Processo do Juízo de Comércio de Sintra – Juiz 1

              Sumário:

       I- Balancetes gerais de uma sociedade dos quais apenas constam valores de empréstimos obtidos, sem referência a quem fez os empréstimos e sem quaisquer documentos de suporte comprovativos dos empréstimos, não provam quem fez esses empréstimos.  

              II- O facto de o contabilista certificado que elaborou aqueles balancetes vir depor no sentido de que tinham sido os autores a fazer a maior parte desses empréstimos à sociedade não é suficiente para provar que assim foi e muito menos que foram eles que fizeram todos os empréstimos. E muito menos serve de prova disso o depoimento da filha dos autores, sócia gerente da sociedade que veio a ser declarada insolvente que diz ter vendido os bens imóveis para pagamento de tais empréstimos.

              III- Se os autores admitem que nada pagaram, apesar de na escritura de compra e venda de bens imóveis de uma sociedade, que se veio a tornar insolvente, constar que o valor dos imóveis já foi recebido, não se pode dar como provado o pagamento do preço.

             IV- Se naqueles balancetes consta o reembolso daqueles empréstimos com base naquela escritura, pode-se concluir que os balancetes não correspondem à realidade.

              V- Se o valor dos imóveis transferidos para os autores pela sociedade que se veio a tornar insolvente não foi recebido por esta, pode-se concluir pela existência de prejuízo para a massa insolvente.

              VI- A resolução da escritura não tinha que ser feita pelo AI através da propositura de uma acção judicial, já que o art. 123/1 do CIRE diz que a resolução pode ser efectuada pelo AI por carta registada com a/r.

            VII- Quando não se prova uma determinada alegação de facto, tal não quer dizer que esteja provada a alegação contrária, pois que a não prova equivale apenas à não alegação do facto não provado, fazendo jogar as regras da distribuição do ónus da prova.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

              M e A, intentaram a presente acção de impugnação de resolução, por apenso à insolvência de J.M-Lda, requerendo que: seja julgada nula a resolução operada pelo Administrador de Insolvência, na carta datada de 24/04/2015, em virtude da sua completa ausência de fundamentação e por não terem sido especificadas as respectivas causas de prejudicialidade do acto, nem, de resto, este negócio ter sido prejudicial à massa insolvente e, em consequência, considerar-se válido o negócio entre os autores e a insolvente.

              Alegam, para tanto e em síntese que: em 2012 emprestaram à sociedade 125.000€; em 2013, parte do referido empréstimo foi paga aos autores através da compra e venda de umas fracções por 112.300€; foi este o acto resolvido pelo AI; a venda não foi prejudicial para a massa.

          A massa insolvente contestou pugnando pelo indeferimento da impugnação apresentada.

         Foi realizada a audiência final e depois foi proferida sentença julgando improcedente a impugnação da resolução, absolvendo-se a massa do pedido.

               Os autores vêm recorrer desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente e declare nula a resolução operada pelo AI -, impugnando parte da decisão da matéria de facto e alegando que, face aos factos que devem ser dados como provados, a impugnação devia ter sido considerada procedente.

              Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                                 *

              Questões que importa resolver: se a decisão da matéria de facto deve ser alterada e se, em consequência, a acção deve proceder.

                                                                 *

              Para a decisão destas questões importam os seguintes factos dados como provados:

1/2- Em 15/03/2013, por escritura pública denominada compra e venda, a J.M-Lda, representada pela sua gerente J, declarou vender aos autores e estes declararam comprar, pelo valor global de 112.300€, já recebido, as seguintes fracções autónomas do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Q, sob o número 000, da freguesia de B:         

– Por 11.830€, a fracção E, correspondente à cave, garagem nº5;

– Por 14.120€, a fracção F, correspondente à cave, garagem nº6;

– Por 86.350€, a fracção G, correspondente ao rés-do-chão, loja A.

 Os valores em causa são iguais aos valores patrimoniais tributários.

3- Na ocasião referida em 1 os autores não pagaram à J.M-Lda os 112.300€.

4- A referida gerente é filha dos autores.

5- Em 02/07/2014, E-Lda, requereu a insolvência de J.M-LDA.

6- Nos autos principais, por sentença proferida em 07/11/2014, transitada em julgado 23/12/2014, foi declarada a insolvência da J.M-LDA.

7- Em 24/04/2015, o Administrador da Insolvência remeteu aos autores que a receberam, missiva, com o seguinte teor:

          Venho pela presente proceder, nos termos do disposto no art. 120 e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (Decreto-Lei 200/2004, de 18/08), à resolução da compra e venda em que V.Exas, outorgaram como compradores, sendo vendedora a ora insolvente J.M-LDA, tendo como objecto as fracções E, F e G [devidamente identificado].

          A compra e venda ora resolvida teve lugar através de escritura outorgada em 15/03/2013 no Cartório Notarial […].

          Na escritura em causa declarou-se que o preço foi de 112.300€ mas este nunca foi pago pelos compradores e recebido pela vendedora.

          O processo de insolvência da J.M-LDA iniciou-se em 01/07/2014.

          A compra e venda em causa teve, assim, lugar dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (art. 120/1 do CIRE).

          Acresce ter sido prejudicial à Massa Insolvente pois, repete-se, o preço escriturado não foi pago e recebido sendo certo que tal preço era inferior ao valor real dos bens em, pelo menos, 35%.

          Mas, mesmo que o preço tivesse sido pago e recebido, o certo é que não consta das contas da insolvente e, bem fungível como é, se verificou com a compra e venda em causa diminuição, frustração, dificuldade, colocação em perigo e retardamento na satisfação dos credores da insolvência (art. 120/2 do CIRE), tendo sido substituídos bens imóveis, cuja venda exige formalização, por dinheiro que facilmente se oculta ou dissipa.

          Supondo-se que a compra e venda que ora se resolve se destinou ao pagamento de eventuais suprimentos dos vendedores à insolvente, então estamos perante reembolso dos mesmos, em termos não usuais no comércio jurídico e que os credores não podiam exigir, tal como previsto no art. 121/1, alíneas g) e i), do CIRE, pelo que a sua prejudicialidade para a Massa Insolvente se presume nos termos do art. 120/3 do já citado do CIRE.

          Os compradores da compra e venda que ora se resolve são pais daquela que era à data sócia gerente da ora insolvente, tendo, de resto, outorgado na escritura ora em causa nessa qualidade em sua representação. E a referida sócia gerente é casada, desde 1989, com o outro sócio gerente da insolvente e que também outorgou em representação da mesma na compra e venda que se resolve, pelo que este é genro dos compradores [omitiram-se nesta transcrição os nomes e outras repetições]

          Deste modo, a má fé dos compradores presume-se, nos termos do art. 120/4 do CIRE, uma vez que, tendo outorgado a compra e venda, eram pessoas especialmente relacionadas com a Insolvente (pais de uma sócia gerente e sogros do outro sócio-gerente, ambos outorgantes na escritura, como se referiu, sendo a filha herdeira legitimária dos pais).

     De resto, a má fé dos compradores é efectiva porquanto conheciam à data da compra e venda (art. 120/5 do CIRE) que:

              a) a J.M-Lda se encontrava em situação de insolvência;

          b) o acto era prejudicial para os credores da J.M-Lda e que a situação de insolvência desta estava iminente (aliás, existia já).

          Consequentemente, solicito que as fracções em causa me sejam imediatamente entregues, livres de pessoas e bens, devendo as chaves ser-me enviadas para tal efeito.”

                                                                 *

                       Da impugnação da decisão da matéria de facto

              Os autores entendem que o facto provado sob 3 – os autores não pagaram o preço – não devia ter sido dado como provado – pelo contrário, a compra e venda teria sido celebrada como forma de pagamento/compensação do valor do crédito referido a seguir, ou seja, o preço da compra e venda já tinha sido liquidado como compensação operada com o crédito dos autores sobre a insolvente – e que devia ter sido dada como provada a alegação que eles tinham feito de que em 2012 tinham emprestado à J.M-Lda 125.000€.

              A fundamentação do tribunal, quanto a tal, deveu-se ao seguinte:

         […] na falta de prova credível quanto a este ponto. Com efeito, embora a testemunha J se tenha referido a empréstimos que teriam sido efectuados pelos autores à empresa insolvente, tal não resulta credível, não só pelo evidente interesse que esta testemunha tem na procedência da acção, por estar em causa património dos seus pais, dos quais é herdeira legitimária, mas igualmente pelo modo evasivo como depôs, não logrando sequer concretizar em que momento tais empréstimos teriam sido efectuados, de que modo e quais os seus montantes.

         Também não nos mereceu qualquer credibilidade o referido pela testemunha P, técnico oficial de contas da sociedade insolvente. Esta testemunha mostrou-se parcial, ao revelar grande preocupação em declarar, antes que tal lhe fosse até perguntado, que existiam documentos que comprovavam os empréstimos alegados pelos autores, embora não tenha trazido tais documentos consigo, o que não resulta conforme com a normalidade das coisas, posto que, sabendo do que estava em causa nos autos, caso tais documentos existissem, a testemunha ter-se-ia munido dos mesmos quando chamado a juízo. Não o tendo feito, e não sendo credível que tais empréstimos tivessem sido feitos em dinheiro, na ponderação do montante invocado, é de concluir que inexistem tais documentos. Acresce que a credibilidade da testemunha resulta outrossim contrariada pela circunstância de ser pessoa da esfera de influência da sociedade insolvente, por ter sido o seu técnico oficial de contas.

              Os autores, para contrariar tal, dizem, com múltiplas variações de que apenas se retiram algumas, que:

         Da análise do balancete geral da J.M-Lda de 31/12/2012 (doc.1 junto pelos autores) retira-se que na contabilidade da J.M-Lda à data de 31/12/2012 encontrava-se reflectido um valor de 125.000€ qualificado como “outros empréstimos obtidos”, um passivo de 125.000€, não tendo o mesmo sido liquidado e/ou amortizado no final de 2012. Se os 125.000€ tivessem sido um empréstimo aos sócios e ou gerentes da J.M-Lda, o mesmo certamente que se encontrava reflectido na conta 51 “capital social” ou conta 53 referente a “outros instrumentos do capital social”, o que não acontece.

         Da análise do balancete geral da J.M-Lda referente a 2014 (doc.3 junto pelos autores [os autores querem referir-se a 2013 – TRL]) e na referida conta 25.8.1.02, outros financiamentos obtidos, referente ao crédito dos autores ainda se encontra como saldo credor o valor de 12.500€ [os autores quiseram escrever 125.000€ – TRL].

         Considerando o facto provado 1/2, fácil é de concluir que o valor da operação compra e venda – 112.300€ – foi considerado na contabilidade da J.M-Lda, no balancete geral de 2013, tendo passado o valor dos “outros empréstimos obtidos” para 12.700€

         Mas temos ainda os depoimentos prestados por testemunhas que confirmam que os autores detinham um crédito sobre a J.M-Lda (eram credores em 2012) e que os autores emprestaram à sociedade o total de 125.000€.

         Testemunha J, que prestou o seu depoimento em 24/05/2018, gravado, com início pelas 10:27 e o seu termo pelas 10:45, registado entre 01m49segs a 16:43segs.

            (…)

            Mandatária dos autores: Está aqui em causa uma venda que foi feita à autora de uns imoveis em B que eram da empresa J.M-Lda. O que está em causa é se efectivamente foi pago o valor à sua mãe ou não. A Senhora D. J era socia da J.M-Lda, certo?

            Testemunha: Correcto.

            Adv..: Consegue explicar ao tribunal em que circunstâncias em que ocorreu este negócio?

            Test.: No dia da escritura de facto não ouve pagamento uma vez que esse pagamento seria por conta de empréstimos que os meus pais haviam feito à empresa a nosso pedido. Portanto esse dinheiro já estava na empresa antes do dia da escritura.

            Adv.: Se bem percebi os seus pais emprestaram-lhe dinheiro, certo?

            Test.: Correto. Os meus pais emprestaram-me dinheiro para fazer face à tesouraria da empresa.

            Adv.: Emprestaram-lhe dinheiro desde quando e de que forma?

            Test.: Eram empréstimos pontuais que foram feitos ao longo de alguns anos. Não temos discriminado, porque já se passou algum tempo. Desde 2010 e um pouco antes 1998/1999/2000. Algumas vezes que solicitei, pontualmente, que me adiantassem algum dinheiro para fazer face a problemas de tesouraria, momentâneos, uma vez que o mercado funciona por crédito e, portanto fazemos os trabalhos aos clientes e damos um período de crédito. E temos de antecipar dinheiro (…) Eu solicitava dinheiro aos meus pais, como tinham algum dinheiro disponível e eu fazia alguns pagamentos [salários, impostos]. Foi dessa forma, alguns deles, também por depósitos de cheques (que entreguei as copias) (…) tudo isso ficou sempre espelhado na empresa, todos estes movimentos eu sempre comuniquei como é que estavam a ser feitos. Haviam os pagamento na emprega (…) que não estavam a sair pelo banco porque eu fazia os pagamentos em dinheiro aos funcionários.

            Adv..: Pediu dinheiro aos seus pais (…) como forma de gestão da empresa. Era só aos seus pais? Recorria a bancos?

            Test.: Sim, claro também tinha créditos bancários, mas eram para outros fins, de tesouraria.

            Adv.: Os seus pais cobravam-lhe juros?

            Test.: Obviamente

            (…)

            Adv.: Alguma vez comentou com os seus pais os negócios da empresa?

            Test.: Não, não havia essa necessidade (…)

            Adv.: Tratou-se de empréstimos ou os seus pais davam-lhe o dinheiro?

            Test.: Não. Era um empréstimo. Este valor teria de ser restituído, eram as poupanças dos meus pais.

            (…)

            Advogada da insolvente: Quais os montantes, de que forma feitos os empréstimos?

            Test.: Não lhe consigo dizer, porque não foi mantido um registo pontual, ou pelo menos não tenho neste momento (…) eram entregues em entregas de valores, pequenas entregas: 5.000€, 10.000€

            Adv.: Sabe um valor total?

            Test.: Sei, a nível de total

            Adv.: Como é que sabe?

            Test.: Sei, porque quando esta situação surgiu os valores estavam na contabilidade e inquirimos quanto é que tínhamos de devolver aos meus pais.

            Adv.: Pediu a quem?

            Test.: Pedimos ao nosso contabilista [P]

            Adv.: Referiu que em 2013 estava muito saudável, mas não é isso que reflecte a insolvência da sociedade nem os relatórios.

            Test.: Aquilo que sei é que a empresa estava a laborar normalmente (…) que vem nos balancetes não reflecte que seja saudável.

            Adv.: Os empréstimos ficaram registados por escrito?

            Test.: Não

            (…)

         A testemunha, e não obstante a relação familiar com os autores, corroborou, de forma objectiva e que merece toda a credibilidade, a forma dos empréstimos dos autores à empresa insolvente, os fundamentos de tais empréstimos, as datas (anos) em que os mesmos foram realizados pelos autores e ainda o tratamento e/ou qualificação dos valores emprestados pelos autores à sociedade.

         Esta testemunha foi inclusive a pessoa que directamente se relacionava com os autores, que recebia o valor dos empréstimos e que na sociedade os alocava.

         Quanto à compra e venda aqui em questão, a testemunha explicou os contornos da mesma de que teve conhecimento pessoal.

         No mesmo sentido, a testemunha P, que prestou o seu depoimento em 24/05/2018, gravado, com início pelas 10:27 minutos e o seu termo pelas 10:45 [sic – TRL], registado entre 00m17segs a 10m28segs, o qual de modo claro e credível acrescentou que [transcreve-se como o fazem os autores, com alguns parenteses rectos acrescentados por este TRL, o que será assinalado]:

            (…)

            Mandatária dos autores: Conhece a J.M-Lda?

            Test.: Sim

            Adv.: Tive alguma relação profissional com a sociedade?

            Test.: Sim, técnico de contas [ou melhor: contabilista certificado, como acaba por dizer – TRL]

            Adv.: Durante quanto tempo e qual foi o período?

            Test.: 2008-2009 até ao momento da insolência da sociedade

            [… – TRL]

            Adv.: O que está aqui em causa (…) é uma compra e venda entre os autores e a J.M-Lda de uma loja em B e de uma garagem. Tem presente este negócio?

            Test.: Tenho

            Adv.: Sabe mais ou menos quando é que correu?

            Test.: Algures em 2013

            Adv.: Tem conhecimento de que os pais da D. J emprestaram à J.M-Lda?

            Test.: Tenho conhecimento e há prova documental, conforme consta na contabilidade que os pais [esses terceiros, como assim são considerados – TRL] emprestaram, mais do que uma vez, dinheiro à J.M-Lda (…) há registos na contabilidade (…) tenho conhecimento que foram apresentados, mais que uma vez, em processos anteriores os respectivos depósitos e um deles até era grande 50.000€, mas foram, salvo erro, dois ou três (…) andaria à volta de 70.000€ o valor dos depósitos, a título de empréstimo. Fora os valores em dinheiro que não tenho um documento, mas eram feitas as respectivas entregas quando era necessário.

            Adv.: [Balancete de 2013] foi o senhor que o elaborou?

            Test.: Sim

            Adv.: Há um empréstimo numa conta [outros empréstimos: folha 8] 125.000€ eram empréstimos de quem?

            Testemunha: Eram empréstimos de terceiros, não subdividimos a conta [ou melhor, de 6:49 a 7:06: Estes empréstimos (?) por terceiros, neste caso eram sobretudo, e a gente não subdividiu a conta, nunca houve necessidade disso, eram empréstimos que estão aqui… -TRL]. (…) O saldo dos empréstimos não vem apenas do ano de 2012 eram também de anos anteriores. (…) diz respeito a empréstimos pelos próprios sócios e também pelo pai da D. J (…) não consigo precisar o montante que aqui está [7:38 – se – TRL] foi todo feito pelo pai da D. J [7:44 a 7:53 – se foi também juntamente com empréstimos dos próprios sócios, que iam ao banco, faziam empréstimos a título pessoal e eram reflectidos aqui – TRL], porque o saldo da conta remonta pelo menos desde 2010. Estão aqui, todos os empréstimos realizados por terceiros, em particular pelo autor desde 2010.

            Adv.: Tem ideia do valor emprestado na totalidade? Tem algum documento que prove?

            Test.: Neste momento, a única coisa que tenho comigo são os balancetes, não tenho mais documento nenhum que possa aferir. Mas na altura facultei cópias dos depósitos que foram feitos. Depósitos que foram feitos na conta da J.M-Lda.

            (…)

            Test.: Sim, depósitos que são feitos na J.M-Lda que aparecem reflectidos na conta de bancos e, em contrapartida, na conta de empréstimos onde existe uma divida da J.M-Lda a terceiros, sejam eles os pais da D. J ou quem quer que seja.

            (…)

         A testemunha foi claramente coerente com o seu testemunho e objectivo no mesmo, tendo conhecimento directo, considerando a sua profissão e funções que desempenhava na empresa insolvente, quer a existência do crédito dos autores, bem como bem esclareceu o tratamento e qualificação contabilístico do valor dos empréstimos dos autores à J.M-Lda.

         Ao contrário do que foi entendido pelo tribunal a quo a testemunha não tinha que se encontrar munido de qualquer outro documento que fizesse prova do crédito dos autores, pois a contabilidade da empresa insolvente encontrava-se junta aos autos e foram esses documentos que a testemunha clarificou ao tribunal a quo, nomeadamente o tratamento e qualificação dos créditos dos autores na contabilidade da empresa insolvente.

         Em suma, deste depoimento, fica igualmente demonstrado que os autores emprestaram valores à insolvente (J.M-Lda) e que os sucessivos empréstimos (ao longo dos anos) encontram-se reflectivos na contabilidade da empresa.

         Pelo depoimento, igualmente foi demonstrado que a escritura de “compra e venda” entre a insolvente e os autores foi celebrada em 2013 e que o foi como forma de compensação pelo valor dos empréstimos dos autores à sociedade.

         Ora, e embora a informação, os documentos, as provas (testemunhal), estivessem nos autos, certo é que o tribunal a quo tinha mais que matéria suficiente para dar como provados a totalidade dos factos alegados pelos autores, nomeadamente a existência do seu crédito de 125.000€ e que o mesmo existia à data de 31/12/2012.

         Por toda a prova produzida nos autos, o tribunal a quo teria sempre que considerar como provado e acrescentar aos factos dados como provados que até ao ano de 2012, os autores tinham emprestado à insolvente o valor total de 125.000€.

         Desta prova dúvidas não existem que o valor dos bens – 112.300€ – foi devidamente liquidado pelos autores mas, por compensação do crédito já existente (2012) e detido pelos autores sobre a insolvente. Ou seja, o pagamento do preço dos bens imóveis da insolvente já tinha sido liquidado, por compensação operada com o crédito detido pelos autores na sociedade.

              Decidindo:

          Na escritura de compra e venda de 2013 os autores declararam comprar à sociedade insolvente (representada pela filha e pelo genro dos autores, que, por sua vez, declararam em representação daquela vender) 3 imóveis, pelo valor de 112.300€, que se declarou já recebido.  

          Na petição inicial, os autores diziam ter emprestado à sociedade insolvente 125.000€ em 2012 e que esta, através daquela “venda”, lhes teria pago parte (os tais 112.300€) daquele empréstimo.

              Daqui resulta claro que os autores, ao contrário do que diziam na escritura de compra e venda (tal como a sua filha e o seu genro), não pagaram qualquer preço pela alegada compra e venda. E como uma compra e venda tem como elemento essencial um preço (art. 874 do CC) a compra e venda não existiu. O que existiu, na versão da petição inicial, foi uma dação em cumprimento (art. 837 do CC). 

              Quer isto dizer que a própria posição assumida pelos autores na PI logo permitia considerar provado que o preço não foi pago – logo o facto sob 3 corresponde à verdade – e que não houve qualquer compra e venda – logo não se pode dar como provado aquilo que os autores queriam que se desse como provado em substituição daquele facto.

              Nas alegações do recurso, os autores querem que (a) aquilo que foi dito pela filha e (b) pelo contabilista certificado (que não é um revisor oficial de contas e que não as certifica) da insolvente e ainda aquilo que (c) consta do balancetes gerais, mês 13 / regularizações, de 31/12/2012 e de 31/12/2013, sirva para (i) afastar o ponto provado sob 3, (ii) para dar como provado o empréstimo dos autores à insolvente e (iii) para dar como provado que a compra e venda existiu embora como forma de pagamento/compensação do crédito dos autores.

              Ora, quanto ao que foi dito pela filha – que aliás não diz que o empréstimo foi feito em 2012 ao contrário do que os autores diziam na PI – é evidente que ela não merece qualquer credibilidade. Ela é uma dos dois gerentes da sociedade insolvente que participou na escritura de compra e venda que se sabe que não corresponde à realidade e onde referiu que o preço da venda – que não houve – já tinha sido recebido – o que se sabe não ter ocorrido.

              Ou seja, ela mentiu deliberadamente na escritura de compra e venda, fazendo afirmações falsas – não vendeu nem recebeu preço nenhum – para, segundo ela, pagar aos pais os empréstimos que estes teriam feito à sociedade, de modo a que estes ficassem com três imóveis da sociedade. E fê-lo necessariamente em conluio com os pais, autores, que, como é evidente, sabem que não tinham pago nem comprado nada. E isto em necessário prejuízo dos credores da massa insolvente que, se esta ficar sem aqueles imóveis, receberão menos do que receberiam se os imóveis ficassem na sociedade, ou seja, se a acção improceder.

              É assim evidente que se trata de um depoimento de favor, prestado pela filha, a favor dos pais, para concretizar o seu objectivo de que estes fiquem com parte do património da sociedade, em prejuízo da massa insolvente.

              Quer isto dizer que o seu depoimento não merece credibilidade nenhuma. Se a testemunha é capaz de dizer falsidades numa escritura notarial com o objectivo de beneficiar os pais, é também perfeitamente capaz de mentir em tribunal com o mesmo objectivo. E é evidente que ela está a depôr em tribunal com o mesmo fim substancial com que participou na escritura.

              Quanto ao empréstimo:

              A testemunha contabilista certificado, apesar da transcrição muito defeituosa do seu depoimento, veio esclarecer aquilo que é óbvio, ou seja que a conta 25.8.1.02 referida nos balancetes gerais de 2012 e 2013 diz respeito a empréstimos obtidos, sem qualquer subdivisão. Ou seja, não resulta minimamente deles (balancetes) que esses empréstimos tenham sido feitos pelos autores. Podem ter sido feitos pelos autores, pelos sócios ou por terceiros. E diz a testemunha que corresponde a um crédito acumulado de -125.000€ que vem dos anos anteriores.

              Ou seja, da própria leitura feita pela testemunha contabilista certificado dos balancetes gerais, 13 mês / regularização, de 2012 e 2013, balancetes feitos pela testemunha, resulta que os autores, ao contrário do que diziam, não fizeram empréstimos de 125.000€ em 2012; e deles (dos balancetes) não resulta que esses empréstimos obtidos, já de anos anteriores, tenham sido feitos pelos autores (embora a testemunha contabilista pretenda que terão sido feitos principalmente pelos autores, mas sem qualquer suporte documental comprovativo). Podem ter sido feitos também pelos sócios e podem ter sido feitos também por outros terceiros.

              Assim, o próprio depoimento do contabilista invocado pelos autores põe claramente em questão a prova que eles pretendiam retirar dos balancetes em causa. Ou seja, dos balancetes não resulta que deva ser dado como provado que os autores tenham emprestado à J.M-Lda, em 2012, 125.000€.

              Aquele depoimento só podia ser credível se houvesse documentos de suporte dos lançamentos em causa, isto é, dos lançamentos feitos na própria conta corrente dos pais na sociedade, e não uma simples síntese feita num balancete geral de uma conta que já se sabe não dizer respeito apenas aos pais, mas também aos sócios e a terceiros. E por isso é que a testemunha os invoca.

              Como a testemunha P era o contabilista da sociedade e invocou os documentos de suporte, o tribunal referiu-se criticamente ao facto de este não os ter exibido. Mas o principal é não terem sido juntos ao processo pelos autores. É inacreditável – em sentido próprio – que, se houvesse documentos de suporte para os lançamentos de supostos empréstimos, os autores não os tivessem junto.

              Dizem os autores que os documentos estão no processo, querendo com isso referir-se, provavelmente, ao processo de insolvência e seus apensos. Ora, primeiro, este processo apesar de ter sido apensado à insolvência, não é um dos apensos normais de tal processo e é dele autónomo. A prova existente na insolvência e na qualificação da insolvência (a que a advogada dos autores se referiu durante as alegações) não foi produzida nestes autos, em que as partes nem sequer são as mesmas. Por outro lado, os autores nem sequer identificaram tais documentos, referindo-se-lhes genericamente em evidente violação do disposto no art. 640/1-b do CPC, pelo que a referência aos documentos, que não se sabe quais são, não tem qualquer utilidade.

              Quanto ao lançamento dos 112.300€ do valor da “compra e venda” nos balancetes gerais da J.M-Lda feito pela dita testemunha contabilista certificado:

              Este lançamento, a ter o sentido que lhes é dado pelos autores – de reembolso do empréstimo, por estar colocado no débito acumulado, na conta 25.8.1.02 no ano de 2013, levando a que os -125.000€ tenham ficado reduzidos a -12.700€ -, o que demonstraria era que este contabilista aceitou (sem que lhe pudesse ter sido dada qualquer prova do recebimento do preço, porque ela, assumidamente, não existe) o conteúdo da escritura de compra e venda dos bens da insolvente aos autores, que se sabe não corresponder à verdade (note-se no entanto que no interrogatório da testemunha nunca lhe é perguntado expressamente o que é que se passou com este lançamento, o que não deixa de ser significativo). Assim, o que se indicia é que este contabilista entrou – consciente ou inconscientemente, não interessa -, no esquema montado pelos sócios-gerentes da insolvente de modo a fazer transferir a propriedade das fracções da insolvente para os autores, a pretexto de um alegado crédito destes contra a insolvente.  

              Assim, a prova que os autores invocam para modificar a decisão recorrida é (i) o depoimento da filha, sócia e gerente da insolvente, que transfere, para os pais, bens da insolvente, sem que aqueles lhe paguem o preço que ela diz que foi pago; (ii) um contabilista que aceita tal documento sem qualquer prova do recebimento do preço; e (iii) um documento da contabilidade da insolvente elaborado por tal contabilista com base naquela escritura.

              Note-se que:

              – um balancete geral, não é um balanço [anual; os balancetes – em regra mensais – são quadros com a transcrição dos totais dos lançamentos a débito e a crédito de todas e cada uma das contas do razão correspondentes ao período considerado – Brito Correia, 1º vol. AAFDL, 1987/1988, pág. 278, nota 27, citando Rogério F. Ferreira, Lições de contabilidade geral, pág. 118],

              – nem é um documento das contas da sociedade que seja publicado e que conste do registo comercial (e que por isso pudesse beneficiar de qualquer presunção registal: arts.3/1-n, 11, 15/1 e 42/1-c, todos do Código do Registo Predial). Aliás, acrescente-se, na certidão comercial junta aos autos, as contas da sociedade, de 2013, não foram publicadas.

              – o balancete não é também um documento das contas da sociedade que tenham sido certificadas por um revisor oficial de contas e que tenha sido registado e publicado gozando da presunção do registo (art. 42/1 do CRC).

              – por outro lado, os autores – nem mesmo ajudados pela filha e pelo contabilista da sociedade – não demonstraram minimamente que a contabilidade em causa fosse uma contabilidade regular (não se sabe sequer – pelo que já se disse acima sobre a autonomia deste apenso – se a insolvência não terá sido qualificada de culposa e, seja qual for o resultado do apenso respectivo, se ele teve ou não a ver com a contabilidade da sociedade; repare-se que segundo o art. 186/2-h do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor). Pelo contrário, pelo que já se disse, o balancete de 2013 é um documento de uma contabilidade que se sabe não ser regular.

              – por outro lado, tal documento não está a ser usado numa acção entre comerciantes, mas sim entre uma massa insolvente (que não é a própria sociedade) e particulares não comerciantes, não tendo por isso o valor probatório que poderia resultar das normas do art. 44 do Código Comercial.

              – trata-se pois de um documento cuja força probatória resultaria quando muito do art. 380 do CC, mas apenas se dele resultasse inequivocamente a recepção de algum pagamento, o que não é manifestamente o caso de um pretenso reembolso feito pela sociedade aos autores.

              Dito de outra perspectiva: a ser verdade – e não é mais do que uma hipótese, face ao que já se disse quanto ao contabilista ter aceitado a escritura de compra para lançar um reembolso -, que existia um crédito acumulado de -125.000€ de empréstimos, não há nenhuma prova séria de que esses empréstimos tenham sido feitos pelos autores – é o próprio contabilista que afirma que eles podem ter sido feitos pelos sócios ou por terceiros – e muito menos que, se eles tiverem feito alguns empréstimos, estes tivessem aquele valor.

              É evidente, por isso, que as pretensões dos autores, (i) de eliminar aquele facto 3 dado como provado, (ii) de se dar como provado uma afirmação de facto que não foi dada como provada e, (iii), não assumida de forma clara (também em violação do art. 640/1-c do CPC), de acrescento de um facto aos factos provados, não procede.

              Assim, deixa-se intocada a matéria de facto.

                                                                       *

                                 Do recurso sobre matéria de direito

              A sentença recorrida tem a seguinte fundamentação de direito (em síntese feita por este TRL e apenas na parte em que, por um lado é suficiente para a improcedência da acção e, noutro, em que é posta em causa pelos autores; assim, por exemplo, não se faz referência à questão da nulidade da falta de fundamentação da resolução, que a sentença resolveu, com desenvolvimento, em sentido negativo e que, certamente por ser tão evidente a sua correcção, os autores nem sequer discutem):

         A resolução dos actos prejudiciais à massa pode ser condicional (art. 120 do CIRE) ou incondicional (art. 121 do CIRE).

         No caso dos autos, o acto consubstancia a venda de imóveis da devedora aos pais da sua gerente, ocorrida nos dois anos que antecederam a declaração de insolvência.

         Porque estamos perante negócio oneroso, uma compra e venda, e tendo a mesma ocorrido mais de um ano antes da data da declaração de insolvência, estamos fora do âmbito da resolução incondicional do art. 121/1-h.

         A resolução em causa nos presentes autos não pode ser, assim, se não a condicional.

         São requisitos essenciais da resolução condicional (art. 120/1 e 4 do CIRE):

         – a prejudicialidade do acto para a massa insolvente;

         – a verificação desse acto nos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência;

         – a má-fé do terceiro.

         Não se suscitam dúvidas, sobre a verificação do primeiro requisito, posto que com o acto em causa ficou a devedora insolvente sem os seus bens mais valiosos, quais sejam os bens imóveis, tendo resultado provado que os autores não pagaram à sociedade o valor dos mesmos (a quantia de 112.300€).

         O acto em causa data de 15/03/2013, tendo tido o processo de insolvência início em 02/07/2014, pelo que também o segundo requisito se mostra verificado.

         Resta aferir do terceiro requisito, qual seja o da má-fé dos terceiros.

         Para tal, cumpre atentar no art. 120/4 do CIRE que dispõe que a má-fé “se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.”.

         O art. 49/2, als c) e d) do CIRE classifica como pessoas especialmente relacionadas com o devedor que seja uma pessoa colectiva, os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e as pessoas relacionadas com os referidos administradores por qualquer das formas referidas no nº 1 do mesmo preceito.

         Tal número, na parte que ora releva, reporta-se aos ascendentes.

         Ora, provou-se que a gerente da vendedora insolvente é filha dos compradores, pelo que estamos na situação de má-fé presumida a que se refere o art. 120/4 do CIRE.

         Nos termos do art. 123/1, a resolução pode ser efectuada pelo administrador da insolvência, por carta registada com aviso de recepção.

         A resolução pode ser impugnada pela outra parte no ato resolvido ou por terceiro afectado pela resolução, a quem incumbe o ónus de intentar a acção correspondente, que corre por dependência do processo de insolvência. Está em causa nesta acção a inexistência do fundamento da resolução operada.

         Pelo que, é válida a revogação efectuada de modo fundado pelo AI, falecendo a pretensão dos autores.

              Dizem os autores (em síntese):

1. Em primeiro lugar, a simples carta registada enviada aos autores para resolver um negócio/acto sujeito a registo não é o meio adequado/não é válido para o efeito.

2. O AI, ao contrário do que realizou, deveria ter resolvido e/ou tentado resolver o acto através da instauração da competente acção judicial em apenso aos autos principais de insolvência com vista à resolução do ato em causa (art. 123 do CIRE).

3.Os requisitos da resolução condicional são de verificação cumulativa [ac. do TRE de 22/09/2016, proc. 16/13.7TBMRA-K.E1: […] III – Para tal, necessário se torna o preenchimento cumulativo dos três requisitos indicados no artigo 120 do CIRE: (i) os actos têm de ter sido praticados ou omitidos dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência; (ii) os actos têm que ser prejudiciais à massa; (iii) tem que existir má fé do terceiro. (…)], o que no caso em concreto não se verifica.

4. Em primeiro lugar, a insolvente não ficou prejudicada (pela perda dos seus bens), nem qualquer outro credor (no universo de credores) ficou prejudicado. Em causa não está um acto gratuito mas antes um acto oneroso. Os autores à data da celebração da escritura de compra e venda (Março de 2013) eram credores da sociedade no valor de 125.000€. Os bens não foram apenas e simplesmente “transferidos” de propriedade. Existia efectivamente um crédito pelos autores a ser pago e/ou compensado pela insolvente. Logo não se verifica qualquer prejuízo para a insolvente, porque se efectivamente os autores não pagaram o valor do preço no acto da escritura, já haviam pago o mesmo, através dos empréstimos sucessivos à empresa insolvente. Além de que os bens aqui em causa foram “compensados” ao valor de mercado, não tendo sido provado que os mesmos tivessem um valor superior ao valor da compensação.

5. Quanto ao requisito da má-fé, não pode o tribunal a quo apenas cingir-se à questão das “pessoas relacionadas”; terá que considerar que, os autores, à data da formalização da compensação, desconheciam a situação de insolvência da sociedade insolvente (facto b dos factos dados como não provados da sentença recorrida: “aquando do referido em 1 os autores soubessem que a sociedade vendedora estava em situação de insolvência.”)

                                                                 *

              Decidindo:

              A argumentação dos autores é, nesta parte, manifestamente improcedente:

              Quanto aos dois primeiros pontos, a posição defendida não tem qualquer suporte legal, antes é contrariada de forma expressa pela lei: art. 123/1 do CIRE: a resolução pode ser efectuada pelo AI por carta registada com a/r (neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, Quid Juris, 3.ª ed., 2015, pág. 510, Alexandre Soveral Martins, Um cruso de direito da insolvência, Almedina, 2015, pág. 189, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pág. 249, e Ana Prata, Jorge Morais Carvalho, Rui Simões, CIRE anotado, 2013, Almedina, págs. 370-371). O que se discute, por vezes, é se ela pode ser feita por vias mais simples e se pode também ser feita com recurso à acção judicial, o que não tem interesse no caso dos autos.

              Quanto aos requisitos da resolução condicional, os autores negam a verificação do primeiro com base na convicção de que os factos seriam alterados e que, por isso, ficaria provado que eles eram credores da sociedade à data da compra e venda e que esta venda serviu como forma de pagamento/compensação do crédito. Ora, a impugnação da matéria de facto improcedeu e os factos em causa não ficaram provados pelo que cai pela base a argumentação dos autores.

              Resta dizer quanto a este requisito que embora da discussão da matéria de facto resulte a sugestão que se está perante uma simulação da venda, a verdade é que, perante os factos provados não se pode falar em simulação em sentido jurídico, com os efeitos da nulidade da mesma nos termos do art. 240 do CC.

              Perante os factos provados, mantidos inalterados, pode-se, no entanto, reforçar o entendimento da existência do prejuízo: se mesmo perante uma venda de imóveis, em que haja pagamento do preço e este seja o preço real, se considera que há prejuízo porque se trocaram bens de fácil apreensão por bens de fácil sonegação (João Cura Mariano, Impugnação pauliana, 2.ª edição, Almedina, 2008, pág. 173: “estende[-se] a noção de prejuízo às situações em que, na sequência de acto negocial, se verifica uma saída do património do devedor de um bem de valor equivalente ao bem que nele ingressou, verificando-se, porém, uma  perda qualitativa quanto à exequibilidade do património […]. Esta perda qualitativa já é uma lesão actual dessa garantia ao credor, que lhe causa um prejuízo efectivo e que por isso justifica a intervenção da impugnação pauliana […]” e 180: “a impossibilidade referida no art. 610/1-b do CC, não deve ser apenas uma impossibilidade jurídica abrangendo também as hipóteses em que se verifica uma impossibilidade prática, quando a qualidade e características dos bens existentes no património torne fortemente improvável a sua submissão a uma execução judicial. Assim, o valor dos bens de fácil ocultação ou dissipação […] não deverá incluir-se no valor do património do devedor”), muito mais evidente é a existência do prejuízo no caso dos autos, em que o preço nem sequer foi recebido mas os contraentes declararam, falsamente, tê-lo recebido. Daí que a lei diga que se consideram prejudiciais à massa todos os actos que diminuam, frustrem, dificultem, punham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência: art. 120/2 do CIRE, o que é o caso do acto acabado de descrever.

              Quanto ao requisito da má-fé, os autores incorrem no erro censurado há séculos de considerarem que o facto de não se dar como provado um facto equivale à prova do facto contrário. O que o tribunal disse é que não foi feita prova da alegação de facto de que “aquando do referido em 1 os autores soubessem que a sociedade vendedora estava em situação de insolvência.” Tal não equivale, ao contrário do que pretendem os autores, a afirmar, que “os autores, à data […], desconheciam a situação de insolvência da sociedade insolvente.” Quando se não se prova uma determinada alegação de facto, tal equivale apenas a ter-se como não feita tal alegação de facto. Como dizia Lebre de Freitas, “a resposta puramente negativa equivale à não alegação do facto não provado, fazendo jogar as regras da distribuição do ónus da prova (anotação 4 ao então art. 653 do CPC na redacção anterior à reforma de 2013, pág. 662, CPC anotado, vol. 2.º, 2.ª ed, Coimbra editora, 2008)”. Não há prova nem de uma coisa nem do seu contrário. E o que o tribunal fez, a seguir, e bem, foi utilizar a presunção legal de má fé que era aos autores que cabia ilidir, o que não fizeram.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Não há mais custas por pagar. Os autores, que decaíram, perdem a taxa de justiça paga pela interposição do recurso.

              Lisboa, 04/10/2018.

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto