Oposição à execução 1187/06.4TBVNG-A – Porto

1ª Secção de Execução – J7

            Sumário:

I. O credor tem o ónus de comunicar ao pré-avalista (avalista de uma livrança em branco) o vencimento da obrigação do subscritor da livrança, se quiser que a obrigação de garantia daquele cubra a totalidade do seu crédito.

II. Se o não fizer – e é ele que tem o ónus de provar que o fez – o avalista não responde pelos juros vencidos desde o vencimento da obrigação até ao momento em que foi citado para a execução.

III. Segundo grande parte da doutrina, o pré-avalista pode desvincular-se (por oposição à renovação, por denúncia sem qualquer causa, por resolução por saída da sociedade ou por revogação, conforme as situações, mas sempre sem abusar do direito) unilateralmente do acordo para preenchimento da livrança que avalizou em branco, com efeitos apenas para o futuro, se esse acordo não tiver realmente prazo.

IV. O AUJ do STJ de 11/12/2013 (n.º 4/2013) não seria aplicável àquela situação, mas apenas ao aval aposto numa livrança completa.

V. E se não se reconhecesse aquela possibilidade de desvinculação, o pré-aval seria nulo por indeterminabilidade da duração da sua vinculação (art. 280 do CC).

VI. Mas essa desvinculação teria de resultar de uma manifestação de vontade do pré-avalista, comunicada ao tomador da livrança, não resultando do simples conhecimento por este de que o pré-avalista cedeu as suas quotas da sociedade subscritora da livrança em branco a terceiro.

VII. É configurável a existência de abuso de direito (art. 334 do CC) do portador da livrança em branco que a preenche depois de saber que o pré-avalista deixou de ter interesses na sociedade avalizada, como, por exemplo, na situação resolvida pelo ac. do TRC de 21/05/2013, proc. 1464/11.2TBGRD-A.C1, confirmado pelo ac. do STJ de 12/11/2013, proc. 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, mas para isso têm de se alegar e provar factos que permitam aquela configuração.

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            Banco – SA, requereu em Janeiro de 2006 execução de uma livrança contra S, Lda, F e V, livrança essa subscrita pela sociedade e avalizada pelos dois últimos executados.

            O executado V deduziu oposição, alegando, em síntese, que:

          – “em agosto de 1998 a sociedade havia contraído um empréstimo junto do exequente no montante de 10.000 contos, destinado a pagamento de fornecedores; tal crédito em conta corrente a movimentar pela sociedade, seria para um curto prazo de acordo com minuta pré-elaborada pelo exequente. O embargante, atento o tempo decorrido, não tem ideia de ter assinado qualquer contrato com o exequente, que terá havido troca de correspondência entre a sociedade e o exequente por causa do empréstimo. Mas quem tratou de tal operação foi o seu ex-sócio e ainda actual sócio gerente da empresa. Não teve conhecimento efectivo de qualquer minuta de contrato, ou cláusulas estabelecidas entre a sociedade e o exequente para regular tal empréstimo” (arts. 5 a 10 da petição). E mais à frente (art. 63 da petição): “Mais se dirá que uma eventual autorização de preenchimento dada pelo embargante, é nula nos termos dos arts. 19, 16 e 8 todos do DL 446/85, já que o exequente terá pré-elaborado clausulado que as partes tiveram que aderir, nulidade também por força dos arts. 280 e 294 do CC” (desenvolveu-se este parte para melhor compreensão do que se dirá mais à frente).

              – a livrança, de Agosto de 1998, foi por ele assinada em branco, nomeadamente sem data de vencimento, montante ou local de pagamento;

         – não autorizou o preenchimento da livrança, não foi avisado que ela ia ser preenchida nem, depois, que o tinha sido;

      – a garantia é nula, está prescrita e está extinta; estão-lhe a ser exigidos juros ilegítimos;

        – deixou de ser sócio e gerente da sociedade desde Agosto de 1999, o que era do conhecimento do exequente e foi-lhe por este assegurado que não seria executado;

              – o comportamento do exequente representa um abuso de direito.

            O exequente contestou o essencial dos factos alegados e as conclusões tiradas pelo embargante.

            Depois de realizado o julgamento, foi proferida sentença julgando a oposição improcedente.

            O embargante recorre desta sentença, reproduzindo parte das excepções deduzidas na oposição (não insistiu, por exemplo, na excepção da prescrição), sem impugnar a decisão da matéria de facto.

            O exequente contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

        Questões que importa decidir: se procede algum das excepções que o embargante continua a invocar nas alegações de recurso (que serão transcritas mais à frente).

                                                      *  

            Para a decisão das questões a decidir, interessam os seguintes factos provados (altera-se a ordem dos factos, para que fiquem colocados de forma cronológica, excepto os dois últimos por não se saber a que data se reportam):

5/6//7. A 12/08/1998 o Banco escreveu à gerência da sociedade executada o seguinte sobre o assunto: ‘crédito em conta corrente com caução a curto prazo’.

         Exmos Srs,

    No seguimento das conversações que tivemos o prazer de manter com V. Exas, comunicamos ter este banco aceite conceder um empréstimo, sob a forma de facilidade de crédito, destinado a pagamento a fornecedores, nas seguintes condições:

  1. Montante. 10.000 contos.
  2. Forma: Este empréstimo revestirá a forma de uma conta aberta em nome de V. Exa, junto do nosso balcão de Gaia, denominada ‘crédito em conta corrente com caução a curto prazo. O extracto da conta emergente do empréstimo será documentado para a prova da dívida e da sua documentação.
  3. Prazo: 90 dias, prorrogável por igual período de tempo, salvo se qualquer das partes solicitar, por escrito, a sua denúncia, com a antecedência mínima de 30 dias em relação ao termo do prazo fixado.

         […]

  1. Juros moratórios.

    7.1 No caso de não pagamento de capital e/ou juros, incidirá, sobre o respectivo montante e durante o tempo em que tal situação de incumprimento se verificar, a taxa de juro moratória (juros remuneratórios acrescidos da sobretaxa legal).

      7.2 No caso de incumprimento, o banco reserva-se o direito de resolver o presente contrato e exigir o imediato pagamento de todos os montante em dívida.

  1. Garantias

         Esta empresa compromete-se a entregar a este banco uma livrança subscrita por essa firma e avalizada pelos executados, com montante e data de vencimento em branco, ficando o banco autorizado a preenchê-la pelo valor em dívida na facilidade de crédito e fixar-lhe o vencimento que mais lhe convier, sempre que se verifique qualquer situação de incumprimento, por parte da empresa, das obrigações que lhe competem e que aqui são referidas”.

         […]

         O acordo de V. Exas a todo o clausulado referido nesta carta decorre da devolução do duplicado anexo, datado e assinado por quem se sobre e pelos avalistas, devendo as assinaturas ser antecedidas da expressão ‘damos o nosso acordo’.

         […]

         Segue-se a assinatura do Banco.”

7-A. Depois da assinatura do exequente, no documento a que se referem os pontos 5/6/7, consta: Damos o nosso acordo, o carimbo da gerência da sociedade executada e as assinaturas dos dois sócios da executada, entre eles o executado, que depois voltam a assinar debaixo, cada um, da frase: dou o meu acordo.

10. A livrança [referida na condição 8 do documento a que se referem os pontos 5/6/7] foi entregue ao banco sem ter data de vencimento, montante e local de pagamento.

1. O embargante foi sócio da sociedade executada até 19/08/1999.

2. Por escritura de cessão de quotas celebrada em 19/08/1999, o embargante cedeu a uma terceira pessoa a quota de 10.000 contos de que era titular na sociedade executada, com todos os direitos, obrigações e responsabilidades inerentes.

3. Passaram a ser únicos sócios e gerentes o outro executado e a pessoa a quem a quota foi cedida.

11. Em Janeiro de 2005 o embargante tem conhecimento de que a divida resultante do contrato celebrado não estaria paga.

12. O exequente não avisou o embargante por escrito que a livrança iria ser preenchida.

4. O exequente é portador da livrança executada subscrita pela sociedade executada, avalizada pelos executados, com data de emissão de 12/08/1998 e data de vencimento de 07/10/2005, no valor de 53.829,43€.

8. O embargante era pessoa conhecida na agência do exequente em Gaia.

9.O exequente, pela sua referida agência, teve conhecimento da saída do embargante da sociedade.

            Este tribunal da relação do Porto deu nova redacção aos pontos 5 a 7 – que se limitavam a consignar parte da parte inicial da carta e das condições 1 e 2 e a transcrever as condições 3 e 8 – de modo a que parte da formação e do conteúdo do contrato ficassem melhor esclarecidos.

            Com o mesmo fim, acrescentou, ao abrigo dos arts. 663/2 e 607/4 do CPC, o ponto 7-A. Este ponto está provado pelo documento em causa (fls. 40/41) cujas assinaturas não foram impugnadas pelo executado, tendo aliás sido invocado pela sentença recorrida na fundamentação de direito (linhas 4 a 8 da penúltima página) e parcialmente pelo embargante nas alegações de recurso, como se verá abaixo.

*

            Passam a analisar-se, de seguida e sucessivamente, todas as alegações do embargante, que se irão transcrevendo quase na íntegra, de modo a não deixar passar nenhum dos argumentos do mesmo que possa ter sido esquecido nas conclusões do recurso.

*

Da falta de aviso de que a livrança ia ser preenchida

            Diz o embargante:

         “Embora o aval e a fiança sejam figuras distintas, quanto à natureza, essência e regimes, o certo é que nada obsta a que o avalista, valendo-se de regras próprias das obrigações, possa opor, ao credor que o demanda, excepções como da liberação por extinção, aplicando-se, mutatis mutandis, o regime dos fiadores (vide entre outros, LULL, anotações ao art. 30 da edição anotada de Abel Delgado, ac. do STJ de 23/01/1986, p. 072918, e ac. do TRP de 27/06/2006, 0623005).

         Pelo que é legítimo ao embargante invocar a extinção da garantia em relação a si, a sua não exigibilidade face à actuação do banco exequente de jamais lhe ter comunicado, durante mais de cinco anos desde que este deixou a sociedade” [sic – o embargante não diz o que é que o exequente não lhe comunicou, mas decorre da posterior invocação do facto 12, que se está a referir à falta de aviso, por escrito, que a livrança iria ser preenchida; parenteses deste acórdão do TRP].

         O que teria apoio e sustentação, segundo o embargante, nos factos provados, de que destaca os sob 6 e 8 a 12.

            Posto isto,

            A questão que se pode ver aqui levantada pelo embargante é aquela que aflora no ac. do TRL de 20/01/2011 (1847/08.5TBBRR-A.L1-6), na parte do sumário deste que diz que “É […] necessária interpelação prévia do avalista quando […] o título [é] entregue em branco ao credor (para este lhe apor a data de pagamento e a quantia prometida pagar, em termos deixados ao seu critério), pois só assim o avalista tem conhecimento do montante exacto e da data em que se vence a garantia prestada.”

          Aderindo a este acórdão, veja-se o ac. do TRL de 08/11/2012, 5930/10.9TCLRS-A.L1-6, que nada adianta de novo, pois que a única fundamentação é a dupla remissão para aquele acórdão. Para além disso, este acórdão entende que era o embargante que tinha de fazer a prova de não ter sido interpelado o avalista, o que está errado, pois que, por um lado, quem tem um dever é quem tem de provar que o cumpriu (art. 342/2 do CC), e, por outro, está a pôr, sem qualquer fundamento, a cargo do embargante a prova normalmente impossível de um facto negativo.

          Já o ac. do TRP de 03/04/2014, 1033/10.4TBLSD-A.P2, fundamenta o dever “no princípio da boa fé e [n]o dever de actuação em conformidade com ele” (art. 762/2 do CC) que “impõem ao exequente a obrigação de informar aos avalistas dos títulos, simultaneamente partes no pacto de preenchimento, os montantes em dívida, as datas de vencimento e em que termos os títulos serão preenchidos em caso de não pagamento” mas isto apenas para tirar a conclusão de que, “na ausência de prazo no pacto de preenchimento”, “a falta de interpelação pelo credor/exequente, implica que a obrigação apenas se considera vencida com a citação”, pelo que “releva[] somente para efeitos de contagem dos juros moratórios.” Este acórdão diz que este entendimento apesar de ser minoritário começa a ser perfilhado por parte jurisprudência e para o comprovar cita os dois acórdãos do TRL já referidos (embora não aceite a parte da fundamentação do último quanto ao ónus da prova).

            Contra, o ac. do TRL de 10/02/2009, 9001/2008-1, diz que “as comunicações do tomador escritas ao subscritor e aos avalistas deste em como as livranças foram acabadas de preencher, indicando o montante, a data de vencimento, e informando que estão patentes para pagamento, são actuações de mera informação e cortesia, de relacionamento institucional entre banco e cliente e não correspondem a qualquer exigência da legislação cambiária.” Por outro lado, considera que, nestes casos, se está perante uma livrança à vista, o que não é correcto: uma livrança em branco, com um acordo de preenchimento, não é uma livrança apenas incompleta quanto à data [neste sentido, Evaristo Mendes, Aval prestado…, ponto 4: pelos acordos ou pactos de preenchimento sabe-se que o documento não pretende ser imediatamente pagável à vista (embora, tendo em conta o art. 76, pudesse aparecer como tal) e ac. do TRP de 21/02/2016, 175/14.1T8LOU-A.P1 (embora para a letra): IV. Uma letra em branco não é uma letra à vista.]

            Antes de continuar, diga-se que esta questão, nos termos em que o embargante a colocou nos autos, não tem a ver com a da necessidade de apresentação da letra a pagamento ao subscritor da livrança (que é resolvida pelo art. 38 da LULL, por força do art. 77 da LULL), nem com a da necessidade de protesto por falta de pagamento para poder accionar o avalista (que tem sido resolvida maioritariamente, com recurso ao disposto nos arts. 32 e 53 da LULL, por força do art. 77 da LULL, contra parte da doutrina, sem prejuízo desta parte aceitar que em dados casos, como o dos sócios, partes no acordo de preenchimento do título, que avalizam livranças em branco subscritas pelas sociedades, a garantia funciona independentemente de protesto: Evaristo Mendes. http://www.evaristomendes.eu/ficheiros/Evaristo_Mendes_Aval_e_protesto_Revisitaco.htm ponto 5).

            Com efeito, o embargante não diz que a livrança não foi apresentada a pagamento nem diz que não foi feito o protesto por falta de pagamento. O que diz é que não lhe foi comunicado, a ele, avalista, que a livrança ia ser preenchida, nem, depois, que ela foi preenchida (esta parte só consta da petição de oposição).

            Trata-se, assim, de saber se o portador de uma livrança em branco tem de comunicar, àquele que subscreveu um aval numa livrança em branco, que ele, portador da livrança, a vai completar ou preencher, ou que a completou.

Do aval e do pré-aval

            Entretanto note-se que, depois de todas as anotações doutrinárias que foram feitas ao ac. do STJ de 11/12/2012, AUJ 4/2003, é hoje muito claro que são situações muito diferentes aquela que resulta da aposição de um aval a uma livrança já completamente preenchida, em que o avalista sabe por qual quantia é que está a dar o aval e a data do vencimento da livrança, e aquela que resulta da aposição de uma assinatura para aval numa livrança ainda por preencher quanto à quantia e à data de vencimento.

            Na primeira situação há uma livrança e um aval e o avalista sabe por quanto é que está obrigado e quando é que a livrança se vencerá. Na segunda há um documento que se destina a ser uma livrança, ou uma livrança em branco que ainda não vale como livrança (não produzirá efeito como livrança, diz o art. 76 da LULL), e um pré-aval, não sabendo o avalista se e por quanto responde nem quando se vencerá a obrigação, para além de correr o risco de o documento para livrança vir a ser preenchido contrariamente aos acordos realizados (art. 10 da LULL).

              Neste sentido, Carolina Cunha, Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência, DSR 9, Março de 2013, págs. 91 a 114, que se baseia na posição que pouco tempo antes tinha assumido na tese de doutoramento, Letras e Livranças. Paradigmas actuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, 2012, Filipe Cassiano dos Santos, Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anotação ao AUJ do STJ de 11/12/2012, RLJ 142, Maio/Junho de 2013, e Januário Gomes, O (in)sustentável peso do aval em branco prestado por sócio para garantia de crédito bancário revolving – AUJ 4/2013, proc. 5903/09», CDP 43, Agosto de 2013, e Evaristo Mendes, Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas, e perda da qualidade de sócio, http://www.evaristomendes.eu/ficheiros/Evaristo_Mendes_Aval_prestado_por_socios_de_SQ_Apontamento_(final)eu.htm, todos com inúmeras referências doutrinárias no mesmo sentido, entre elas aos professores Oliveira Ascensão e Pinto Coelho.

            Nos termos do Prof. Evaristo Mendes, por último, veja-se:

         [4] A subscrição-emissão pela sociedade de uma livrança em branco – isto é, sem algum dos requisitos essenciais indicados no artigo 75 da LULL, designadamente o montante da promessa de pagamento – a favor de um seu financiador não cria imediatamente um título cambiário, sujeito ao regime geral desta Lei (art. 76) e, em especial, independente, desprendido quer da relação subjacente quer do pacto de preenchimento a que alude o artigo 10 da LULL. Na verdade, o título – enquanto título de crédito, com as características que a Lei lhe confere – apenas existirá se e quando apresentar os requisitos essenciais do artigo 75: designadamente, quando dele constar uma promessa de pagar perfeitamente identificada, com a indicação do valor devido, o tempo e o lugar do pagamento, etc. Até lá, temos meros documentos de livrança com pactos de preenchimento, susceptíveis de serem legitimamente transformados pelo seu portador em verdadeiras livranças ao abrigo de tais pactos, se se verificarem os pressupostos neles contidos.

*

              Isto posto,

          Do conteúdo da obrigação do pré-avalista e do ónus de lhe ser dado conhecimento do vencimento da obrigação

            Se a obrigação do subscritor da livrança em branco é uma obrigação que não é de termo certo (como parece ser o caso dos autos, porque se trata de uma obrigação de prazo renovável por igual período de tempo dependendo a não renovação de denúncia do tomador ou do subscritor), aquele que avaliza a livrança não pode saber em que data é que ele se vencerá porque está dependente de um acontecimento a que é estranho. Para que a possa pagar no momento do vencimento, sem incorrer no agravamento da dívida, tem que saber a data em que ela se vence. Pelo que se justifica que se ponha a cargo do credor o ónus de se lhe dar conhecimento dessa data. Note-se que não se trata de exigir a interpelação do pré-avalista, mas sim de lhe dar conhecimento do vencimento da livrança que já ocorreu e operou os seus efeitos na esfera do subscritor, abrindo caminho para o seu reflexo, por relação (a determinação dita per relationem), no âmbito da obrigação daquele que, com o preenchimento da letra, passa então a ser avalista (parafraseou-se, adaptando, a lição do Professor Januário Gomes, Assunção fidejussória de dívida, Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Almedina, 2000, nºs. 139 e 140, págs. 941 a 951, e conclusões 235 a 237).

            Trata-se, assim, de exigir ao credor que dê conhecimento ao pré-avalista do vencimento da obrigação do subscritor, sob pena de este ser ineficaz quanto ao avalista e de por isso não lhe poder exigir a cobertura da garantia para todo o crédito.

            Continuando a parafrasear Januário Gomes, diga-se que ao assinar o aval na livrança em branco quanto ao vencimento, o pré-avalista aceita, ex-ante, poder ter de cumprir, na data do vencimento, a prestação que, então, for devida e, a partir, daí, as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor (art. 32/I da LULL). A assunção do risco tem esse limite. Assim sendo, se não for informado pelo credor do vencimento da obrigação, isto é, se não for colocado em condições de poder cumprir nos mesmos termos em que o pode fazer o subscritor, daí não poderá resultar um aumento do risco do pré-avalista. Ou seja: o pré-avalista, quando for, mais tarde, intimado para cumprir, não estará vinculado a mais do que aquilo que estaria se fosse esse o momento do vencimento da obrigação.

            É este o regime que Januário Gomes explica para a fiança, apesar de, por força do art. 634 do CC, também aí se poder dizer que o credor não tem de dar conhecimento ao fiador do vencimento da obrigação para que o fiador responda também pela mora. Daí que Antunes Varela e Pires de Lima digam que não é necessário a interpelação do fiador. Só que, como lembra Januário Gomes isso só pode ser assim em relação às obrigações de termo certo, não em relação às outras.

            Ora, o regime deve ser o mesmo para o pré-aval de uma obrigação que não tem termo certo conhecido, pois que a obrigação do pré-avalista é também uma obrigação que se vai medir pela do outro obrigado. Nesta parte não há diferenças entre o pré-avalista e o fiador de uma fiança de uma obrigação sem termo certo.

            A consequência da não observância desse ónus, pelo credor, é a de ele não poder fazer responder o avalista pelo agravamento da dívida a partir do vencimento dela. É como se o vencimento da obrigação só tivesse ocorrido, do ponto de vista do avalista, a partir da citação para a execução, se esse tiver sido o primeiro momento em que teve conhecimento do vencimento da obrigação do subscritor.

            Em suma: o tomador da livrança em branco não tem o dever de informar o pré-avalista de que vai preencher a letra mas, se quiser que o avalista cubra o crédito total representado pela livrança preenchida, tem o ónus de lhe comunicar o preenchimento da livrança com o consequente vencimento da obrigação e daí que também não se possa falar de uma actuação de cortesia.

            Como no caso o exequente não deu essa informação (e é ele que tinha de provar esse facto, embora no caso dos autos se tenha posto a cargo do embargante a prova da falta de informação e dado a mesma como provada), é como se a livrança, para o embargante, só se tivesse vencido aquando da citação que lhe foi feita para a execução, pelo que só a partir de então é que a quantia nela inscrita passa a vencer juros quanto a si.

            Note-se que tudo isto seria diferente se alguma coisa a este respeito tivesse sido expressamente acordada, ao abrigo da liberdade contratual (art. 405 do CC) entre as partes do pacto de preenchimento (o que é o caso dos pré-avalistas que a ele aderiram).

            [(“O pacto corporiza-se, amiúde, numa cláusula do contrato fundamental celebrado entre o avalizado e o credor, cláusula à qual o avalista adere assinando quer o próprio documento contratual, quer um suporte ad-hoc (v.g. uma carta). Em casos como estes resulta evidente o carácter trilateral da convenção de preenchimento: consiste num acordo celebrado entre os dois subscritores em branco [a sociedade e o(s) (pré-)avalista(s)] e o credor)” (Carolina Cunha, nota 22 da pág. 97 da anotação referida; no mesmo sentido Januário Gomes, texto junto às notas 34 e 35, pág.38, da anotação referida; e outras referências à existência, nestes casos, de inequívocas relações imediatas, no ac. do TRP de 21/02/2016, 175/14.1T8LOU-A.P1)].

            Isto tem como consequência que o embargante só deva responder pelo valor da livrança – 53.829,43€ -, com juros só a partir da sua citação para a execução.

*

Da mora do exequente

         Depois continua o embargante:

        “[…] verifica-se uma mora do credor que dificulta ou até impossibilita uma acção do embargante em relação do devedor principal e ao co-avalista e, assim, não pode o credor exigir juros de mora, arts. 813 e 814 do CC, como confessa ter incluído ao preencher o título.

         E assim, é uma decorrência disso que o montante inscrito na livrança incluirá juros indevidos e por isso padece o título assim preenchido de nulidade.”

            A situação de facto a que o embargante se está a referir já foi analisada acima, com as consequências aí referidas. E do que se disse decorre que a obrigação do avalista, depois da livrança ser preenchida, tem o conteúdo da obrigação do subscritor da livrança (art. 32/1 da LULL), embora para ele só se considere vencida na data em que lhe for dado conhecimento do vencimento da obrigação do subscritor. Ou seja, a consequência é apenas a da quantia inscrita na livrança não vencer juros no período subsequente à data do vencimento da livrança até à citação para a execução. Já não também a de pôr em causa os juros que a relação fundamental foi vencendo até ao vencimento.

            Isto sem prejuízo de o valor com que a livrança em branco foi preenchida poder ser posto em causa autonomamente pelo avalista que seja parte no pacto de preenchimento, por adesão, como é o caso dos autos como já se viu, mas isso apenas por razões que tivessem a ver com a relação fundamental (Carolina Cunha, págs. 97 e 98 da anotação referida) e não pelo facto de o vencimento da obrigação não ter sido dado a conhecer ao pré-avalista.

                     *

Do regime dos arts. 653 e 654 do CC

               Diz depois o embargante:

         “O exequente não deu conhecimento ao avalista do incumprimento do devedor garantido pelo que deve considerar-se extinta a garantia nos termos aplicáveis, mutatis mutandis dos arts. 653 e 654 do Código Civil.

         Ao aval aplicam-se mutatis mutandis as regras da fiança que não contradigam o seu carácter cambiário (ibidem, Abel Delgado).

         Logo deve o embargante ser considerado legitimamente desonerado da obrigação, fundada a recusa de cumprimento e liberado da obrigação por impossibilidade de sub-rogação imputáveis ao credor, nos termos conjugados dos arts. 638/2, 653 e 640/2, todos do CC.”            

            Para além de não estar provado que o exequente não tenha dado conhecimento ao embargante de que a sociedade não cumpriu a obrigação, não há no regime da fiança qualquer norma que diga que esse facto, tenha a consequência da extinção da fiança.

            Por outro lado, para poder aproveitar do regime dos arts. 638/2, 653 e 654 do CC, o embargante, para além de ter de fazer um esforço para justificar a aplicação dessas normas à situação dos autos que não é de fiança, ainda teria de alegar e provar factos de onde se pudesse concluir que daquela falta (de comunicação) tinha decorrido a insatisfação do direito do exequente (art. 638/2 do CC), o que é um contra-senso; ou que, por causa dela, ele, embargante, não pôde ficar sub-rogado nos direitos que ao exequente competem (art. 653 do CC); ou que, por causa dela, a situação patrimonial da sociedade executada se tinha agravado em termos de pôr em risco os direitos eventuais do embargante contra ela (art. 654 do CC), o que não fez.

 

            Da indeterminabilidade da garantia por falta de prazo certo

            Diz depois o embargante:

         “Acresce que, como para o caso análogo da fiança, a entrega neste caso de uma livrança em branco para garantir o pagamento de eventual futuro incumprimento da obrigada principal, tendo ocorrido acordo ou autorização para o seu preenchimento, não pode ficar, a determinação da prestação, totalmente ao arbítrio de uma parte, à inteira mercê do banco, quer quanto a prazos de vencimento, juros, montante e oportunidade do seu uso e exigência de pagamento.

         No caso, tal autorização é inadmissível que permaneça e não seja sequer avisado o avalista do curso do contrato garantido, sendo este um contrato de curto prazo, 90 dias, embora renovável, celebrado em 1998.

         O aval não pode ser uma obrigação ad aeternum pois, o sistema jurídico no seu todo, repugna tal entendimento, mormente o art. 280/2 do CC, o art. 18 do DL 446/85 (Lei das Clausulas Contratuais Gerais) conjugados com o art. 9/3 do CC.

         A livrança exequenda encontra-se nas relações imediatas pois estamos perante o portador inicial e o avalista interveniente no pacto de preenchimento.

         Por força do art. 77 da LULL é aplicável às livranças o disposto para as letras, no caso o art. 10 da mesma LULL, pelo que é invocável a excepção de preenchimento abusivo da livrança dada à execução.

         Os factos provados demonstram que o agir do banco contra o embargante constitui uma violação do art. 280 CC e atenta contra os princípios da boa-fé negocial na esteira da inúmera jurisprudência, vide ac. do STJ de 21/0[1]/1993 in CJ1993, tomo I, pag.71 [trata da nulidade da fiança por indeterminabilidade do objecto, art. 280 do CC = 081475, só sumário]; ac. do STJ de 11/05/1993 in CJ1993, tomo II, pag[s. 98 a 100 – idem = 083517, só sumário]; ac. do STJ de 24/02/1999 [impossível de localizar], e AUJ n.º 04/2001 in DR, Série 1-A de 08/03/2001 [os parenteses rectos foram introduzidos por este acórdão]

         Pelo que é nula uma tal vinculação por acordo ou autorização de preenchimento de livrança em branco, nulidade que se argui e que por estarmos nas relações imediatas não poder deixar de afectar as obrigações cambiárias.”

            Embora misturado com outras razões, a questão que esta parte das alegações levanta é a da indeterminabilidade da vinculação daquele que dá um aval num título em branco, que tem sido posta quanto à necessidade de ser determinável quer o montante pelo qual poderá ter de responder, quer a duração da sua vinculação.

            Assim, por exemplo e por último, o artigo já citado de Evaristo Mendes [Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio]:

         [13] […] a responsabilidade assumida – de resto agravada em virtude do artigo 10 da LULL – deve ser abarcável; de contrário, não existe um mínimo de racionalidade necessário para a vinculação jurídica. Tal requisito não se encontra, sem mais, preenchido se o pacto de preenchimento tiver um carácter aberto, sem a definição, pelo menos, de um valor máximo de responsabilidade e das fontes desta. Como o não está se o pacto puder ser modificado, designadamente, por ampliação da relação subjacente, sem o consentimento dos avalistas e com eficácia face a eles. O mesmo acontece se faltar a fixação de um prazo de duração da vinculação. Este aspecto pode, no entanto, ser substancialmente resolvido através do reconhecimento ao pré-avalista de um direito de denúncia do pré-aval enquanto garantia de cobertura da relação de negócios existente entre a sua sociedade e o financiador destinatário da garantia, especificando o valor da dívida existente nesse momento e limitando o objecto do pré-aval a esse valor.”

         […]

         [16] Quando a livrança em branco respeita genericamente (i) a uma conta-corrente associada a um contrato de factoring, a um contrato-quadro de desconto de títulos ou relativo a instrumentos financeiros, a um contrato de abertura de crédito em conta-corrente com cláusula «revolving», etc., via de regra contratos de duração indeterminada ou concluídos por certo prazo renovável (sem o consentimento dos avalistas), ou respeita (ii) a uma conta na qual se repercutem os resultados de uma pluralidade de contratos deste tipo, haverá um pacto de preenchimento aberto, cobrindo o pré-aval a relação de negócios desse modo estabelecida entre a sociedade e o seu financiador, com todas as responsabilidades daí advenientes. É em relação a esta vinculação pré-cambiária que importa determinar, por aplicação das referidas as regras de interpretação e integração, o sentido do respectivo negócio constitutivo e definir as condições de validade do mesmo.”

            E antes disso, dizia este autor:

         “[8] Para o negócio jurídico de emissão do documento de livrança em branco, com a correspondente obrigação do subscritor-emitente, ter um objecto determinável e para a definição deste – juntamente com a elevação do documento e da obrigação à condição jurídica de negócio e obrigação cambiários, sujeitos ao regime de rigor da LULL – não ficar sujeita ao poder arbitrário de um terceiro (portador do documento), torna-se necessário um pacto de preenchimento, expresso ou tácito, entre esse emitente e o tomador do documento, que regule o exercício do «poder de facto» detido por este, juridificando-o. De modo que a vinculação preliminar aqui descortinável resulta do conjunto formado pelo documento e por esse acordo, via de regra moldado pela relação fundamental de financiamento e com frequência inserido formalmente no contrato que rege essa relação fundamental.

     [9] Também as pré-garantias de aval, enquanto vinculações preliminares convertíveis em avales, carecem de um objecto determinável (art. 280/1 do CC); ou seja, precisam de um pacto de preenchimento, expresso ou tácito, que permita a definição desse objecto. Este tanto pode ser um acordo pessoal, à margem do documento de livrança, celebrado directamente entre os respectivos autores, o banco financiador que os requer e/ou a sociedade avalizada, como ser constituído pelo pacto de preenchimento relativo a esse documento de livrança.

         […]

           4. Além disso, contendo o documento uma promessa de pagamento e garantias de pagamento sem indicação do montante, se não houvesse elementos adicionais capazes de permitir a determinação desse objecto da obrigação e das garantias, tanto o negócio jurídico de constituição da dívida, do subscritor-emitente, como os negócios constitutivos das garantias, dos avalistas, seriam nulos, nos termos gerais (art. 280/1 do CC). Daí a essencialidade dos acordos ou pactos de preenchimento a que alude o artigo 10 da LULL.”

            Ora, no caso dos autos, o pacto de preenchimento a que o embargante aderiu consta de um contrato pelo que se sabe qual a fonte da responsabilidade e o valor máximo do capital da mesma (10.000 contos), pelo que não se pode falar de indeterminabilidade da obrigação do embargante (quer na fase pré-cambiária, quer na posterior fase cambiária) quanto ao montante da responsabilidade.

            Quanto à duração da vinculação do pré-avalista, que parece não ter nenhuma limitação temporal visto o teor do pacto de preenchimento ao qual ele aderiu, o que levaria à qualificação da mesma como uma obrigação duradoura decorrente de um contrato, ela não seria nula (por indeterminabilidade) porque há muito que se admite a possibilidade de desvinculação unilateral em qualquer relação duradoura, seja ou não com justa causa (principalmente a partir das duas anotações de Baptista Machado, publicadas no ano 120, 1987, da Revista de Legislação e Jurisprudência, págs. 57/64 e 183/192, sendo que esta última é ao ac. do STJ de 17/04/1986, publicado nas págs. 178/183 desse número dessa revista, que nas conclusões vai no mesmo sentido: III. O contrato de agência por tempo indeterminado é livremente denunciável por qualquer das partes, ocorra ou não justa causa; no entanto, não havendo justa causa, o contrato só deve ser denunciado com aviso, prévio, com antecedência conveniente, para que a parte possa prover aos seus interesses. […]).

            Na síntese de Cassiano dos Santos (citado, na RLJ, págs. 316/317 e notas 4, 5 e 6, e pág. 344 – muitas outras referências doutrinárias são feitas por Januário Gomes, notas 64 e 75 das págs. 42 e 44 da anotação já referida):

         “A generalidade da doutrina e da jurispru­dência têm hoje como assente o princípio da inadmissibilidade de vinculações perpétuas ou de duração indefinida – princípio geral do direito privado, de ordem pública, que vale, pois, tanto no direito comum das obrigações como no direito comercial. Em consequência, não se proscrevendo evidentemente a assunção de vínculos sem prazo, entende-se que estes têm subjacente a possibilidade de serem extintos a todo o tempo – essa extinção ­faz-se por denúncia, cuja admissibilidade é, portanto, uma consequência ou afloramento daquele princípio. A possibilidade de denúncia de um vínculo duradouro sem prazo filia-se destarte na preservação da essen­cial liberdade dos sujeitos e, em especial, na inadmissibilidade de vinculações perpétuas ou indefinidas.”

            Em suma, apesar de o contrato de abertura de crédito subjacente à emissão do documento para livrança – um crédito revolving (nos termos de Januário Gomes) – ser um contrato que se pode considerar duradouro, derivado da renovação automática do prazo, e muito mais o poder ser o contrato de garantia que o embargante celebrou (englobando o pacto de preenchimento incluindo naquele contrato e o documento em branco, ambos assinados por ele – Januário Gomes, anotação citada, págs. 42 a 45 da anotação referida), porque está dependente da vontade de terceiro em pôr cobro à renovação automática do contrato de abertura de crédito, dele não resultaria a nulidade do mesmo se se reconhecesse ao pré-avalista a possibilidade de se desvincular do mesmo.

              Neste sentido, com aplicação ao pré-aval e já depois da publicado do AUJ referido à frente, vão Cassiano dos Santos, Januário Gomes – lembrando que “a atribuição ao avalista em branco que garante uma operação sem prazo do poder de se desvincular relativamente a dívidas posteriores à eficácia da declaração de desvinculação constitui um requisito essencial de validade deste tipo de garantias” (pág. 42) – e Evaristo Mendes – lembrando (§6 do ponto 9 do referido artigo) que ninguém pode vincular-se por uma garantia geradora de uma responsabilidade potencial inabarcável, ninguém pode ficar sujeito perante outrem a uma vinculação potestativa de duração e/ou objecto (valor) ilimitados, bem como o princípio da proibição dos vínculos perpétuos e o regime das CCG.

              Na síntese deste último professor:

        13. No caso de a relação de negócios coberta pela garantia ser uma relação duradoura, sem fixação de prazo ou com fixação de prazo renovável automaticamente, o sócio que apõe a sua assinatura no associado documento de livrança em branco, como avalista, tem, nos termos gerais, o direito de, unilateralmente e sem invocar causa justificativa(«ad nutum»), declarar ao banco portador do documento de livrança que a sua garantia deixa de ter por objecto tal relação de negócios, passando a circunscrever-se à dívida existente nesse momento. O que, em caso de cessação da qualidade de sócio, significa uma possibilidade de desvinculação (parcial) independente[mente] de se considerar que há justo fundamento para a mesma.

          Já se não se reconhecesse a possibilidade de desvinculação do pré-avalista teríamos, como resulta do que antecede, na expressão de Januário Gomes, um “aval em branco insustentável, se não mesmo insuportável”, pois que ele estaria eternamente vinculado e, nesse caso, ele seria necessariamente nulo.

         É certo, no entanto, que esta não é a posição que resulta do ac. do STJ de uniformização de jurisprudência de 11/12/2012, nº 4/2013, no DR de 21.01.2013 (1ª série): «Tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada», mas este AUJ, segundo a doutrina citada acima, incorreria no equívoco de considerar que um pré-aval aposto numa livrança em branco é um aval cambiário e por isso irrevogável, quando, como se viu, tal não seria o caso.

              Já Pedro Pais de Vasconcelos, em defesa deste AUJ, entende que durante o tempo anterior ao preenchimento da livrança sem montante nem data, a dívida cambiária já existe e é de tempo indeterminado mas não indeterminável porque a determinação é feita no acto do preenchimento do título e este não é descontrolado, nem incontrolado nem arbitrário – Avales dos sócios de sociedade comerciais, DSR, Março de 2014, Almedina, pág. 31 (mas contra poderia dizer-se que isto não impede que para o pré-avalista essa determinação não tenha qualquer prazo para vir ocorrer, sendo pois para ele uma duração sem prazo).

            Seja como for, daqui decorrem duas hipóteses:

            Numa primeira, aceitando-se a aplicação da posição do AUJ 4/2013 ao pré-aval, entender-se-ia que o contrato não podia ser denunciado pelo embargante e então estava-se perante um contrato duradouro sem possibilidade de desvinculação, o que conduziria à indeterminabilidade do mesmo quanto à duração. O contrato seria por isso nulo. Mas o AUJ ao concluir pela indenunciabilidade está a pressupor a validade do mesmo, o que impede a conclusão da nulidade (no mesmo sentido, vai Pedro Pais Vasconcelos).

            Na segunda, não se aceita a aplicação da posição do AUJ ao pré-aval e, por isso, o contrato de garantia pelo qual o embargante ficou obrigado, que inclui o pacto de preenchimento, não seria nulo por indeterminação da duração do mesmo, já que pode ser sempre denunciado pelo pré-avalista.

            Em qualquer dos casos chega-se à conclusão de que a obrigação do embargante não é nula por indeterminação (art. 280 do CC).

             *

Da necessidade da manifestação da vontade de desvinculação

            Com isto, o embargante não fica prejudicado.

            O que ele tinha de fazer era denunciar o contrato (de garantia) ou o acordo (de preenchimento).

            Perante essa denúncia, aqueles que fazem a aplicação da tese que fez vencimento no AUJ 4/2013 ao caso do pré-aval, não a aceitariam mas, se a situação fosse a que o embargante descrevia na petição inicial, fariam aplicação do abuso de direito (art. 334 do CC) e impediriam que o exequente pudesse beneficiar da situação (como se verá à frente, quando se tratar da questão do abuso de direito).

            Aqueles que, seguindo a posição dos autores citados acima, não fazem a aplicação do AUJ à situação do pré-aval, aceitariam a denúncia do contrato pelo embargante e tirariam dela as devidas consequências, para o futuro, no que se refere aos montantes utilizados pela sociedade após a denúncia. Ou seja, após a denúncia, válida e eficaz, do acordo de preenchimento, o tomador da livrança já não a poderia preencher com valores “recebidos” (no sentido lato que dá a este termo Carolina Cunha, na nota 39 da anotação em causa) pela sociedade depois da denúncia, e caso o fizesse o embargante podia invocar a violação dos acordos realizados (art. 10 da LULL).

            Assim sendo, vê-se que o problema posto como sendo de indeterminabilidade da obrigação é mais precisamente do reconhecimento ou não da possibilidade do embargante se desvincular do pré-aval.

            Mas para isso o embargante teria de ter tentado desvincular-se do aval, denunciando o acordo de preenchimento, o que não fez.

         Neste sentido, por exemplo, veja-se o ac. do TRP de 17/03/2016, proc. 7133/12.9YYPRT-A.P1: “V – A ser possível ao avalista em branco libertar-se da obrigação que assumiu ao entregar a livrança assinada em branco, por denuncia ou resolução com justa causa, tal faculdade terá sempre de ser exercida até ao momento do preenchimento, de forma fundamentada no caso da resolução, mediante comunicação ao portador da livrança, não podendo ser apenas fundamento da oposição à execução com base no título entretanto preenchido.”

*

         Da existência de prazo

            O que antecede parte da conclusão de que a garantia dada pelo embargante não estava sujeita a prazo no que respeita ao pré-avalista. O Prof. Januário Gomes admite, no entanto, “que por interpretação do ‘conjunto’ formado pelo contrato de crédito e pelo contrato de garantia, seja possível concluir no sentido de que a este último são também aplicáveis os prazos clausulados para o contrato de crédito” (págs. 43 e 44 e nota 69).

            Mais longe vai Cassiano dos Santos (anotação citada, págs. 344 a 346) que entende que “mesmo que o prazo [do contrato de crédito] não se aplique formalmente ao pacto de preenchimento, ele estará normalmente implícito nele” e, por isso, este autor considera que a hipótese de o acordo de preenchimento não ter prazo não será comum e, por isso, também não será comum ele poder ser denunciado sem causa.

            A questão é que, se fosse possível estender, no caso dos autos a possibilidade de oposição à renovação do contrato aos pré-avalistas, então o que o embargante teria de ter feito era opôr-se à renovação.

            O que o embargante também não fez, pelo que a construção não lhe aproveita.

*

Das consequências da cessação da qualidade de sócio

            Para além da possibilidade de denúncia do contrato de garantia ou acordo de preenchimento – ou eventual oposição à sua renovação – o embargante ainda pode ter a possibilidade de o resolver com base na inexigibilidade da sua vinculação ao pré-aval depois de ter cedido as quotas a terceiro.

            É a posição de Januário Gomes e de Evaristo Mendes.

            Assim, segundo o Professor Januário Gomes (pág. 44):

         “[…] a circunstância de não estarem ou poderem não estar preenchidos os requisito da denúncia […] não impede a convocação e a aplicação a figura da resolução, aqui também, necessariamente, com efeitos ex nunc, já que, a priori, poderá ser inexigível a continuação da vinculação como garante relativamente a novas situações de dívida, quando o avalista deixa de ter interesses na sociedade enquanto sócio, tendo sido este – o de sócio – o status determinante do aval em branco.”

         [..]

         Trata-se da aplicação à situação em estudo da doutrina da inexigibilidade enquanto legitimadora do rompimento resolutivo da relação contratual duradoura.”

            Ou nos termos do Prof. Evaristo Mendes:

     10. […] a perda da qualidade de sócio, apesar de significar a insubsistência de um pressuposto da manutenção da garantia de cobertura da relação de negócios existente entre a instituição de crédito e a sociedade, não opera automaticamente a cessação dessa cobertura. O que se justifica é reconhecer ao ex-sócio um direito de lhe pôr termo, limitando a sua responsabilidade ao valor que estiver em dívida, como se assinalou.

         A perda da qualidade de sócio funciona como causa ou justificação do direito – de carácter negocial (apoiada na interpretação e integração da declaração de aval aposta no documento de livrança em branco, tendo designadamente em conta a sua finalidade, a razão que a justificou e a boa fé) e/ou de índole legal (resolução-redução por inexigibilidade, atendendo sobretudo à circunstância de o ex-sócio deixar de acompanhar a evolução da relação de negócios em apreço), que o ex-sócio exercerá ou não, como entender.

            A Profª. Carolina Cunha (que entende que “não é exacto mobilizar uma faculdade de denúncia, entendida como poder de desvinculação ad nutum) fala nesta faculdade de resolução por justa causa ligada à inexigibilidade de o manter vinculado depois de se desligar da qualidade de sócio (págs. 105 a 109 da anotação em causa = págs. 209 a 213 do Manual de letras e livranças, 2016, Almedina; neste, a autora lembra que também Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Tomo X, pág. 601, diz que a orientação do Supremo deixa sem defesa muitos avalistas totalmente desprevenidos e que faz votos para que ela seja rapidamente afastada – nota 601da pág. 221).

            O Prof. Cassiano dos Santos também admite esta possibilidade, se o contrato, devidamente interpretado ou integrado, previr a resolução por essa causa, mas “condicionada a que o ex-sócio ou a sociedade ofereçam a substituição da garantia por outra de valor equivalente.” (págs. 342/343).

            Acompanhando aqueles três primeiros autores (ou do último nas condições por ele referidas), poderia ser reconhecido ao pré-avalista esse direito de resolução, desde que comunicasse ao mutuante a sua saída da sociedade executada, com o fim de fazer cessar a vinculação como pré-avalista, também com efeitos apenas para o futuro.

               Neste sentido, o ac. do TRP de 27/02/2014, p 3871/12.4TBVFR-A.P1, que o relator do actual subscreveu como 1º adjunto, em que se deu como provada a denúncia (convolada para resolução), revogado pelo ac. do STJ de 11/09/2014, proc. 3871/12.4 TBVFR-A.P1.S1, com o argumento de que para decidir em sentido contrário a um AUJ é necessário trazer uma argumentação nova e ponderosa, quer pela via da evolução doutrinal posterior, quer pela via da actualização interpretativa.

            E este direito poderia ser reconhecido mesmo por aqueles que aplicam o AUJ 4/2013 à situação do pré-aval, como o sugeriu a primeira declaração de voto desse AUJ (directamente ou como parte de uma situação que poderia ser aproveitada para se aplicar, dadas certas circunstâncias, o instituto do abuso de direito, nos termos referidos mais à frente).

            Mas isso desde que o pré-avalista, sócio e gerente da sociedade executada, que assinou o contrato que incluiu o pacto de preenchimento, fizesse essa comunicação ao mutuante (art. 224 do CC)

            Não bastaria para tal o simples conhecimento que o mutuante tivesse da cessação da qualidade do sócio e gerente da sociedade, conhecimento que, aliás, no caso dos autos, nem sequer se se sabe quando ocorreu.

            Ou seja, teria de haver uma declaração de vontade do sócio gerente de desvinculação da obrigação pré-cambiária. Que poderia talvez bastar-se com a simples comunicação ao banco da cessão de quotas, sem uma coeva declaração de desvinculação, se aquela pudesse ser vista como facto concludente de uma declaração tácita de desvinculação (Januário Gomes, nota 70, e Carolina Cunha, págs. 99/100). Mas que não existe pelo simples facto de ele ter deixado de ser sócio e gerente da sociedade, mesmo que tal seja (não se sabe desde quanto) do conhecimento do mutuante.

                                                      *

            Das cláusulas contratuais gerais – das cláusulas abusivas e da falta de comunicação das mesmas

            Diz, de seguida, o embargante

         “Acresce que, sendo a livrança em branco, assinada em data muito remota, para garantir empréstimo de curto prazo, noventa dias, e tratando-se de aval incompleto, o mesmo é nulo por falta de comunicação ao avalista quer de incumprimento do contrato garantido que levasse a um incumprimento definitivo, quer o incumprimento definitivo, quer a decisão de preenchimento da livrança.

         E assim, também é nulo por violação das regras do seu preenchimento bem como do principio da boa fé, o qual é estrutural da nossa ordem jurídica, art. 3/1 do CC, principio normativo cuja violação constitui vício que torna nulo o título.

         Mais se dirá que a autorização de preenchimento dada pelo embargante é nula nos termos dos arts. 19, 16 e 8 todos do DL 446/85, já que o banco terá pré-elaborado clausulado que as partes tiveram que aderir, nulidade também se invoca por força dos arts. 280 e 294 do CC.”

            Com repetição e mistura de argumentos, o que o embargante está aqui a invocar é a questão da celebração do contrato e do pacto de preenchimento com uso de cláusulas contratuais gerais.

        Aquilo que o embargante dizia na oposição, correspondente a esta matéria, foi transcrito na íntegra, acima, no relatório deste acórdão para agora poder ser tido em consideração.

            Dessa transcrição decorre claramente que só formalmente e de forma conclusiva e duvidosa (o futuro do presente simples utilizado expressa uma dúvida), com referência a artigos do DL 446/85, é que o embargante levantava a questão do uso de cláusulas contratuais gerais.

            Já o que de substancial ele dizia sobre o contrato podia ser lido em sentido perfeitamente contrário: o contrato tinha sido negociado em troca de correspondência entre o exequente e a sociedade representada por sócio gerente, troca essa da qual tinham resultado as cláusulas que regulavam o empréstimo, incluindo a que respeitava ao pacto de preenchimento.

            Não tendo o executado levantado de facto, substancialmente, o problema de o contrato de crédito ter sido celebrado por simples adesão da sociedade executada, com um pacto de preenchimento a que também os executados se teriam limitado a aderir, não havia qualquer razão para se estar a discutir – nem se discutiu – a questão da falta de comunicação das cláusulas contratuais gerais, questão a que se reporta o art. 8 do regime do DL 446/85.

            Mas, limitadamente ao acordo de preenchimento, importa referir, por se ter dito o que se disse acima sobre a ‘adesão’ do embargante ao mesmo, que não se aceita, nas precisas circunstâncias deste caso, que o embargante pudesse vir dizer, com razão, que não teve conhecimento do mesmo ou do seu alcance por falta de comunicação, pelo credor, da cláusula respectiva, já que, por um lado, o embargante assinou o aval – previsto no acordo de preenchimento – no verso da livrança em branco, por outro assinou o contrato de crédito como gerente da sociedade (contrato que inclui o pacto de preenchimento e que terá sido negociado entre credor e sociedade nos dizeres do próprio e que portanto não foi de adesão) e ainda o assinou como pré-avalista (de algum modo neste sentido, veja-se Carolina Cunha, em Letras e livranças, págs. 622 a 625 ≈ Manual págs. 221 a 223).

              Por último, nesta parte, diga-se ainda que a eventual exclusão do pacto de preenchimento (que, no caso, não se aceita e por isso não se desenvolve aqui a questão), não teria nunca as consequências da nulidade do aval em branco, como se pode ver, por exemplo, no ac. do TRP de 17/03/2016, proc. 7133/12.9YYPRT-A.P1, já citado, com ampla fundamentação.

            Ainda mais conclusiva, se possível, é a questão da abusividade das cláusulas que apenas aflora na referência feita pelo embargante aos arts. 16 e 19 do DL 446/85, sem concretização, sequer, das alíneas do art. 19 que poderiam estar em causa.

            Isto sem prejuízo da questão de algumas das cláusulas do contrato serem objecto de apreciação a outros títulos (como já o foram, quanto à questão da duração do contrato, que poderia ter algo a ver com o art. 18 – nunca referido pelo embargante – do DL 446/85, com alteração de 1995, mais precisamente na alínea j).

*

Do abuso de direito

         Finalmente, o embargante, invocando de novo vários dos argumentos ou pressupostos de argumentos já invocados e referindo afirmações de facto como se estivessem provadas, chega ao instituto do abuso de direito, dizendo o seguinte:  

        “O exequente estaria a agir com abuso pois esteve mais de cinco anos sem agir e exigir o cumprimento das obrigações e, sem avisar, o embargante do incumprimento da devedora principal, deixou correr o tempo ciente de que os juros correm a seu favor.

         E o decurso do tempo sem exigir o cumprimento beneficia o banco porquanto a taxa de juros contratual e de mora exigível são-lhe vantajosas e mantinha sempre vários obrigados, mesmo quando estes estavam cientes de contrário.

         Estamos perante um claro abuso de direito, a uma pretensão que faz de uma vinculação para um contrato de curto prazo, uma vinculação à disposição do credor e com foros de vinculação ad aeternum.

         Ora, atentemos que se alcança dos factos provados:

         – A existência dum comportamento anterior do banco susceptível de basear uma situação objectiva de confiança;

         – A imputabilidade das duas condutas, anterior e actual ao banco exequente;

         – A boa-fé do executado;

         – A existência de um “investimento de confiança” do executado face ao decurso dos anos, ao facto de ser conhecido do exequente e a situação da sua saída da devedora principal ser conhecida do banco e o contrato ter sido de curto prazo (90 dias);

         – Confiança do exequente com base em factum proprium do exequente;

         – Nexos de causalidade entre a situação objectiva de confiança e a existência do supra referido “investimento”.

         Ora, a actuação do banco exequente excede de forma manifesta e desrazoavelmente os ditames da boa-fé e do direito, o que torna ilegítimo o exercício do seu direito contra o recorrente, nos termos do art. 334 do CC.

         Trata-se da proibição de venire contra factum proprium, impedindo-se pretensão que é contraditória e até incompatível com a conduta anterior do banco até à dedução da execução em juízo.

         E neste caso veta-se o exercício de um direito subjectivo ou pretensão por o seu titular não ter exercido o seu direito durante muito tempo, criando no embargante uma fundada expectativa de que já não seria exercido um tal direito.

         Pelo que exercendo afinal o exequente esse direito, posteriormente à sua conduta que criou o estado de confiança no executado, isso representa um exercício manifestamente desleal e intolerável, depois de os demais obrigados já terem exaurido os seus patrimónios impedindo o executado e embargante de agir em sub-rogação.

         Conduta do exequente que viola o princípio da boa-fé, art. 3 n.º 1 conjugado com o art. 334, ambos do CC, principio normativo que significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, no exercício dos seus direitos e deveres, não podendo defraudar a legitima confiança ou expectativa criada nos outros enquanto contrapartes, e atenta também contra os bens costumes correspondentes ao sentido ético comum e imperante na comunidade social e que conforma a chamada moral objectiva.

         Princípios que densificam a norma do art. 334 que apela ao instituto do abuso de direito que assim reage contra um direito aparente que por isso o considera ilegítimo no seu exercício, ilegitimidade que significa mais propriamente antijuridicidade ou ilicitude.

         Pelo que o exequente actua com abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium ao accionar livrança em 2006 que o executado avalizou em branco, em 1998, quando era sócio e gerente da empresa devedora, da qual saiu deixando se ser sócio e gerente em 1999, do que o exequente teve conhecimento e tendo o executado como seu cliente na sua nova actividade.

         Agravado com o facto de o exequente ter accionado judicialmente tal livrança, preenchendo-a sem avisar o referido avalista.

         Pois, o exequente, por força de ter sabido da saída do executado da devedora principal, por força do prazo curto do contrato, 90 dias, por força de o executado ter continuado a ser cliente do banco na sua nova actividade fora da antiga empresa, por força de ter permanecido até ao ano de 2005 sem qualquer aviso ou acto relativo a tal vinculação remota, criou a convicção no executado para se sentir desobrigado dessa garantia.

         Perante isto, podia o executado fundadamente confiar que tanto tempo depois de ter saído da sociedade devedora, deixando de ser sócio e gerente, o banco não accionaria o aval porquanto já teria a dívida sido paga ou exigida à devedora principal, atento o facto de ao longo de mais de cinco anos ter continuado a ser cliente do banco e jamais ter notícia de tal contrato da antiga sociedade, confiança estribada no lapso temporal decorrido.

         Ergo, verificando-se um abuso de direito as consequências do comportamento abusivo são as mesmas de qualquer actuação sem direito, ou seja, no caso, considerando abusivo o exercício do direito plasmado na livrança, tolhendo o seu exercício na acção executivo, por o considerar ilegítimo nos termos do art. 334 do CC, o que se impetra e arguí de forma expressa, tal como se fez na petição de oposição.”

            Todas as questões que subjazem a esta argumentação já foram decididas acima. A questão só tem autonomia no contexto daquilo que foi discutido acima e mais precisamente da solução que foi dada pelo ac. do STJ de 12/11/2013, proc. 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1 (na sequência do ac. do TRC de 21/05/2013, 1464/11.2TBGRD-A.C1), que, por ter seguido a posição da aplicação do AUJ 4/2013, teve que ir pelo caminho do abuso de direito:

          I – A proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito (art. 334 do CC), nessa medida sendo de conhecimento oficioso; no entanto, não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório.

          II – São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.

          III – O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334 do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.

          IV – Actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o banco que acciona uma livrança, que os executados avalizaram em branco, oito anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na qual tinham interesse, tendo o exequente conhecimento que estes só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora, sendo que, na altura do afastamento (meados de 2003), a conta caucionada de que a sociedade era titular encontrava-se regularizada e, posteriormente (já depois de 2004), o exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através da renovação do contrato de abertura de crédito que tivera início em 03/07/2002.

          V – Perante estes dados de facto, verifica-se que os executados podiam fundadamente confiar que, tanto tempo depois de se terem apartado da sociedade subscritora, o banco não accionaria o aval que prestaram: é inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelo exequente, na exacta medida em que trai a confiança gerada nos executados pelo seu comportamento anterior, confiança essa objectivamente reforçada pelo decurso de um tão dilatado lapso de tempo.

            No caso dos autos não se verificam as circunstâncias da situação descrita no acórdão que antecede: desde logo, todos os factos que o embargante alegava, no essencial com o mesmo sentido daqueles que constam do ponto IV do sumário do acórdão e que permitiam as conclusões do ponto V do mesmo sumário, não se provaram; provou-se apenas que o exequente teve conhecimento – não se sabe quando – que o embargante saiu da sociedade (facto 9) que, só por si, não permite aquelas conclusões.

            Nem o permitem os factos provados, ou seja, na parte que importa: o contrato foi assinado em Agosto de 1998, o embargante saiu da sociedade em Agosto de 1999 (o que foi do conhecimento do exequente sem que se saiba em que data é que teve esse conhecimento), em Janeiro de 2005 o embargante teve conhecimento de que a divida resultante do contrato celebrado não estaria paga (mas não se sabe quando é que o incumprimento ocorreu), a livrança foi preenchida com data de vencimento de Outubro de 2005 e o exequente exerceu judicialmente o direito em Janeiro de 2006.

                                                           *

            Pelo exposto, julga-se procedente o recurso apenas quanto a parte dos juros da quantia exequenda; revoga-se pois a sentença recorrida nessa parte, mantendo-se na parte restante, pelo que a execução deve prosseguir mas limitada, quanto ao embargante, ao valor de 53.829,43€ e juros vencidos desde a citação para a execução.

            Custas, quer do recurso quer da oposição, pelo exequente e pelo embargante, na proporção do decaimento.

            Porto, 16/06/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto