Processo da 1ª secção do 1º juízo de família e menores de Lisboa

              Sumário

            Se, depois de um acordo em que alguém se obriga a pagar, durante um certo período, um certo valor de alimentos, o alimentando adquire um activo patrimonial de valor superior aos alimentos devidos (e para além disso provindo do património do obrigado a alimentos), a obrigação de alimentos deve cessar.

          Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

              L veio pedir, a 23/07/2010, contra a sua ex-mulher, E, que fosse decretada a cessação dos alimentos que está obrigado a prestar-lhe.

           Para o efeito, alegou, em síntese, que, no âmbito da acção de divórcio que correu termos entre eles, acordaram na fixação de uma pensão de alimentos a ela suportada por ele, no valor de 600€ mensais; o requerente aceitou prestar tais alimentos de forma a ajudar a requerida, que afirmava receber cerca de 500€ mensais, dos quais tinha que efectuar as necessárias deduções fiscais, não possuindo outros rendimentos ou fontes de receita, e para esta última organizar melhor a sua vida e poder proporcionar uma melhor qualidade de vida à requerida e aos filhos desta, resultantes de um anterior casamento; as condições sócio-económicas da requerida alteraram-se, pois que vendeu por 250.000€ a casa de morada de família – que era propriedade do requerente – e a obtenção de benefícios, aos quais aquele não teve acesso (acrescido do facto de o imposto sobre as mais-valias geradas recair sobre o requerente por ser o proprietário do imóvel); depois de pago o passivo originado por três empréstimos bancários, resultou para a requerida um rendimento extra no montante aproximado de 113.000€, que lhe permite fazer face às suas próprias despesas e garantir um nível de vida semelhante ao que tinha na constância do matrimónio; os dois filhos da requerida resultam de um anterior casamento, não podendo o requerente ser onerado com uma obrigação parental visto não ser o pai.

              A requerida contestou, alegando que a sua situação financeira se mantém igual à que existia no momento em que foi convencionado o pagamento da pensão de alimentos; admite que vendeu o prédio que era do requerente, com base numa procuração que diz que era irrevogável a favor e no interesse da requerida, mas acrescenta que tal venda já se antevia à data do acordo da prestação de alimentos; por outro lado, diz que com o produto da venda não obteve qualquer rendimento, pois que foram liquidados empréstimos bancários de 151.821,41€, comissão de venda de 15.000€, certificação energética de 366€, ajudas financeiras prestadas pelo pai da requerida no valor de 24.930€, reembolso do sinal que o pai da requerida tinha adiantado para a compra daquele prédio no valor de 20.000€, caução retida pelo banco no valor de 10.400€ e investidos 27.482,59€ numa aplicação financeira em benefício dos seus filhos. Conclui pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.

              Depois do julgamento, foi proferida sentença, julgando procedente o pedido de cessação da pensão de alimentos.

              A requerida recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que a absolva do pedido – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem retirando as duplicações):

a) Da factualidade provada, não se verifica qualquer das circunstâncias previstas no art. 2019 do CC, que permitam a cessação da obrigação alimentar relativamente aos ex-cônjuges, nem tal foi sequer alegado.

b) E também não se verifica qualquer alteração ou modificação nas circunstâncias determinantes da fixação dos alimentos, donde possa resultar a sua redução ou aumento (art. 2012).

c) E muito menos se poderá concluir pela verificação do condicionalismo legalmente previsto para a cessação da obrigação alimentar (art. 2013/1b do CC).

d) Requerente e requerida, ex-cônjuges, convencionaram a prestação de alimentos, e cerca de três meses depois desse acordo de prestação de alimentos, a requerida procedeu à venda dum imóvel nas circunstâncias relatadas na factualidade assente,

e) Porém, essa venda do imóvel não era facto imprevisível, nem improvável ou anormal, pois à data do acordo já se perspectivava essa ocorrência.

f) E, se tal venda, que todos sabiam que ia ocorrer, fosse facto determinante para alterar a base de acordo de prestação de alimentos, certamente que não deixaria de ficar clausulada a redução ou cessação de pagamento da prestação alimentar quando se concretizasse a venda.

g) Por outro lado, apenas poderiam ter relevância as quantias efectivamente recebidas pela requerida e que de algum modo pudessem traduzir e significar uma melhoria da sua situação económica, no sentido de avaliar a necessidade da prestação de alimentos.

h) Porém, o requerente não comprovou, como lhe competia, os factos integradores da cessação da obrigação de prestação de alimentos, nem se comprova que tenha havido alteração das circunstâncias (art. 437/1 do CC) que estiveram na base do acordo que foi firmado.

              O requerente contra-alegou defendendo a decisão recorrida.

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              Questão que cumpre solucionar: se estão ou não verificados os pressupostos para a cessação dos alimentos.

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              Factos [os sob alíneas vêm dos factos assentes e os sob números vêm da resposta aos quesitos; ao abrigo do disposto nos arts. 659/3 e 713/2, ambos do CPC, acrescenta-se à alínea D) o teor da procuração, documento autêntico, por ter relevo para a decisão da questão em causa]:

A) Em 18/02/2010, em sede de audiência de julgamento na acção de divórcio litigioso, entretanto convolado para divórcio por mútuo consentimento, que correu termos no processo a que este está apenso, foi homologado, por sentença já transitada em julgado, o acordo a que chegaram requerente e requerida quanto à fixação de alimentos entre os cônjuges.

B) Nos termos do qual:

“O marido pagará a título de pensão de alimentos à mulher a quantia mensal de 600€, 14 vezes por ano, durante os próximos 5 anos.

Tal quantia será colocada na disponibilidade da mulher por transferência bancária para a conta da mesma, até ao dia oito de cada mês, devendo com a pensão de alimentos do mês de Março ser liquidada simultaneamente a prestação alimentícia referente ao mês de Fevereiro.

Os pagamentos das quantias devidas a título das 13.ª e 14.ª prestações serão efectuados pela mesma via até ao dia 8 de Junho e até ao dia 15 de Novembro, respectivamente.”

C) Aquando da convolação dos autos referidos em A), ambos os cônjuges acordaram que “Não existe casa de morada de família”.

D) Em 11/05/2010, a requerida vendeu por 250.000€ uma casa […], pertencente ao requerente, usando para o efeito uma procuração notarial datada de 23/11/1999, com o seguinte teor:

O requerente, divorciado, “constituiu sua bastante procuradora” a requerida, casada, “a quem, com os de substabelecer confere os poderes para, em relação” àquela casa, “hipotecar, dar de arrendamento, alienar ou prometer alienar, onerosa ou gratuitamente, nas condições e pelo preço que entender por conveniente e a quem entender, inclusivamente, a favor da própria procuradora, podendo praticar, junto de qualquer repartição pública, ou entidade privada todos os actos necessários ao supra indicado mandato e para na respectiva conservatória do registo predial requerer quaisquer actos de registo, provisórios ou definitivos, averbamentos ou cancelamentos, requerendo, praticando e assinando tudo o que se mostre necessário aos fins indicados, nomeadamente as respectivas escrituras e contratos de promessa, receber os preços, sinais ou rendas e delas dar quitação, ficando desde já a mandatária dispensada de prestar contas ao mandante.

Esta procuração é conferida também no interesse da mandatária, pelo que é irrevogável, nos termos do nº. 3 do art. 265 e nº. 2 do art. 1170 do CC, e os poderes nela conferidos não caducam por morte, interdição ou inabilitação do mandante nos termos do art. 1175 do CC.”

4. Com a venda do imóvel referido em D), pelo montante de 250.000€, e após liquidação do passivo originado pelos empréstimos ao banco, resultou um remanescente de 98.179€.

5. Ao qual o requerido não teve qualquer acesso.

6. Acrescido do facto de o imposto sobre mais valias geradas recair sobre o requerente, que era o proprietário do imóvel.

9. À data do acordo de prestação de alimentos, o imóvel referido em D) já se encontrava à venda.

10. À data da venda do imóvel referido em D), a dívida ao banco somava o total de 151.821,41€.

11. Quantia que foi liquidada na data da escritura.

12. Com o produto da venda, foi paga uma comissão de venda à imobiliária no montante de 15.000€.

13. Teve de ser emitida certificação energética para possibilitar a realização da escritura, o que importou numa despesa de 366€.

14. Após o divórcio, a requerida viveu durante algum tempo em casa dos pais, com os filhos menores e em 12/05/2010 transferiu para uma conta bancária do seu pai, 24.930€, que se destinou a compensá-lo das despesas tidas com ela e os netos durante o período em que residiram em sua casa.

15. A requerida entregou ao seu pai, em 31/05/2010, 20.000€ que o mesmo tinha adiantado para compra do imóvel referido em D).

18. Em 20/01/2012, os filhos da requerida eram titulares de uma aplicação financeira num banco, no montante de 27.500€, tendo essa quantia provindo da venda do imóvel referido em D).

19. A requerida continua a prestar serviços como trabalhadora independente, ou seja, a “recibos verdes”, numa empresa de consultadoria informática, situação que já se verificava à data do divórcio.

20. A requerida não recebe qualquer pensão de alimentos a favor dos filhos menores, relativamente aos quais está a ser exercida guarda conjunta.

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                                     Da alteração das circunstâncias

              O art. 2013/1b) do CC, uma das normas gerais do direito a alimentos, dispõe que a obrigação de prestar alimentos cessa, entre o mais, quando aquele que os recebe deixe de precisar deles. Esta norma é, como não podia deixar de ser, aplicável aos alimentos entre os cônjuges (aplicando-a nesse sentido, veja-se, apenas por exemplo, Eduardo dos Santos, Direito da Família, Almedina, 1999, pág. 666).

            Assim, como diz Alberto dos Reis (Processos especiais, vol. II, Coimbra Editora, 1982, pg. 265), citado pela sentença recorrida, “a prestação alimentícia, uma vez fixada, não é imutável; desde que mudem as circunstâncias a que se atendeu para a fixação, a decisão pode ser alterada: pode a prestação ser aumentada ou reduzida e pode até cessar.”

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              No caso dos autos as partes tinham fixado por acordo aquele que era o suposto valor das necessidades alimentares da requerida, em Fevereiro de 2010: 600€ x 14 meses durante 5 anos, igual ao total de 42.000€.

              A partir de Maio de 2010 a requerida passou a poder dispôr de um capital no valor de 62.812,59€. Como este valor é (muito) superior àquele (quase 50% mais), a sentença considerou, logicamente, que este valor passava a cobrir aquelas necessidades alimentares e por isso deixava de se justificar que fosse o requerente a continuar a suportá-las do modo como o vinha fazendo.

              Note-se que a sentença, embora não o diga, tem tanta mais razão, quanto, por um lado, aquele capital passou logo a estar disponível para a requerida, que, assim, para além dele, ainda podia obter um rendimento (juros) do mesmo. E, por outro lado, aquele capital era do próprio requerente, pelo que não se trata de beneficiar o requerente com uma exoneração decorrente de facto de terceiro, mas simplesmente de não o obrigar a pagar em duplicado os alimentos da requerida. No fundo, nem se trata de fazer cessar a prestação de alimentos, mas sim de reconhecer que houve uma substituição na forma de os prestar, com um substancial benefício para a requerida, que recebeu uma quantia superior à que ia receber e a recebeu de uma vez (e não às prestações) pelo que ainda a podia fazer render.

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              Contra isto, a requerida levanta, no essencial, duas objecções:

                                                  Da previsibilidade

              A primeira é a da previsibilidade, à data do acordo da prestação de alimentos, da venda do prédio, pelo que, diz, se tal facto fosse determinante para alterar a base de acordo de prestação de alimentos, certamente que não deixaria de ficar clausulada a redução ou cessação de pagamento da prestação alimentar quando se concretizasse a venda.

              Veja-se:

        Se se tiver em conta que as vendas feitas pelos procuradores se reflectem no património dos representados e não dos representantes (art. 258 do CC), esta objecção é praticamente incompreensível, se não se acrescentar o seguinte (que resulta do que a requerida diz no corpo das alegações): a requerida entende, com base no que consta da procuração, que era previsível que o produto da venda viesse a beneficiar em exclusivo o seu património e não o do requerente.

              Isto porque à data do acordo da prestação de alimentos, existia uma procuração do requerente, que ela diz ser uma “procuração irrevogável a favor e no interesse da requerida”, que lhe dava poderes para vender o prédio e receber o preço da venda, dispensando-a de prestar contas ao mandante.

              E assim o que importa saber agora é se desta procuração decorre tudo isto que a requerida alega.

              Mas antes acrescenta-se que ainda se teria de aceitar – o que é um pressuposto da argumentação da requerida – que à data daquele acordo era previsível (já em 2010, no decurso da crise – financeira iniciada em 2007 – que a própria requerida invoca) que o prédio viesse a ser vendido no período de 5 anos posterior ao acordo e por um preço que permitisse pagar o passivo e encargos com a sua aquisição e ainda sobrar uma parte substancial. Sendo que os factos que constam do processo não permitem dizer que assim fosse.

              Voltando à questão da procuração, diga-se, desde logo, que esta não contém nenhuma cláusula de irrevogabilidade. O que ela contém é uma conclusão no sentido da irrevogabilidade da procuração, conclusão a que se chega, segundo se diz nela, por a procuração ter sido conferida também no interesse da mandatária.

              Assim, o que importa, agora, é saber se a procuração tinha sido conferida também no interesse da mandatária e se, por isso, se podia dizer que ela era irrevogável (art. 265/3 do CC: “se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.”).

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Procuração no interesse do mandatário e procurações irrevogáveis

              Uma procuração só se pode dizer conferida no interesse também do mandatário quando isso resultar da relação base ou relação subjacente à outorga dos poderes de representação, ou seja, da relação que justifica e fundamenta a procuração (a relação de gestão ou relação gestória, de que fala Manual Januário da Costa Gomes, em Tema de revogação do mandato civil, Almedina, pág. 240; quanto a esta relação vejam-se os arts. 264/1 e 265/1, ambos do CC e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Tomo III; 2001, Almedina, págs. 179/180: “[…A] lei pressupõe que, sob a procuração, exista uma relação entre o representante e o representado, em cujos termos os poderes devem ser exercidos […]. A efectiva concretização dos poderes implicados por uma procuração pressupõe, assim, um negócio nos termos do qual eles sejam exercidos: o negócio base.”)

              Como nenhuma das partes alega o conteúdo da relação causal, não é possível dizer que a procuração foi conferida também no interesse da mandatária. Como o facto aproveita à requerida era ela que a tinha que alegar (art. 342/1 do CC), pelo que o prejuízo corre por conta dela.

              E não se diga que esse interesse resulta do texto da procuração, pois que é notório que não consta: o que se escreve no texto da procuração é apenas aquilo que a procuradora passava a ter poderes para fazer; nela não existem factos de onde pudesse resultar o interesse que a procuradora tinha no negócio. E volte-se a dizer que ela passava a ter poder para receber o preço, mas como procuradora, pelo que o recebimento do preço produziria efeitos na esfera jurídica do representado, não da procuradora (art. 258 do CC), pelo que não se pode dizer que tal poder revelasse o interesse da procuradora no negócio.

              Não se podendo dizer que a procuração foi passada também no interesse da procuradora, não se pode concluir pela irrevogabilidade da procuração, irrevogabilidade no sentido previsto no art. 265/3 do CC, isto é, de não poder “ser revogada sem o acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.”

           Neste sentido, veja-se Pedro Albuquerque, A representação voluntária em direito civil (ensaio de reconstrução dogmática), Almedina, Abril de 2004, págs. 969 e segs:

         “[A] competência representativa, em si mesma entendida de forma neutra e indeterminada, necessita de ser, sempre, completada através de uma causa ou relação que a determina e suporta” (pág. 973); “[p]ara existir irrevogabilidade da procuração esta deve desempenhar a função de permitir o cumprimento ou a execução da relação subjacente. Noutros termos, para a procuratio e o poder de representação serem insusceptíveis de revogação deve resultar para o procurator ou tertius, ou eventualmente ambos, uma pretensão cuja satisfação pressuponha o exercício do poder de representação como um instrumento ao serviço de uma posição própria destes. […] [A irrevogabilidade dos poderes de representação…] só pode existir quando em virtude de um outro acto de autonomia da vontade o constituído possa, mesmo contra a vontade do constituinte, impor a satisfação ou comprimento da sua pretensão. Noutros termos, a procuração irrevogável apenas é considerada admissível quando o representado se vinculou à celebração de um negócio representativo através do procurador.” (págs. 974/975) “Caso a irrevogabilidade tenha sido convencionada sem ocorrerem os pressupostos que deveriam estar na sua base, a communis opinio aceita, em regra […] a manutenção do poder de representação, mas de forma susceptível de revogação.” […] “Não basta um qualquer interesse do procurador ou terceiro para excluir a possibilidade de o constituinte retirar, ao constituído, os poderes concedidos de forma irrevogável. A irrevogabilidade da procuração apenas é admitida naqueles casos nos quais a relação fundamental, justificativa da procuração, imponha como um seu trecho a manutenção do vínculo procuratório, pois, de outra maneira, se violaria essa relação fundamental.” (págs. 976/977). E em nota (1612) acrescenta: “o interesse do procurador, ou do tertius, referido no art. 265/3 do CC, não é, senão, a pretensão ou direito à realização do negócio ou acto ao serviço de cuja realização a procuratio irrevogável se encontra. Torna-se, assim, despiciendo procurar ou indagar acerca da existência de quaisquer vantagens ou proveitos de natureza económica ou outra, a serem alcançados se os poderes concedidos fosse de facto exercitados”. E mais à frente, noutra nota (1615, pág. 977/978) diz: “Não nos parece, por exemplo, poder considerar-se irrevogável uma procuração para realização de uma doação a favor do procurador ou de terceiro, pelo simples facto de este ter nisso um interesse económico ou jurídico se, ao mesmo tempo, o donatário não tiver de facto o direito de exigir o cumprimento da doação. A procuração não equivale ao negócio definitivo. Ver em hipóteses como esta um interesse do procurador ou do terceiro de molde a tornar a procuração irrevogável é um claro atentado à autonomia privada do representado. Este não deve ficar vinculado à realização de uma liberalidade pelo simples facto de outrem ter um mero interesse económico ou jurídico no resultado de uma procuração, mas a cujo cumprimento não tem direito”.

              No mesmo sentido, na parte que interessa, veja-se Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos, Almedina, 1995:

         “[A] procuração irrevogável está sempre ligada a um contrato, que lhe constitui a relação subjacente […]” (pág. 301); “a procuração, como simples acto de outorga de poderes de representação, pressupõe uma relação fundamental que lhe dá causa […]” (pág. 302); “É perante a relação subjacente que vai ser apurado se a procuração é outorgada no exclusivo interesse do representado […] ou no interesse do procurador ou de terceiro, casos em que não é livremente revogável” (pág. 303); “a irrevogabilidade da procuração só é admissível quando esta desempenhe a função de possibilitar o cumprimento ou a execução da relação subjacente, e dessa relação subjacente resulte para o procurador ou para o terceiro, ou para ambos, uma pretensão cuja satisfação implique o exercício do poder representativo do procurador, como um poder próprio, mesmo contra o representado e contra a sua vontade” (pág. 305); “A irrevogabilidade […] tem de resultar do relacionamento da procuração com a relação subjacente, sendo ineficaz a nua estipulação de uma irrevogabilidade que não tenha fundamento numa relação subjacente lícita” (pág. 306).

              (Vai no mesmo sentido, no essencial, para o que interessa, Januário Gomes, obra citada, págs. 145 a 152 e 169 a 186, embora a propósito do nº. 2 do art. 1170 do CC, pelo que tem de ser lido com as devidas adaptações. E ainda Luís Miguel D. P. Pestana de Vasconcelos, A cessão de créditos em garantia e a insolvência, em particular da posição do cessionário na insolvência do cedente, Coimbra Editora, Outubro de 2007, págs. 72 a 77, especialmente pág. 75)

              Quanto à possibilidade de a procuradora fazer seu o preço da venda que a procuração lhe dava o poder de receber, possibilidade que já se disse não resultar da procuração em causa e que teria de resultar da relação causal ou subjacente à outorga dos poderes representativos, explica Pedro de Albuquerque, na obra citada, depois de citar, na nota 1637, Pessoa Jorge, O mandato, pp. 182 e 183 (“ao acto de concessão de poderes representativos, que é a procuração in rem suam, acresce um negócio jurídico – doação, venda, dação em pagamento ou, mais correntemente, datio pro solvendo – que constitui o título justificativo de o procurador fazer seu o resultado da cobrança”):

         “Um dos casos mais característicos de representação no interesse do representante ou de terceiro é o de datio pro solvendo ou da autorização ao credor para se pagar pelo resultado obtido na sequência de determinada alienação realizada através da utilização de uma procuração concedida com o fim de o credor proceder à venda dos bens do devedor. Num caso como esse, se há representação, o direito resultante da transferência do bem não surge nem na esfera jurídica do representante nem na do terceiro. O negócio realizado pelo procurador, em nome do dominus, vai repercutir-se, fatalmente, na esfera jurídica do representado. Destarte, terá de se assistir, necessariamente a um outro acto ou negócio, a acrescer ao representativo, e destinado a criar o título que permite ao procurador guardar para si o produto da cobrança. […] O representante, ou terceiro, têm, nos precisos termos definidos pela relação determinante da irrevogabilidade da procuratio, interesse na procuração, por ser ela um meio ao serviço da satisfação ou extinção da pretensão na qual se fundamenta a impossibilidade da revogação da procuração.” (págs. 985 e 986).

              Ou seja, neste caso (em que tivesse sido alegada e provada a relação base ou causal com esse sentido) sim, existiria uma procuração  também no interesse da procuradora, dando-lhe um título para ela fazer seu o produto da venda recebido. O que comprova que não basta, no caso dos autos, aquilo que se diz na procuração invocada pela requerida. O poder de receber o preço como procuradora não é, muito claramente, o direito de fazer seu o produto da venda.

              E, por tudo isto, por um lado não se pode dizer que à data do acordo da prestação de alimentos, fizesse parte do património da requerida, em consequência de uma procuração “irrevogável no interesse e a favor da requerida” um bem com valor equivalente ao valor da possível venda do prédio do requerente, nem, como é pressuposto da construção da requerida, que à data do acordo da prestação de alimentos, o requerente previsse que ela ia vender o prédio, obter um saldo positivo substancial e utilizá-lo em seu exclusivo proveito, em vez de o entregar ao requerente, seu representado e titular do direito ao preço.

                                                                 *

              Fica, no entanto, a seguinte questão: se o produto da venda do prédio é do requerente, como dono do negócio/representado/mandante (art. 258 do CC), pode o valor do mesmo entrar nas contas do património da requerida para se considerar que as necessidades alimentares dela passaram a poder ser satisfeitas com a sua utilização e por isso o requerente não devia continuar a ser obrigado a pagar a alimentos?

              Agora está-se perante um estado de coisas posteriores à utilização da procuração, não perante a situação anterior, em que a procuração ainda não tinha sido usada. A requerida utilizou a procuração, vendeu o imóvel e pôde, de facto, fazer do produto da venda o que bem entendeu, não estando obrigada a prestar contas ao requerente. A requerida passou, assim, a ter uma situação patrimonial vantajosa, que resultou da procuração invocada e junta aos autos, situação patrimonial que é equivalente ao produto obtido com a venda do imóvel descontado daquilo que entretanto teve que pagar para conseguir a venda: o dinheiro não era dela, mas ela pôde-o usar e não teve que dar contas ao requerente do uso que dele fez. O património dela não passou a ser composto do capital em causa (que é do requerente), mas passou a ser composto de um valor prático equivalente.

              Por sua vez, o requerente passou a ter no seu património o direito ao recebimento do preço, mas sem qualquer valor efectivo, já que onerado com a possibilidade da requerida o utilizar de facto sem lhe dar contas devido à referida procuração.

              Compreende-se, assim, que o requerente não tenha procurado efectivar tal direito, conformando-se com a actuação da requerida que dispôs do preço e dispõe ainda do que aparentemente sobra (10.400€ como se verá de seguida) como se fosse dela. Aliás, se o requerente tivesse vindo exigir à requerida que lhe entregasse o preço da venda, a requerida ter-lhe-ia objectado, como o fez aqui, que já o tinha gasto todo e que não lhe tinha que dar contas disso.

              Mas tudo isto leva a considerar que não é o património do requerente que passou a ter um activo patrimonial com aquele valor, mas sim o [da] requerida.

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                                 As quantias efectivamente recebidas

              Como segunda objecção, diz a requerida que apenas poderiam ter relevância as quantias efectivamente recebidas por si, sendo que ela entende que não recebeu nenhumas.

              Mas como ela recebeu, de facto, o preço (embora como procuradora do requerente), e o utilizou naquilo que bem entendeu (dos 250.000€ apenas não conseguiu provar ter utilizado 10.400€…) a objecção não procede.

              O que ela pode dizer é que entretanto gastou aquilo que recebeu e que esse valor já não consta do seu património. E assim é, ao menos formalmente, com excepção dos referidos 10.400€.

              Mas, na medida em que o gastou, fê-lo depois de o ter recebido, passando a dele dispôr como quis, sem ter de dar contas ao requerente, beneficiando assim, como já foi dito, de um valor patrimonial equivalente.

              Pelo que a sua situação patrimonial se alterou depois do acordo de alimentos, passando a dispôr de um património pelo menos equivalente ao preço da venda descontado do valor daquilo que teve de pagar para a concretizar. Ou seja, o seu património foi aumentado, depois do acordo de alimentos, de 62.812,59€. Se, após, a sua situação patrimonial se voltou a alterar, tal ocorreu por sua vontade e não apaga a alteração anterior.

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                               Da irrelevância dos gastos posteriores

              Veja-se, no entanto, os valores que a requerida ainda quer descontar e que a sentença recorrida não aceita que o devessem ser:

              A requerida falava, na petição inicial, (a) no pagamento das ajudas financeiras prestadas pelo seu pai, no valor de 24.930€; (b) no valor de uma caução retida pelo banco, de 10.400€; e (c) em 27.482,59€ que foram investidos numa aplicação financeira em benefício dos seus filhos.

              Quanto à caução nada se provou, pelo que o valor equivalente a 10.400€ ainda se tem de considerar como existente no seu património.

              Quanto às ajudas financeiras, provou-se o que consta do facto sob 14, isto é, que no dia a seguir à venda ela transferiu para uma conta bancária do seu pai 24.930€, que se destinaram a compensá-lo das despesas tidas com ela e os netos durante o período em que residiram em sua casa. Não se diz que essa quantia proviesse do produto da venda, mas a aceitar-se que provinha, então trata-se de um gasto feito pela requerida, com o dinheiro da venda (aliás, nem se sabe se se tratou de uma transferência definitiva, nem se a conta é apenas do pai da requerida – e não também dela -, nem se independentemente de tudo isto, ela não tem legitimidade para a utilizar à sua vontade, e muito menos se se justificava minimamente aquela transferência).

              Quanto às aplicações financeiras, provou-se o que consta do facto sob 18, isto é, que em 20/01/2012, os filhos da requerida eram titulares de uma aplicação financeira num banco, no montante de 27.500€, tendo essa quantia provindo da venda do imóvel.

              Ou seja, em relação a estes dois valores, tratam-se (dando isso de barato em relação à primeira) de parcelas do produto da venda do imóvel, de que a requerida teve a disponibilidade e que aproveitou para gastar no que entendeu. Um valor equivalente fez pois parte do seu património, aumentando-o, em montante superior àquilo que o requerente tinha que pagar para os alimentos da requerida.

              Tendo tido em seu poder a disponibilidade jurídica desses montantes, durante o tempo em que a teve deixou de precisar dos alimentos do requerente. Como se disse acima, se a situação se alterou, trata-se de uma alteração posterior à primeira, da responsabilidade unilateral e voluntária da requerida, e não apaga a situação intermédia, durante a qual ela não precisou de alimentos do requerente.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

              Custas pela requerida.

              Lisboa, 10/01/2013

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto