Impugnação pauliana com processo sumário

Tribunal de Comércio de Lisboa – 3º juízo

            Sumário

I. Não se pode interpor recurso, aquando da sentença, da decisão de uma excepção peremptória que teve lugar no despacho saneador.

II. Antes da reforma de 2013 do CPC, a fundamentação da resposta aos quesitos não tinha de constar da sentença.

III. Quando se impugna a decisão da matéria de facto, têm de se identificar, com precisão, nas conclusões de recurso, os concretos pontos de facto que estão a ser impugnados. Não sendo feita essa indicação, como no caso dos autos, essa parte do recurso deve ser rejeitada.

IV. O arrendamento vinculístico de um imóvel é susceptível de diminuir o valor do imóvel e de ser objecto de uma impugnação pauliana; e não há dúvida de que esse arrendamento diminui a garantia patrimonial dos créditos, se a renda estabelecida no contrato é de cerca de 18 vezes inferior ao valor de mercado.

V. O art. 158/1 do CPEREF, tal como o art. 120/4 do CIRE, não tem de ser objecto apenas de uma interpretação meramente declarativa, podendo, na sua aplicação, haver lugar a uma interpretação extensiva ou à analogia, ou à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica e da ‘fraude à lei’.

            Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

            A S requereu a sua própria falência em 17/05/2001.

            Em 16/05/2005, a Massa Falida da S veio intentar uma acção contra R [= réu] e R1 [= ré], alegando, em síntese, que a S em 15/05/2000 tinha dado de arrendamento ao réu o único prédio urbano que tinha no seu património e o réu depois tinha-o transmitido para a ré; que o arrendamento diminui substancialmente o valor do prédio e constituiu uma simulação para prejudicar os credores; a S e os réus tinham consciência do prejuízo que com a sua actuação causavam aos credores da falida.

            Pediu que se declarasse que o arrendamento, celebrado e transmitido, era ineficaz em relação à Massa falida e aos credores da falida, e que a ré devia restituir o prédio totalmente devoluto de pessoas e bens.

            Os réus contestaram, excepcionando a caducidade do direito de interpor a acção e impugnando parte dos factos alegados e a ré ainda a possibilidade da impugnação pauliana [a impugnação da possibilidade é uma impugnação de direito, não uma excepção: art. 487/2 do CPC na redacção anterior à reforma de 2013]; concluíram no sentido da procedência da excepção e da absolvição do pedido.

            A 12/07/2006 foi proferido despacho saneador a julgar improcedente a excepção de caducidade, devidamente notificado às partes por carta de 14/07/2006.

            Depois de realizado o julgamento a 09/03/2007, foi dada resposta à base instrutória a 19/03/2007 – devidamente lida aos mandatários presentes, tendo todos os mandatários sido notificados para a sua leitura.

            A 29/03/2007, foi proferida sentença julgando a acção procedente e, em consequência, declarando ineficazes o arrendamento outorgado entre S e R e o trespasse e cedência de arrendamento declarados por R à R1 do prédio urbano em causa, e determinando a entrega, à Srª Liquidatária indicada, do referido prédio devoluto de pessoas e bens.

            A 24/04/2007 a ré apresentou requerimento de interposição de recurso e a 14/06/2016 apresentou as alegações de recurso – para que se revogue/anule a sentença, se declare a caducidade e se absolva a ré – que terminou com as conclusões que serão transcritas abaixo e que se referem potencialmente às seguintes questões a decidir: excepção de caducidade, nulidade da decisão da matéria de facto; impugnação da decisão da matéria de facto; não verificação dos pressupostos da impugnação pauliana.

            A Massa Falida não contra-alegou.

                                                       I

            Do recurso contra a excepção peremptória de caducidade

            Diz a ré:

A) Vem o presente recurso interposto da decisão do Sr. juiz do anterior 3º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa que julgou procedente por provada, a acção intentada contra a ré e outros pela Exma D. C, em nome da massa falida de S, Lda, decidindo:

1. Julgar não verificada a excepção peremptória de caducidade arguida pela ré;

2. Julgar a acção procedente e, em consequência, [a ré transcreve aqui a parte decisória da sentença…]

            E mais à frente:

W) Nos autos foi suscitada a questão da caducidade do exercício do direito por parte da autora, uma vez que o acto em causa nos autos fora praticado em 15.05.2000 e a acção, que tinha cinco anos para ser proposta, nos termos do disposto no art. 618 do Código Civil, acabou por sê-lo apenas em 16.05.2005.

X) Decidiu a Srª juiz (o que foi objecto de recurso), que não se verificava a invocada caducidade “tendo em atenção o disposto no art. 279 (…), não se contando o dia em que o prazo começa a correr. Ora não se contando, no caso o dia 15, o prazo apenas terminava no dia 16 às 24 horas, data em que foi interposta a acção, não se verificando, pois, a arguida caducidade. cremos que não tem razão a Srª juiz,

Y) e cremos que o não tem em absoluto (o prazo terminava de facto a 15), mas também não considerou a Srª juiz a quo

Z) o facto de não ter sido requerida, nomeadamente, a dispensa da prévia citação dos réus,

AA) razão pela qual entendemos que a caducidade operou, mas não foi declarada, como deveria,

BB) pelo que uma vez mais apelamos ao superior critério e conhecimento de V.Exas. para que o declarem.

            Decidindo:

            Como resulta do que antecede, não corresponde à verdade que na sentença de 2007 tenha sido julgada a excepção de caducidade.

            A excepção de caducidade foi apreciada no despacho saneador, com valor de sentença, de 2006.

            Dizia então (em 2006) o art. 510 do CPC: Despacho saneador: 1 – Findos os articulados, se não houver que proceder à convocação da audiência preliminar, o juiz profere, no prazo de 20 dias, despacho saneador destinado a: […] b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória. 3 – […]; na hipótese prevista na alínea b), [o despacho] fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença. 

            Por isso, desse despacho saneador/sentença cabia recurso (art. 691 do CPC), para o que a ré tinha o prazo de 10 dias (art. 685/1 do CPC).

            Não o tendo interposto então, não pode interpô-lo agora a propósito da sentença final, que não contém qualquer decisão da excepção em causa. Não é, por isso, objecto destes autos, a improcedência da excepção da caducidade.

II

Da nulidade da sentença

            Diz a ré:

E) Salvo melhor opinião, a sentença recorrida é nula. De facto,

F) como nos parece resultar cabalmente demonstrado, a sentença recorrida carece de fundamentação. Desde logo,

G) carece de fundamentação de facto porquanto não consta de uma única linha da decisão posta em crise, a fundamentação sobre quais os meios de prova de que o tribunal se socorreu, para considerar provados os factos que assim considerou. Com efeito,

H) analisada e escalpelizada a decisão, o que da mesma resulta são juízos conclusivos (sem indicação de um único meio de prova e respectiva análise critica) elaborados pela Srª juíza a quo.

I) No que tange a respectiva fundamentação factual… nem uma palavra, o que desde logo inquina a decisão proferida, por manifesta falta de fundamentação.

J) Pois é consabido que a falta de fundamentação de facto ou de direito, de uma decisão judicial, gera a nulidade da mesma,

K) Vicio esse que desde já se argui.

            Decidindo:

            É manifesto o lapso em que a ré incorre.

            A decisão da matéria de facto está devidamente fundamentada. Os factos sob alíneas vêm dos factos assentes. Os factos sob n.ºs árabes vêm da resposta aos quesitos da base instrutória (proferida nos termos do art. 653 do CPC na redacção de 2007 então em vigor), peça processual que está, como não podia deixar de ser, devidamente fundamentada (fls. 248 a 251) e foi devidamente comunicada/lida aos mandatários das partes. Os factos sob n.ºs romanos resultam da prova documental e foram considerados pela sentença ao abrigo do art. 659/3 do CPC (na redacção de 2007 então em vigor).

            Para além disso, diga-se que a eventual falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, não tem nada a ver, mesmo hoje, com a falta de fundamentação da sentença que apenas exige a menção dos factos provados (art. 659/2 do CPC na redacção anterior à reforma de 2013 do CPC e art. 608/3 do CPC depois dessa reforma).

III

Da impugnação da decisão da matéria de facto

            Diz a ré:

L) Cautelarmente, a ré analisou e escalpelizou exaustivamente a prova produzida (nomeadamente os depoimentos prestados pelas testemunhas, em audiência de discussão e julgamento), para que se possa afirmar de modo claro e inequívoco,

M) que as testemunhas arroladas pela autora não deviam (diríamos mesmo, não podiam) ter merecido ao tribunal, qualquer credibilidade. Com efeito,

N) em audiência foram inquiridas diversas testemunhas. As da autora, foram pessoas com interesse pessoal e directo nos autos. Desde logo,

O) Foi ouvido o pai da Administradora de Insolvência, o qual em rigor é quem administra a massa pois, para além da pontual presença daquela em algumas reuniões, as questões e soluções são colocadas e respondidas directamente ao pai da D. C e não por ela e,

P) foi ouvida a pessoa que é normalmente encarregada por eles de proceder à venda de bens em Insolvências. Ou seja,

Q) maior e mais pessoal interesse no resultado do pleito, cremos que seria difícil. E o que disseram esses senhores, foi o que supra transcreveu dos depoimentos dos senhores RA e A

R) E para cujas conclusões de análise remetemos por inteiro, por questões de economia.

S) Sendo certo, não obstante, que há algo que é transversal a ambos: a respectiva isenção é coisa que não existe e o seu engajamento à autora é evidente,

T) Sendo que o segundo comprovou cabalmente, que quem administra a falência é a outra testemunha, que é o pai da formalmente nomeada AI (pois não houve uma única vez em que, referindo-se à administradora a tivesse deixado de tratar no masculino: sintomático!)

U) E quanto à matéria de facto, cremos que mais não se revela necessário escalpelizar,

V) certos como estamos que V.Exas não deixarão de notar a “isenção” dos depoimentos prestados por estes dois senhores.

            Decidindo:

            Está hoje consolidada aquela que é a menos exigente das posições da jurisprudência sobre a questão (e com isto quer-se dizer que antes a posição jurisprudencial maioritária era muito mais exigente), com base em normas substancialmente idênticas às que já existiam antes de reforma dos recursos de 2007 e 2013 do CPC (o que se refere tendo em conta a data em que foi interposto recurso pela ré) – arts. 690/1 e 690-A/1a) do CPC na redacção em vigor antes de Agosto de 2007, arts. 685-A/1 e 685-B/1a) do CPC na redacção em vigor antes da reforma do CPC de 2013 e arts. 639/1 e 640/1a) do CPC depois da reforma de 2013 – que os recorrentes, quando impugnam a decisão da matéria de facto, têm obrigatoriamente, ao menos, de identificar com precisão, nas conclusões de recurso, os concretos pontos de facto que põem em causa nessa impugnação, sob pena de rejeição de tal impugnação.

               Assim, apenas por exemplo, o ac. do STJ de 12/05/2016, 324/10.9TTALM.L1.S1 (com indicação de 6 outros acórdãos do STJ de 2015 no mesmo sentido): II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação […].

            Ora, como se pode ver das conclusões que antecedem, a ré não diz uma vírgula que seja sobre quais os concretos pontos de facto da decisão da matéria de facto que põe em causa.

            E, já agora, também não o faz no corpo das alegações, onde, aliás, também não indica – nem podia indicar – qual a decisão alternativa que propunha para esses pontos de facto que estariam mal decididos (que não indica quais sejam).

            O que a ré faz, também no corpo das alegações, é apenas a análise do depoimento das testemunhas da autora que foram ouvidas (depois de ocupar quase todo esse corpo apenas com a transcrição das instâncias que o seu advogado fez a essas testemunhas).

            Tanto basta para que a parte do recurso que tem a ver com a decisão da matéria de facto, seja rejeitada.

IV

Do recurso sobre matéria de direito

            Diz a ré:

DD) Contrariamente ao constante do art. 610 do Código Civil, não nos parece que resulte da existência de um arrendamento, “a impossibilidade para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa possibilidade”. Com efeito,

EE) O imóvel continua a existir e pode ser vendido naturalmente sem qualquer problema.

FF) E face aos valores que estavam em causa, naturalmente também que tal não afecta a satisfação integral do direito do credor (in casu, o banco responsável pelo mútuo, nas palavras da Srª juiz). Aliás,

GG) Neste particular e curiosamente, a autora nem sequer se deu ao trabalho de o alegar ou de sustentar que valores estavam em causa.

HH) Mas também faleceu a autora na prova de que o acto tivesse sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do crédito.

II) A Srª juiz a quo optou por desvalorizar a questão, remetendo a demonstração da existência da má-fé dos intervenientes na sua actuação para a presunção do art. 158-a do CPEREF ou seja,

JJ) Presumem-se celebrados de má-fé pelas pessoas que neles participam, para efeitos de impugnação pauliana, os actos realizados pelo falido a titulo oneroso, nos dois anos anteriores à data da abertura do processo conducente à falência, em favor do seu cônjuge, de parente ou afim até ao 4º grau, de pessoa que com ele vivesse em união de facto ou de pessoas a ele ligados por um qualquer vinculo de prestação de serviços ou de natureza laboral, bem como de sociedades coligadas ou dominadas por ele.

KK) Ora, o “ele” utilizado na Lei, é o falido.

LL) E assim sendo, como é, a verdade é que, sendo a ré é uma sociedade, não se aplicam, no nosso modesto entender os princípios relativos às pessoas singulares (confusão em que recorrentemente se labora na Sentença posta em crise – Vd terceiro parágrafo de fls. 259) e, mais,

MM) Tratando-se de pessoa colectiva, pessoa diversa dos seus sócios, o certo é que nem a ré alguma vez esteve coligada com a falida S,

NN) E jamais foi dominada pela dita falida,

OO) Razão pela qual, não tem em concreto aplicação tal presunção legal.

PP) Acrescendo ainda o facto de a ré não ter tido intervenção na realização do contrato de arrendamento,

QQ) Tendo-se limitado a tomar de trespasse um estabelecimento ou seja,

RR) Não lhe é imputável tal comportamento, devendo a todos os títulos ser considerada como terceiro de boa fé.

SS) O que deve ser declarado por V.Exas.

                                                      *

            Para a decisão desta questão importa ter em conta os seguintes factos que o tribunal recorrido deu como provados [os sob alíneas vêm dos factos assentes; os sob nºs árabes vêm das respostas à base instrutória e os sob n.ºs romanos resultam de prova documental]:

A) Em 17.05.2001 a S requereu neste tribunal a sua falência, correndo o processo os seus termos sob o n.º 131/2001 no 3º juízo.

B) A falência da S foi decretada por sentença proferida em 19.03.2003.

C) Foi apreendido nos autos de falência referidos em A) e B) o prédio urbano sito em X, descrito na Conservatória do Registo Predial de X sob o n.º 00000.

1. Era nesse prédio urbano que a S tinha instalada a sua unidade fabril de transformação de arames.

2. Sendo igualmente o único imóvel de que era proprietária.

3. Em Maio de 2000, a S tinha constituído sobre o referido prédio urbano uma hipoteca a favor de instituição de crédito, para garantia do bom pagamento de um mútuo que contraiu junto daquela instituição.

4. Tal mútuo não foi pago, nem os créditos de outros fornecedores da S.

5. Desde o ano de 2000 que a S tinha cessado completamente a sua actividade.

6. Em 2000 a S não tinha trabalhadores.

7. Em 15/05/2000, a S deu de arrendamento o referido prédio urbano ao réu pela renda mensal de 120.000$ [no contrato, entre o mais, consta: o presente contrato […] é celebrado pelo prazo de um ano, renovável automaticamente, nos termos legais: clª 5, verso da fl. 125 do processo em papel; o contrato não foi impugnado por nenhuma das partes, pelo que faz prova plena dos factos, sendo esta clausulada considerada ao abrigo dos arts. 659/3 e 663/2 do CPC na redacção anterior à reforma de 2013]

8. SAC, em 15/05/2000, tinha uma quota na S que correspondia a 80% do seu capital social.

9. Em 15/05/2000, SAC era o único gerente da S.

10. Em 16/08/2000, o réu, pelo preço de 20.000.000$, declarou trespassar à ré, o estabelecimento que tinha instalado no prédio urbano tomado de arrendamento à S.

11. Tendo também declarado que cedia à ré o direito de arrendamento.

12. A ré tem como únicos sócios o réu e TE.

13. O réu nunca esteve colectado na Fazenda Nacional como exercendo tal actividade.

14. O réu não declarou, em sede de IRS, o rendimento de 20.000.000$ que declarou ter recebido a título de trespasse.

16. O réu nunca teve estabelecimento comercial instalado no prédio urbano sito em X.

17. O prédio urbano referido tem a área coberta de 2223 metros quadrados e logradouro com 1660 metros quadrados.

18. O arrendamento referido diminuiu o valor do prédio.

19. Em 15/05/2000 o preço por metro quadrado, para o arrendamento do prédio urbano na zona onde se situa o prédio mencionado era de 1000$ por metro quadrado.

22. Tanto a falida, como o réu e a ré sabiam que prejudicavam, com a sua actuação, os credores da falida.

I. Em Maio de 2000, a S era proprietária do prédio urbano sito em X, inscrita na matriz sob o art. 0000 da freguesia de X e descrito na Conservatória de Registo Predial de X, sob o n.º 0000 da referida freguesia.

II. A ré foi registada na Conservatória do Registo Comercial de Y em 10/07/2000.

III. Em 15/05/2000, o réu era casado com uma filha de SAC

IV. TE é casado com uma filha de SAC.

V

Da verificação dos pressupostos da impugnação pauliana

            Decidindo:

            O contrato de arrendamento dos autos foi celebrado em 2000, na vigência do RAU.

            No âmbito do RAU o arrendamento industrial, celebrado “pelo prazo de um ano renovável automaticamente nos termos legais”, era, como antes, um arrendamento vinculístico. Ou seja, com a possibilidade de denúncia pelo senhorio muito limitada (arts. 68/2 e 69 e segs e 98, 100, 117 e 118, a contrario, todos do RAU).

            E o facto de o local arrendado ser alienado a terceiro não prejudica os direitos do arrendatário, cujo contrato não se extingue por esse facto (art. 1057 do C), o que vale também no caso da alienação do local no decurso do processo de falência: art. 170/2 do CPEREF.

            Por isso, um contrato de arrendamento de imóvel, desde que sujeito ao regime vinculístico, é susceptível de diminuir o valor do imóvel e ser objecto da uma impugnação pauliana (vejam-se, a título de exemplo, as páginas 364 a 373 d’Os efeitos substantivos da falência, de Maria do Rosário Epifânio, PUC, Porto, 2000).

            E não há dúvida de que o acto diminui realmente a garantia patrimonial dos créditos tendo a renda estabelecida, nesse contrato de Maio de 2000, sido de 120.000$, quando o prédio locado tinha a área coberta de 2223m2 (ponto de facto 17) e nessa data o preço por metro quadrado, para o arrendamento do prédio urbano na zona onde se situa o prédio mencionado, era de 1000$ por metro quadrado (ponto de facto 19).

                                                      *

            A falida em 2000 já não tinha trabalhadores e tinha cessado a sua actividade (pontos de facto 4 e 6), pelo que as dívidas que se sabe que tinha (pontos de facto 3 e 4), relativamente a mutuante e fornecedores, eram necessariamente anteriores ao arrendamento do prédio.

            Aquele arrendamento, por isso, é um acto patrimonial posterior às dívidas resultando necessariamente dele, pelo menos, um agravamento da impossibilidade de satisfação integral daquelas, pelo que pode ser impugnado paulianamente em benefício da massa falida (arts. 610/1 do CC e 157 do CPEREF).

                                                      *

            O que antecede afasta as razões da ré constantes das conclusões DD) a GG). Quanto a HH), diga-se que nem a sentença recorrida disse, nem aqui se está a dizer, que se provou o dolo dos intervenientes nos actos em causa. Até porque nem sequer se invocou a 2ª alternativa da al. a) do n.º 1 do art. 610 do CC.

            Sendo um acto oneroso, tinha-se que se provar a má fé do falido, do arrendatário e do transmissário do direito ao arrendamento (art. 612/1 do CC), entendendo-se por esta a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor (art. 612/2 do CC) o que resulta do ponto de facto 22.

            Não tem pois razão a ré na sua conclusão II).

            E com isto ficam prejudicadas as conclusões subsequentes, porque os pressupostos da impugnação pauliana já estão verificados.

            De qualquer modo, diga-se ainda, quanto à presunção de má fé prevista no art. 158/1-a do CPEREF (já transcrita pela ré na conclusão JJ do seu recurso) que não é de afastar a sua aplicação apenas pelo facto de a ré não ser uma pessoa singular (nem aliás a falida o ser), nem ter participado na celebração do arrendamento (entre a falida e o outro réu).

            A presunção do art. 158/1-a do CPEREF podia operar em relação ao primeiro acto – arrendamento celebrado entre a falida e o genro do seu principal sócio e único gerente – desde que se tivesse em conta que a norma pode ser interpretada extensivamente ou pode mesmo ser alvo de aplicação analógica ou que pode ser utilizada a figura da desconsideração da personalidade jurídica (da falida) e, relativamente ao segundo acto – cedência da posição contratual no arrendamento – se ainda se tivesse em atenção que, face aos pontos de facto 12, 13, 14, 16, 17, 19, 22, II, III e IV, se poderia utilizar ainda o instituto da fraude à lei se se entendesse que o primeiro acto (arrendamento ao genro do sócio-gerente) foi apenas uma forma de afastar o preenchimento da previsão da presunção em causa relativamente ao segundo acto, resultando dos dois actos a constituição do arrendamento a favor da ré. O que não se desenvolve aqui por ser desnecessário.

              [discutindo estas questões, embora com referência ao art. 120/4 do CIRE, veja-se o ac. do TRC de 25/01/2011 – 7266/07.3TBLRA-H; o ac. do TRG de 17/09/2013, 1936/10.6TBVCT-S.G1; o ac. do STJ de 25/03/2014, 1936/10.6TBVCT-N.G1.S1, e o AUJ do STJ de 13/11/2014,1936/10.6TBVCT-N.G1.S1, que no ponto 59 diz: “Assim, a referida presunção [do art. 120/4 do CIRE] tanto se verifica quanto à resolução dos actos prejudiciais em que o terceiro (a) é ele próprio pessoa especialmente relacionada com o insolvente como em relação aos actos em que o terceiro (b) não é pessoa especialmente relacionada com o insolvente mas neles participou ou se aproveitou pessoa especialmente relacionada com o insolvente. Acolhe-se, pois, a segunda interpretação anteriormente enunciada deste preceito.”; o ac. do TRP de 05/12/2013, 2041/10.0TJPRT-C.P1; o comentário de Miguel Teixeira de Sousa àquele acórdão do STJ publicado nos CDP 50 Abril/Junho 2015, especialmente págs. 61/62, em que refere que nada impede a interpretação extensiva de uma enumeração taxativa; bem como a possibilidade de tornar uma enumeração taxativa numa enumeração enunciativa com recurso à consideração da fraude à lei; e ainda que a doutrina e a jurisprudência alemã não vêem qualquer obstáculo à aplicação analógica do disposto na norma alemã equivalente ao art. 49/2 do CIRE, de molde a abranger os casos em que se verifica uma relação familiar próxima entre os sócios ou os gerentes da sociedade insolvente e da sociedade adquirente; e em que considera, por fim, que o que o STJ fez foi desconsiderar a personalidade jurídica das duas sociedades envolvidas; e o comentário de Maria de Fátima Ribeiro nos CDP nº. 35 Julho/Setembro 2011 (que fala também do carácter não taxativo do art. 49 do CIRE e na abrangência do art. 120/4 do CIRE funcionando mesmo para relações especiais que se tenham constituído após a prática do acto em causa, em alternativa à desconsideração da personalidade jurídica de sociedades defendida por um acórdão do TRP para uma situação diferente): nota 44 e texto conexo das págs. 39/40].

                                                             *

            Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

            Custas pela ré (sem prejuízo do que vier a ser decidido quanto ao pedido de apoio judiciário).

            Lisboa, 20/10/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto