidos no sentido de procurarem a ajuda de um adulto em qualquer caso de necessidade, o que fez relativamente ao autor.
  4. A ré tenta acolher os adolescentes de modo a proporcionar-lhe uma vida o mais normal possível, pelo que estes não se encontram confinados às suas instalações físicas, destas se ausentando, autonomamente, para frequentar a escola pública local, bem como, quando autorizados, para o desenvolvimento de actividades lúdicas e de lazer.

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  1. Após o seu acolhimento nas instalações da ré, e até Julho de 2009 o autor manteve relações sexuais anais passivas frequentes com outros menores também institucionalizados na ré.
  2. O autor contou à sua mãe que havia sido sexualmente abusado por colegas, tendo esta, dias depois, em 30/06/2009, reportado o acontecimento à Directora da instituição, a Dra. K.
  3. Na sequência da denúncia feita pela mãe do autor à Directora da ré, foi por esta pedido ao autor, sem a presença de qualquer de outro menor, que esclarecesse o sucedido.
  4. O autor confirmou à Directora da ré o relacionamento sexual com outros adolescentes acolhidos na ré.
  5. A Directora da ré recordou ao autor que as práticas sexuais estavam proibidas na ré, pelo que, se o relacionamento tivesse sido consensual, ficaria ele sujeito a um castigo, não sofrendo qualquer punição e sendo protegido, no caso de não ter nele consentido.
  6. O autor declarou à Directora da ré que o relacionamento sexual havia sido consensual.
  7. A Directora da ré reuniu-se com os outros menores envolvidos no relacionamento sexual, tendo estes confirmado a sua ocorrência, esclarecendo que havia sido consensual.

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  1. Durante o período em que esteve acolhido na ré, o autor manteve relacionamentos sexuais, para além do acima referido, em circunstâncias, datas e lugares não apurados.
  2. Durante esse período, entre os 16 e os 18 anos, o autor contraiu o vírus W.
  3. Em resultado das práticas sexuais em que o autor esteve envolvido, sofreu este sequelas físicas, tendo sido submetido a tratamentos e intervenções cirúrgicas para a sua sanação.

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                   Da impugnação da decisão da matéria de facto

            Diz o autor, na parte que se pode considerar como dizendo respeito à impugnação da decisão da matéria de facto, em conclusões que vão sendo apreciadas sucessivamente na sua parte minimamente útil:

         “IV. Na verdade, desde que foi institucionalizado o autor sofreu maus-tratos e abusos pelos outros institucionalizados.

        V. Quanto a isto, a atitude da ré sempre se revelou passiva e negligente que pouco ou nada fazia para impedir tais factos.

      VI. Em consequência destes maus-tratos e abusos sexuais, o autor tinha que se dirigir a instituições hospitalares onde era tratado e medicado.

         VII. Em virtude destes factos, o autor contraiu W.”

            O art. 640/1b) e 2a) do CPC impõe ao recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, que obrigatoriamente especifique, sob pena de rejeição, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, que indique com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.

            Ora, nas alegações do recurso, na parte que se refere a esta questão, o autor não indica um elemento de prova que seja, que aponte no sentido de confirmar as afirmações de facto que ele faz – seja um documento, seja uma única passagem de uma única testemunha que seja que vá nesse sentido.

            Mais abaixo ver-se-á que o autor invoca, no meio de outra matéria, o depoimento de uma testemunha (SR) que muito lateralmente teria a ver com a matéria agora em causa. Mas fá-lo sem invocar uma passagem que seja do respectivo depoimento e também não transcreve seja o que for do mesmo.

            Pelo que, nesta parte, rejeita-se o recurso, sem prejuízo, como é evidente, de parte destes factos, sem a conotação que o autor lhes dá, estarem provados em 26, 27 e 28.

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            Diz de seguida o autor:

IX. A ré nunca actuou com o comportamento de vigilância e guarda que lhe eram exigidas face ao autor sobre o qual detinha o poder paternal.

X. Ao contrário do considerado na sentença, o testemunho de K revelou graves falhas, ao nível das condutas da ré, e revelou graves falhas no tratamento dos institucionalizados e da segurança destes.

XI. Perguntado à testemunha sobre a notícia da eventual violação e a atitude a ré quanto a isso a mesma referiu“…na altura conversámos com todos e a todos foi relembrado que não é permitido dentro da casa as relações e depois houve lugar a [alg]uma sanção que eu sinceramente também não me recordo…10h43m57s [a hora da passagem não deve ser a hora do dia, mas a da passagem da gravação, ou seja, no caso, 14:46 a 15:04 – acrescento deste acórdão do TRP]

            Como sustento da consideração destas afirmações de facto como provadas, o autor invoca, nas alegações (quer no corpo quer nas conclusões), apenas esta passagem do depoimento de K. E dela decorreria a prova dos factos sob X (os sob IX são perfeitamente conclusivos, sem base factual…) com base nos seguintes argumentos:

         “- Ora, foi esta a atitude [da] ré após conhecer a situação e note-se que a testemunha diz que foi “relembrado” o que revela frequência nestes acontecimentos e a atitude passiva da ré perante os mesmos.

         – Relativamente à “sanção” que a testemunha diz ter sido aplicada, parece que a mesma ou não existiu de verdade ou foi tão insuficiente que a própria já nem se recorda, ao contrário de outras questões que ao longo do seu depoimento se recorda na perfeição.

         – Um pouco confuso e sem credibilidade este depoimento.

         – Podemos considerar que a atitude da ré foi a atitude correta a adoptar por uma instituição que tem como um dos deveres fundamentais salvaguardar a dignidade e bem estar dos menores, depois de saber que praticam actividades sexuais entre si?”

              Mas, primeiro, como é evidente, esta passagem deste depoimento não prova nada do que consta de X; segundo, esta passagem do depoimento da testemunha K (Directora da Casa) não se refere a uma fase subsequente à prova da existência de maus-tratos e de abusos [sexuais], mas sim à fase subsequente à denúncia pela mãe do autor de uma suposta violação do autor por parte de outros menores institucionalizados e de se ter concluído que não tinha havido nenhuma violação; terceiro, ‘relembrado’ não tem o significado que o autor lhe dá, mas sim, como explica a ré, que, como no início da institucionalização são explicadas aos menores as regras que têm de observar, elas foram relembradas; quarto, a sanção não se refere a outros menores por terem violado o autor, mas ao autor (e a outros menores), por ter tido relações sexuais consentidas com outros menores [como aliás resulta expressamente da pergunta da advogada da ré e da resposta da testemunha, do minuto 15:03 a 15:21], pelo que os argumentos do autor invertem totalmente a lógica da situação (não tendo o autor provado os maus-tratos e abusos [sexuais] – nem aliás, o tentou fazer – como é evidente o comportamento subsequente da ré não tem de ter nada a ver com o evitar maus-tratos e abusos sexuais); quinto, o facto da testemunha não se lembrar da sanção aplicada não tem nenhum valor, antes pelo contrário; quem deve, em princípio, lembrar-se da sanção, para fazer efeito, é o sancionado, não o sancionador. Este, se a sanção nada tiver de especial (e será bom que o não tenha), não terá razões para se lembrar dela (para além de que, como explica a ré, dado o contexto – de casa que acolhe jovens problemáticos, sendo frequentes as sanções ministradas -, nada tem de especial aquela falta de recordação).

                                                         *

            Continua o autor

         XIV. A ré conhece que o que levou o autor a dizer que as relações foram consentidas, foi a insegurança, falta de protecção e o medo de sofrer represálias, pois o que aconteceu, foram verdadeiras violações e abusos sexuais, tendo inclusive o autor que ser assistido medicamente.

         […]

         XIX. Perguntado à testemunha K sobre qual a atitude da casa perante os alunos que reportam esta situação a mesma disse: “Se for mal tratado? É protegido… […N]o caso de estar a ser maltratado [poderia[?] ter imediatamente] chamado um adulto… [É] evidente que se isso acontecesse ele seria protegido não é[?]… [teria o nosso apoio, não é?][…] [Imaginando, no caso de uma violação] is[s]o [aquilo que o juiz estava a dizer] poderia ser proposto…”10h49m28s [= 20:18 a 21:41] – entre parenteses rectos corrigiu-se a transcrição feita pelo autor e colocou-se a hora certa da gravação; os parenteses rectos são deste acórdão do TRP]

        XX. A ré não consegue transmitir a segurança e protecção necessária a um menor para que este sem medo recorra a ela e conte os seus problemas.

         XXI. Foi o que aconteceu no caso do autor que foi levado a afirmar que consentiu na prática de tais actos, uma vez que temeu que depois o pior acontecesse.

            No corpo das alegações, no meio desta matéria, o autor ainda invoca o testemunho de SR dizendo:

         “Deste testemunho apurou-se a existência de uma situação semelhante, que não deixa dúvidas para afirmar que os abusos sexuais são frequentes.”

            A ré responde, entre o muito mais, frisando que, do depoimento da testemunha invocada, resulta o contrário do que o autor diz. Isto depois de transcrever várias passagens do depoimento da mesma e de terminar com uma outra: “se ele tivesse sido alvo de uma violação ele não ia ser sancionado, não é?” (13m44s).

            Decidindo:

            Vê-se que o autor quer que se dê como provado que foi levado a afirmar que consentiu na prática de tais actos, uma vez que temeu que depois o pior acontecesse.

            Do depoimento da testemunha K resulta exactamente o contrário, ou seja, resulta a matéria de facto dos pontos 17 e 20 a 25. Ou seja, o autor, apesar de a ré lhe ter dito que iria ser punido caso tivesse tido relações sexuais consentidas e que não o seria se as relações tivessem sido forçadas, admitiu que as relações foram consentidas. Ou seja, escolheu a via da sanção, o que revela que a escolha não foi feita com medo. E o autor, no recurso, nem ataca directamente estes pontos de facto, limita-se a dizer o contrário.

            Quanto ao depoimento da testemunha SR, o autor não invocou uma única passagem concreta do mesmo, nem transcreveu qualquer passagem do mesmo, nem a matéria referida tem algo a ver com o que se discute aqui, pelo que não tem de ser considerado.

                                                                 *

            Diz ainda o autor:

          XV. Revelou o testemunho de K, que os institucionalizados, crianças problemáticas com carências e necessidades, dormem sozinhas sem supervisão.

         XVI. Disse a testemunha: …os quartos são no andar de cima… até os jovens adormecerem ficam os adultos no andar de cima… e depois estão no andar de baixo a fazer outras coisas”10h47m40s

            No corpo das alegações, o autor acrescenta:

         – Ora, questionada pelo Sr. Juiz sobre a disposição física da casa, referiu a testemunha que a casa tem dois pisos, e é no piso de cima que se situam oito quartos, o que implica necessariamente que os jovens tenham de partilhar os dormitórios, uma vez que a instituição acolhe cerca de 13 jovens.

         – Até aqui não surge problema.

         – O problema coloca-se quando se conhece, através do testemunho de K, que os institucionalizados, crianças problemáticas com carências e necessidades, são deixadas a pernoitar sozinhas no piso de cima da casa enquanto os adultos ficam tranquilamente do piso inferior.

         – Disse a testemunha: “… os quartos são no andar de cima… até os jovens adormecerem ficam os adultos no andar de cima… e depois estão no andar de baixo a fazer outras coisas”10h47m40s [= 18:03 a 18:22 – o autor não transcreve a parte final: ou ir fazendo rondas lá em cima.]

            A ré responde, fazendo referência ao ponto 15 dos factos provados e ao mais que foi dito pela testemunha: estão sempre 2 pessoas na casa, no mínimo: “3… 4… 2… 2 no mínimo” (17m24s). Sendo que “até aos jovens adormecer, ficam no andar de cima”(Sr. juiz: “E depois dos jovens adormecerem?”) Depois podem estar cá em baixo, a fazer outras tarefas ou ir fazendo rondas (imperceptível) em cima” (18m11s [a 18:22]). […] “Sim… Sim… Sim… Sim, estão acordados, sim, toda a noite” (18m24s [a 18:28])

            Decidindo:

            Quanto à questão dos quartos, o autor parece querer que se dê como provado uma coisa (os quartos são no andar de cima), embora a prova que indica aponte para coisa que não é idêntica (só 8 dos 10 quartos [referidos no ponto 13] são no andar de cima).

            Face a esta imprecisão e ao disposto no art. 640/1c) do CPC [Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição […a] decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas] rejeita-se esta parte da impugnação.       

            Quanto ao mais, o autor quer que se dê como provado que até os jovens adormecerem ficam os adultos no andar de cima… e depois estão no andar de baixo a fazer outras coisas.

            Tendo em conta o depoimento da testemunha K, transcrito acima nas partes relevantes, que não é posto em causa por outros elementos, pode-se aceitar o aditamento aos factos provados de um 14-A com o seguinte teor, que reproduz tudo o que a testemunha diz e não só parte:

         Até os jovens adormecerem ficam os adultos no andar de cima e depois estão no andar de baixo a fazer outras coisas ou vão fazendo rondas lá em cima.

                                                      *

                 Do recurso contra a decisão da matéria de direito

            Diz o autor na parte útil das outras conclusões (mesmo que algumas já tenham sido consideradas acima para a impugnação da decisão relativa à matéria de facto):

         III. Entendeu mal, o tribunal a quo, que a ré “adoptou o comportamento de vigilância e guarda que lhe era exigido”, não omitindo por isso um acto que lhe era devido.

          IV. […A] atitude da ré sempre se revelou passiva e negligente que pouco ou nada fazia para impedir tais factos.

        IX. A ré nunca actuou com o comportamento de vigilância e guarda que lhe eram exigidas face ao autor sobre o qual detinha o poder paternal.

         XII. Atitude que se considera gravemente negligente e insuficiente para tais factos.

       XV. […O]s institucionalizados, crianças problemáticas com carências e necessidades, dormem sozinhas sem supervisão.

         XVII. Facto que não se pode compreender a partir do momento em que a ré conhece da existência de práticas sexuais entre os institucionalizados.

         XXII. A atitude ré para com o autor, e no que diz respeito aos abusos que ele ou a mãe deste reportavam, sempre se revelou muito negligente.

     XXIV. É claro e evidente que a ré omitiu a prática de actos que eram da sua responsabilidade, muitos deles em momentos cruciais, e perante tal, o autor sofreu graves danos, pelo que deve a ré ser responsabilizada.

         XXVI. Segundo o disposto no artigo 486 do CC a simples omissão dá lugar à obrigação de reparar os danos, quando havia, por força da lei, o dever de praticar o acto omitido.

         XXVII. A ré estava obrigada a praticar actos concretos de vigilância e guarda de modo a salvaguardar o bem-estar do autor, pois era esta que detinha o poder paternal.

         XXVII. Ora conhecedora da prática de relações sexuais dentro da casa, a ré nada fez e continuava a permitir aos institucionalizados pernoitarem sozinhos sem qualquer supervisão, não cumprindo, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, com o dever de guarda e vigilância que lhe era exigido.

                                                       *

            Afastada a pretensão do autor de alterar a decisão relativa à matéria de facto, fica afastada também a pretensão material do autor baseada na violação de um dever de vigilância da ré definido num contexto de maus-tratos e abusos sexuais de que o autor fosse vítima.

            Resta pois saber qual o âmbito do dever de vigilância do autor – que com cerca de 14,5 anos tinha sido colocado numa instituição em regime aberto devido aos inúmeros problemas que já o afectavam e que tinham levado à retirada parcial do poder paternal aos pais -, pela ré, num contexto em que não se provou a existência daqueles maus-tratos e abusos sexuais e no período dos 16 aos 18 anos de idade (em que contraiu o vírus W).

            Dever de vigilância esse cuja violação, se for culposa, pode levar à responsabilidade civil da ré para com o autor, relativamente a lesões sofridas no seu corpo; isto desde que se possa dizer que essas lesões foram provocadas adequadamente por essa violação; tudo isto por força das disposições conjugadas dos arts. 483, 486, 563, 1878, 1918 e 1919, todos do Código Civil (veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, anotações do art. 486 e anotação 5 ao art. 491).

          Esse dever de vigilância é, em primeira linha, dos pais e resulta do disposto no art. 1878/1 do CC enquanto dispõe, entre o mais, que compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento e dirigir a sua educação, mas tendo em conta, como dispõe, por sua vez, o art. 1878/2 do CC, que os pais, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida, e como decorre do art. 1885/1 do CC, que cabe também aos pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos. 

          Mas se os pais não dão conta destas responsabilidades, daí advindo perigo para a segurança, saúde, formação moral e educação do filho, o art. 1918 do CC prevê que o tribunal possa decretar as providências adequadas, designadamente confiá-lo a terceira pessoa ou a estabelecimento de educação ou assistência, a quem passa então a caber, no essencial, o exercício daquelas responsabilidades (como decorre, a contrario, do art. 1919/1 do CC), entre elas a de vigiar o menor, tendo em conta, no essencial, aqueles mesmos princípios, como resulta, por exemplo, do art. 49 da LPCJP (na redacção original, da Lei 147/99, de 01/09, em vigor até 2015, ou seja até depois da entrada desta acção no tribunal).

          Mas, como aliás logo foi lembrado pela ré, estas instituições de acolhimento funcionam em regime aberto e são organizadas em unidades que devem favorecer uma relação afectiva do tipo familiar, uma vida diária personalizada e a integração na comunidade (art. 53/1 da LPCJP), implicando esse regime aberto, como resulta do art. 53/2 da LPCJP, a livre entrada e saída da criança e do jovem da instituição, de acordo com as normas gerais de funcionamento, tendo apenas como limites os resultantes das suas necessidades educativas e da protecção dos seus direitos e interesses. Para além de que as instituições terão de respeitar os direitos do jovem em acolhimento, entre eles os enumerados no art. 58, como por exemplo, (a), manter regularmente, e em condições de privacidade, contactos pessoais com a família e com pessoas com quem tenham especial relação afectiva (sem prejuízo das limitações impostas por decisão judicial ou pela comissão de protecção) e, (c), usufruir de um espaço de privacidade e de um grau de autonomia na condução da sua vida pessoal adequados à sua idade e situação.

          Daí que Rui Ataíde diga, embora com referência ao art. 491 do CC, que:

          “O condicionalismo sociocultural anteriormente descrito e que ficou descrito e que dificulta o sucesso da educação familiar, tem ainda que ser compaginado com a directriz fundamental que comanda o desempenho das responsabilidades parentais cujo exercício deve reconhecer a autonomia dos filhos na organização da própria vida (artigo 1878º/2), cabendo-lhes também promover o seu desenvolvimento físico, intelectual e moral (artigo 1885º/1). Os deveres paternais estão, assim, subordinados a uma teleologia complexa, compreendendo não só a protecção e a segurança dos filhos mas também um elemento dinâmico, respeitante à sua preparação para enfrentarem a vida futura com autonomia, ou seja, a personalidade dos filhos é encarada não apenas como um status quo a defender enquanto tal mas ainda como status ad quem de evolução e maturação que deve ser promovido, implicando necessariamente a harmonização e vigilância devida segundo o artigo 491º e a autonomia que se deve reconhecer aos filhos menores na preparação para a sua vida adulta. Por consequência, não se pode exigir aos progenitores, enquanto vigilantes e para os efeitos do artigo 491º, um tipo de controlo sobre a vida dos filhos que lhes é proibido pelo conteúdo das responsabilidades parentais, obrigando-os a responder pelos danos resultantes do exercício dessa mesma liberdade de organização existencial que devem respeitar” (na nota 1129, lembra, para além do mais, que “logo na primeira fase de aplicação do diploma de 1966, os tribunais também enfatizaram, na senda de Vaz Serra, que a influência das concepções dominantes e dos costumes na determinação da diligência, implicava, sob pena de se prejudicar os fins que devem presidir à função educativa, a permissão de espaços de liberdade em que a prática de actos imprudentes pelo menor não significava necessariamente inobservância dos deveres de vigilância) (Responsabilidade civil por violação de deveres no tráfego, págs. 564/565, Almedina, 2015).

            Como o autor era um menor com problemas e foi acolhido numa instituição onde estavam já outros menores também com problemas (tudo como resulta dos factos 1 a 11 e 19 a 25), o dever de vigilância é mais intenso e abrangente (particularmente a partir de Julho de 2009 com o conhecimento da existência de relações sexuais presumidamente consentidas).

            Mas, mesmo assim, o dever de vigilância de um menor por alguém que o acolhe em regime aberto, com o dever de lhe dar uma formação que possibilite o seu integral desenvolvimento (arts. 1878 e 1885/2 do CC, art. 49 do LPCJP), não pode concretizar-se, nem que seja por impossibilidade material, num regime que obrigue os seus órgãos, funcionários e auxiliares a estarem sempre a vigiar o menor e a impedi-lo de fazer tudo aquilo que ele quer fazer.

            Note-se que o autor não contraiu o vírus W durante as relações sexuais consentidas ocorridas entre Maio e Junho de 2009, com 14 anos e qualquer coisa, nem imediatamente a seguir, e nem mesmo se sabe se durante esse período imediatamente subsequente manteve essas relações sexuais.

            O que se sabe, como se vê nos pontos 26 e 27 dos factos provados, é que o autor durante o período em que esteve acolhido manteve relações sexuais em circunstâncias, datas e lugares não apurados, vindo a contrair o o vírus W entre os 16 e os 18 anos (ou seja, entre 30/09/2010 e 30/09/2012, isto é, mais de um ano e tal depois daquele outro período).

            Portanto, o autor não tem bases para sugerir que a ré, apesar de ter sabido que tinham ocorrido relações sexuais voluntárias não fez o necessário para acabar com elas na ré, porque nem sequer se apurou que elas tenham continuado a ter lugar aí.

            Aliás, relembre-se que o autor dizia [veja-se o relatório no início deste acórdão] que contraiu a doença em 2011 em virtude de comportamentos sexuais de risco que manteve com outros indivíduos – porque se encontrava revoltado com a negligência da ré – no exterior da instituição.

            Assim, a censura da ré teria que passar por dizer, como parece sugerido pelo autor, que ela devia ter tido a partir de então um funcionário em permanente vigia do mesmo, 24 horas por dia, inclusive quando era suposto ele estar a dormir, ou quando saía da instituição para ir à escola ou a outras actividades extracurriculares, de modo a impedi-lo de fazer aquilo que ele planeava fazer sem conhecimento da instituição, o que não é aceitável nem pode ser exigível.

            Ou, em alternativa, passava por dizer que a ré estava obrigada a fechá-lo 24h por dia, com o mesmo fim. Mas não se pode enclausurar alguém por suspeitas de que pode a vir praticar factos ilícitos contra outrem ou factos prejudiciais a si mesmo.

            De novo citando Rui Ataíde: “[…] por se tratar da vigilância de pessoas  – cujos direitos de personalidade devem ser respeitados – […] a complexidade da vigilância aumenta, por serem inconcebíveis medidas de clausula ou de controlo apertado, que anulem ou reduzam a liberdade de movimentos […]” (obra citada, págs. 534 e 538).

            A instituição tem o dever de educar o menor, de modo a que ele, por si, escolha, nem que seja por medo de sanções, não fazer mal a outrem e a si próprio, e também de o vigiar, na medida do possível, com o mesmo fim. Deve-o fazer através de instruções, da vigilância em sentido estrito, de proibições e da impossibilitação de acções (Rui Ataíde, obra citada, págs. 566 a 569). Mas não lhe pode ser pedido o impossível, que é o evitar a prática desses actos em quaisquer circunstâncias de tempo e lugar, se o menor os quiser praticar.

            Por fim, incluindo, neste contexto, o dever de vigilância também o dever de educação [por exemplo, Rui Ataíde, obra citada, págs. 544 a 546], não pode ser esquecido que o autor estava com problemas desde os 11 anos e só foi colocado na instituição com 14 anos e meio, com a personalidade já parcialmente formada com base numa educação deficiente (como o revela o estado de perigo que levou ao acolhimento com a retirada parcial do “poder paternal” aos pais) que não pode ser imputada à ré. E se isto, como se viu acima, torna o dever de vigilância mais intenso para a ré, também torna naturalmente impossível uma vigilância total.

            E, por tudo isto, a ré não pode ser responsabilizada por o autor ter contraído o vírus W em consequência de actos ocorridos em circunstâncias, datas e lugares não apurados (mas que o autor dizia terem ocorrido no exterior da instituição daquela e terem sido voluntários [porque se encontrava revoltado com a negligência da ré]).

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

            Custas pelo autor, sem prejuízo do apoio judiciário.

            Porto, 19/05/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto